Category: Santo Tomás de Aquino
O sexto discute-se assim. – Parece que um juízo usurpado não se torna pervertido.
1. – Pois, a justiça é uma certa retidão no agir. Ora, a verdade nada tem a perder seja quem for que a diga; mas, devemos aceitá-la de quem quer que seja. Logo, também nada perde a justiça, seja quem for que determine o justo - o que constitui a essência mesma do juízo.
2. Demais. – Ao juízo compete punir os pecados. Ora, de certos se lê que puniram, louvavelmente, os pecados, sem contudo ter autoridade sobre os que puniram. Tal o caso de Moisés, quando matou um egípcio, conforme o relata a Escritura; e o de Fineas, filho de Eleazar, que matou Zambri, filho de Salomé, como o refere a mesma Escritura: e foi-lhe imputado a justiça, diz o salmista. Logo, a usurpaçâo do juízo não implica em injustiça.
3. Demais. – O poder espiritual distingue-se às vezes, os prelados, tendo o poder espiritual, intrometem-se no que pertence ao poder secular. Logo, o juízo usurpado não é ilícito.
4. Demais. – Para julgarmos com retidão é preciso que tenhamos, não só autoridade, mas também justiça e ciência, como do sobredito resulta. Ora, não dizemos que é injusto o juízo de quem julga sem o hábito da justiça ou a ciência de direito. Logo, também nem sempre o juízo usurpado, por falta de autoridade, será injusto.
Mas, em contrário, a Escritura: Quem és tu que julgas o servo alheio?
SOLUÇÃO – O juízo, devendo ser pronunciado de acordo com as leis escritas, quem o pronuncia interpreta, de certo modo, a letra da lei, aplicando-a a um caso particular. Ora, pertencendo à mesma autoridade interpretar e fazer as leis, assim como ela não pode fazê-las, senão como autoridade pública, assim também, só nessa mesma qualidade é que pode pronunciar um juízo, estendendose essa autoridade aos membros da comunidade que lhe estão sujeitos. Portanto, assim como seria injusto obrigarmos alguém a observar uma lei não sancionada pela autoridade pública, assim também sê-lo-ia o compelíssimos a pronunciar um juízo não fundado nessa autoridade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O fato de ser enunciada uma verdade não implica em que outrem seja obrigado a aceitá-la; mas cada qual é livre de aceitá-la ou não, conforme o quiser. Mas, o juízo implica uma certa obrigação. Por onde, é injusto sermos julgados por quem não tem autoridade pública.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Moisés matou um egípcio, quase levado por inspiração divina, como se pode concluir das palavras do Apóstolo, quando diz que, matando o egípcio, cuidava Moisés que seus irmãos estavam capacitados de que por sua mão havia Deus de livrar Israel. - Ou se pode dizer que Moisés matou um egípcio, para defender o que lhe sofria os maus tratos, usando de uma justa moderação na sua defesa. Donde o dizer Ambrósio que quem não defende o seu companheiro, da injúria, podendo-o, procede tão mal como o que o injuria; e o comprova com o exemplo de Moisés. - Ou se pode dizer, com Agostinho, que assim como uma terra é gabada pela sua fertilidade, por produzir ervas inúteis, antes mesmo de fazer germinar as sementes úteis; assim, o referido ato de Moisés foi certamente vicioso porque pressagiava sinais de grande fertilidade, isto é, por ser sinal do poder daquele por quem o povo foi libertado. Sobre Fineas, devemos dizer que procedeu por inspiração divina, levado pelo zelo da glória de Deus. Ou porque embora ainda não fosse sumo sacerdote, era, contudo, filho do sumo sacerdote, e tal juízo lhe competia, como aos outros juízes, a quem era ordenada esse modo de agir.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O poder secular está sujeito ao espiritual, como o corpo à alma. Por onde, não é usurpado o juízo do prelado espiritual que se intromete com as coisas temporais, na medida em que o poder secular lhe está sujeito, ou que lhe são confiadas coisas da alçada desse poder.
RESPOSTA À QUARTA. – O hábito da ciência e o da justiça são perfeições da pessoa particular. Por onde, a falta deles não torna o juízo usurpado, como o torna a falta de autoridade pública, a qual dá ao juízo a força coativa.
O quinto discute-se assim. – Parece que não devemos sempre julgar de acordo com as leis escritas.
1. – Pois. devemos sempre evitar o juízo injusto. Ora, às vezes, há injustiça nas leis escritas, conforme àquilo da Escritura. Ai dos que estabelecem leis iníquas e, escrevendo, escreveram injustiça. Logo, não devemos sempre julgar de acordo com as leis escritas.
2. Demais. – Um juízo tem necessariamente por objeto fatos particulares. Ora, nenhuma lei escrita pode abranger todos esses fatos, como está claro no Filósofo. Logo, parece que nem sempre devemos julgar de acordo com as leis escritas.
3. Demais. – A lei é escrita para o fim de manifestar a decisão do legislador. Ora, dá-se às vezes que se o próprio legislador estivesse presente julgaria de outro modo. Logo, não devemos julgar sempre de acordo com as leis escritas.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Embora os homens julguem das leis temporais, quando as instituem, contudo, uma vez instituídas e firmadas, devemos julgar, não delas, mas, por elas.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, o juízo não é mais do que uma certa definição ou determinação do que é justo. Ora, de dois modos pode uma coisa ser justa: por sua própria natureza, e tal é o justo natural; ou, por uma convenção humana, e tal se chama direito positivo, como já ficou estabelecido. Ora, as leis se escrevem para declarar o que é justo, num e noutro desses sentidos. De maneiras diversas, porém. Pois, a lei escrita contém o direito natural, mas, não institui; porque não tira a sua força, da lei, senão, da natureza. Mas, o direito positivo a lei escrita o contém e o institui, dando-lhe a força da autoridade. Por onde, é necessário que o juizo seja feito de acordo com a lei Escrita; do contrário se desviaria ou do justo natural ou do justo positivo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A lei escrita, assim como não dá força ao direito natural, assim também não lhe pode diminuir nem tirar a força, pois, hão pode a vontade do homem mudar-lhe a natureza. E portanto, se a lei escrita contiver alguma disposição contrária ao direito natural, será injusta, nem tem força para abrigar. Pois, o direito positivo se aplica quando ao direito natural não importa que se proceda de um ou de outro modo, como já provámos, E, por isso, tais leis escritas não se chamam leis, mas, antes, corrupções da lei como já dissemos. E, portanto, não se deve julgar de acordo com elas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como as leis iníquas contrariam, por si mesmas, ao direito natural, sempre ou quase sempre assim também as leis bem feitas falham em certos casos, nos quais, se fossem observadas, contrariariam esse direito. Por isso, em tais casos não se deve julgar segundo a letra da lei. Donde o dizer o Jurisconsulto: Nenhuma razão do direito ou benignidade equitativa permite interpretemos com dureza e severidade, contra as vantagens dos nossos semelhantes, as instituições que foram feitas para o bem deles. E, em tais casos, o próprio legislador julgaria de outro modo; e, se os tivesse previsto, ter-lhes-ia aplicado uma disposição de lei.
Donde se deduz clara a RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO.
O quarto discute-se assim. – Parece que as dúvidas não devem ser interpretadas no melhor sentido.
1. – Pois, devemos fundar o nosso juízo naquilo que mais geralmente sucede. Ora, geralmente sucede que certos agem mal; pois, o número dos insensatos é infinito, como diz a Escritura E, noutro lugar: porque o sentido e o pensamento do coração do homem são inclinados para o mal desde a sua mocidade. Logo, devemos interpretar as dúvidas antes no mau que no bom sentido.
2. Demais. – Agostinho diz que vive pia e justamente o amante íntegro das coisas, que não favorece nem uma nem outra parte. Ora, quem interpreta o duvidoso no melhor sentido favorece uma das partes. Logo, não se deve fazer tal.
3. Demais. – O homem deve amar ao próximo como a si mesmo. Ora, em relação a si mesmo deve interpretar as dúvidas, no pior sentido, conforme àquilo da Escritura: Eu me temia de todas as minhas obras. Logo, parece que as dúvidas relativas ao próximo devem ser interpretadas no pior sentido.
Mas, em contrário, àquilo do Apóstolo – O que come não despreze do que não come - diz a Glosa: As dúvidas devem ser interpretadas no melhor sentido.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, é injuriar e desprezar a outrem o formar má opinião dele sem causa suficiente. Ora, ninguém deve desprezar a outrem ou lhe causar qualquer dano, sem causa que o obrigue. Portanto, onde não aparecem indícios manifestos da malícia de outrem, devemos tê-lo como bom, interpretando no melhor sentido o que é duvidoso.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Pode acontecer que quem interprete no sentido mais favorável frequentemente, se engane. Mas, é melhor enganar-se mais frequentemente, formando opinião boa de um homem mau, do que enganar-se raras vezes, fazendo umá opinião de um homem bom. Porque, o primeiro modo de proceder injuria a outrem e o segundo, não.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Julgar as coisas é diferente de julgar os homens. - Pois, no juízo com que julgamos as coisas, não atendemos ao bem ou ao mal relativamente à coisa mesma de que julgamos, que nenhum dano. sofrem, seja como for que as julguemos. Mas, levamos em conta só o bem de quem julga, se o fizer com verdade; ou o mal, se julgar falsamente. Pois, a verdade é o bem do intelecto e o falso, o mal, como diz o Filósofo. Por isso, devemos nos esforçar por julgar as coisas conforme elas são. - Mas, nos juízos pelos quais julgamos os homens, atendemos principalmente ao bem e ao mal em relação aquele que julgamos. Porque é tido em conta de honrado, pelo fato mesmo de ser julgado bom; e de desprezível, se julgado mau. Por onde, devemos nos esforçar, em tais juízos, antes, por julgar bem de outrem, se não houver razão manifesta em contrário. Quanto a quem julga, o juízo falso pelo qual julga bem de outrem não implica em mal do seu intelecto, como também não lhe contribui para a perfeição conhecer a verdade; em si, dos particulares contingentes. Mas esse juízo implica, antes, a bondade do afeto.
RESPOSTA À TERCEIRA. – De dois modos podemos fazer uma interpretação em sentido pior ou melhor. - Primeiro, por uma certa suposição. E assim, quando tivermos que dar remédio a certos males, nossos ou alheios, havemos de supor o pior, para ministrarmos o remédio mais acertado. Porque, o remédio eficaz contra um mal maior será, com mais razão, eficaz contra o menor. - De outro modo, interpretamos, no bom ou no mau sentido, definindo ou determinando. E, então, ao julgar as coisas devemos nos esforçar pelas interpretar como elas são; no julgar, porém as pessoas devemos interpretar, no melhor sentido.
O terceiro discute-se assim. – Parece que o juízo fundado numa suspeita não é ilícito.
1. – Pois, a suspeita é uma opinião incerta relativa a um certo mal; e, por isso, o Filósofo diz que a suspeita pode recair tanto sobre o verdadeiro como sobre o falso. Ora, dos fatos particulares contingentes só podemos ter uma opinião incerta. Por onde, versando os nossos juízos sobre os atos humanos, particulares e contingentes, parece que nenhum juízo seria lícito se não fosse permitido julgar por suspeitas.
2. Demais. – Com um juízo ilícito fazemos uma injúria ao próximo. Ora, a má suspeita consiste só na opinião humana e, assim, parece não implicar injúria contra outrem. Logo, o juízo da suspeita não é ilícito.
3. Demais. – Sendo ilícito; o juízo fundado numa suspeita há de forçosamente reduzir-se à injustiça, pois, o juízo é um ato de justiça, como se disse (a. 1). Ora, a injustiça é genericamente sempre um pecado mortal, como já se estabeleceu. Logo, o juízo fundado numa suspeita seria sempre pecado mortal, se fosse ilícito. Ora, isto é falso, porque não podemos evitar as suspeitas, como diz Agostinho aquilo da Escritura - Não julgueis antes do tempo. Logo, parece que o juízo fundado numa suspeita não é ilícito.
Mas, em contrario, àquilo do Evangelho - Não queirais julgar - diz Crisóstomo: O Senhor, com este mandamento, não proíbe os cristãos corrigirem os outros com benevolência; mas, que cristãos, jactando-se da sua justiça, não desprezem cristãos, odiando e condenando os outros, no mais das vezes, por simples suspeitas.
SOLUÇÃO. – Como diz Túlio, a suspeita implica a opinião do mal, fundada em leves indícios. E isto pode dar-se por três razões. - Primeiro, porque, sendo maus, em nós mesmos, facilmente opinamos mal dos outros, por estarmos como que cônscio; da nossa malícia, conforme aquilo da Escritura: O insensato que vai pelo caminho, sendo ele um insipiente, a todos reputa por insensatos. - Segundo, porque somos mal afeiçoados para com outrem. Pois, odiando-o ou desprezando-o, ou tirando-nos contra ele e invejando-o, pensamos mal do mesmo, fundados em leves indícios. Porque cada um facilmente crê o que deseja. - Terceiro, por causa da longa experiência; por isso, diz o Filósofo, que os velhos são suspeitosos, por excelência, porque muitas vezes experimentaram os defeitos dos outros.
Ora, as duas primeiras causas da suspeita implicam manifestamente a perversidade do afeto. A terceira causa, porém, diminui a suspeita, na sua natureza mesma, porque a experiência nos conduz à certeza que é contra a natureza da referida suspeita. Por onde, a suspeita implica em certo vício e, quanto mais suspeita é, tanto mais é viciosa. Ora, há um tríplice grau de suspeita. - O primeiro consiste em começarmos a duvidar, por leves indícios, da bondade de outrem. E este é pecado venial e leve; pois, é próprio da tentação humana, sem a qual não podemos atravessar esta vida, como diz a Glosa aquilo do Apóstolo: Não julgueis antes do tempo. - O segundo grau consiste em julgarmos como certa a malícia de outrem, fundados em leves indícios. E isto, se for em matéria grave, é pecado mortal, porque não vai sem o desprezo do próximo. Donde o acrescentar a Glosa, no mesmo lugar: Embora, pois, não possamos evitar as suspeitas por sermos homens, devemos contudo reprimir os nossos juízos, isto é, as sentenças definitivas e firmes. O terceiro grau é quando um juiz é levado, por suspeitas, a condenar alguém. E isto diretamente implica uma injustiça e, portanto, é pecado mortal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Há uma determinada certeza nos atos humanos, não, claro, como a das ciências demonstrativas, mas a que convim a essa matéria, como a temos, por exemplo, quando provamos fundados em testemunhas idôneas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O fato mesmo de formarmos má opinião de outrem, sem causa suficiente, implica em desprezá-lo gratuitamente. E, portanto, em injuriá-lo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A justiça e a injustiça versam sobre os atos exteriores, como se disse. Por, isso, o juízo suspeitoso implica diretamente a injustiça, quando se manifesta por um ato exterior. E, então, é pecado mortal, como se disse. O juízo interno, porém, implica a injustiça enquanto comparado ao juízo externo, como o ato interior, com o exterior; assim, a concupiscência com a fornicação e a ira, com o homicídio.
O segundo discute-se assim. – Parece que não é lícito julgar.
1. – Pois, a pena só é infligida a um ato ilícito. Ora, os que julgam incorrem em pena, em que não incorrem os que não julgam, segundo o Evangelho. Não queirais julgar para que não sejais julgados. Logo, é ilícito julgar.
2. Demais. – A Escritura diz: Quem és tu, que julga o servo alheio? Para seu senhor está em pé ou cai. Ora, o Senhor de todas as coisas é Deus. Logo, a nenhum homem é lícito julgar.
3. Demais. – Nenhum homem é sem pecado, conforme aquilo da Escritura· Se dissermos, que estamos sem pecado, nós mesmos nos enganamos. Ora, a quem peca não é lícito julgar, conforme aquilo da Escritura: És inexcusável tu, o homem qualquer, que julgas; porque no mesmo em que julgas a outro, a ti mesmo te condenas, porque fazes essas mesmas coisas que julgas. Logo, a ninguém é lícito julgar.
Mas, em contrário, a Escritura: Estabelecerás juízes e magistrados de todas as tuas portas, para que julguem o povo com retidão de justiça.
SOLUÇÃO. – O juízo é justo na medida em que é um ato de justiça. Ora, como do sobredito resulta, três condições se exigem para que um juízo seja um ato de justiça: primeiro, que proceda de uma inclinação justa; segundo, que proceda da autoridade do chefe; terceiro, que seja proferido pela razão reta da prudência. A falta de qualquer delas torna o juízo vicioso e ilícito. - De um modo quando vai contra a retidão da justiça. E, então, o juízo se chama pervertido ou injusto. - De outro modo, quando julgamos daquilo para o que não temos autoridade. E, então, o juízo se chama usurpado. - De terceiro modo, quando falta a certeza da razão; assim, quando julgamos do que é duvidoso ou oculto, levados por leves conjecturas. E, então, chama-se o juízo suspeitoso ou temerário.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Senhor, no lugar citado, proíbe o juízo temerário que incide sobre a intenção do coração ou sobre outras coisas incertas, como diz Agostinho Ou proíbe, com as palavras citadas, julgar das coisas divinas, as quais, sendo-nos superiores, não devemos julgá-las, mas simplesmente crê-las, como diz Hilário - Ou proíbe o juízo não procedente da benevolência, mas, do espírito amargo, como diz Crisóstomo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O juiz é constituído ministro de Deus; donde o dizer a Escritura. Julgai o que for justo; e depois acrescente: é o juízo de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os réus de pecados graves não devem julgar os que também o são dos mesmos ou de pecados menores, como diz Crisóstomo aquilo do Evangelho: Não queirais julgar o que sobretudo se deve entender dos pecados públicos; porque então o nosso juízo gera o escândalo nos corações dos outros. Se, porém, não forem públicos, mas ocultos, e, por dever, tivermos que dar o nosso juízo, podemos acusar ou julgar com humildade e temor. Por isso, diz Agostinho: Se nos encontrarmos no mesmo vício que outrem, gemamos com ele e o incitemos a tornar-se melhor, esforçando-nos também nós para consegui-lo. Nem contudo por isso, ao julgar os outros, nós nos condenamos, por atrairmos sobre nós um novo motivo de condenação; mas, ao condenar a outrem, mostramo-nos merecedores da mesma condenação, por um pecado igualou semelhante.
O primeiro discute-se assim. – Parece que o juízo não é um ato de justiça.
1. – Pois, como diz o Filósofo, cada um julga bem o que conhece; e, então, parece que o juízo pertence à potência cognitiva. Ora, a potência cognitiva se aperfeiçoa pela prudência. Logo, o juízo mais pertence à prudência, que à justiça, cujo sujeito é a vontade, como se disse.
2. Demais. – O Apóstolo diz: O espiritual julga todas as causas. Ora, o homem se torna espiritual, sobretudo pela virtude da caridade que esta derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado, conforme o Apóstolo. Logo, o juízo pertence mais à caridade que à justiça.
3. Demais. – A cada virtude pertence julgar retamente a sua matéria própria; porque, o virtuoso é a regra e a medida de tudo, segundo o Filósofo. Logo, o juízo não pertence, antes, à justiça, que às outras virtudes morais.
4. Demais. – Parece que julgar só é próprio dos juízes. Ora, todos os justos podem praticar atos de justiça. Logo, como nem só os juízes são justos, parece que o juízo não é um ato próprio da justiça.
Mas, em contrário, a Escritura: Até que a justiça venha a fazer juízo.
SOLUÇÃO. – Chama-se propriamente juízo o ato do juiz como tal. Ora, juiz significa, por assim dizer, aquele que diz o direito. Mas, o direito é o objeto da justiça, como estabelecemos. Por onde, o juízo, segundo o uso primeiro do vocábulo, significa a definição ou a determinação do justo ou do direito. Ora, é propriamente o hábito da virtude que nos leva a definir as obras virtuosas; assim, o casto determina com acerto o que respeita à castidade. Por onde, o juízo, que implica a determinação reta do justo, pertence propriamente à justiça. E, por isso, o Filósofo diz que os homens recorrem ao juiz, com à justiça viva.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O uso primeiro do nome do Juízo, que significa a determinação reta do justo, foi ampliado para significar a determinação reta em outras matérias tanto especulativas, como práticas. Em todas, porém, o juízo reto exige dois elementos. Um a potência mesma que profere o juízo. E, assim, o juízo é um ato da razão, pois, é próprio desta dizer ou definir alguma coisa. O outro é a disposição, que dá a quem julga a idoneidade para julgar retamente. E, então, no que respeita à justiça dela procede o juízo, assim como procede da fortaleza, em matéria que a esta diz respeito. Por onde, o juízo é o ato de justiça, como a que nos inclina a julgar retamente; da prudência, porém, como a que o profere; e, por isso, da sínese, pertinente à prudência, dizemos ser a que julga bem, como já estabelecemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O homem espiritual tem, pelo hábito da caridade, a inclinação para julgar retamente de tudo, de acordo com regras divinas, seguindo as quais profere o seu juízo, inspirado pelo dom da sabedoria. Assim como o justo profere o seu, fundado nas regras do direito.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As outras virtudes ordenam o homem nas suas relações para consigo mesmo; ao passo que a justiça regula-lhe as relações com os outros, como se disse. Ora, o homem é senhor daquilo que lhe diz respeito, não, porém, do que pertence a outrem. Por onde, em matéria pertencente às outras virtudes, só é exigido o juízo do homem virtuoso, tomando-se porém o nome de juízo em significação ampla, como se disse. Mas, no que respeita à justiça, requer-se, além disso, o juízo de um superior, que possa citar perante o seu tribunal as duas partes e julgar dos direitos de ambas. E, por isso, o juízo pertence, mais especialmente, à justiça do que a outra qualquer virtude.
RESPOSTA À QUARTA. – A justiça, no chefe, é a virtude como que arquitetônica, quase a que ordena e manda o que é justo; nos súditos, porém, é virtude como que executiva e serviente. Por onde, o juízo, implicado na definição do justo, é próprio da justiça, enquanto existente, de modo principal, no chefe.
O quarto discute-se assim. – Parece que nem todo o que pratica uma injustiça peca mortalmente.
1. – Pois, o pecado venial se opõe ao mortal. Ora, às vezes é pecado venial uma injustiça cometida; assim, diz o Filósofo, falando dos que agem injustamente: São pecados veniais os que cometemos, não somente ignorando, mas, por ignorância. Logo, nem todo aquele que comete uma injustiça peca mortalmente.
2. Demais. – Quem comete uma injustiça em matéria leve afasta-se pouco do meio termo. Ora, parece que isso se pode tolerar e deve ser contado entre os mínimos dos males, como está claro no Filósofo. Logo; nem todo o que comete uma injustiça peca mortalmente.
3. Demais. – A caridade é a mãe de todas as virtudes, e chama-se mortal o pecado que a contraria. Ora, nem todos os pecados opostos às outras virtudes são mortais. Logo, também nem sempre é pecado mortal cometer uma injustiça.
Mas, em contrário. – Tudo o que é contra a lei de Deus é pecado mortal. Ora, quem comete uma injustiça age contra o preceito da lei de Deus; porque esse ato ou se reduz ao furto, ou ao adultério, ou ao homicídio ou a outro semelhante, como ficará claro do que a seguir se dirá. Logo, todo aquele que comete uma injustiça peca mortalmente.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, quando tratamos da diferença dos pecados, pecado mortal é o que contraria a caridade, donde vem à vida da alma. Ora, todo dano que causamos a outrem repugna, em si mesmo, à caridade, a qual nos leva a querer o bem de outrem. Por onde, consistindo sempre a injustiça em causar dano a outrem, é manifesto que cometê-la é pecado genericamente mortal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As palavras citadas do Filósofo se entendem da ignorância de fato, a que ele chama ignorância das circunstâncias particulares, que merece perdão; não, porém da ignorância de direito, que não escusa. Por onde, quem ignorando, comete uma injustiça, não a comete senão por acidente, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Quem comete injustiça em matéria leve não pratica um ato injusto, na sua noção perfeita, porque esse ato pode ser considerado como não repugnando, de maneira absoluta, à vontade de quem o sofre. Por exemplo, quem tirar uma fruta a outrem, ou algo de semelhante, sendo provável que essa pessoa não sei a lesada por isso, nem lho desagrade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os pecados contrários às outras virtudes nem sempre são em dano de outrem; mas, implicam, uma certa desordem relativa às paixões humanas. Logo, a comparação não colhe.
O terceiro discute-se assim. – Parece que podemos sofrer a injustiça voluntariamente.
1. – Pois, a injustiça é uma desigualdade, como se disse. Ora, quem se lesa a si mesmo fere a igualdade tanto como o que lesa a outrem. Logo, podemos cometer injustiça tanto contra nós mesmos como contra outrem. Ora, quem faz injustiça voluntariamente o faz. Portanto, podemos voluntariamente sofrer uma injustiça, sobretudo quando procedente de nós mesmos.
2. Demais. – Ninguém é punido pela lei civil senão por ter feito alguma injustiça. Ora, os que se matam a si mesmos são punidos pelas leis civis; assim, como nos diz o Filósofo, eram privados, antigamente, das honras da sepultura. Logo, podemos cometer injustiça contra nós mesmos e, portanto, é possível sofrê-las voluntariamente.
3. Demais. – Ninguém faz injustiça senão contra outrem, que a sofre. Ora, podemos fazer uma injustiça a outrem, que a quer; por exemplo, se lhe vendemos uma coisa mais cara do que ela vale. Logo, é possível sofrermos injustiça voluntariamente.
Mas, em contrário, sofrer uma injustiça é contrário a fazê-la. Ora, ninguém comete uma injustiça senão voluntariamente. Logo, por contrariedade, ninguém a sofre senão contra a vontade.
SOLUÇÃO. – A ação, por natureza, procede do agente, a paixão, ao contrário, resulta, por natureza, de outrem. Portanto, um mesmo sujeito não pode ser ao mesmo tempo, agente e paciente, como diz Aristóteles, Ora, o princípio próprio dos atos humanos é a vontade. Portanto, aquilo o homem faz, propriamente e por si, que voluntariamente o faz; e, ao contrário, propriamente sofre o que sofre contra a vontade. Pois, partindo dele próprio o princípio do seu querer, quando quer é, antes, agente que paciente. - Logo, devemos concluir, que a injustiça, em si mesma e formalmente falando, ninguém pode fazê-la senão voluntariamente nem sofrê-la senão involuntariamente; porém, e quase materialmente falando, podemos fazer, sem querer, o que é, em si mesmo, injusto, como quando agimos sem intenção; e podemos sofrê-lo voluntariamente, como quando damos a outrem, por nossa vontade, mais do que lhe devemos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quem voluntariamente dá a outrem o que não lhe deve, não pratica nem injustiça nem desigualdade. Pois, por nossa vontade é que possuímos as coisas. Logo, não há falta de proporção se, por nossa própria vontade, nós mesmos nos privamos do que é nosso; ou outrem nô-lo tira.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Podemos considerar uma pessoa particular à dupla luz. - Ou em si mesma, e, então, se a si mesma causa um dano, este pode ter natureza de outro pecado, como, de intemperança ou de imprudência, não, porém, de injustiça; porque, como a justiça, também a injustiça só é relativa a outrem. De outro modo, uma pessoa pode ser considerada enquanto algo da cidade, isto é, parte dela; ou enquanto algo de Deus, isto é, criatura e imagem. E, assim, quem se matar a si mesmo faz injúria, não a si mesmo, mas, à cidade ou a Deus. E, por isso, é punido, tanto pela lei divina como pela humana; assim, do que fornica, diz o Apóstolo: Se alguém violar o templo de Deus, Deus o destruirá.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A paixão é um efeito da ação exterior. Ora, no fazer e no sofrer a injustiça, o elemento material levamo-lo em conta relativamente à ação externa, em si mesma considerada, como dissemos. Enquanto que o elemento formal é considerado relativamente à vontade do agente e do paciente, conforme do sobredito resulta. Por onde, devemos concluir que, materialmente falando, o fazer alguém uma injustiça, e o sofrê-la outro são termos correlatos. Formalmente falando, porém, podemos cometer uma injustiça, tendo a intenção de cometê-la, como tal, sem que contudo outrem não a sofra, por sofrê-la voluntariamente. E, ao inverso, podemos sofrer uma injustiça por a sofrermos contra a vontade; e contudo, quem a fez, por ignorância, não a terá feito formalmente, mas, só materialmente.
O segundo discute-se assim. – Parece que se considera injusto quem comete injustiça.
1. – Pois, os hábitos se especificam pelos seus objetos, como do sobredito resulta. Ora, o objeto próprio da justiça é o justo; e o da injustiça, o injusto. Logo, deve ser considerado justo quem pratica a justiça e injusto quem comete injustiça.
2. Demais. – O Filósofo diz ser falsa a opinião de certos, que pensam estar no poder do homem cometer uma injustiça, desde que o queira, e que o justo pode praticar tanto atos justos como injustos. Ora, isto não seria possível se não fosse próprio do injusto praticar a injustiça. Logo, devemos considerar injusto quem pratica a injustiça.
3. Demais. – Todas as virtudes se comportam do mesmo modo relativamente ao seu ato próprio; e o mesmo se dá com os vícios opostos. Ora, todo o que pratica um ato contrário à temperança, chama-se intemperante. Logo, todo o que pratica uma injustiça é considerado injusto.
Mas, em contrário, o Filósofo: Há quem faça injustiça e não seja injusto.
SOLUÇÃO. – Assim como o objeto da justiça é uma igualdade relativa às comas exteriores, assim também, o da injustiça é uma desigualdade pela qual damos a outrem mais ou menos do que lhe compete. Ora, a esse objeto se refere o hábito da injustiça mediante o seu ato próprio, que se chama injustificação. Por onde, pode dar-se que quem comete a injustiça não seja injusto, por duas razões. - Primeiro, por falta de relação entre a ação e o seu objeto próprio, a qual recebe a espécie e a denominação do objeto essencial e não, do objeto acidental. Ora, nos atos relativos a um fim, chama-se essencial o que é intencionado, e acidental o que está fora da intenção. Portanto, quem pratica uma injustiça, sem a intenção de a praticar por exemplo, agindo por ignorância, penosa não fazer um ato injusto, esse não pratica uma injustiça, em si e formalmente falando, mas, só por acidente e como que materialmente. Por isso, tal ato não se chama injustificação. - O mesmo pode dar-se, de um segundo modo, por falta de correlação entre o ato e o hábito. Pois, a injustificação pode resultar, às vezes, de uma paixão, como por exemplo, da ira ou da concupiscência; outras vezes, da eleição, a saber, quando ela nos agrada, por si mesma e, então, procede propriamente do hábito, pois, quem tem o hábito busca, em si mesmo, o que a esse hábito convém. Portanto, cometer injustiça intencional e propositalmente é próprio do injusto, enquanto que injusto se chama quem tem o hábito da injustiça. - Mas, fazer injustiças sem intenção, ou por paixão, todos o podem, sem o hábito da injustiça.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O objeto, em si mesmo e normalmente considerado, especifica o hábito; não, porém, enquanto considerado material e acidentalmente.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Não é fácil a ninguém cometer a injustiça, de propósito deliberado, não para obter um outro fim, mas por comprazerse nela; mas só é próprio ao que dela tem o hábito, como diz o filósofo, no mesmo lugar.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O objeto da temperança não é, como o da justiça, existente fora do homem; mas, esse objeto, isto é, o que é moderado, é considerado como só relativo ao homem. Por onde, o que é moderado por acidente e fora da intenção, não pode chamar-se temperado nem material nem formalmente; e o mesmo se dá com o imoderado. E, a esta luz, não é a justiça semelhante às outras virtudes morais. Mas, no atinente à relação entre o ato e o hábito, é semelhante às outras em tudo.
O primeiro discute-se assim – Parece que a injustiça não é um vício especial.
1. – Pois, diz a Escritura: Todo pecado é uma iniquidade. Ora, parece que iniquidade é o mesmo que injustiça, porque, se a justiça é uma igualdade, a injustiça há de ser uma desigualdade ou iniquidade. Logo a injustiça não é um pecado especial.
2. Demais. – Nenhum pecado especial se opõe a todas as virtudes. Ora, a injustiça se opõe a todas as virtudes; por exemplo, no adultério, opõe-se à castidade; no homicídio, à mansidão, e assim por diante. Logo, a injustiça não é um pecado especial.
3. Demais – A injustiça se opõe à justiça, cujo sujeito é a vontade. Ora, todo pecado depende da vontade, como diz Agostinho. Logo, a injustiça não é um pecado especial.
Mas, em contrário, a injustiça se opõe à justiça. Ora, a justiça é uma virtude especial. Logo, a injustiça é um vício especial.
SOLUÇÃO. – Há uma dupla injustiça. - Uma, a ilegal, oposta à justiça legal. E esta é essencialmente um vício especial, porque despreza o bem comum, que é um objeto especial. Mas, pelo seu fim, é um vício geral, porque desprezando o bem comum, o homem pode ser arrastado a todos os pecados. Assim como todos os vícios, enquanto repugnam ao bem comum, têm natureza de injustiça, isto é, são como derivados dela, conforme dissemos, ao tratar da justiça. - De outro modo, chamase injustiça a que implica umas certas desigualdades, em relação a outrem; por exemplo, quando queremos ter mais bens, como as riquezas e as honras, e menos males, como os sofrimentos e os danos. E, então, a injustiça tem uma especial matéria e é um vício particular oposto à justiça particular.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Assim como a justiça legal implica uma relação com o bem comum humano assim, a justiça divina implica relação com o bem divino, a que repugna todo pecado. E a esta luz, dizemos que todo pecado é uma iniquidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A injustiça, mesmo a particular, opõe-se diretamente a todas as virtudes; isto é, enquanto que também os atos exteriores pertencem tanto à justiça como às outras virtudes morais, embora diversamente, conforme dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A vontade, como a razão, abrange a matéria moral na sua totalidade; isto é, as paixões, e as obras exteriores relativas a outrem. Mas, a justiça aperfeiçoa a vontade só enquanto esta pratica atos relativos a outrem. E o mesmo se dá com a injustiça.