O sexto discute-se assim. – Parece que um juízo usurpado não se torna pervertido.
1. – Pois, a justiça é uma certa retidão no agir. Ora, a verdade nada tem a perder seja quem for que a diga; mas, devemos aceitá-la de quem quer que seja. Logo, também nada perde a justiça, seja quem for que determine o justo - o que constitui a essência mesma do juízo.
2. Demais. – Ao juízo compete punir os pecados. Ora, de certos se lê que puniram, louvavelmente, os pecados, sem contudo ter autoridade sobre os que puniram. Tal o caso de Moisés, quando matou um egípcio, conforme o relata a Escritura; e o de Fineas, filho de Eleazar, que matou Zambri, filho de Salomé, como o refere a mesma Escritura: e foi-lhe imputado a justiça, diz o salmista. Logo, a usurpaçâo do juízo não implica em injustiça.
3. Demais. – O poder espiritual distingue-se às vezes, os prelados, tendo o poder espiritual, intrometem-se no que pertence ao poder secular. Logo, o juízo usurpado não é ilícito.
4. Demais. – Para julgarmos com retidão é preciso que tenhamos, não só autoridade, mas também justiça e ciência, como do sobredito resulta. Ora, não dizemos que é injusto o juízo de quem julga sem o hábito da justiça ou a ciência de direito. Logo, também nem sempre o juízo usurpado, por falta de autoridade, será injusto.
Mas, em contrário, a Escritura: Quem és tu que julgas o servo alheio?
SOLUÇÃO – O juízo, devendo ser pronunciado de acordo com as leis escritas, quem o pronuncia interpreta, de certo modo, a letra da lei, aplicando-a a um caso particular. Ora, pertencendo à mesma autoridade interpretar e fazer as leis, assim como ela não pode fazê-las, senão como autoridade pública, assim também, só nessa mesma qualidade é que pode pronunciar um juízo, estendendose essa autoridade aos membros da comunidade que lhe estão sujeitos. Portanto, assim como seria injusto obrigarmos alguém a observar uma lei não sancionada pela autoridade pública, assim também sê-lo-ia o compelíssimos a pronunciar um juízo não fundado nessa autoridade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O fato de ser enunciada uma verdade não implica em que outrem seja obrigado a aceitá-la; mas cada qual é livre de aceitá-la ou não, conforme o quiser. Mas, o juízo implica uma certa obrigação. Por onde, é injusto sermos julgados por quem não tem autoridade pública.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Moisés matou um egípcio, quase levado por inspiração divina, como se pode concluir das palavras do Apóstolo, quando diz que, matando o egípcio, cuidava Moisés que seus irmãos estavam capacitados de que por sua mão havia Deus de livrar Israel. - Ou se pode dizer que Moisés matou um egípcio, para defender o que lhe sofria os maus tratos, usando de uma justa moderação na sua defesa. Donde o dizer Ambrósio que quem não defende o seu companheiro, da injúria, podendo-o, procede tão mal como o que o injuria; e o comprova com o exemplo de Moisés. - Ou se pode dizer, com Agostinho, que assim como uma terra é gabada pela sua fertilidade, por produzir ervas inúteis, antes mesmo de fazer germinar as sementes úteis; assim, o referido ato de Moisés foi certamente vicioso porque pressagiava sinais de grande fertilidade, isto é, por ser sinal do poder daquele por quem o povo foi libertado. Sobre Fineas, devemos dizer que procedeu por inspiração divina, levado pelo zelo da glória de Deus. Ou porque embora ainda não fosse sumo sacerdote, era, contudo, filho do sumo sacerdote, e tal juízo lhe competia, como aos outros juízes, a quem era ordenada esse modo de agir.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O poder secular está sujeito ao espiritual, como o corpo à alma. Por onde, não é usurpado o juízo do prelado espiritual que se intromete com as coisas temporais, na medida em que o poder secular lhe está sujeito, ou que lhe são confiadas coisas da alçada desse poder.
RESPOSTA À QUARTA. – O hábito da ciência e o da justiça são perfeições da pessoa particular. Por onde, a falta deles não torna o juízo usurpado, como o torna a falta de autoridade pública, a qual dá ao juízo a força coativa.