Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute-se assim. – Parece que o juiz pode julgar mesmo quem não tem nenhum acusador.
1. – Pois, a justiça humana deriva da divina. Ora, Deus julga os pecadores, mesmo se ninguém os acusa. Logo, parece que quem exerce a função de juiz pode condenar mesmo quem não tem nenhum acusador.
2. Demais. – No juízo requer-se o acusador para que delate o crime ao juiz. Ora, às vezes, o crime pode chegar ao conhecimento do juiz, por outra via que não o acusador; por exemplo, pela denúncia, pela má fama, ou ainda se o próprio juiz o viu. Logo, o juiz pode condenar mesmo quem não tem acusador.
3. Demais. – A Escritura narra os feitos dos Santos como uns quase modelos da vida humana. Ora, Daniel foi ao mesmo tempo acusador e juiz dos velhos iníquos, como se lê na Escritura. Logo, não vai contra a justiça o juiz que condena alguém de que também é acusador.
Mas, em contrário, Ambrósio, expondo a sentença do Apóstolo sobre a fornicação, diz: O juiz não pode condenar, quem não é acusado; pois, o Senhor não repeliu Judas apesar de ladrão, porque não fora acusado.
SOLUÇÃO. – O juiz é o intérprete da justiça; por isso, como diz o Filósofo: os homens buscam proteção junto dele como se fosse a justiça viva. Ora, como já dissemos, não podemos praticar a justiça para conosco mesmos, mas, só para com outrem, Logo, é necessário que o juiz decida, entre duas partes; o que se dá, sendo uma o autor e outra o réu. Logo, em se tratando de crimes, o juiz não pode condenar quem não tem acusador, conforme aquilo do Apóstolo: Não é costume dos Romanos condenar homem algum antes do acusado ter presentes nos seus acusadores, e antes de se lhe dar liberdade para ele se defender dos crimes que se lhe imputam.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus, ao julgar, serve-se da consciência do pecador como de acusador, segundo aquilo do Apóstolo. Os pensamentos de dentro, que umas vezes os acusam e outras o defendem. Ou se serve do conhecimento evidente que tem do fato. A voz do sangue de teu irmão clama desde a terra para mim.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A má fama pública exerce o papel do acusador. Por isso, aquilo da Escritura. A voz do sangue de teu irmão, etc. - diz a Glosa: A evidência do crime perpetrado não precisa de acusador. - A denúncia, porém, como já dissemos não visa a punição, mas, a emenda do pecador; por isso, ela não é empregada contra aquele cujo pecado foi denunciado, mas, a favor dele, Donde a não necessidade, nesse caso, de acusador. Ao passo que a pena é infligida por causa da rebelião contra a Igreja, a qual, sendo manifesta, faz as vezes de acusador. - E quanto ao que o juiz mesmo vê, não pode ele fundar-se nisso para dar sentença, obedecendo à ordem do juízo público.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Deus, nos seus juízos, funda-se no conhecimento próprio que tem da verdade; não porém o homem, como já dissemos. Por isso, ninguém pode ser ao mesmo tempo acusador, testemunha e juiz, como o pode Deus. Quanto a Daniel, foi ele acusador e juiz simultaneamente, por ser um como executor do juízo divino, cuja inspiração o movia, como já dissemos.
O segundo discute-se assim. – Parece que ao juiz não é lícito julgar contra a verdade que conhece, fundado no que lhe propõem, em contrário.
1. – Pois, diz a Escritura. E encaminharte-ás aos sacerdotes da linhagem de Levi e ao juiz que nesse tempo for, e consultá-los-ás e eles te descobrirão a verdade do juízo. Ora, certas coisas são às vezes propostas contra a vontade, como quando se faz uma prova baseada em falsos testemunhos. Logo, não é lícito ao juiz julgar baseado no que lhe é proposto e provado, contra a verdade que conhece.
2. Demais. – O homem deve ao julgar conformar-se com o juízo divino, porque é ajuízo de Deus, como diz a Escritura. Ora, conforme ao Apóstolo, juízo de Deus é segundo a verdade. E a Escritura, noutra parte, predica, de Cristo: Não julgará segundo a vista dos olhos, nem arguirá pelo fundamento dum ouvi dizer; mas julgará os pobres com justiça e arguirá com equidade em defesa dos mansos da terra. Logo, o juiz não deve, baseado no que lhe é provado, proferir sentença em contrário ao que sabe de ciência própria.
3. Demais. – No juízo são necessárias as provas para que a verdade da coisa faça fé ao juiz; por isso, quando se trata de coisas notórias, não é necessário satisfazer a todas as exigências da justiça, segundo o Apóstolo: Os pecados de alguns homens são manifestos antes de se examinarem em juízo. Portanto, o juiz conhecedor da verdade por ciência própria não deve basear-se no que lhe é provado, mas dar a sentença fundada na verdade que conhece.
4. Demais. – A consciência, como o nome o indica, importa na aplicação da ciência a um determinado caso, como se estabeleceu na Primeira Parte. Ora, agir contra a consciência é pecado. Logo, peca o juiz que proferiu a sentença fundada nas alegações e contra a consciência que tem da verdade.
Mas, em contrario, Agostinho (Ambrósio) diz, comentando um dos salmos: O bom juiz nada faz por seu arbítrio; mas, sentencia segundo as leis e o direito. Ora, isto é julgar segundo o proposto e provado em juízo. Logo, o juiz deve assim julgar e não, segundo o próprio arbítrio.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos julgar é próprio do juiz, enquanto investido da autoridade pública. Logo, ao julgar, deve informar-se não pelo que sabe como pessoa privada, mas pelo que conhece como pessoa pública. Ora, isso ele o conhece em geral e em particular. Em geral, pelas leis públicas, divinas ou humanas, contra as quais não deve admitir nenhuma prova. Tratando-se, porém, de um caso particular, deve formar a sua ciência baseado nos instrumentos, nas testemunhas e em outros documentos legítimos de sua natureza, que deve seguir, ao julgar, mais do que na ciência que tem como pessoa privada. Dessa ciência contudo pode ajudar-se para discutir mais rigorosamente as provas aduzidas, de modo a investigar-lhes melhor os defeitos. Mas, não podendo de direito repudiálas, como se disse, deve fundar-se nelas o seu juízo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O texto aduzido começa por tratar da consulta a ser feita aos juízes, para compreendermos que eles devem julgar da verdade, baseados nas alegações.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A Deus cabe julgar por poder próprio. Logo, ao julgar, é informado pela verdade que ele próprio conhece e não pelo que recebe de outrem. E o mesmo se dá com Cristo, verdadeiro Deus e homem. Ao passo que os outros juízes não julgam por poder próprio. Logo, a comparação não colhe.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O Apóstolo se refere ao caso de um crime manifesto não só ao juiz, mas tanto ao juiz como aos outros. De modo que o réu, longe de poder de qualquer modo negar o crime, fica desde logo preso pela própria evidência do fato. Mas, se o crime for manifesto ao juiz e não, aos outros; ou aos outros, e não ao juiz, então é necessário discuti-lo em juízo.
RESPOSTA À QUARTA. – O homem, no atinente à sua pessoa mesma, deve informar a sua consciência pela ciência própria. Mas, no respeitante ao poder público, deve informar, a sua consciência fundado no que pode ser conhecido no juízo público e nisso basear-se.
O primeiro discute-se assim. – Parece que podemos julgar justamente quem de nós não depende.
1. – Pois, diz a Escritura que Daniel condenou, pelo seu juízo, os velhos, acusados de falso testemunho. Ora, esses velhos não eram dependentes de Daniel; ao contrário, eram juízes do povo. Logo, podemos julgar justamente quem de nós não depende.
2. Demais. – Cristo não dependia de nenhum homem; antes, era Rei dos reis e Senhor dos que mandam. Ora, ele se entregou ao juízo dos homens. Logo, parece que podemos licitamente julgar a quem não depende de nós.
3. Demais. – Segundo o direito, conforme a natureza do delito, assim é o foro que deve julgar o delinquente. Ora, às vezes, o delinquente não depende do juiz que preside ao foro do lugar do delito; por exemplo, quando o delinquente é de outra diocese ou é isento. Logo, parece que podemos julgar aquele que não depende de nós.
Mas, em contrário, aquilo da Escritura - Se entrares na seara, etc. - Gregório diz: Não poderás meter a foice do juiz na seara pertencente a outro.
SOLUÇÃO. – A sentença do juiz é uma como lei particular aplicada a um fato particular. E portanto, assim como a lei geral deve ter força coativa, como claramente diz o Filósofo; assim também a sentença do juiz deve ter força coativa para obrigar ambas as partes a lhe obedecerem; do contrário ela não seria eficaz. Ora, na ordem das coisas humanas, só tem poder coativo, licitamente, os que estão investidos da autoridade pública, e que se reputam superiores daqueles sobre os quais tem poder, quer ordinário, quer em virtude de uma comissão. Por onde, é manifesto que ninguém pode julgar, quer por comissão, quer por poder ordinário, senão quem lhe está sujeito.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O poder que Daniel recebeu de julgar os referidos velhos foi-lhe como que cometido por inspiração divina; o que a Escritura significa pelas palavras do lugar aduzido: Suscitou o Senhor o espírito de um moço ainda menino.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Na ordem das coisas humanas, podemos espontaneamente nos sujeitar ao juízo dos outros embora não sejam nossos superiores; como claramente é o caso dos que se sujeitam ao arbítrio de outrem. Donde, a necessidade de ser o arbítrio sancionado por uma pena; porque os árbitros que não são superiores não tem por si mesmos pleno poder coercitivo. E assim também Cristo por vontade própria se sujeitou ao juízo humano; assim como também o Papa Leão (IV) sujeitou-se ao juízo do imperador.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O bispo, em cuja diocese alguém delinque, torna-se o superior do delinquente, mesmo se for isento, em razão do delito. Salvo se delinquir em matéria objeto de isenção, por exemplo, na administração dos bens de um mosteiro isento. Mas, o isento que cometer um furto, um homicídio, ou um crime desse gênero, pode ser condenado justamente pelo ordinário.
O nono discute-se assim. – Parece que o furto é pecado mais grave que a rapina.
1. – Pois, o furto acrescenta ao fato de tomar a coisa alheia a fraude e o dolo, o que não acontece com a rapina. Ora, a fraude e o dolo são por natureza pecados, como já se estabeleceu. Logo, o furto é mais grave pecado que a rapina.
2. Demais. – A vergonha é o temor causado por um ato torpe, como diz Aristóteles. Ora, os homens se envergonham mais do furto que da rapina. Logo, o furto é mais torpe que a rapina.
3. Demais. – Parece que um pecado é tanto mais grave quanto maior o número daqueles que danifica. Ora, ao passo que o furto pode danificar a grandes e pequenos, a rapina só o pode aos fracos a que é possível fazer violência. Logo, parece mais grave o pecado de furto que o de rapina.
Mas, em contrário, as leis punem mais gravemente a rapina que o furto.
SOLUÇÃO. –A rapina e o furto são por natureza pecados, como já dissemos, por causa do involuntário daquele a quem priva do que é seu, sendo porém esse involuntário, no furto, por ignorância, e na rapina, por violência. Ora, o involuntário o é mais por violência do que por ignorância, porque a violência se opõe mais diretamente à vontade do que a ignorância. Logo, a rapina é mais grave pecado que o furto. - Mas há ainda outra razão: a rapina não somente causa dano a outrem nos seus bens, mas ainda lhe redunda numa certa ignomínia ou injúria. O que prepondera sobre a fraude ou o dolo, próprios do furto.
Donde se deduz clara a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os homens, presos às causas sensíveis, mais se jactam da força externa, que se manifesta na rapina, do que da virtude interna, aniquilada pelo pecado. Por isso, menos se envergonham da rapina que do furto.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora possamos danificar a mais pessoas pelo furto do que pela rapina, contudo podemos danificá-las mais gravemente pela rapina do que pelo furto. E por isso também a rapina é mais detestável.
O oitavo discute-se assim. – Parece que pode haver rapina, sem pecado.
1. – Pois, é presa o tomado com violência, o que parece constituir a essência da rapina, conforme já se viu. Ora, é lícito tomar certas coisas aos inimigos, conforme Ambrósio. A disciplina militar exige que todas as presas caídas em poder do vencedor sejam conservadas para o rei, isto é, para que as distribua. Logo, a rapina é lícita em alguns casos.
2. Demais. – É lícito tirar a uma pessoa o que lhe não pertence. Ora, as coisas que tem os infiéis não lhes pertencem, conforme o diz Agostinho. Falsamente chamais vossas as coisas que nem possuís justamente e das quais devereis ser privados segundo as leis dos reis da terra. Logo, parece lícito exercer a rapina sobre os bens dos infiéis.
3. Demais. – Os reis da terra extorquem violentamente dos seus súditos muitas coisas, o que parece constituir, por natureza mesmo, a rapina. Ora, parece excessivo dizer que pecam, assim agindo; porque então quase todos os reis se condenariam. Logo, a rapina é lícita em alguns casos.
Mas, em contrário, de tudo o que nos apossamos licitamente podemos fazer sacrifício ou oferta a Deus. Ora, não o podemos fazer, da rapina, conforme à Escritura. Eu sou o Senhor, que amo a justiça e que aborreço os holocaustos que veem de rapina. Logo, apoderarmo-nos de uma coisa pela rapina no é lícito.
SOLUÇÃO. – A rapina implica, uma certa violência e coação, pela qual e contra a justiça, tiramos a alguém o que lhe pertence. Ora, na sociedade humana só pode exercer a coação quem é investido do poder público. E portanto, a pessoa privada, não investida do poder público, que tirar violentamente uma coisa a outrem, age ilicitamente e pratica uma rapina, como é o caso dos ladrões. Aos governantes, porém foi dado o poder público para serem guardas da justiça. Por onde, não lhes é lícito usar de violência e de coação senão de acordo com os ditames da justiça; e isto, quer lutando contra os inimigos, quer punindo os cidadãos malfazejos. E o ato violento pelo qual se lhes tira uma coisa, não sendo contrário à justiça, não tem natureza de rapina. Mas, os que, investidos do poder público, tirarem violentamente aos outros, contra a justiça, o que lhes pertence, agem ilicitamente, cometendo rapina e são por isso obrigados à restituição.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Relativamente às presas temos que distinguir. Se os que depredam o inimigo o fazem em guerra justa, o que nela adquiriram por violência lhes pertence. O que, não constituindo rapina, não estão obrigados a restituir. Embora possam, ao se apoderarem da presa, nessa guerra justa, pecar por cobiça, levados por intenção má; assim, se lutarem não pela justiça, mas principalmente por causa das presas. Pois, como diz Agostinho, pecado guerrear para o fim de obter presas. Porém, se os que se apoderam das presas o fazem numa guerra injusta, cometem rapina e, estão obrigados à restituição.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os infiéis possuem injustamente os seus bens, na medida em que estão sujeitos a perdê-los, segundo as leis dos reis da terra. E portanto elas lhes podem ser subtraídas por violência, não por autoridade privada, mas, pública.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os governantes que exigem por justiça dos súditos o que estes lhes devem, para a conservação do bem comum, não cometem rapina, mesmo se violentamente o exigirem. Os que porém extorquirem indebitamente, por violência, cometem tanto rapina como latrocínio. Por isso, diz Agostinho: Posta de parte a justiça, que são os reinos senão grandes latrocínios? Pois, por seu lado, que são os latrocínios senão pequenos reinos? E a Escritura: Os seus príncipes eram no meio dela como uns lobos que arrebatam a sua presa. E portanto, estão, como os ladrões, obrigados à restituição. E tanto mais gravemente pecam que os ladrões, quanto mais perigosa e geralmente agem contra a justiça pública, da qual foram constituídos guardas.
O sétimo discute-se assim. – Parece que a ninguém é lícito furtar por necessidade.
1. – Pois, a penitência sô é imposta ao pecador. Ora, um cânone diz: Quem, por necessidade imposta pela fome e pela nudez, furtar comida, roupa ou um animal, faça penitência por três semanas. Logo, não é lícito furtar por necessidade.
2. Demais. – O Filósofo diz que há coisas cuja simples denominação já lhes manifesta a malícia e, entre elas, coloca o furto. Ora, o mal em si mesmo não pode tornar-se bem por causa de um bom fim. Logo, ninguém pode licitamente furtar para satisfazer à sua necessidade.
3. Demais. – Devemos amar ao próximo como a nós mesmos. Ora, não é lícito furtar para socorrer ao próximo com a esmola, como diz Agostinho. Logo, também não é lícito furtar para socorrer à própria necessidade.
Mas, em contrário, a necessidade torna todas as coisas comuns. E, portanto parece não cometer pecado quem se apodera da coisa de outrem levado pela necessidade, que lhe tornou essa coisa comum.
SOLUÇÃO. – As disposições de direito humano não podem derrogar as do direito natural ou do direito divino. Ora, pela ordem natural, instituída pela providência divina, as coisas inferiores são ordenadas à satisfação das necessidades humanas. Por onde, a divisão e a apropriação das coisas permitidas pelo direito humano não obstam a que essas coisas se destinem a satisfazer às necessidades do homem. E portanto as coisas que possuímos com Superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres. Por isso Ambrósio diz: esta nas Decretais: É dos famintos o pão que tu reténs; as roupas que tu guardas são dos nus; e resgate e alívio dos miseráveis é o dinheiro que enterras no chão. Ora, sendo muitos os que padecem necessidades, e não podendo uma mesma coisa socorrer a todos, ao arbítrio de cada um é cometido dispensar os bens próprios para assim obviar aos necessitados. Contudo, se a necessidade for de tal modo evidente e imperiosa que seja indubitável o dever de obviá-la com as coisas ao nosso alcance - por exemplo, quando corremos perigo iminente de morte e não é possível salvarmo-nos de outro modo - então podemos licitamente satisfazer à nossa necessidade com as coisas alheias, apoderando-nos delas manifesta ou ocultamente. Nem tal ato tem propriamente a natureza de furto ou rapina.
DONDE À RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A citada decretal refere-se ao caso de não urgente necessidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Servirmo-nos de uma coisa alheia, tomada às ocultas, em caso de necessidade extrema, não tem natureza de furto, propriamente falando. Porque essa necessidade torna nosso o de que nos apoderamos para o sustento da nossa própria vida.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Em caso de semelhante necessidade também podemos nos apoderar da coisa alheia para socorrermos ao próximo assim necessitado.
O sexto discute-se assim. – Parece que o furto não é pecado mortal.
1. – Pois, diz a Escritura: Não é grande culpa quando algum furtar. Ora, todo pecado mortal é grande culpa. Logo, o furto não é pecado mortal.
2. Demais. – O pecado mortal merece a pena de morte. Ora, a lei não inflige ao furto a pena de morte, mas só a de dano, conforme aquilo da Escritura. Se alguém furtar um boi ou uma ovelha, restituirá cinco bois por um boi e quatro ovelhas por uma ovelha. Logo, o furto não é pecado mortal.
3. Demais. – O furto pode ser cometido tanto em relação a pequenas coisas como a grandes. Ora, parece inadmissível, que por furto de uma coisa pequena, por exemplo, de uma agulha ou de uma pena, seja alguém punido de morte eterna. Logo, o furto não é pecado mortal.
Mas, em contrário, ninguém é condenado pelo juízo divino, senão por ter cometido pecado mortal. Ora, é condenado quem furta, segundo a Escritura. Esta é a maldição, que vai difundir-se pela face de toda a terra; porque todo o ladrão será julgado pelo que está escrito nesse livro. Logo, o furto é um pecado mortal.
SOLUÇÃO. – Como já estabelecemos, pecado mortal é o que contraria à caridade, base da vida espiritual da alma. Ora, a caridade consiste, principalmente, no amor de Deus; mas, secundariamente, no amor do próximo, pois, ela nos leva a lhe querer e fazer o bem. Ora, pelo furto causamos dano ao próximo nos seus bens; e se a cada passo os homens roubassem uns aos outros, pereceria a sociedade humana. Por onde, o furto, enquanto contrário à caridade, é um pecado mortal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Por duas razões diz-se que o furto não é uma culpa grande. - Primeiro, pela necessidade que leve a furtar e diminua ou totalmente extingua a culpa, como a seguir se verá. Por isso, a Escritura acrescenta. Porque furta para saciar a sua esfaimada alma. - Em segundo lugar, diz-se que o furto não é uma culpa grande; por comparação com o reato do adultério, que é punido de morte. Por isso, a Escritura acrescenta que o ladrão depois de colhido às mãos pagará sete vezes em dobro; porém o que é adúltero perderá a sua alma.
RESPOSTA À SEGUNDA. – As penas da vida presente são antes medicinais que retributivas. Pois, a retribuição é reservada ao juízo divino, que dá aos pecadores conforme ao verdadeiro merecimento deles. Por onde, pelo juízo da vida presente, não é infligida a pena de morte a qualquer pecado mortal, mas só aqueles que causam dano irreparável, ou ainda aos que implicam uma horrível deformidade. Por isso, ao furto, que não causa dano irreparável, o juízo presente não inflige a pena de morte, salvo se o furto for acompanhado de alguma grave circunstância. Tal o caso do sacrilégio, ou furto de uma coisa sagrada; do peculato ou furto de um bem comum, como se vê claramente em Agostinho e do plágio, ou furto de um homem, e que é punido de morte, segundo a Escritura.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O que é pouco a razão o apreende quase como se fosse nada. Por isso, não consideramos dano o que sofremos relativamente a coisas pequenas; e quem se apossa de uma coisa de pouco valor pode presumir que não age contra a vontade do dono. E portanto, quem se apossa furtivamente dessas coisas mínimas pode ser escusado do pecado mortal. Se, porém, tiver a intenção de furtar e causar dano ao próximo, poderá haver pecado mortal, mesmo em se tratando de coisas mínimas, como se da com um simples pensamento consentido.
O quinto discute-se assim. – Parece que o furto nem sempre é pecado.
1. – Pois, nenhum pecado é objeto de preceito divino, conforme à Escritura. Ele a ninguém mandou obrar impiamente. Ora, vemos que Deus mandou furtar: Fizeram os filhos de Israel o que Moisés lhes havia ordenado e despojaram os Egípcios. Logo, o furto nem sempre é pecado.
2. Demais. – Quem acha o que lhe não pertence e disso se apodera parece cometer um furto, porque se apossa de uma coisa alheia. Ora, parece que tal é lícito por equidade natural, como dizem os juristas. Logo, parece que o furto nem sempre é pecado.
3. Demais. – Quem toma o que é seu parece que não peca, pois, não age contra a justiça, cuja igualdade não tolhe. Ora, comete furto quem se apodera ocultamente de uma coisa, embora sua, e que é detida ou guardada por outrem. Logo, parece que o furto nem sempre é pecado.
Mas, em contrário, a Escritura: Não furtarás.
SOLUÇÃO. – Quem considerar a natureza do furto nele encontrará duas características do pecado. A primeira é a de ser contrário à justiça, que dá a cada um, o que lhe pertence. E, assim, o furto se opõe à justiça por consistir no apossamento da coisa alheia. A segunda é o dolo ou a fraude que o ladrão comete, apoderando-se da coisa alheia oculta e como insidiosamente. Por onde, é manifesto que todo furto é pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Tomarmos a coisa alheia, oculta ou manifestamente, por autoridade do juiz que o mandou, não é furto, pois ela já se nos tornou devida por autoridade do juiz que nô-la adjudicou. Por onde e com maior razão, não cometeram furto os filhos de Israel quando, por ordem de Deus, que o determinou, levaram os despojos dos Egípcios, como compensação pelas aflições com que eles, sem causa, os torturaram. E por isso diz a Escritura expressamente. Os justos levaram os despojos dos ímpios.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Relativamente às coisas achadas é necessário distinguir. - Assim, há certas que nunca foram propriedade de ninguém, como as pedras preciosas e as gemas encontradas nas praias do mar. E essas pertencem a quem delas se apoderou. E o mesmo se dá com os tesouros ocultos, desde tempos remotos, debaixo da terra, que não tem nenhum dono. Salvo que, pelas leis civis, o inventor está obrigado a dar a metade ao dono do campo se em campo alheio os achou. Por isso, numa parábola diz o Evangelho que o descobridor do tesouro escondido num campo comprou o campo para, por assim o dizermos, ter o direito de possuir todo o tesouro. - Outras coisas achadas há, porém, que ainda recentemente faziam parte dos bens de outrem. E então quem delas se apodera, não com o ânimo de as reter mas, com o de as restituir ao dono, que não as considera como abandonadas, esse não comete furto. Semelhantemente, quando consideradas como abandonadas e assim o pensa quem as achou, não comete furto. Nos outros casos, porém, comete o pecado de furto. Por isso diz Agostinho numa certa homília: que achaste e não restituíste roubaste.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem se apossa ocultamente de uma coisa sua depositada em mãos de outrem lesa o depositário, que está obrigado a restituí-la ou a provar que não a perdeu por culpa sua. Por onde, é manifesto que peca e está obrigado a reparar o dano causado ao depositário. Aquele, porém, que se apodera de uma coisa sua injustamente detida por outrem peca por certo. Não por prejudicar o detentor dela, não estando portanto, obrigado a nenhuma restituição ou recompensa; mas, por pecar contra a justiça comum, arrogando-se o juízo sobre uma coisa sua, com preterição da ordem jurídica. E portanto, está obrigado a satisfazer a Deus e tratar de reparar o escândalo porventura causado ao próximo pelo seu ato.
O quarto discute-se assim. – Parece que não são o furto e a rapina pecados especificamente diferentes.
1. – Pois, o furto e a rapina diferem como difere o oculto do manifesto: o furto implica o apossamento oculto, ao passo que a rapina, o violento e manifesto. Ora, o ser oculto e manifesto são circunstâncias que, nos outros gêneros de pecados, não diversificam a espécie. Logo, não são o furto e a rapina pecados especialmente diversos.
2. Demais. – Os atos morais se especificam pelo fim, como dissemos. Ora, o furto e a rapina se ordenam ao mesmo fim, isto é, possuir o bem de outrem. Logo, não diferem especificamente.
3. Demais. – Assim como uma coisa é roubada para ser possuída, assim, uma mulher, para satisfazer à concupiscência, por isso, Isidoro diz: O raptor é considerado um corruptor e a raptada, corrupta. Ora, há rapto quando a mulher é tomada pública ou ocultamente. Logo, também se chamará raptado ao que possuímos oculta ou publicamente. E portanto, não difere o furto, da rapina.
Mas, em contrário, o Filósofo distingue o furto, da rapina, dizendo que o furto é oculto e a rapina, violenta.
SOLUÇÃO. – O furto e a rapina são vícios opostos à justiça, pelos quais alguém pratica uma injustiça para com outrem. Ora, ninguém sofre uma injustiça voluntariamente, como Aristóteles o prova. Por onde, o furto e a rapina tem natureza de pecado por implicarem o apossamento involuntário relativamente aquele a quem uma coisa foi subtraída. Ora, o involuntário tem dupla acepção: por ignorância e por violência, como ensina Aristóteles, Portanto, a rapina é pecado, por uma razão, e o furto, por outra. E por isso diferem especificamente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Nos outros gêneros de pecados, o pecado não se funda em nada de involuntário, como se dá com os pecados opostos à justiça, onde há espécie diversa de pecado quando ocorre uma noção diversa do involuntário.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O fim remoto da rapina e do furto é o mesmo. Mas, isto não basta para lhes identificar a espécie, porque diferem pelos fins próximos. Pois, o raptor quer se apoderar do bem alheio pelas suas próprias forças; ao passo que o ladrão, pela astúcia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O rapto de uma mulher não pode ser oculto à mulher raptada. E, portanto embora se ocultem os que praticam o rapto, há essencialmente rapto relativamente à mulher, contra quem se faz violência.
O terceiro discute-se assim. – Parece não ser da essência do furto o apoderar-se ocultamente das coisas alheias.
1. – Pois, o que diminui o pecado parece que não pertence à essência dele. Ora, pecar ocultamente contribui para diminuir o pecado; assim como o contrário contribui para aumentar o de certos, conforme à Escritura: Fizeram, como os de Sodoma, pública ostentação do seu pecado e não no encobriram. Logo, não é da essência do furto o apoderar-se ocultamente das coisas alheias.
2. Demais. – Ambrósio diz, de acordo com o que está nas Decretais: Tirar de quem tem não é menor crime do que negares ao necessitado quando podes e estás na abundância. Logo, consistindo o furto no apoderar-se das coisas alheias, consistirá também em retê-las.
3. Demais. – Podemos tirar ocultamente de outrem o que é nosso, por exemplo, a coisa dada em depósito ou a de que fomos injustamente privados. Logo, não é da essência do furto o apoderar-se ocultamente das coisas alheias.
Mas, em contrário, Isidoro: A palavra fur (ladrão) vem de furvum, isto é, de fuscum; porque o ladrão se aproveita do tempo da noite.
SOLUÇÃO. – Três elementos implica, por essência, o furto. - O primeiro lhe convém enquanto contraria a justiça, a qual dá a cada um, o que lhe pertence. Por isso, o furto consiste propriamente em nos apoderarmos da coisa alheia. - O segundo elemento o furto o implica, por essência, enquanto se distingue dos pecados cometidos contra a pessoa, como o homicídio e o adultério. E, então, o furto propriamente recai sobre uma coisa possuída. De modo que não comete essencialmente furto quem se apodera do bem alheio, que não é coisa possuída por outrem, mas apenas faz parte dele, como, por exemplo, se lhe amputa um membro; ou se o priva de uma pessoa chegada, como a filha ou a mulher. - A terceira diferença, consistente no apoderar-se do bem alheio, é a que realiza a essência do furto. E, então, o furto consiste essencialmente em nos apoderarmos às ocultas do bem de outrem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A ocultação é às vezes causa do pecado; assim quando alguém se serve dela para pecar, como no caso do dolo e da fraude. Deste modo, ela não diminui, mas constitui a espécie do pecado. E é o que se dá com o furto. De certo modo, a ocultação é uma simples circunstância do pecado; e, então o diminui, quer, por ser um sinal de vergonha, quer, por livrar do escândalo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Reter o que é devido a outrem implica essencialmente o mesmo dano causado por quem se apodera injustamente do bem de outrem. Por isso, nesse apoderar-se injusto também se inclui a retenção injusta.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Nada impede que uma coisa seja, absolutamente falando, de um e, relativamente de outro. Assim, uma coisa depositada é, absolutamente, do depositante; mas, relativamente, do depositário, pela guarda que tem dela. Assim também, o que foi tirado de outrem pelo roubo é de quem roubou, não absolutamente falando, mas, só pela retenção.