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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Artigo 12 - Se a justiça tem preeminência sobre todas as virtudes orais.

O duodécimo discute-se assim. – Parece que a justiça não tem preeminência sobre todas as virtudes morais.

1. – Pois, à justiça é próprio dar a outrem o que lhe pertence; ao passo que é próprio à liberalidade levar-nos a dar do que é nosso; o que é mais virtuoso. Logo, a liberalidade é maior virtude que a justiça.

2. Demais. – Não nos orna senão o que é mais digno que nós. Ora, a magnanimidade é um ornamento, não só da justiça, como de todas as virtudes, segundo Aristóteles. Logo, a magnanimidade é mais nobre que a justiça.

3, Demais. – A virtude versa sobre o que é difícil e bom, como diz Aristóteles. Ora, a fortaleza versa sobre o perigo da morte, mais difícil que a justiça.

Mas, em contrário, diz Túlio: Na justiça, o esplendor da virtude, que faz os homens serem denominados bons, é máximo.

SOLUÇÃO. – Se se trata da justiça legal, é manifesto que ela é a mais preclara de todas as virtudes morais, pois, o bem comum tem preeminência sobre o bem particular. E por isso, o Filósofo diz que a preclaríssima das virtudes é a justiça, e nem Vesper, nem Lúcifer é tão admirável como ela.

Mas, mesmo tratando-se da justiça particular, podemos dizer que ela é mais excelente que as outras virtudes morais, por duas razões. - Das quais a primeira pode ser deduzida do sujeito, isto é, porque reside na parte mais nobre da alma, a saber, o apetite racional ou a vontade. Ao passo que as outras virtudes morais residem no apetite sensitivo, a que pertencem as paixões, que são a matéria das referidas virtudes. - A segunda razão se funda no objeto. Pois, as outras virtudes tiram o seu mérito do bem mesmo de quem as pratica, ao passo que a justiça o tira de sermos virtuosos nas nossas relações com outrem. E, assim, a justiça é, de certo modo, o bem de outrem, como diz Aristóteles. E, por isso diz ainda ele: e a virtude é uma potência benfazeja, as máximas virtudes são, necessariamente, as que mais úteis são aos outros. Por isso, os fortes e os justos são os mais honrados, porque a fortaleza é útil na guerra; a justiça, porém, na guerra e na paz.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Embora, pela liberalidade, demos do que é nosso, contudo o fazemos levando em conta o bem da nossa própria virtude. Ao passo que pela justiça damos a outrem o que lhe pertence, levando em conta o bem comum. E, além disso, a justiça é observada para com todos, ao passo que a todos não pode estender-se a liberalidade. E, além disso, a liberalidade, pela qual damos do que é nosso, funda-se na justiça, pela qual a cada um se lhe conserva o seu.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A magnanimidade, acrescentada à justiça, aumenta-lhe a bondade; porém, sem a justiça, nem mesmo teria a natureza de virtude.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A fortaleza, embora verse sobre o difícil, não versa, contudo, sobre o melhor, pois, só é útil na guerra; ao passo que a justiça o é na guerra e na paz, como dissemos.

Artigo 11 - Se o ato da justiça consiste em dar a cada um, o que lhe pertence.

O undécimo discute-se assim. – Parece que o ato de justiça não consiste em dar a cada um o que lhe pertence.

1. – Pois, Agostinho diz que é próprio da justiça socorrer os miseráveis. Ora, socorrendo os miseráveis, nós lhes damos não o que lhes pertence, mas, o que nos pertence. Logo, o ato da justiça não consiste em dar a cada um o que lhe pertence.

2. Demais. – Túlio diz que a beneficência, a que podemos chamar benignidade ou liberalidade, é própria da justiça. Ora, a liberalidade consiste em dar a outrem do que é nosso e não, o que lhe pertence. Logo, o ato da justiça não consiste em dar a outrem o que lhe pertence.

3. Demais. – A justiça pertence não somente distribuir as coisas do modo devido, mas ainda, coibir os atos injuriosos, como, o homicídio, o adultério e outros semelhantes. Ora, dar a cada um o seu, parece que é o que só consiste a distribuição das coisas. Logo, não caracterizamos suficientemente um ato de justiça dizendo que ele consiste em dar a cada um o que lhe pertence.

Mas, em contrário, Ambrósio: justiça é a que dá a cada um o que lhe pertence e não reclama o alheio; descuida a utilidade própria para salva­guardar a utilidade comum.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos a matéria da justiça é a ação exterior, enquanto que esta ação mesma ou a coisa sobre que ela se exerce tem relação com outra pessoa, relação que deve ser regulada pela justiça. Ora, chama-se nosso o que nos é devido por uma igualdade proporcional. Por onde, o ato próprio da justiça não consiste senão em dar a cada um o que lhe pertence.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ A justiça, enquanto virtude cardeal estão anexas certas virtudes secundárias, como a misericórdia, a liberalidade e outras semelhantes, conforme a seguir se verá. Por onde, socorrer aos miseráveis, que é próprio da misericórdia ou da piedade; e fazer bem liberalmente, o que é próprio à liberalidade, atribuem-se, por uma certa redução, à justiça, como à virtude principal.

Donde se deduz clara a RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO.

RESPOSTA À TERCEIRA. - Como diz o Filósofo, tudo o que ultrapassa a medida, em matéria de justiça, é chamado, por extensão, lucro; assim como tudo o que não a atinge chama-se dano. E isto porque a justiça se exerce principalmente e recai mais comumente sobre as trocas voluntárias das coisas, por exemplo, a compra e venda, às quais se aplicam propriamente as denominações supra-referidas. E daí o derivaram esses nomes para tudo o que pode constituir objeto de justiça. Ora, o mesmo raciocínio tem cabida no concernente a dar a cada um o que lhe pertence.

Artigo 10 - Se a mediedade da justiça é uma mediedade real.

O décimo discute-se assim. – Parece que a mediedade da justiça não é uma mediedade real.

1. – Pois, a ideia do gênero aparece em todas as espécies. Ora, a virtude moral é definida como um hábito eletivo, consistindo numa mediedade e determinada pela nossa razão. Logo, a justiça consiste numa mediedade, não, real, mas, racional.

2. Demais. – Os bens absolutos não são susceptíveis de aumento e de diminuição e, por consequência, nem de mediedade, como as virtudes claramente o mostram, e Aristóteles o diz. Ora, a justiça versa sobre bens absolutos, como o prova Aristóteles. Logo, na justiça não há mediedade real.

3. Demais. – Diz-se que as outras virtudes comportam uma mediedade racional e não, real, porque essa mediedade varia de pessoa para pessoa. Pois, o que para um muito, é pouco para outro, como diz Aristóteles. Ora, o mesmo também se dá com a justiça; assim, quem feriu um chefe não é punido com a mesma pena que castiga quem feriu um particular. Logo, na justiça também não há mediedade real, mas racional.

Mas, em contrário, o Filósofo funda a mediedade da justiça numa proporção aritmética, o que é uma mediedade real.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos as outras virtudes morais, que não a justiça, regulam principalmente as paixões, cuja retificação não depende senão do sujeito mesmo a que elas pertencem, fazendo, por exemplo, com que ceda à ira e ao desejo, como deve, de conformidade comas diversas circunstâncias. Por onde, a mediedade dessas virtudes não implica nenhuma proporção entre urna coisa e outra, mas, só relativamente ao sujeito da virtude. E, por isso, nelas a mediedade é só dependente da nossa razão. A matéria da justiça, porém, é a obra externa, enquanto que esta, ou o seu objeto, mantém a proporção devida com outra pessoa. Por onde, a mediedade da justiça consiste numa certa proporção de igualdade entre a nossa obra externa e uma outra pessoa. Ora, o igual é uma mediedade real entre o mais e o menos, como diz Aristóteles Logo, a mediedade da justiça é real.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ A mediedade real é também mediedade racional. Por onde, a justiça realiza a ideia de virtude moral.

RESPOSTA À SEGUNDA. – De dois modos podemos considerar um bem absoluto. - Primeiro, por ser bem a todos os respeitos; assim o são as virtudes. E, então, em tais bens absolutos não há lugar para meio e extremos. - Noutro sentido, bem absoluto é o que por natureza o é, embora, pelo abuso, possa vir a ser um mal, como se dá com as riquezas e as honras. E tais bens são susceptíveis de aumento, de diminuição e de mediedade, em relação aos que podem usar bem ou mal deles. Ora, a justiça versa sobre os bens absolutos, neste segundo sentido.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A injúria assacada contra um chefe não tem as mesmas proporções que a assacada contra um particular. Por onde e necessariamente a justiça vindicativa há de se proporcionar diferentemente a uma e outra. O que implica uma diversidade real e não somente racional.

Artigo 9 - Se a justiça versa sobre as paixões.

O nono discute-se assim. – Parece que a justiça é relativa às paixões.

1. – Pois, diz o Filósofo, que a virtude moral versa sobre o prazer e a tristeza. Ora, o prazer, isto é, a deleitação, e a tristeza são determinadas paixões, como se disse, quando se tratou das paixões. Logo, a justiça, sendo uma virtude moral, versa sobre as paixões.

2. Demais. – A justiça retifica as nossas ações relativas a outrem. Ora, essas ações não podem ser retificadas, se não o forem as paixões; pois, da desordem destas provém a daquelas. Assim, a concupiscência das práticas venéreas conduz ao adultério; e o amor exagerado ao dinheiro leva ao furto. Logo, a justiça versa necessariamente sobre as paixões.

3. Demais. – Assim como a justiça particular, assim também a justiça legal regula os nossos atos relativos a outrem. Ora, a justiça legal versa sobre as paixões; do contrário, não se estenderia a todas as virtudes, das quais algumas versam manifestamente sobre as paixões.

Mas, em contrário, O Filósofo diz, que ela versa sobre os nossos atos.

SOLUÇÃO. – Duas coisas põem em evidência a verdade desta questão. - A primeira é o sujeito da justiça, que é a vontade, cujos movimentos ou atos não são paixões como dissemos; pois, só os movimentos do apetite sensitivo é que se chamam paixões. Por onde, a justiça não versa sobre as paixões, como se dá com a temperança e a fortaleza, pertencentes ao irascível e ao concupiscível, que versam sobre elas. - A segunda é a matéria. Pois, a justiça regula os nossos atos relativos a outrem. Ora, não é pelas paixões interiores que comunicamos imediatamente com outrem. Por onde, a justiça não versa sobre as paixões.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Nem toda virtude moral tem como matéria o prazer e a tristeza; assim, a fortaleza versa sobre o temor e a audácia. Mas, todas as virtudes morais se ordenam para o prazer e a tristeza, como para certos fins consequentes. Pois, conforme diz o Filósofo, o prazer e a tristeza constituem um fim principal, referindo-nos ao qual dizemos que tal coisa é bem e tal outra, mal. E, deste modo, são também matéria da justiça; porque não é justo quem não se compraz com atos justos, segundo Aristóteles.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os atos exteriores são um meio termo, de certo modo, entre as coisas exteriores, que lhes constituem a matéria, e as paixões interiores, que são os princípios deles. Ora, pode, às vezes, haver falta num desses elementos, sem haver no outro. Por exemplo, quem furtasse um bem de outrem, não pelo desejo de tê-lo, mas, pelo de ser nocivo; ou, inversamente, se alguém o cobiçasse, sem, contudo, querer furtá-lo. Ora, a retificação dos atos, enquanto se completam exteriormente, pertence à justiça; mas, o retificá-los, enquanto nascidos das paixões, pertence às outras virtudes morais que versam sobre elas. Por onde, o furtar as coisas alheias lesa a justiça porque contraria a igualdade que deve existir nas coisas exteriores; a liberalidade, por proceder da cobiça imoderada das riquezas. Ora, como os atos externos não se especificam pelas paixões internas, mas, antes, pelas coisas externas, que são os seus objetos, resulta que, propriamente falando, os atos externos constituem a matéria, mais, da justiça, que das outras virtudes morais.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O bem comum é o fim das pessoas particulares que vivem em comunidade; assim como o bem do todo é o de cada parte. Ao passo que o bem de um particular não é o fim de outro. Por onde, a justiça legal, que ordena para o bem comum, pode aplicar-se às paixões interiores, que formam, de certo modo, a disposição própria de cada um, mais do que a justiça particular, que nos ordena ao bem particular de outrem. Embora a justiça legal mais principalmente se estenda aos atos externos das outras virtudes, isto é, enquanto a lei nos manda praticar obras próprias do homem forte, do temperado e do pacífico, como diz Aristóteles.

Artigo 8 - Se a justiça particular tem matéria especial.

O oitavo discute-se assim. – Parece que a justiça particular não tem matéria especial.

1. – Pois, aquilo da Escritura - O quarto destes rios é o Eufrates - diz a Glosa: Eufrales quer dizer frugífero; nem se diz para que ponto ele corre, porque a justiça pertence a todas as partes da alma. Ora, isto não seria, se ela tivesse matéria especial; porque toda matéria especial pertence a alguma potência especial. Logo, a justiça particular não tem matéria especial.

2. Demais. – Agostinho diz que são quatro as virtudes da alma, que constituem a nossa vida espiritual, a saber: a temperança, a prudência, a fortaleza e a justiça; e diz ser a quarta a justiça, que se encontra em todas as outras. Logo, a justiça particular, que é uma das quatro virtudes cardeais, não tem matéria especial.

3. Demais. – A justiça dirige suficientemente o homem nas suas relações com outrem. Ora, por todas as coisas desta vida o homem pode ordenar-se a outrem. Logo, a matéria da justiça é geral e não, especial.

Mas, em contrário, o Filósofo diz que há uma justiça particular, que respeita especialmente às relações da vida.

SOLUÇÃO. – Tudo o que pode ser retificado pela razão constitui matéria da virtude moral, que é definida pela razão reta, como está claro no Filósofo. Ora, a razão pode retificar tanto as paixões inferiores da alma, como as ações exteriores e as coisas externas que servem ao uso do homem. Mas, nas ações exteriores e nas coisas externas, pelas quais os homens estabelecem relações entre si, o que se leva em conta é a relação entre um homem e outro; nas paixões interiores, porém, o que se considera é a retificação do homem, em si mesmo. Por onde, a justiça, ordenando-nos para outrem, não abrange toda a matéria da virtude moral, mas, só a que respeita às seções exteriores e às coisas, encarando-as no ponto de vista especial de fundarem as relações dos homens entre si.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ A justiça pertence, certo, a uma parte da alma na qual tem o seu sujeito, a saber, à vontade que, pelo seu império, move todas as artes da alma. E assim, a justiça, não diretamente, mas por uma como redundância, pertence a todas as outras partes da alma.

RESPOSTA A SEGUNDA. – Como já dissemos, as virtudes cardeais tem uma dupla acepção: ora, são consideradas virtudes especiais relativas a matérias determinadas; ora, significam certos modos gerais da virtude. E é neste último sentido que fala Agostinho. Pois, diz que a prudência é o conhecimento das coisas que devemos desejar e das que devemos evitar;  a temperança consiste em refreiar a cobiça na busca do que deleita temporalmente; a fortaleza é a firmeza da alma na luta contra os sofrimentos temporais; a justiça abrange-as a todas, é o amor de Deus e do próximo, amor que é a raiz comum de todos os nossos atos relativos a outrem.

RESPOSTA À TERCEIRA. – As paixões interiores, que são parte da matéria moral, não se ordenam, em si mesmas, para outrem, ordenação que implica a ideia especial de justiça. Mas, os efeitos delas, isto é, as operações exteriores, se ordenam para outrem. Donde não se conclui que a matéria da justiça seja geral.

Artigo 7 - Se há uma justiça particular além da justiça geral.

O sétimo discute-se assim. – Parece que não há uma justiça particular além da justiça geral.

1. – Pois, na ordem da virtude, como na da natureza, nada é supérfluo. Ora, a justiça geral ordena suficientemente o homem em todas as suas relações com outras. Logo, não é necessária nenhuma justiça particular.

2. Demais. – A unidade e a multiplicidade não diversificam as espécies de virtude. Ora, a justiça legal ordena os homens uns para os outros, enquanto vivem na sociedade, como do sobredito resulta. Logo, não há outra espécie de justiça que regula as relações particulares dos homens entre si.

3. Demais. – Entre o particular e a sociedade civil é meio termo a sociedade doméstica. Se, pois, há uma justiça particular, própria à pessoa singular, além da justiça geral, pela mesma razão deve haver uma justiça econômica que ordena o homem para o bem comum de uma determinada família. O que não se admite. Logo, também não é admissível uma justiça particular, além da justiça legal.

Mas, em contrário, Crisóstomo, àquilo do Evangelho – Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça - diz: Refere-se à justiça como virtude universal, ou particular, contrária à avareza.

SOLUÇÃO. – Como se disse a justiça legal não abrange essencialmente todas as virtudes; mas, é necessário, além dela, que ordena imediatamente o homem para o bem comum, existirem outras virtudes que o ordenem imediatamente para os bens particulares. As quais podem dizer respeito ou a nós mesmos ou a uma outra pessoa singular. Por onde, assim como, além da justiça legal, é necessário existam certas virtudes particulares, como a temperança e a fortaleza, que ordenam o homem para si mesmo; assim também, além da justiça legal, é necessário haver uma certa justiça particular, que o ordene nas suas relações com os particulares.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ A justiça legal por certo ordena suficientemente o homem nas suas relações com outrem: quanto ao bem comum, imediatamente, quanto ao bem de cada particular, mediatamente. Por onde, é necessário haver uma justiça particular, que ordene imediatamente as relações que respeitam o bem dos particulares entre si.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O bem comum da cidade e o particular de cada um não diferem só pelo mais e pelo menos, mas, por, uma diferença formal. Pois, uma é a noção do bem comum e outra, a do particular; assim como, uma é a noção do todo e outra, a da parte. Por isso, o Filósofo ensina: Não dizem bem os que fazem diferir a cidade e a família, e outras realidades semelhantes, só pelo mais e pelo menos, e não, pela espécie.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A sociedade doméstica, segundo o Filósofo, distingue-se pelas três uniões, a saber: da mulher e do marido; do pai e do filho e a do senhor e do escravo, cujas pessoas são como que uma, parte da outra. Por onde, não é a justiça geral a que regula as relações dessas pessoas, mas, uma espécie de justiça, isto é, a econômica, como diz Aristóteles.

Artigo 6 - Se a justiça geral inclui essencialmente todas as outras virtudes.

O sexto discute-se assim. – Parece que a justiça geral inclui essencialmente todas as outras virtudes.

1. – Pois, diz o Filósofo, que a virtude e a justiça legal é idêntica a todas as virtudes, mas o ser delas não é o mesmo. Ora, coisas que diferem só pelo ser, ou pela noção, não diferem pela essência. Logo, a justiça inclui essencial e identicamente todas as virtudes.

2. Demais. – Toda virtude que não inclui essencial e identicamente a todas as outras, faz parte das virtudes. Ora, a referida justiça, como o Filósofo diz no mesmo lugar, não é parte da virtude, mas, a virtude total. Logo, a referida justiça inclui essencialmente todas as virtudes.

3. Demais. – Os hábitos não se diversificam essencialmente por ordenar uma virtude o seu ato para um fim mais alto. Assim, o hábito da temperança é essencialmente o mesmo, ainda que o seu ato se ordene ao bem divino. Ora, a justiça legal faz com que os atos de todas as virtudes se ordenem a um fim mais alto, isto é, ao bem comum da multidão que tem preeminência sobre o do particular. Logo, parece que a justiça inclui essencialmente todas as virtudes.

4. Demais. – Todo bem da parte se ordena ao do todo; e portanto se para ele não se ordenar, é vão e inútil. Ora, tal não pode ser o que é segundo a virtude. Logo, parece- que não pode haver ato de nenhuma virtude, que não pertença à justiça geral, que ordena para o bem comum. E, assim, parece que a justiça geral inclui essencialmente todas as virtudes.

Mas, em contrário, diz o Filósofo, que muitas podem praticar a virtude relativamente aos seus atos próprios; não a podem, porém, em relação a outrem. E, noutro lugar: a virtude do homem bom e a do bom cidadão não são absolutamente idênticas. Ora, a virtude do bom cidadão é a justiça geral, que nos ordena para o bem comum. Logo, a justiça geral não é o mesmo que a virtude comum; mas, uma pode existir sem a outra.

SOLUÇÃO. – De dois modos uma coisa pode ser chamada geral. - De um modo, por predicação; assim, animal é um termo geral aplicável ao homem, ao cavalo e a outros seres semelhantes. E, neste sentido, necessário é que seja o geral essencialmente o mesmo que o que ele abrange; porque o gênero pertence á essência da espécie e entra na definição dela. - De outro modo, chamamos geral ao que o é segundo a virtude; assim, a causa universal relativamente a todos os seus efeitos, como o sol, relativamente a todos os corpos iluminados ou alterados pela sua ação. E, neste sentido, não é necessário que o geral seja essencialmente idêntico com o que abrange, porque a essência da causa não é a mesma que a do efeito.

Ora, deste modo, conforme ao que já dissemos, a justiça legal é chamada virtude geral; isto é, enquanto ordena os atos das outras virtudes para o seu fim; o que é movê-las a todas pelo império. Assim como, pois, a caridade pode chamar-se virtude geral, por ordenar os atos de todas as virtudes para o bem divino; assim também, a justiça legal, por ordenar os atos de todas as virtudes para o bem comum. Portanto, assim como a caridade que visa o bem divino como seu objeto próprio, é uma virtude especial, por essência; assim também a justiça legal é uma virtude especial, por essência, enquanto visa o bem comum como seu objeto próprio. E assim, está no chefe, como principal e arquitetonicamente; nos súditos, porém, secundariamente e como ministra.

Contudo, qualquer virtude chama-se justiça legal, enquanto ordenada para o bem comum pela referida virtude, especial pela sua essência, mas, geral como virtude. E, conforme a este modo de falar, a justiça legal inclui essencialmente todas as virtudes, mas difere racionalmente. E neste sentido é que se exprime o Filósofo.

Donde se deduzem claras as RESPOSTA À PRIMEIRA E À SEGUNDA OBJEÇÕES.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Também essa objeção, assim interpretada, é procedente, relativamente à justiça legal, enquanto que a virtude imperada por essa justiça se chama justiça legal.

RESPOSTA À QUARTA. – Qualquer virtude, na sua acepção própria, ordena o seu ato ao fim próprio dela. Não é porém, pela sua essência mesma que se ordena a um fim ulterior, sempre ou algumas vezes; mas, por influência de uma virtude superior. E, assim, há de haver, por força, uma virtude superior, que ordena todas as outras para o bem comum, que é a justiça legal, essencialmente diversa de todas as outras.

Artigo 5 - Se a justiça é uma virtude geral.

O quinto discute-se assim. – Parece que a justiça não é uma virtude geral.

1. – Pois, a justiça entra na mesma divisão das outras virtudes, como diz a Escritura: Ensina a temperança e a prudência, a justiça e a fortaleza. Ora, o geral não entra na mesma divisão e na mesma enumeração das espécies que ele abrange. Logo, a justiça não é uma virtude geral.

2. Demais. – Como a justiça é considerada uma das virtudes cardeais, assim também a temperança e a fortaleza. Ora, nem a temperança nem a fortaleza são consideradas virtudes gerais. Logo, também e de nenhum modo deve sê-lo a justiça.

3. Demais. – A justiça sempre é relativa a outrem, como já se disse. Ora, o pecado cometido contra o próximo não é um pecado geral, mas se opõe ao que o homem comete contra si mesmo. Logo, também a justiça não é uma virtude geral.

Mas, em contrário, o Filósofo considera a justiça como a virtude total.

SOLUÇÃO. – A justiça como já dissemos, ordena o homem nas suas relações com outrem. O que pode ser de dois modos: com outrem singularmente considerado; ou, com outrem, em geral, isto é, no sentido em que quem serve a uma comunidade serve a todos os indivíduos nela contidos. Ora, de um e outro modo pode-se aplicar a justiça, na sua ideia própria. Pois, é manifesto que todos os que fazem parte de uma comunidade, estão para esta como a parte para o todo. Ora, por tudo o que é a parte pertence ao todo; por onde, qualquer bem da parte se ordena ao bem do todo. Portanto, assim sendo, o bem de qualquer virtude, quer o da que ordena o homem para consigo mesmo, quer o da que o ordena a qualquer outra pessoa singular, é referível ao bem comum, para o qual a justiça ordena. E, li esta luz, os atos de todas as virtudes podem pertencer à justiça, enquanto esta ordena o homem para o bem comum. Por onde, a justiça é considerada uma virtude geral. E como o próprio da lei é ordenar o homem para o bem comum, como já estabelecemos aí resulta que essa justiça geral, ao modo que referimos, chama-se justiça legal, porque, obedecendo-lhe o homem procede de acordo com a lei, ordenadora de todos os atos para o bem comum.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A justiça entra na mesma divisão e na mesma enumeração que as outras virtudes, não enquanto geral, mas, enquanto virtude especial, como a seguir se dirá.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A temperança e a fortaleza residem no apetite sensitivo, isto é, no concupiscível e no irascível. Ora, essas potências apetem certos bens particulares, assim como os sentidos conhecem o particular, Mas, o sujeito da justiça é o apetite intelectivo, capaz de atingir o bem universal, que o intelecto pode apreender. Por onde, a justiça pode, mais que a temperança ou a fortaleza, ser uma virtude geral.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Os atos ordenados para nós mesmos se ordenam para outrem, sobretudo em consideração do bem comum. Por isso, a justiça legal, enquanto ordena para o bem comum, pode chamar-se virtude geral. E pela mesma razão a injustiça pode ser chamada um pecado geral; donde o dizer a Escritura, que todo pecado é uma iniquidade.

Artigo 4 - Se o sujeito da justiça é a vontade.

O quarto discute-se assim. – Parece que o sujeito da justiça não é a vontade.

1. – Pois, a justiça é às vezes chamada verdade. Ora, a verdade não reside na vontade, mas, no intelecto. Logo, o sujeito da justiça não é a vontade.

2. Demais. – A justiça supõe relação com outrem. Ora, ordenar uma coisa para outra é próprio da razão. Logo, o sujeito da justiça não é a vontade, mas, antes, a razão.

3. Demais. – A justiça, não se ordenando ao conhecimento, não é uma virtude intelectual. Donde se conclui que é uma virtude moral. Ora, o sujeito das virtudes morais é o racional por participação, que é o irascível e o concupiscível, como está claro no Filósofo. Logo, o sujeito da justiça não é a vontade, mas, antes, o irascível e o concupiscível.

Mas, em contrário, diz Anselmo, que a justiça é a retidão da vontade, retidão observada pelo que em si mesma é.

SOLUÇÃO. – É sujeito de uma virtude a potência, cujos atos a virtude é ordenada a retificar. Ora, a justiça não se ordena a dirigir nenhum ato cognoscitivo; pois, não somos considerados justos por conhecermos com retidão alguma coisa. Logo, o sujeito da justiça não é o intelecto ou a razão, que é uma potência cognoscitiva. Mas, como somos considerados justos por agirmos retamente, e o princípio próximo do agir é a potência apetitiva, necessariamente a justiça tem nalguma potência apetitiva o seu sujeito. Ora, há um duplo apetite, a saber: à vontade, que se funda na razão, e o sensitivo, consequente à apreensão sensível, que se divide em irascível e concupiscível, como estabelecemos na Primeira Parte. Ora, dar a cada um o que lhe pertence não pode proceder do apetite sensitivo, porque a apreensão sensitiva não pode chegar até a consideração da proporcionalidade entre uma e outra, o que é próprio da razão Por onde, a justiça não pode ter como sujeito o irascível ou o concupiscível, mas, só a vontade. Por isso o Filósofo define a justiça pelo ato de vontade, como do sobredito claramente resulta.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Sendo a vontade um apetite racional, daí vem que à retidão da razão, à que chamamos verdade, quando impressa na vontade, pela sua união com a razão, damos-lhe o nome de verdade. Donde, às vezes, o chamar-se à justiça verdade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A vontade busca o seu objeto, consequentemente à apreensão racional. Por onde, como a razão ordena uma coisa para outra, a vontade pode querer uma ordenadamente à outra, o que é próprio da justiça.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Racional por participação não só é o irascível e o concupiscível, mas também, todo apetite, como diz Aristóteles. Porque todo apetite obedece à razão. Ora, no apetite se inclui a vontade. Por onde, a vontade pode ser o sujeito da virtude moral.

Artigo 3 - Se a justiça é uma virtude.

O primeiro discute-se assim. – Parece que a justiça não é uma virtude.

1. – Pois, diz o Evangelho: Depois de terdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei: Somos uns servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer. Ora, não é inútil praticar obras de justiça, porquanto, diz Ambrósio. Não consideramos como útil o ganho de uma soma de dinheiro, mas, antes, a aquisição da piedade. Logo, o fazer alguém o que deve não é obra de virtude. Ora, é obra de justiça, e, portanto, a justiça não é virtude.

2. Demais. – O que se faz necessariamente não é meritório. Ora, é de necessidade dar a cada um, o que lhe pertence, obra de justiça. Logo, não é meritório. Ora, nós merecemos pelos atos de virtude. Portanto, a justiça não é uma virtude.

3. Demais. – Toda virtude moral tem por objeto uma ação. Ora, o que não existe exteriormente não é uma ação, mas, um produto da arte, como está claro no Filósofo. Mas, sendo próprio da justiça fazer alguma obra exterior, justa em si mesma, resulta que a justiça não é uma virtude moral.

Mas, em contrário, Gregório diz que a estrutura completa das boas obras resulta das quatro virtudes, a saber, a temperança, a prudência, a fortaleza e a justiça.

SOLUÇÃO. – A virtude humana torna bom o ato humano e o agente que o pratica, o que é próprio da justiça. Pois, os atos humanos são bons por se sujeitarem à regra da razão, que os retifica. Por onde, a justiça, retificando as ações humanas, é claro que as torna boas. E, como diz Túlio, por causa da sua justiça é que certos homens se chamam bons. Por onde, como diz no mesmo lugar, nela é máximo o esplendor da virtude.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Quem faz o que deve não dá nenhum lucro aquele para com quem assim agiu, mas, somente se absteve de lhe causar dano. Fez, porém, algo de útil para si mesmo, por ter feito com vontade espontânea e pronta o que devia: o que é proceder virtuosamente. Donde o dizer a Escritura: A sabedoria de Deus ensina a temperança e a justiça, a prudência e a fortaleza, que é o mais útil que há na vida para os homens, isto é, aos virtuosos.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Há uma dupla necessidade. Uma, de coação. E esta, repugnando à vontade, elimina a ideia de mérito. Outra é a proveniente da obrigação imposta pelo preceito, isto é, a necessidade do fim; quando, por exemplo, não podemos conseguir o fim da virtude, se não o fizermos. E tal necessidade não exclui a ideia do mérito, por fazermos voluntariamente o que é assim necessário. Exclui, porém, a glória da superrogação, conforme àquilo da Escritura: Se prego o Evangelho, não tenho de que gloriar-me; pois me é imposta essa obrigação.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A justiça não tem por objeto as coisas exteriores, pelas fazer, o que é próprio da arte; mas, pelas usar, nas suas relações com outrem.

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