Category: Santo Tomás de Aquino
O sexto discute-se assim. – Parece que a caridade não é a mais excelente das virtudes.
1 – Pois, uma potência mais nobre tem virtude e operação mais alta. Ora, a inteligência é mais nobre que a vontade e a dirige. Logo, a fé, residente no intelecto, sobrepuja em excelência a caridade, residente na vontade.
2. Demais. – O instrumento pelo qual um agente opera lhe é inferior a ele; assim, um criado, por meio do qual o senhor pode agir, é lhe inferior a ele. Ora, a fé obra por caridade, como diz o Apóstolo. Logo, é mais excelente que a caridade.
3. Demais. – O que é adicionado é mais perfeito que aquilo a que se o adiciona. Ora, a esperança se acrescenta à caridade, pois, o objeto desta é o bem, ao passo que o daquela é o bem difícil. Logo, a esperança ê mais excelente que a caridade.
Mas, em contrário, a Escritura: A maior delas é a caridade.
SOLUÇÃO. – A bondade dos atos humanos consiste em se pautarem pela regra devida. Por isso, a virtude humana, princípio dos atos bons, há de necessariamente consistir em pautar-se pela regra dos atos humanos. Ora, esta é dupla, como já dissemos a razão humana e Deus, sendo Deus a regra primeira a que mesmo a razão humana deve obedecer. Por onde, as virtudes teologais, que consistem em pautaremse por essa regra primeira, por terem Deus como objeto, são mais excelentes que as virtudes morais ou intelectuais, consistentes em pautarem-se pela razão humana. Por isso e necessariamente, mesmo entre as virtudes teologais é mais importante a que mais de perto tem Deus por objeto. Pois sempre o existente por si mesmo é mais importante que o existente por outro. Ora, a fé e a esperança tem Deus por objeto enquanto que, por ele, podemos conhecer a verdade ou alcançar o bem. Enquanto que a caridade o busca para nele satisfazer-se e não para dele nos resultar algum bem. Por onde, a caridade sobreleva em excelência a fé e a esperança, e por consequência, todas as outras virtudes. Assim como a prudência, concernente à razão, em si mesma, vence em excelência todas as outras virtudes morais, referentes à razão, enquanto estabelece um meio termo nas ações e nas obras humanas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A operação intelectual se perfaz quando o objeto inteligido está no sujeito que intelige; por isso, a nobreza dessa operação depende da medida do intelecto. A operação da vontade, porém, e de qualquer virtude apetitiva, completa-se pela inclinação do sujeito apetente ao objeto, como termo; de aí o fundar-se a dignidade dessa operação na coisa, que e o seu objeto. Ora, as coisas inferiores à alma estão nela de maneira mais digna do que a pela qual existem em si mesmas; porque o ser existente em outro deste recebe o modo da sua existência, como diz o livro De causis. Os seres superiores à alma, porém, existem em si mesmos de maneira mais digna do que aquela pela qual estão na alma. Por isso, o conhecimento dos seres inferiores a nós é mais nobre que o amor dos mesmos; e assim segundo o Filósofo preferem as virtudes intelectuais às morais. Mas o amor dos seres que nos são superiores, e sobretudo de Deus, é preferível ao conhecimento deles. Portanto, a caridade é mais excelente que a fé.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A fé não obra pelo amor, a modo de instrumento, como o senhor pelo escravo; mas a modo de forma própria. Por onde, a objeção não colhe.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O mesmo bem é objeto da caridade e da esperança; mas, ao passo que a caridade implica união com ele, a esperança implica afastamento. Donde vem que a caridade não considera esse bem difícil, como o faz a esperança; pois, o que já está unido não implica a ideia de dificuldade. E daí resulta o ser a caridade mais perfeita que a esperança.
O quinto discute-se assim. – Parece que a caridade não é uma só virtude.
1 – Pois, os hábitos se distinguem pelos seus objetos. Ora, dois são os objetos da caridade: Deus e o próximo, distantes infinitamente um do outro. Logo, a caridade não é uma só virtude.
2. Demais. – As razões diversas do objeto diversificam o hábito, embora o objeto seja realmente um só, como do sobredito resulta. Ora, muitas são as razões de amarmos a Deus, pois devemos amá-lo por todos os benefícios que dele recebemos. Logo, a caridade não é uma só virtude.
3. Demais. – Na caridade se inclui a amizade ao próximo. Ora, o Filósofo distingue diversas espécies de amizade. Logo, a caridade não é uma só virtude, mas se multiplica com as diversas espécies delas.
Mas, em contrário. – Assim como o objeto da fé é Deus, assim também o da caridade. Ora, é a fé uma só virtude, por causa da unidade da verdade divina, conforme aquilo da Escritura: Uma fé. Logo, também a caridade é uma só virtude, por causa da unidade da bondade divina.
SOLUÇÃO. – A caridade, como já dissemos, é uma amizade entre o homem e Deus. Ora, há tantas amizades diversas quantos são os seus diversos fins. Daí, três espécies de amizade: a útil, a deleitável e a honesta. De outro modo, a amizade se diversifica pela diversidade de comunicação dos sujeitos em que ela se funda. Assim, uma é a amizade para com os consanguíneos; outra, para com os concidadãos ou os estrangeiros. Das quais, a primeira se funda na comunicação natural; a outra na comunicação civil, ou na que é própria dos estrangeiros, como claramente o diz o Filósofo. Ora, de nenhum destes modos a caridade é susceptível de divisões. Pois o seu fim é um só, que é a divina bondade; e também uma só é a comunicação da felicidade eterna, na qual a referida amizade se funda. Donde se conclui que a caridade é, absolutamente falando, uma só virtude, não diversificada por várias espécies.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A objeção colheria se Deus e o próximo fossem, ao mesmo título, objetos da caridade. O que não é verdade; pois, Deus é o seu principal objeto: e a caridade ama ao próximo por amor de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A caridade ama a Deus por si mesmo. Por onde, ama só por um fundamento principal, que é a sua substância, e que é a bondade divina, conforme aquilo da Escritura. Louvai ao Senhor porque ele é bom. E as outras razões aduzidas para amar, ou que constituem o dever de amar, são secundárias e resultantes da primeira.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A amizade humana, de que fala o Filósofo, tem fim e comunicação diversos. O que não se dá com a caridade, como dissemos. Logo, a comparação é imprópria.
O quarto discute-se assim. – Parece que a caridade não é uma virtude especial.
1. – Pois, diz Jerônimo: Para completar breve e totalmente a definição da caridade, direi que é uma virtude pela qual amamos a Deus e ao próximo. E Agostinho: a virtude é a ordem do amor. Ora, nenhuma virtude especial entra na definição da virtude em geral. Logo, a caridade não é uma virtude especial.
2. Demais. – O que abrange todos os atos virtuosos não pode ser uma virtude especial. Ora, a caridade os abrange a todos, conforme aquilo da Escritura: A caridade é paciente, é benigna etc. Abrange mesmo todas as obras humanas, segundo ainda a Escritura: Todas as vossas obras sejam feitas em caridade. Logo, a caridade não é uma virtude especial.
3. Demais. – Os preceitos da lei correspondem aos atos das virtudes. Ora, Agostinho diz: é um mandamento geral o de amar; e uma proibição geral, a de não ceder à concupiscência. Logo, a caridade é uma virtude geral.
Mas, em contrário, o geral não pode entrar numa mesma divisão com o particular. Ora, a caridade entra na mesma divisão que a esperança e a fé, virtudes especiais, conforme a Escritura. Agora, pois permanecem a fé, a esperança, a caridade, estas três virtude. Logo, a caridade é uma virtude especial.
S0LUÇÃO. – Os atos e os hábitos especificam-se pelos seus objetos, como do sobredito resulta. Ora, o objeto próprio do amor é o bem, segundo estabelecemos. Por onde, onde há uma espécie determinada de bem há uma espécie determinada de amor. Ora, o bem divino, enquanto objeto da felicidade, é uma espécie determinada de bem. Logo, o amor de caridade, que é o amor desse bem, é um amor especial, e portanto a caridade é uma virtude especial.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A caridade entra na definição de todas as virtudes, não que se identifique essencialmente com elas, mas por, de certo modo, todas dependerem dela, como a seguir se dirá. Assim também a prudência entra na definição das virtudes morais, como se vê em Aristóteles, por dependerem elas da prudência.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A virtude ou a arte, a que pertence o fim último, domina as virtudes ou as artes a que pertencem os fins secundários; assim, a arte militar domina a equestre, como diz Aristóteles. Por onde, sendo o objeto da caridade o fim último da vida humana, isto é, a felicidade eterna, há de a caridade abranger, de modo imperativo, todos os atos da vida humana, e não porque seja a causa produtora imediata de todos os atos virtuosos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O preceito de amar é considerado um mandamento geral, porque a ele, como ao fim, se reduzem todos os outros preceitos, conforme aquilo da Escritura. O fim do preceito é a caridade.
O terceiro discute-se assim. – Parece que a caridade não é uma virtude.
1. – Pois, a caridade é uma forma da amizade. Ora, os filósofos não consideram a amizade uma virtude, como se vê em Aristóteles, nem a enumeram entre as virtudes morais; nem entre as intelectuais. Logo, também não é a caridade uma virtude.
2. Demais. – A virtude de uma potência é o que nela vem em último lugar, diz Aristóteles. Ora, a caridade não vem em último lugar, mas antes, a alegria e a paz. Logo, parece que a caridade não é virtude, mas antes, a alegria e a paz.
3. Demais. – Toda virtude é um hábito acidental. Ora, a caridade, sendo mais nobre que a própria alma, não é um hábito acidental; pois, nenhum acidente é mais nobre que o seu sujeito. Logo, a caridade não é uma virtude.
Mas, em contrário, Agostinho: A caridade é uma virtude, que, quando o nosso afeto for absolutamente reto, nos faz amar a Deus e nos unir com ele.
SOLUÇÃO. – A bondade dos atos humanos consiste em serem regulados pela regra e medida devidas. Por onde, a virtude humana, que é o princípio de todos os atos bons do homem, consiste em obedecer à regra dos atos humanos. Ora, esta é dupla, como já dissemos a razão humana e Deus. Por isso, como a virtude moral se define - o que esta de acordo com a razão reta, segundo Aristóteles assim também, obedecer a Deus constitui a essência da virtude, conforme já dissemos antes ao tratarmos da fé e da esperança. E portanto, sendo a caridade relativa a Deus, com o qual nos une, conforme é claro pelo lugar citado de Agostinho, resulta o ser ela uma virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Filósofo não nega seja a amizade uma virtude; mas, ensina: é uma virtude, ou é acompanhada de virtude. Assim, poderíamos considerá-la uma virtude moral, cujo objeto são os atos relativos a outrem, a luzes diversas, entretanto, do que se dá com a justiça. Pois, a justiça tem por objeto os atos relativos a outrem, mas levando-se em conta o débito legal; ao passo que a amizade leva em conta um débito amigável e moral, ou melhor, o benefício gratuito, como diz o Filósofo. Podemos, porém dizer, que não é virtude distinta, em si mesma, das outras. Pois, não é louvável e honesta senão pelo seu objeto, isto é, por fundar-se na honestidade das virtudes; o que é claro, por não ser qualquer amizade louvável e honesta, como bem o mostra a amizade deleitável e a útil. Por onde, a amizade virtuosa é, antes, uma consequência da virtude, que propriamente virtude. Mas não se pode dizer o mesmo da caridade, que não se funda principalmente na virtude humana, mas na bondade divina.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Da mesma virtude é próprio amar uma pessoa e alegrar-se com ela, pois a alegria resulta do amor, como já estabelecemos ao tratarmos das paixões. Por isso considera-se como virtude o amor, de preferência à alegria, efeito dele. Ora, o que vem em último lugar, em a noção de virtude, não implica a ideia de efeito, mas antes, a de um certo superexcesso: assim, cem libras excedem quarenta.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Todo acidente é por essência inferior à substância, por ser esta um ser subsistente por si mesmo, ao passo que aquele existe em outro ser. Mas, quanto à noção específica, o acidente causado pelos princípios do sujeito é menos digno que este, como o efeito é menos digno que a causa. O acidente: porém, causado pela participação de uma natureza superior, é mais digno que o sujeito, por ser semelhança dessa natureza; assim, a luz sobrepuja em dignidade o diáfano. E deste modo a caridade é mais digna que a alma, por ser uma certa participação do Espírito Santo.
O segundo discute-se assim. – Parece que a caridade não é uma realidade criada na alma.
1 – Pois, diz Agostinho: Quem ama ao próximo, há de, por consequência, amar ao próprio amor. Ora, Deus é amor. Logo e consequentemente há de amar sobretudo a Deus. E, noutro lugar: Dizer que Deus é caridade é o mesmo que dizer que Deus é espírito. Logo, a caridade não é nenhuma realidade criada na alma, mas é o próprio Deus.
2. Demais. – Deus é espiritualmente a vida da alma, assim como a alma é a vida do corpo conforme aquilo da Escritura: Ele mesmo é a lua vida. Ora, a alma dá vida ao corpo por si mesma. Logo, Deus também lhe dá vida a ela por si mesmo. Mas, como a vivifica pela caridade, segundo a Escritura. - Nós sabemos que nós fomos trasladados da morte para a vida, porque amamos a nossos irmãos resulta que Deus é a caridade mesma.
3. Demais. – Nada de criado tem virtude infinita; antes, toda criatura é vaidade. Ora, longe de ser vaidade, esta repugna à caridade; e tem uma virtude infinita, porque leva a alma do homem ao bem infinito. Logo, a caridade não é nada de criado na alma.
Mas, em contrário, Agostinho: Chamo caridade ao movimento da alma que nos leva a gozar de Deus em si mesmo, Ora, um movimento da alma é uma realidade criada nela. Logo, a caridade é algo de criado na alma.
SOLUÇÃO. – O Mestre das Sentenças trata desta questão no seu livro e ensina que a caridade não é nenhuma realidade criada na alma, mas é o próprio Espírito Santo, que habita o nosso espírito. Não quer com isso dizer seja esse movimento de amor, pelo qual amamos a Deus, o Espírito Santo mesmo, mas que vem do Espírito Santo. E tal se dá não mediante qualquer hábito, como acontece com os outros atos virtuosos, oriundos do Espírito Santo mediante os hábitos das suas respectivas virtudes ; por exemplo, pelo hábito da fé, da esperança, ou de qualquer outra virtude. E isto ensinava ele por causa da excelência da caridade.
Mas quem refletir atentamente nesta doutrina ve-la-á redundar, antes, em detrimento da caridade. - Pois, o movimento da caridade não procede do Espírito Santo, que moveria a mente humana de modo a ser ela somente movida, sem ser de maneira nenhuma princípio desse movimento, como se dá com o corpo, movido por um motor externo. Mas isto colide com a noção de voluntário, que, por força, há de ter em si mesmo o seu princípio, como já dissemos, por isso, da referida doutrina seguir-se-ia, que amar não é uma atividade voluntária. Ora, tal implica contradição, pois o amor é por essência um ato da vontade. Semelhantemente, também não se pode dizer que o Espírito Santo mova á vontade a amar, como é movido um instrumento, que embora seja o princípio do ato, não pode contudo, por si mesmo agir ou deixar de agir. Pois então desapareceria totalmente o que constitui o voluntário e por consequência, o mérito; e entretanto já o estabelecemos, o amor de caridade é a raiz do mérito. Por onde e necessariamente, a vontade há de ser movida pelo Espírito Santo a amar, sem deixar de ser, ela mesma, a causa eficiente do seu ato.
Ora, nenhum ato é perfeitamente produzido por uma potência ativa, sem lhe ser conatural a ela, em virtude de uma forma, princípio da ação. Por isso Deus, que move todos os seres para os seus devidos fins, infundiu em cada um deles as formas pelas quais se inclinem aos fins que Ele mesmo lhes determinou. E por aí, dispõe todas as coisas com suavidade, como diz a Escritura. Ora, como é manifesto, o ato de caridade excede a natureza da potência da vontade. Por isso, se não se lhe acrescentasse nenhuma forma a essa potência natural, que a leve a inclinar-se ao ato de amor, este ato seria mais imperfeito que os atos naturais e as das demais virtudes, e nem seria fácil e deleitável, o que é evidentemente falso, porque nenhuma virtude tem tão grande inclinação para o seu ato como a caridade; e nem há nenhuma, que opere de tão deleitável maneira. Donde o ser forçoso o ato de caridade apoiar-se, em máximo grau, em alguma forma habitual, acrescentada à potência natural, que a incline a esse ato, e leve a potência a agir pronta e deleitavelmente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A essência divina, em si mesma, é caridade, assim como é sabedoria e bondade. Ora, consideramo-nos bons, pela bondade, que é Deus, e sábios pela sabedoria, que é Deus, porque a bondade que nos torna bons formalmente é uma participação da bondade divina; e a sabedoria, pela qual somos formalmente sábios, é uma participação da sabedoria divina. Por onde, também a caridade, pela qual formalmente amamos o próximo, é uma participação da caridade divina. Mas este modo de exprimirse é habitual aos platónicos, de cuja doutrina estava imbuído S. Agostinho; e por não estarem disso advertidos, certos hauriram, nas palavras dele, ocasião de erro.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Deus é efetivamente vida da alma pela caridade; e do corpo, pela alma; mas formalmente, a caridade é a vida da alma, assim como esta é a do corpo. Por onde, pode concluir-se que, assim como a alma está imediatamente unida ao corpo, assim, a caridade, à alma.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A caridade obra formalmente. Ora, a eficácia da forma depende da virtude do agente que a introduz. Por isso, não sendo a caridade uma vaidade, mas produzindo um efeito infinito, por unir a alma com Deus, justificando-a, isso demonstra a infinidade da virtude de Deus, autor da caridade.
O primeiro discute-se assim. – Parece que a caridade não é a amizade.
1 – Pois, nada é mais próprio à amizade do que conviver com o amigo, no dizer do Filósofo. Ora, o homem pratica a caridade para com Deus e os anjos, que não tem comércio com os homens, segundo a Escritura. Logo, a caridade não é a amizade.
2. Demais. – A amizade implica a retribuição no amar, como diz Aristóteles: Ora, podemos praticar a caridade também para com os inimigos, conforme aquilo da Escritura: A amai a vossos inimigos, Logo, a caridade não é amizade.
3. Demais. – Há segundo o Filósofo três espécies de amizade a deleitável, a útil e a honesta. Ora, a caridade não é amizade útil nem deleitável. Pois, diz Jerónimo: a amizade verdadeira, a amizade fundada em Cristo, não repousa em nenhum interesse temporal, nem na só presença dos amigos, nem nas adulações pérfidas e lisonjeiras, mas no temor de Deus e no amor às divinas Escrituras. Semelhantemente, não é a amizade honesta, porque pela caridade amamos também os pecadores, ao passo que a amizade honesta tem por objeto só os virtuosos, como diz Aristóteles. Logo, a caridade não é a amizade.
Mas, em contrário, a Escritura. Já vos não chamarei servos, mas amigos meus. Ora, isto só se podia dizer em razão da caridade. Logo, a caridade é a amizade.
SOLUÇÃO. – Segundo o Filósofo, não é qualquer amor que realiza a noção de amizade, senão o amor de benevolência, pelo qual queremos bem a quem amamos. Se porém não queremos bem aos seres que amamos, e antes, queremos para nós o bem que há neles como quando amamos o vinho, um cavalo, ou causas semelhantes - não há amor de amizade, mas de concupiscência. Pois seria ridículo dizer que alguém tenha amizade ao vinho ou a um cavalo. Mas também não basta a benevolência para haver a amizade: é preciso um certo amor mútuo, porque um amigo é amigo de seu amigo. Ora, essa mútua benevolência se funda em alguma comunicação. E tal é o caso do homem que comunica com Deus, porque ele nos comunica a sua felicidade; e dessa comunicação, em que há de fundar-se a amizade, diz a Escritura: Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à companhia de seu Filho. Ora, o amor fundado nessa comunicação é a caridade. Por onde é manifesto, que a caridade é a amizade entre o homem e Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O homem tem dupla vida, - Uma exterior, a sensível e corpórea. E, por esta, não comunicamos nem temos sociedade com Deus e os anjos. - Outra a do espírito. E por esta temos sociedade com Deus e com os anjos. Na vida presente, de modo imperfeito; donde o dizer a Escritura: a nossa conversação está nos céus. Essa conversação porém há de ser perfeita na pátria, quando os seus servos servirão a Deus e verão a sua face, como diz a Escritura: assim, imperfeita nesta vida, a caridade será perfeita na pátria.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A amizade pode ser relativa a uma pessoa, de dois modos. Primeiro, no atinente a ela mesma; e então, nunca haverá amizade senão para com um amigo. - De outro modo, no que diz respeito a terceiros; assim quando, tendo amizade por uma pessoa, amamos, por causa dela, tudo o que lhe pertence, como os filhos, os criados e tudo o que lhe concerne. E tão grande pode, ser o amor pelo amigo, que, por causa dele, sejam amadas as pessoas que lhe digam respeito, mesmo que nos ofendam ou odeiem. E deste modo a amizade de caridade se estende até aos inimigos, que amamos, por caridade, por causa de Deus, a quem se dirige principalmente a amizade de caridade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A amizade honesta não tem por objeto senão o homem virtuoso, como pessoa principal; mas, por causa dele, amamos também as pessoas que lhe dizem respeito, mesmo sem serem virtuosas. E deste modo, a caridade, que é por excelência uma amizade honesta, estende-se aos pecadores, que amamos com, caridade, por amor de Deus.
O segundo discute-se assim. – Parece que a Lei não devia dar nenhum preceito relativo ao temor.
1. – Pois, o temor de Deus tem por objeto os preâmbulos da lei, porque é o início da sabedoria. Ora, os preâmbulos da Lei não podem ser objeto dos preceitos da mesma. Logo, a Lei não devia dar nenhum preceito sobre o temor.
2. Demais. – Posta a causa, posto fica o efeito. Ora, o amor é causa do temor, pois todo temor procede de algum amor, como diz Agostinho: Logo, estabelecido o preceito do amor, seria necessário estabelecer outro sobre o temor.
3. Demais. – Ao temor se opõe, de certo modo, a presunção. Ora, a Lei não estabeleceu nenhuma proibição relativa à presunção. Logo, também não devia dai nenhum preceito sobre o temor.
Mas, em contrário, a Escritura: Agora, pois, ó Israel, que é o que o Senhor teu Deus pede de ti, senão que temas o Senhor teu Deus? Ora, ele requer de nós o que nos mandou observar. Logo, temermos a Deus é objeto de preceito.
SOLUÇÃO. – Há um duplo temor: o servil e o filial. Ora, assim como somos levados à observância dos preceitos da lei pela esperança do prêmio, assim também somos levados à observância da lei pelo temor das penas, o que constitui o temor servil. Por onde, como já dissemos, na promulgação mesma da Lei não se devia dar nenhum preceito relativo ao ato da esperança, ao que os homens eram induzidos só pelas promessas. Assim também, nada se devia determinar, a modo de preceito, sobre o temor relativo à pena, pois a isso os homens eram levados pela cominação das penas; o que foi feito pelos preceitos mesmos do Decálogo e depois e consequentemente, pelos preceitos secundários da Lei. Mas, como, mais tarde, os sábios e os profetas, visando firmar os homens na observância da Lei, ministraram ensinamentos relativos à esperança, a modo de admoestação ou de preceito, assim também o mesmo se deu com o temor. Ora, o temor filial, que presta reverência a Deus, é um como gênero, relativamente ao amor de Deus, e um como princípio de tudo o que é observado para reverenciar a Deus. Por isso a Lei estabeleceu preceitos, tanto sobre o temor filial como sobre o amor; porque um e outro são preâmbulos dos atos exteriores, preceituados pela Lei, e aos quais dizem respeito os preceitos do Decálogo. Por onde, a autoridade da Lei, invocada no caso presente, requer do homem o temor, tanto para que ande nosso caminhos do Senhor, adorando-o, como para que o ame.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O temor filial é um certo preâmbulo da Lei, não como algo de extrínseco a ela, mas como o princípio da mesma, como também o é o amor. Por isso, sobre um e outro estabeleceram-se preceitos, que são uns quase princípios comuns de toda a lei.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Do amor resulta o temor filial bem como outras boas obras feitas pela caridade. - Por isso, assim como, depois do preceito sobre a caridade se dão outros preceitos sobre os demais atos das virtudes, assim também simultaneamente se estabelecem preceitos sobre o temor e o amor de caridade. Assim como nas ciências demonstrativas não basta formular os princípios primeiros, se também não se estabelecem as conclusões deles próxima ou remotamente subsequentes.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Induzir ao temor basta para excluir a presunção; assim como induzir à esperança basta para excluir o desespero, como se disse.
O primeiro discute-se assim. – Parece não se deve estabelecer nenhum preceito relativo à virtude da esperança.
1. – Pois, o que pode realizar-se por um só princípio não tem necessidade de apoiar-se em mais outro. Ora, pela própria inclinação da sua natureza, o homem é levado suficientemente a esperar o bem. Logo, não é necessário a isso seja levado por nenhum preceito de lei.
2. Demais. – Sendo os preceitos dados para regular os atos virtuosos, os preceitos principais devem ser os que são dados para os atos das virtudes principais. Ora, de todas as virtudes, as principais são as três teologais, a saber, a esperança, a fé e a caridade. Por onde, sendo os principais preceitos da Lei os do Decálogo, a que se reduzem todos os outros como já disse, parece que se algum preceito fosse dado relativo à virtude da esperança, esse deveria estar contido nos do Decálogo. Ora, não está contido nele. Logo, parece que nenhum preceito legal deve ser dado relativo à virtude da esperança.
3. Demais. – Pela mesma razão preceituase um ato de virtude e se proíbe o ato do vício oposto. Ora, não há nenhum preceito dado que proíba o desespero, contrário à esperança. Logo, parece que também não se deve dar nenhum preceito relativo à esperança.
Mas, em contrário, àquilo da Escritura - O meu preceito é este, que vos ameis uns aos outros - diz Agostinho: Quantos preceitos não nos foram dados sobre a fé, e quantos sobre a esperança. Logo, convém dar certos preceitos sobre a esperança.
SOLUÇÃO. – Dos preceitos encontrados na Sagrada Escritura, uns são da substância da lei, outros, preâmbulos dela. Preâmbulos são aqueles sem os quais a lei não pode existir. Tais os preceitos sobre o ato de fé e o da esperança; pois, pelo ato de fé, a mente do homem se inclina a reconhecer o autor da lei, como sendo aquele a quem deve submeter-se; e pela esperança do prêmio é levado à observância dos preceitos. Os preceitos relativos à substância da lei são os impostos ao homem já submetido e pronto a obedecer, e relativos à retidão da vida. Por onde, tais preceitos são propostos, no ato da promulgação da lei, imediatamente, como preceitos. Ora, os preceitos relativos à fé e à esperança não deviam ser propostos de modo preceptivo, pois, se o homem já não cresse e esperasse a lei lhe seria dada em vão. Mas assim como o preceito sobre a fé foi proposto a modo de declaração ou de lembrança, como já dissemos, assim também o preceito sobre a esperança, na primeira promulgação da Lei, foi dado a modo de promessa. Pois, quem promete prêmios ao obediente, por isso mesmo incita-o à esperança. Por onde, todas as promessas contidas na Lei tem por fim despertar a esperança.
Porém, depois de ter sido estabelecida a lei pertence aos homens prudentes, não só induzir os demais a lhe observar os preceitos, mas, e sobretudo a conservar-lhe o fundamento. Por isso, depois da primeira promulgação da Lei, a Sagrada Escritura muitas vezes induz os homens a esperar, mesmo a modo de admoestação ou preceito, e não somente fazendo promessas, como a Lei, e como se vê claramente no lugar onde diz - Esperai nele, toda a congregação do povo - e em muitos outros.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A natureza inclina suficientemente a esperar o bem proporcionado à natureza humana. Mas para esperar um bem sobrenatural, era preciso fosse o homem levado pela autoridade da lei divina, e em parte, por promessas, em parte, por admoestações ou por preceitos. E contudo, mesmo para aquilo a que a razão natural inclina, como os atos das virtudes morais, foi necessário se dessem os preceitos da lei divina, para maior firmeza, e sobretudo, porque a razão natural do homem estava obscurecida pelas concupiscências do pecado.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os preceitos do Decálogo pertencem à primeira promulgação da Lei. Por isso, entre os preceitos dele, não se devia incluir nenhum sobre a esperança; mas bastou, por certas promessas feitas, infundir no homem a esperança, como claramente o faz o primeiro e o quarto preceitos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Nos casos em que a observação é exigida do homem como um dever, basta estabelecer um preceito afirmativo sobre o que ele deve fazer em que se entende estar incluída a proibição daquilo que deve evitar. Assim, foi estabelecido o preceito de honrar os pais, sem que se proibisse desonrá-los, senão porque a lei estabeleceu uma pena para quem os desonrasse. E como, para a sua salvação; o homem deve esperar em Deus, a isso o induz uma das maneiras supras referidas, quase afirmativamente, onde se entende incluída a proibição do contrário.
O quarto discute-se assim. – Parece que a presunção não é causada pela vanglória.
1. – Pois, a presunção parece apoiar-se sobretudo na misericórdia divina. Ora, a misericórdia tem por objeto a miséria, oposta à glória. Logo, a presunção não nasce da vanglória.
2. Demais. – A presunção se opõe ao desespero. Ora, o desespero nasce da tristeza, como já se disse. E tendo os contrários causas contrárias, parece que a presunção nasce do prazer. Por onde parece que nasce dos vícios carnais, cujos prazeres são os mais veementes.
3. Demais. – O vício da presunção consiste em tendermos para um bem impossível, como se nos fosse possível. Ora, por ignorância julgamos o impossível, possível. Logo, a presunção provém, antes, da ignorância, que da vanglória.
Mas, em contrário, Gregório diz: a presunção das novidades é feita da vanglória.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, há uma dupla presunção. - Uma, confiante nas nossas próprias forças, quando tentamos como possível o que nô-las excede. E essa presunção nasce manifestamente da vanglória. Pois de muito desejarmos a glória, resulta tentarmos alcançar uma glória superior às nossas forças. E essa glória compreende sobretudo as novidades, que provocam maior admiração. E por isso Gregório indica assinaladamente a presunção como filha da vanglória. - Outra presunção é a fundada desordenadamente na misericórdia ou no poder divinos, por onde esperamos obter a glória, sem méritos, ou o perdão, sem penitência. E tal presunção nasce diretamente da soberba, causa de o homem se estimar, a ponto de esperar que Deus não o punirá, nem o excluirá da glória, mesmo que peque.
Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O terceiro discute-se assim. – Parece que a presunção se opõe mais ao temor que à esperança.
1 – Pois, o temor desordenado se opõe ao temor reto. Ora, a presunção parece fazer parte do temor desordenado, conforme aquilo da Escritura: Sempre uma consciência perturbada presume coisas cruéis; e ainda: o temor é um auxiliar da presunção, Logo, a presunção se opõe ao temor, mais que à esperança.
2. Demais. – Os contrários distam em máximo grau. Ora, a presunção dista mais do temor do que da esperança, pois implica movimento para o seu objeto, como a esperança; ao contrário, o temor implica um afastamento do objeto. Logo, a presunção contraria mais ao temor que à esperança.
3. Demais. – A presunção exclui totalmente o temor, não porém a esperança, senão só a retidão desta. Ora, como os contrários mutuamente se destroem, parece que a presunção se opõe mais ao temor que à esperança.
Mas, em contrário, dois vícios opostos entre si são contrários a uma mesma virtude; assim a timidez e a audácia, à fortaleza. Ora, o pecado da presunção é contrário ao do desespero, diretamente oposto à esperança. Logo, parece também a presunção se opõe mais diretamente à esperança.
SOLUÇÃO. – Como diz Agostinho, a todas as virtudes são contrários não só os vícios, que delas difiram manifestamente, como à prudência a temeridade, mas também os que, sob algum aspecto, lhes são vizinhos é se lhes assemelham, não verdadeiramente, mas sob uma aparência falaciosa, como à prudência a astúcia. E também o Filósofo diz que a virtude tem maior semelhança com um do que com outro dos vícios opostos; assim a temperança, com a insensibilidade, e a fortaleza, com a audácia. Por onde, a presunção tem oposição manifesta com o temor, sobretudo o servil, relativo à pena proveniente da justiça de Deus, cujo perdão a presunção espera. Mas, por semelhança aparente, contraria, antes, à esperança, por implicar uma certa esperança desordenada em Deus. E como se opõem mais diretamente as realidades de um mesmo gênero, que as de gêneros diversos, por serem os contrários do mesmo gênero, por isso, mais diretamente a presunção se opõe à esperança que ao temor. Pois, uma e outra se fundam no mesmo objeto; mas a esperança, ordenada, e a presunção, desordenadamente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A esperança é, referida ao mal, abusivamente, e ao bem, em sentido próprio. Assim também a presunção. E a esta luz o temor desordenado chama-se presunção.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Contrários são os termos mais distantes entre si, no mesmo gênero. Ora, a presunção e a esperança implicam um movimento do mesmo gênero, que pode ser ordenado ou desordenado. Por isso a presunção contraria mais diretamente à esperança que ao temor. Pois à esperança contraria em razão da diferença própria, como o desordenado, ao ordenado; enquanto que ao temor, em razão da sua diferença genérica, que é um movimento da esperança.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A presunção contraria ao temor por contrariedade genérica; mas à virtude da esperança por contrariedade de diferença. Por isso, a presunção exclui totalmente o temor, mesmo genericamente; mas não exclui a esperança, senão em razão da diferença, excluindo-lhe o ser desordenado.