O primeiro discute-se assim. – Parece que a caridade não é a amizade.
1 – Pois, nada é mais próprio à amizade do que conviver com o amigo, no dizer do Filósofo. Ora, o homem pratica a caridade para com Deus e os anjos, que não tem comércio com os homens, segundo a Escritura. Logo, a caridade não é a amizade.
2. Demais. – A amizade implica a retribuição no amar, como diz Aristóteles: Ora, podemos praticar a caridade também para com os inimigos, conforme aquilo da Escritura: A amai a vossos inimigos, Logo, a caridade não é amizade.
3. Demais. – Há segundo o Filósofo três espécies de amizade a deleitável, a útil e a honesta. Ora, a caridade não é amizade útil nem deleitável. Pois, diz Jerónimo: a amizade verdadeira, a amizade fundada em Cristo, não repousa em nenhum interesse temporal, nem na só presença dos amigos, nem nas adulações pérfidas e lisonjeiras, mas no temor de Deus e no amor às divinas Escrituras. Semelhantemente, não é a amizade honesta, porque pela caridade amamos também os pecadores, ao passo que a amizade honesta tem por objeto só os virtuosos, como diz Aristóteles. Logo, a caridade não é a amizade.
Mas, em contrário, a Escritura. Já vos não chamarei servos, mas amigos meus. Ora, isto só se podia dizer em razão da caridade. Logo, a caridade é a amizade.
SOLUÇÃO. – Segundo o Filósofo, não é qualquer amor que realiza a noção de amizade, senão o amor de benevolência, pelo qual queremos bem a quem amamos. Se porém não queremos bem aos seres que amamos, e antes, queremos para nós o bem que há neles como quando amamos o vinho, um cavalo, ou causas semelhantes - não há amor de amizade, mas de concupiscência. Pois seria ridículo dizer que alguém tenha amizade ao vinho ou a um cavalo. Mas também não basta a benevolência para haver a amizade: é preciso um certo amor mútuo, porque um amigo é amigo de seu amigo. Ora, essa mútua benevolência se funda em alguma comunicação. E tal é o caso do homem que comunica com Deus, porque ele nos comunica a sua felicidade; e dessa comunicação, em que há de fundar-se a amizade, diz a Escritura: Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à companhia de seu Filho. Ora, o amor fundado nessa comunicação é a caridade. Por onde é manifesto, que a caridade é a amizade entre o homem e Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O homem tem dupla vida, - Uma exterior, a sensível e corpórea. E, por esta, não comunicamos nem temos sociedade com Deus e os anjos. - Outra a do espírito. E por esta temos sociedade com Deus e com os anjos. Na vida presente, de modo imperfeito; donde o dizer a Escritura: a nossa conversação está nos céus. Essa conversação porém há de ser perfeita na pátria, quando os seus servos servirão a Deus e verão a sua face, como diz a Escritura: assim, imperfeita nesta vida, a caridade será perfeita na pátria.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A amizade pode ser relativa a uma pessoa, de dois modos. Primeiro, no atinente a ela mesma; e então, nunca haverá amizade senão para com um amigo. - De outro modo, no que diz respeito a terceiros; assim quando, tendo amizade por uma pessoa, amamos, por causa dela, tudo o que lhe pertence, como os filhos, os criados e tudo o que lhe concerne. E tão grande pode, ser o amor pelo amigo, que, por causa dele, sejam amadas as pessoas que lhe digam respeito, mesmo que nos ofendam ou odeiem. E deste modo a amizade de caridade se estende até aos inimigos, que amamos, por caridade, por causa de Deus, a quem se dirige principalmente a amizade de caridade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A amizade honesta não tem por objeto senão o homem virtuoso, como pessoa principal; mas, por causa dele, amamos também as pessoas que lhe dizem respeito, mesmo sem serem virtuosas. E deste modo, a caridade, que é por excelência uma amizade honesta, estende-se aos pecadores, que amamos com, caridade, por amor de Deus.