Category: Santo Tomás de Aquino
O quarto discute-se assim. – Parece que o homem não deve, com caridade, amar mais a si mesmo que ao próximo.
1. – Pois, o objeto principal da caridade é Deus como já se disse. Ora, às vezes, o próximo está mais unido a Deus que nós mesmos. Logo, devemos amá-la, então, mais que a nós mesmos.
2. Demais. – Evitamos mais o mal aquele a quem mais amamos. Ora, pela caridade, sofremos danos pelo nosso próximo, conforme aquilo da Escritura: Aquele que por amor do seu amigo não faz caso de passar por alguma perda é justo. Logo, o homem deve, com caridade, amar mais a outrem que a si mesmo.
3. Demais. – A Escritura diz, que a caridade não busca os seus próprios interesses. Ora, mais amamos aquilo de que mais buscamos o bem. Logo, ninguém se ama, com caridade, mais a si mesmo que ao próximo.
Mas, em contrário, a Escritura: Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Por onde, parece que o amor do homem para consigo mesmo é como que o exemplar do amor que tem para com outrem. Ora, o exemplar é anterior ao exemplado. Logo, o homem deve, com caridade, amar mais a si mesmo que ao próximo.
SOLUÇÃO. – No homem há duas naturezas - a espiritual e a corpórea. Ora, dizemos que ele se ama a si mesmo quando se ama na sua natureza espiritual, como já dissemos. E a esta luz, deve amar-se a si mesmo, depois de Deus, mais que a quem quer que seja. E isto é claro pela própria razão desse amor. Pois, conforme já dissemos, Deus é amado como o princípio do bem no qual se funda o amor de caridade. Ora, o homem se ama a si mesmo com caridade, pela razão de ser participante do referido bem; o próximo, porém, é amado por lhe ser associado nessa participação. Ora, a co-associação é razão do amor fundada numa certa união, relativamente a Deus. Por onde, assim como a unidade é mais forte que a união, assim o participar o homem do bem divino é mais forte razão de amar do que o associar-se outro com ele nessa participação. Portanto, o homem deve, com caridade, amar mais a si mesmo que ao próximo. E isto é sinal que não deve submeter-se a nenhum mal do pecado, que contrarie à participação da felicidade, para que livre o próximo do pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O amor de caridade é susceptível de quantidade não só por parte do objeto que é Deus, mas também por parte do amante, que é aquele mesmo que tem a caridade; assim, também a quantidade de qualquer ação depende: de certo modo, do próprio sujeito. E portanto, embora o próximo mais unido com Deus seja melhor, como porém não é tão próximo ao que tem caridade, como este a si mesmo, não se segue devamos amar mais ao próximo que a nós mesmos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Devemos sofrer danos corpóreos pelo nosso amigo. E assim agindo, amamos mais a nós mesmos na ordem espiritual, pois isso constitui a perfeição da virtude, que é o bem do espírito. Mas o homem não deve, pecando, sofrer dano nos seus bens espirituais, para livrar o próximo do pecado, como já dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Segundo Agostinho, quando a Escritura diz - a caridade não busca os seus próprios interesses - isso significa que ela antepõe o geral ao particular. Pois, sempre o bem geral nos é mais amável que o nosso bem próprio, assim como também a parte mais ama o bem do todo, que o bem particular dela, como já dissemos.
O terceiro discute-se assim. – Parece que o homem não deve amar com caridade mais a Deus que a si mesmo.
1. – Pois, como diz o Filósofo, os sentimentos de amizade que temos para com os outros vem dos que temos para conosco mesmo. Ora, a causa tem mais poder que o efeito. Logo, o homem tem maior amizade para consigo mesmo do que para com qualquer outro ser; e portanto, deve amar-se mais a si mesmo que a Deus.
2. Demais. – Amamos o nosso bem próprio. Ora, a razão de amar é amada mais do que aquilo que por causa dela se ama, assim como são mais conhecidos os princípios que são a razão do conhecimento. Logo, o homem mais ama a si mesmo do que a qualquer outro objeto amável e, portanto, não ama a Deus mais que a si mesmo.
3. Demais – Quanto mais amamos a Deus tanto mais queremos gozá-lo. Ora, quanto mais queremos gozar de Deus, tanto mais nos amamos a nós mesmos, por ser ele o sumo bem que para nós mesmos podemos querer. Logo, o homem não deve amar com caridade mais a Deus que a si mesmo.
Mas, em contrário, Agostinho: Se não deves te amar por causa de ti mesmo, mas, por causa daquele que é o fim justíssimo do teu amor, que ninguém se encolerize se o amarmos por causa de Deus. Ora, a causa é de natureza mais perfeita que o efeito. Logo, devemos amar mais a Deus que a nós mesmos.
SOLUÇÃO – De Deus podemos receber duas espécies de bens: o da natureza e o da graça. Na participação dos bens naturais, que Deus nos deu, funda-se o amor natural, pelo qual não somente o homem, na integridade da sua natureza, ama a Deus sobre todas as coisas, e mais que a si mesmo, mas também qualquer outra criatura, como as pedras ou outros, que não tem conhecimento a seu modo, isto é, com amor intelectual, racional, animal ou, pelo menos, natural. Porque toda parte ama naturalmente mais o bem comum do todo do que o seu bem particular próprio. E isso as obras o manifestam, pois toda parte tem inclinação principal para a ação geral em utilidade do todo. E o mesmo o mostram as virtudes políticas, que levam às vezes os cidadãos a despenderem os próprios bens e pessoas, pelo bem comum. Logo, e com maioria de razão, isso há de verificar-se na amizade de caridade, fundada na participação dos dons da graça. Portanto, o homem deve, com caridade, amar a Deus, bem comum de todos, mais que a si mesmo; pois a felicidade está em Deus como no princípio comum e fontal de todos os que dela podem participar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Filósofo se refere aos sentimentos de amizade relativos a outrem, em quem existe o bem, que é o objeto da amizade, de algum modo particular; e não, dos sentimentos de amizade para com outrem, em quem o referido bem existe na sua essência total.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A parte ama o bem do todo, por este lhe ser conveniente; mas, não pelo referir a si, mas ao contrário, por se referir ela ao bem do todo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – É por amarmos a Deus com amor de concupiscência que queremos gozar de Deus. Ora, nós amamos mais a Deus com amor de amizade do que com amor de concupiscência; por ser o bem de Deus, em si mesmo, superior ao de que podemos participar, gozando-o. Por isso, absolutamente falando, amamos, com caridade, mais a Deus que a nós mesmos.
O segundo discute-se assim. – Parece que não devemos amar mais a Deus que ao próximo.
1. – Pois, diz a Escritura: Aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, como pode amar a Deus a quem não vê? Por onde, parece mais amável o mais visível, por ser a vista o princípio do amor, como diz Aristóteles. Ora, Deus é menos visível que o próximo. Logo, também devemos ter menos caridade para com ele.
2. Demais. – A semelhança é a causa do amor, conforme aquilo da Escritura: Todo animal ama ao seu semelhante: Ora, maior é a semelhança nossa com o próximo do que com Deus. Logo, amamos com caridade mais ao próximo do que a Deus.
3. Demais. – Quem a caridade ama no próximo é Deus, como diz Agostinho. Ora, Deus não é maior em si mesmo do que no próximo. Logo, não devemos amá-lo mais em si mesmo do que no próximo; e portanto não devemos amar mais a Deus que ao próximo.
Mas, em contrário – Devemos amar mais aquilo por causa do que odiamos outros seres. Ora, devemos odiar ao próximo, por causa de Deus, quando nos afasta deste, conforme a Escritura. Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai e mãe e mulher e filhos e irmãos e irmãs, não pode ser meu discípulo.
SOLUÇÃO. – Toda amizade tem como objeto principal aquele que principalmente encerra o bem em cuja participação ela se funda. Assim a amizade política tem por objeto principal o chefe da república, do qual depende todo o bem da mesma; por isso, os cidadãos lhe devem sobretudo a fidelidade e a obediência. Ora, a amizade de caridade se funda na participação da felicidade, que consiste, essencialmente, em Deus como princípio primeiro; e dela deriva para todos os capazes da felicidade. Por onde devemos, principalmente e em máximo grau, amar a Deus com caridade. Pois, a ele o amamos como causa da felicidade; e, ao próximo, como quem lhe participa, conosco, da felicidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – De dois modos pode um objeto ser causa de amor. - Primeiro como o que é a razão de amar. E deste modo o bem é causa de amor, porque, um ser é amado na razão direta do que tem de bom. - De outro modo, como via para adquirir o amor. E deste modo a vista é causa de amor, não por ser amável o visível, mas nos levar a vista ao amor. Por onde, o mais visível não é necessariamente o mais amável, mas, o que se nos ofereceu em primeiro lugar ao amor. E neste sentido é que fala o Apóstolo. Pois o próximo, por nos ser mais visível se nos apresenta primeiro ao amor; porque, como diz Gregório numa homilia, pelo que a, alma conhece aprende a amar o desconhecido. Por onde, quem não amar ao próximo pode ser acusado de também não amar a Deus; não porque o próximo seja mais digno. de ser amado, mas por se nos oferecer primeiro ao nosso amor. Deus, porém, é mais digno de amor por causa da sua maior bondade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A semelhança que temos com Deus é anterior a que temos com o próximo e causa desta. Pois, tornamo-nos semelhantes ao próximo por participarmos de Deus o que ele também participa. Por onde, em razão da semelhança, devemos amar mais a Deus que ao próximo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Deus, considerado na sua substância, é sempre o mesmo, esteja em que ser estiver; porque não fica diminuído por estar em algum. Mas nem por isso tem o próximo a bondade de Deus como ele mesmo a tem; pois Deus a tem essencialmente e o próximo, participativamente.
O primeiro discute-se assim. – Parece que não há nenhuma ordem na caridade.
1. – Pois, a caridade é uma virtude. Ora, não se estabelece nenhuma ordem nas outras virtudes. Logo, também não se deve estabelecer nenhuma na caridade.
2. Demais. – Assim como a verdade primeira é o objeto da fé, assim o objeto da caridade é a suma bondade. Ora, não há nenhuma ordem estabelecida na fé, mas todas as suas verdades são igualmente acreditadas. Logo, não se deve também por nenhuma ordem na caridade.
3. Demais. – A caridade está na vontade. Ora, ordenar não é próprio da vontade, mas da razão. Logo, não se deve atribuir nenhuma ordem à caridade.
Mas, em contrário, a Escritura: O rei me fez entrar na adega onde mete o seu vinho; ordenou em mim a caridade.
SOLUÇÃO. – Como diz o Filósofo, prioridade e posterioridade supõem relação com um princípio. Ora, a ordem inclui em si de certo modo, anterioridade e posterioridade. Por onde, é necessário que onde quer que haja um princípio haja também uma ordem. Ora, como já dissemos, o amor da caridade tem por objeto Deus, como princípio da felicidade, na participação da qual se funda a amizade de caridade. Por isso, é necessário atendermos a uma certa ordem, no que amamos com caridade, conforme a relação com o princípio primeiro desse amor, que é Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A caridade tem por objeto o fim último, como tal o que não convém a nenhuma outra virtude, como já se disse. Ora, na ordem do apetite e da ação, o fim exerce a função de princípio, como do sobredito se colhe. Por onde, a caridade implica sobretudo relação com o princípio primeiro. Por isso, a ordem nela se considera sobretudo relativamente ao primeiro princípio.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O fim é próprio da potência cognoscitiva, por cuja operação o objeto conhecido está no sujeito conhecente. Ao passo que a caridade reside na potência afetiva, cuja operação consiste no tender da alma para as coisas mesmas. Ora, a ordem se manifesta principalmente nas próprias coisas, e delas deriva para o nosso conhecimento. Por onde, é mais própria da caridade que da fé; embora nesta também haja uma certa ordem, enquanto diz respeito principalmente a Deus, e secundariamente ao que a Deus se refere.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A ordem é própria da razão, como ordenadora que ela é. A potência apetitiva pertence, como ordenada. E deste modo se estabelece a ordem na caridade.
O duodécimo discute-se assim. – Parece que se enumeram inconvenientemente os quatro objetos que devemos amar com caridade Deus, o próximo, o nosso corpo e nós mesmos.
1. – Pois, como diz Agostinho quem não ama a Deus também não se ama a si mesmo. Logo, o amor de Deus inclui o de nós mesmos. Portanto, o amor de nós mesmos não difere do amor de Deus.
2. Demais. – A parte não se divide do todo, por oposição. Ora, o nosso corpo faz parte de nós. Logo, não deve ser considerado como algo diferente de nós e constituindo objeto de diferente amor.
3. Demais. – Como nós temos corpo, também o próximo o tem. Portanto; assim como o nosso amor para com o próximo difere do com que nos amamos a nós mesmos, assim o amor que temos pelo corpo do próximo deve diferir daquele com que amamos o nosso próprio corpo. Logo, não se distinguem convenientemente quatro objetos a serem amados com caridade.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Há quatro seres que devemos amar: um que nos é superior, e é Deus; outro, que somos nós mesmos; o terceiro está junto de nós, isto é, o próximo; o quarto, que nos é inferior, e é o nosso próprio corpo.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a amizade de caridade se funda na participação da felicidade. E essa participação implica um ser que é o princípio causador da felicidade e que é Deus; outro, diretamente participante dela, que é o homem e o anjo; o terceiro é aquele para o qual a felicidade deriva, por uma como redundância e é o corpo humano. Ora, o que influi a felicidade deve ser amado pela razão mesma de ser a causa dela. O ser participante da felicidade pode ser objeto de amor, de dois modos: ou por constituir um mesmo ser conosco, ou, por ser nosso associado na participação da felicidade. E a esta luz, dois seres há que devem ser amados com caridade; pois, nós a nós mesmos nos amamos, e o próximo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As diversas relações entre o amante e os vários objetos amados causam razões diversas de amor. E assim como o homem que ama tem com Deus uma relação diversa da que tem para consigo mesmo, considera-se duplo o objeto do seu amor, por ser o amor de um a causa do amor do outro. E por isso, removido aquele, removido fica este.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O sujeito da caridade é o espírito racional, capaz de felicidade, que o corpo não pode alcançar diretamente, mas só por uma certa redundância. E por isso o homem, pelo espírito racional, que é o seu principal atributo, de um modo, ama-se com caridade e, de outro, o seu corpo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O homem ama a alma e o corpo do próximo em razão de uma certa co-participação da felicidade. E por isso, havendo só uma razão de amar ao próximo, o seu corpo não é considerado objeto especial de amor.
O undécimo discute-se assim. – Parece que devemos amar os demônios com caridade.
1. – Pois, os anjos são nossos próximos, por termos de comum com eles o espírito racional. Ora, também os demônios tem conosco essa comunidade, porque os dons naturais, como o ser, a vida e a inteligência, permanecem íntegros neles, segundo diz Dionísio. Logo, devemos amar os demônios com caridade.
2. Demais. – Os demônios diferem dos santos anjos pelo pecado, assim como os homens pecadores, dos justos. Ora, os justos amam os pecadores com caridade. Logo, também com caridade devem amar os demônios.
3. Demais. – Os que nos fazem benefícios devemos amá-los com caridade, como nossos próximos, conforme se deduz do lugar de Agostinho supra-citado. Ora, os demônios são-nos muito úteis, quando, tentando-nos, preparam-nos coroas, como diz Agostinho. Logo, devemos amá-los com caridade.
Mas, em contrário, a Escritura: Será apagado o vosso concerto com a morte e o vosso pacto com o inferno não subsistirá. Ora, a caridade é que torna perfeita a paz e o pacto. Logo, não devemos ter caridade para com os demônios, habitantes do inferno e concertadores da morte.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, devemos amar a natureza dos pecadores e odiar-lhes o pecado. Ora, o nome de demônio significa a natureza deformada pelo pecado. Logo, os demônios não devem ser amados com caridade. Mas, se não se levar em consideração o nome, e a questão for se devemos amar com caridade os espíritos chamados demônios, devemos responder, segundo o que já foi dito que um ente pode ser amado com caridade, de dois modos. - Primeiro, como um ente para com o qual temos amizade. E então, não podemos ter amizade de caridade para com tais espíritos. Pois, é da essência da amizade o querermos bem aos nossos amigos. Ora, não podemos, com caridade, querer o objeto da mesma, que é o bem da vida eterna, para esses espíritos condenados por Deus à pena eterna. Pois isso repugna à caridade para com Deus, pela qual lhe aprovamos à justiça.
De outro modo, amamos um ente, por querermos que permaneça como bem de outrem; e desse modo amamos com caridade as criaturas irracionais, querendo que permaneçam, para a glória de Deus e a utilidade dos homens, como já dissemos. E deste modo podemos amar, mesmo com caridade, a natureza dos demônios, querendo que esses espíritos sejam conservados com os seus dons naturais para a glória de Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA QBJEÇÃO. – Ao espírito dos bons anjos não é impossível obter a felicidade eterna, como o é ao dos demônios. Por onde, a amizade de caridade, fundada na participação da vida eterna, mais do que na comunhão de natureza, nós a temos para com os bons anjos e não, para com os demônios.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os pecadores tem, nesta vida, a possibilidade de alcançar a felicidade eterna, que não tem os condenados no inferno. Por onde, com estes se dá a mesma coisa que com os demónios.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A utilidade que nos advém dos demônios não é por intenção deles, mas por ordem da divina Providência. E portanto, isso nos induz a ter amizade não, para com eles mas para com Deus, que lhes converte a intenção perversa em utilidade nossa.
O décimo discute-se assim. – Parece que não devemos amar os anjos com caridade.
1. – Pois, como diz Agostinho: o amor de caridade tem um duplo objeto - Deus e o próximo.
Ora, o amor dos anjos, que são substâncias criadas, não está incluído no amor de Deus; nem parece estar contido no amor do próximo, porque não pertencem à mesma espécie que nós. Logo, não devem ser amados com caridade.
2. Demais. – Os brutos tem mais afinidade conosco do que os anjos, porque também nós somos animais pelo mesmo gênero próximo. Ora, para com os brutos não temos caridade, como já se disse. Logo, nem para com os anjos.
3. Demais. – Nada há de mais próprio aos amigos do que a convivência, diz Aristóteles. Ora, os anjos não convivem conosco e nem os podemos ver. Logo, não podemos ter para com eles a amizade de caridade.
Mas, em contrário, Agostinho diz que se chama legitimamente próximo aquele para com quem devemos cumprir um dever de misericórdia, ou que deve cumpri-lo para conosco. Pois, é manifesto, que o preceito que nos manda amar ao próximo também inclui os santos anjos, que desempenham muitos deveres de misericórdia para conosco.
SOLUÇÃO. – A amizade de caridade como já dissemos, funda-se na participação da felicidade eterna, da qual os anjos participam com os homens, segundo o dito da Escritura depois da ressurreição serão os homens como os anjos no céu. Por onde é manifesto que a amizade de caridade estende-se até os anjos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Chamamos próximo não somente ao que participa da mesma espécie, mas também aos que participam dos benefícios pertinentes à vida eterna, em cuja participação se funda a amizade de caridade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os animais irracionais pertencem ao mesmo gênero próximo que nós, em razão da natureza sensitiva, que não nos torna participantes da felicidade eterna; pois, é pelo espírito racional, que temos de comum com os anjos, que dela participamos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os anjos não mantêm conosco convivência visível, concorde com a nossa natureza sensitiva. Convivemos, porém, com eles pelo espírito, nesta vida, mas perfeitamente já dissemos.
O nono discute-se assim. – Parece que a caridade exige necessariamente que manifestemos aos inimigos sinais ou efeitos da nossa amizade.
1. – Pois, diz a Escritura: Não amemos de palavra nem de língua, mas por obra e em verdade. Ora, amamos a alguém por obra manifestando-lhe os sinais e efeitos da nossa amizade. Logo, a caridade exige necessariamente que manifestemos aos inimigos esses mesmos sinais e efeitos.
2. Demais. – No Evangelho, o Senhor diz ao mesmo tempo: Amai a vossos inimigos; e: Fazei bem aos que vós tem ódio. Ora, a caridade exige necessariamente que amemos os inimigos. Logo, também exige que lhes façamos bem.
3. Demais. – Pela caridade amamos, não só a Deus, mas também ao próximo. Ora, Gregório diz: O amor de Deus não pode ser ocioso, pois, se existe, obra grandes coisas: e se recusa obrar, não é amor. Logo, a caridade que temos para com o próximo não pode existir sem produzir efeito. Ora, a caridade exige necessariamente que amemos todo próximo, mesmo sendo inimigo. Logo, necessariamente exige que manifestemos também aos inimigos os sinais e os efeitos do amor.
Mas, em contrário, aquilo do Evangelho. – Fazei bem aos que vós tem ódio - diz a Glosa: fazer bem aos inimigos é o cúmulo da perfeição. Ora, a caridade não exige necessariamente o que constitui a sua perfeição. Logo, não exige necessariamente que manifestemos aos inimigos sinais e efeitos de amor.
SOLUÇÃO. – Os efeitos e os sinais da caridade procedem do amor interno e a ele se proporcionam. Ora, amar, em nosso íntimo, o inimigo em geral, é absoluta e necessariamente exigido pelo preceito; em particular, porém, não absolutamente, mas, como preparação da alma, segundo já dissemos. Assim, pois, devemos dizer, sobre a manifestação externa do efeito e do sinal do amor, o seguinte. Há certos sinais ou benefícios do amor que manifestamos ao próximo em geral, como, quando oramos por todos os fiéis ou por todo o povo; ou quando fazemos um benefício a toda a comunidade. E tais benefícios ou sinais de amor o preceito exige necessariamente que os manifestemos aos inimigos. Pois, se não lhos manifestassemos isso implicaria a maldade da vingança, contra o que diz a Escritura: Não procures vinqar-te, nem te lembrarás das injúrias de teus concidadãos. Há outros benefícios, porém, ou sinais de amor que manifestamos particularmente a certas pessoas. E manifestar esses benefícios ou sinais de amor aos inimigos não é de necessidade para a salvação, senão só como preparação da alma, que lhes venha a prestar auxílio na premência da necessidade, conforme aquilo da Escritura: Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber: Mas só por perfeição da caridade é que, fora da premência da necessidade, lhes faremos tais benefícios. Por essa perfeição, não só nos acautelamos, por não nos deixarmos vencer pelo mal, o que é de necessidade, mas também queremos vencer o mal como bem, o que é próprio da perfeição. Pois, em virtude desta, não só não nos deixamos levar do ódio, por causa de uma injúria que nos foi assacada, mas ainda, com os nossos benefícios, visamos atrair o inimigo ao nosso amor.
Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O oitavo discute-se assim. – Parece que a caridade não. exige necessariamente que amemos os nossos inimigos.
1. – Pois, diz, Agostinho: Esse tão grande bem, isto é, amar os inimigos, não é próprio de tanta gente quanto pensamos ser ouvida por Deus, ao rezarem na oração. Perdoai-no as nossas dividas, Ora, a ninguém se lhe perdoa o pecado, sem a caridade, como diz a Escritura. A caridade cobre todos os delitos. Logo, a caridade não exige necessariamente que amemos os nossos inimigos.
2. Demais. – A caridade não elimina a natureza. Ora, todos os seres, mesmo os irracionais, odeiam naturalmente o que lhes é contrário. Assim, o lobo, a ovelha; e a água, o fogo. Logo, a caridade não nos faz amar os inimigos.
3. Demais. – A caridade não obra temerariamente, diz o Apóstolo. Ora, parece que é perversidade amar os inimigos, tanto como odiar os amigos. Donde na Escritura, o exprobar Joabe a Daví: Amar aos que te aborrecem e aborreces aos que te amam. Logo, a caridade não nos faz amar os inimigos.
Mas, em contrário, o Senhor diz: Amai a vossos inimigos.
SOLUÇÃO. – O amor para com os inimigos pode ser considerado a triplice luz. - Primeiro, que sejam amados, como inimigos. E isto é perverso e contrário à caridade, pois seria amar o mal de outrem. De outro modo, a amizade pelos inimigos pode ser considerada relativamente à natureza, mas universalmente. E então o amor pelos inimigos é uma necessidade exigida pela caridade, de modo tal que, quem amar a Deus e ao próximo, não exclua os inimigos desse amor geral que tem para com o próximo. De um terceiro modo, o amor pelos inimigos pode ser considerado em especial, de modo que sejamos movidos ao amor do inimigo por um movimento especial de amor. E isto a caridade não exige necessária e absolutamente. Porque, por necessidade absoluta nem ela exige que sejamos movidos por uma tendência especial de amor a amar qualquer homem, singularmente, porque tal seria impossível. Contudo, a caridade o exige necessariamente, para a preparação da alma, isto é, que a tenhamos preparada a amarmos particularmente um inimigo, se ocorrer a necessidade de o fazermos. Mas, sem pressão da necessidade, quem praticar o ato de amar um inimigo por amor de Deus, pratica a caridade na sua perfeição. Pois, quando amamos ao próximo com caridade, por amor de Deus, quanto mais amarmos a Deus, tanto mais mostraremos amizade para com o próximo, de modo que nenhuma inimizade o poderá impedir, Assim como quem amar muito a um determinado homem, amará, por amor dele, os filhos, mesmo que os tenha como inimigos. Ora, é neste sentido que fala Agostinho.
Donde se deduz claramente a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Todo ser odeia naturalmente o que lhe é contrário, como tal. Ora, os inimigos, como tais, nos são contrários. Por isso devemos odiar isso neles; pois, deve nos desagradar o serem nossos inimigos. Não nos são contrários, porém, enquanto homens e capazes da felicidade. E, por aí, devemos amá-los.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Amar os inimigos, como tais, é repreensível. Ora, isso não o faz a caridade como dissemos.
O sétimo discute-se assim. – Parece que os pecadores amam-se a si mesmos.
1. – Pois, o principio do pecado existe, por excelência, nos pecadores. Ora, o amor de si é princípio do pecado, porque é ele, no dizer de Agostinho que constitui a cidade de Babilônia. Logo, os pecadores amam-se, por excelência, a si mesmos.
2. Demais. – O pecado não destrói a natureza. Ora, a cada um é próprio, por natureza; amar-se a si mesmo; por isso, até as criaturas irracionais desejam naturalmente o bem próprio, por exemplo, a conservação do próprio ser e bens semelhantes. Logo, os pecadores amam-se a si mesmos.
3. Demais. – O bem é amável para todos, como diz Dionísio. Ora, muitos pecadores se consideram bons. Logo, muitos amam-se a si mesmos.
Mas, em contrário, a Escritura: daquele que ama a iniquidade aborrece a sua alma.
SOLUÇÃO. – Amar-se a si mesmo é, de um modo, comum a todos; de outro, próprio dos bons; e de um terceiro modo, próprio dos maus.
Pois, o amar alguém aquilo mesmo que presume ser é comum a todos. Ora, o homem é considerado ser, de dois modos. - Primeiro, pela sua substância e natureza. E a esta luz, todos julgam ser o que são, isto é, compostos de alma e corpo. E assim, também todos os homens, bons e maus, amam-se a si mesmos, na medida em que amam a própria conservação. De outro modo se diz que o homem é um ser, pelo que há nele de principal assim, por ser o chefe do Estado, o Estado, dizemos que o que faz o chefe faz o Estado. E, neste sentido, nem todos se julgam ser o que são. Ora, o que há principal no homem é o espírito racional, sendo secundária a natureza sensitiva e corpórea. E desses dois elementos o Apóstolo chama ao primeiro homem interior, ao segundo, exterior. Ora, os bons consideram como o que tem de principal a natureza racional, ou, o homem interior; e assim julgando, consideram-se como sendo o que são. Os maus porém julgam ter como elemento principal a natureza sensitiva e corpórea, isto é, o homem exterior. Por onde, não se conhecendo bem a si mesmos, a si mesmos não se amam verdadeiramente, mas, amam-se pelo que se julgam ser. Ao contrário, os bons, conhecendo-se verdadeiramente a si mesmos, verdadeiramente a si mesmos se amam. E isto o Filósofo o prova pelos cinco elementos próprios à amizade. Pois e primeiramente cada amigo quer que o amigo exista e viva; segundo, quer-lhe bens; terceiro, faz-lhe bens; quarto tem prazer em conviver com ele; quinto, concorda com ele, alegrando-se e entristecendo-se ambos com as mesmas coisas. E assim sendo, os bons amam-se a si mesmos, no concernente ao homem interior, por quererem conservá-lo na sua integridade. E lhe desejam os bens próprios dele, que são os espirituais; e também se esforçam para que os consiga. E tem prazer em se concentrar no seu espírito porque nele encontram os bons pensamentos, no presente; a memória dos bens passados e a esperança dos futuros, que lhes é causa de prazer. Semelhantemente, não padecem dissensão na vontade, por toda a alma deles tender para a unidade.
Ao contrário, os maus não querem conservar a integridade do homem interior; nem lhe desejam os bens espirituais; nem se esforçam por tal; nem tem prazer em conviver consigo mesmos, concentrando-se no seu espírito, porque nele encontram males presentes, passados e futuros, que aborrecem. Nem vivem em concórdia consigo mesmos, por causa da consciência que os remorde, conforme aquilo da Escritura: Arguir-te-ei e to porei diante da tua cara.
E pela mesma via pode-se provar que os maus se amam a si mesmos, no concernente à corrupção do homem exterior. Ora, em tal sentido, os bons não se amam a si mesmos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O amor de si, que é o princípio do pecado, é próprio dos maus e chega até o desprezo de Deus, como no mesmo lugar diz Agostinho. Porque os maus amam os bens externos a ponto de desprezarem os espirituais.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Embora os maus não fiquem totalmente privados do amor natural, têm-no, contudo, pervertido, da maneira já exposta.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os maus, na medida em que se consideram bons, participam algo do amor de si mesmos. Mas esse não é o verdadeiro amor de si, senão só aparente. Mas, nem mesmo esse é possível ter os que são muito maus.