Liturgia (134)
“Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem” (Evangelho)
O ciclo litúrgico termina com esta última semana do ano eclesiástico, e com ela a história do mundo, que nos veio revelando desde a origem, no Advento, até o seu termo final no último Domingo de Pentecostes.
O Breviário e o Missal chamam a nossa atenção para o fim do mundo e para o Juízo Final. Eis que o Senhor vai sair do seu lugar — diz o Profeta Miqueias nas lições de Matinas. Descerá e pisará os altos da Terra. Destruirá as montanhas. E os vales fundir-se-ão como a cera na chama e como as águas que rolam para o abismo. E fará tudo isto por causa do crime de Jacob e dos pecados da casa de Israel. Depois de fulminar Israel com estas ameaças, o Profeta revela-lhe a promessa da salvação. Cristo nascerá em Belém, e o Seu reino, o reino da Jerusalém celeste, não terá fim. Os profetas Nahum, Abacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias, que se leram durante a semana, confirmam o vaticínio de Miqueias. E Jesus no Evangelho começa por evocar a profecia de Daniel, que anuncia a ruína total e definitiva do Templo e de Israel pelas armas romanas. Aquela abominável desolação era o castigo que o povo merecera por haver elevado ao auge a sua infidelidade, rejeitando a pedra angular, que era Jesus Cristo. E nós sabemos perfeitamente como a profecia se realizou alguns anos depois da morte do Salvador. A angústia foi tal que se o assédio durasse mais algum tempo nenhum judeu teria escapado da morte. Deus abreviou, porém, aqueles dias, para salvar os que se convertessem depois de prova tão rude. Assim acontecerá no fim do mundo. “Tunc”, então, quer dizer, quando Cristo voltar, as tribulações serão mais angustiantes ainda. De novo reinará a abominação da desolação, porque “o homem da iniquidade e da oposição levantar-se-á, segundo a palavra do Apóstolo, contra tudo o que se diz Deus e como tal se adora, e ousará sentar-se no Templo e exigir que lhe prestem honras de divindade”. Mas ainda aqui Deus abreviará estes dias terríveis por causa dos eleitos. Virá então o Senhor, não como da primeira vez, apagado e humilde num recanto da Terra, mas coroado de glória e fulgurante como o relâmpago. Os eleitos voarão ao seu encontro como as águias. Os cataclismos no céu e na terra darão o sinal da Sua vinda e todas as tribos verão o estandarte flutuante da Redenção e o Filho do Homem que se aproxima com grande poder e majestade. “Quando os maus desejos se apoderam de vós, comenta São Basílio, quereria que pensásseis naquele tribunal terrível onde devemos todos comparecer. Conduzidos um a um, nós, que estamos aqui a falar, daremos conta, na presença do Universo, de todas as ações da nossa vida. E então aqueles que pecaram gravemente nesta vida ver-se-ão cercados de Anjos terríveis e disformes que os arrastarão para o abismo do opróbrio e da confusão eterna. Isto deveis temer e, penetrados deste temor, servir-vos dele como dum freio para coibir a alma dos vícios e do pecado”. E a Santa Igreja, insistindo no pensamento do Santo Doutor, exorta-nos, pela boca de São Paulo, a andar de maneira digna do Senhor, e a frutificar em toda a espécie de boas obras, para que, fortalecidos com a graça divina, soframos com alegria e paciência as contrariedades da vida, dando graças ao Pai que nos deu parte na herança do Seu Filho Nosso Senhor Jesus Cristo.
No fim dos tempos, tendo vencido totalmente os inimigos, que ressuscitarão para o castigo, e feito Rei incontestável dos eleitos, que esperavam a sua vinda para entrar de corpo e alma na glória, Cristo deporá nas mãos do Pai o reino que conquistou por meio do Seu Sangue, como homenagens perfeita da Cabeça e dos membros. E será então a verdadeira Páscoa, a passagem plena à terra da promessa, a conquista e a ocupação definitiva da Jerusalém celeste, onde, nesse Templo que não é de indústria humana, louvaremos o nome de Deus para sempre.
Jesus veio na humildade a primeira vez; à segunda virá glorioso. O Seu primeiro advento teve por fim preparar o segundo. Os que O acolheram no tempo, serão por Ele acolhidos na eternidade. Os que O rejeitaram no tempo, serão igualmente rejeitados por Ele na eternidade. É por isso que os Profetas não separam os dois acontecimentos; são dois atos do mesmo drama. Por este motivo também o Senhor não separa a ruína de Jerusalém do fim do mundo, porque o castigo que dispersou os judeus deicidas é figura do castigo eterno que está reservado aos iníquos que rejeitaram o Salvador. O primeiro se deu, o segundo há de se dar também.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
Jean Creté
Nenhuma parte da Sagrada Escritura é mais empregada pela Igreja na liturgia do que o saltério, coleção de cento e cinqüenta salmos compostos por poetas inspirados do povo eleito, e em uso já no Antigo Testamento. Dizemos que os salmos e seus autores são inspirados. Eles são, realmente, no sentido corrente da palavra, isto é, os compositores dos salmos tinham um dom poético evidente. Mas a essa inspiração poética, que é um dom natural, acrescenta-se a inspiração propriamente dita, que é um dom do Espírito Santo. Não é inútil precisar o sentido dessa palavra. Deus, em sua sabedoria e sua bondade, concedeu, para o bem de todos, a certos homens escolhidos por Ele graças especiais chamadas pelo teólogo carismas ou graças “gratis datæ”. Um carisma ou “gratis datæ” é uma graça atual especial, concedida por Deus a um homem (ou à sua Igreja) não para sua santificação pessoal, mas para o bem comum.
Os teólogos distinguem cuidadosamente três espécies de carismas ou graças “gratis datæ”:
1°) a revelação, que é a manifestação, feita por Deus a um homem, de uma verdade desconhecida (exemplos: a Santíssima Trindade, a Encarnação) ou a manifestação mais completa e mais perfeita de uma verdade já conhecida ou passível de ser conhecida pela razão (exemplos: a existência de Deus, a lei natural);
2°) a inspiração é o dom concedido por Deus aos escritores sagrados, isto é, aos autores dos diferentes livros da Bíblia, para leva-los infalivelmente a escrever o que Deus quer e como Ele quer; este dom não suprime de modo algum a liberdade do escritor sagrado; não é um “ditado” milagroso daquilo que ele tem a escrever; as faculdades naturais do escritor: memória, imaginação, inteligência, vontade, são exercidas normalmente, mas são guiadas eficazmente por este dom sobrenatural, do qual o escritor pode ter ou não ter consciência. Os dons de revelação e de inspiração não foram mais concedidos depois da morte do último dos apóstolos; a revelação está irrevogavelmente terminada, nenhum texto posterior é inspirado.
3°) a assistência é o dom concedido por Deus à sua Igreja e aos chefes legítimos de sua Igreja para preserva-los do erro e guia-los em sua tarefa. A assistência infalível é concedida: a) ao papa, a título pessoal, e ao concílio ecumênico a título colegial, no caso preciso de uma definição “ex cathedra” em questão de fé ou de moral; b) à Igreja, tomada em sua continuidade, no ensino ordinário da fé e da moral e em tudo que tem relação com a validade dos sacramentos. Em todos os outros casos, a assistência é falível: o papa, os bispos, os padres têm graças de assistência no exercício de seu ministério, mas podem resistir a estas graças ou corresponder mal a elas e, portanto, enganar-se, mesmo em matéria de fé e de moral, e induzir ao erro os fiéis que lhe são confiados.
A afirmação constante da Igreja de que tal livro da Bíblia é inspirado, de que tal passagem tem um sentido messiânico, conta com a assistência infalível.
Os salmos são inspirados, já que fazem parte integrante da Bíblia. Além disso o costume constante de se fazer uso dos salmos na liturgia, dando-lhes um sentido cristão que não é forçosamente o sentido literal do salmo, nos garante infalivelmente que os salmos são, por excelência, a oração da Igreja, válida para todos os tempos e todos os lugares. Relembramos, um pouco longamente, essas verdades elementares, que são, infelizmente, mal sabidas por uma grande parte do clero. Há vinte ou trinta anos vimos padres substituírem os salmos por composições modernas que não são inspiradas em nenhum sentido da palavra. Lemos e já citamos essa frase delirante: “Seria necessário compor novos salmos, adaptados ao homem moderno. E além disso, os salmos não falam de Cristo” (1).
Os salmos não falam do Cristo? Toda a tradição judia e cristã está aí para afirmar o contrário. Os judeus consideram numerosos salmos como messiânicos e a Igreja sempre deu aos salmos um sentido cristão. Alguns sempre foram vistos como messiânicos no sentido literal. Assim o admirável Salmo 21 que Nosso Senhor mesmo, ao expirar, utilizou sobre a cruz: Eli, Eli, lamma sabacthani? — Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? Outros salmos, em maior número, são messiânicos no sentido típico. Com efeito, acontece freqüentemente que um texto inspirado tenha um sentido duplo: um sentido literal que exprime a primeira intenção do autor; e um sentido típico, mais profundo mas real e objetivamente contido no texto, ainda que segundo em relação ao sentido literal: sentido impresso no texto sagrado pelo Espírito Santo, sentido que o autor inspirado pôde querer ou não querer, compreender ou não compreender, de acordo com o caso; mas que a tradição judaica e cristã reconheceu e afirmou. Assim o salmo 109, Dixit Dominus, aplica-se sem dúvida, literalmente, a Davi, mas seu sentido típico messiânico é evidente; e pode ser que certos versículos desse salmo sejam messiânicos no sentido literal. Por outro lado, todos os salmos, mesmo os “imprecatórios”, desprezados pelos reformadores e excluídos do breviário de Paulo VI, são susceptíveis de uma interpretação cristã no sentido acomodatício. Diferente do sentido típico, que está objetivamente contido no contexto e garantido pela inspiração, o sentido acomodatício é uma interpretação encontrada somente depois de um esforço, que não poderia ser utilizada como argumento numa tese ou discussão exegética ou teológica, mas que pode legitimamente ser empregada na liturgia e na piedade pessoal; o exemplo clássico disso é a segunda metade do versículo 17 do salmo 138: exsurrexi et adhuc sum tecum (levantei-me e ainda estou contigo) que se tornou, no Intróito da Páscoa, resurrexi et adhuc tecum sum (ressuscitei e ainda estou contigo). A liturgia utiliza grandemente o sentido acomodatício: este sentido é freqüentemente sugerido pela antífona. Digamos que o mesmo salmo pode tomar colorações muito diferentes de acordo com as circunstâncias de sua utilização. Assim, o salmo 129 De profundis é utilizado nas Vésperas de Natal, do Sagrado Coração e dos mortos, e ainda como o salmo de penitência. No Natal, ele não tem nada de fúnebre; a antífona: Apud Dominum misericordia, et copiosa apud eum redemptio (junto ao Senhor está a misericórdia e a redenção n’Ele é abundante) faz uma meditação sobre o mistério da natividade que inaugura nossa redenção. Nas Vésperas do Sagrado Coração a Antífona é a mesma com exceção de uma palavra: propitiatio em lugar de misericordia, e o salmo tem um tom mais grave, exprimindo o caráter doloroso da obra redentora. Nas Vésperas dos mortos, com a antífona Si iniquitates, o salmo torna-se uma súplica dilacerante pelo morto; como salmo de penitência, ele implora a remissão de nossos próprios pecados. É assim com todos os salmos. Certamente, quem recita os salmos pode dar a eles um sentido acomodatício inspirado em seu próprio estado de alma.
Davi é visto, por toda a tradição, como o principal autor dos salmos; é certo que ele tenha composto um bom número deles. Seus salmos podem ter sido retocados depois. Toda a tradição atribui o salmo 50, Miserere, a Davi depois de seu pecado. Ora, no penúltimo versículo encontra-se uma alusão bastante clara à reconstrução dos muros de Jerusalém, após o retorno do exílio; esse versículo foi acrescentado nessa época.
Outros salmos, em compensação, foram compostos mais tarde; alguns no exílio: por exemplo os salmos 41 Quemadmodum cervus e o 42 Judica me; outros, na volta do exílio, por exemplo, os salmos graduais (119 a 133); os nove primeiros são utilizados para as pequenas horas do ofício monástico durante a semana e do pequeno ofício da Santíssima Virgem; alguns foram compostos no tempo dos Macabeus. Pouco importa o autor deste ou daquele salmo; todos são inspirados. Alguns têm título, cujo sentido nem sempre é bem claro; uma resposta da comissão bíblica esclareceu que os títulos não são incluídos na inspiração. Não se é então obrigado a atribuir a Davi todos os salmos intitulados de Davi; alguns são manifestamente posteriores.
Foi bem tarde que, no Antigo Testamento, os salmos foram colocados na ordem em que os conhecemos e divididos em cinco livros; isso não nos leva a nenhuma conclusão quanto à origem dos salmos.
Os salmos são de tamanho muito variável. O salmo 116 só tem dois versículos. O mais longo é o salmo 118, escrito no exílio ou na volta do exílio, para louvar a lei divina: salmo alfabético de vinte e duas estrofes, compostas cada uma de oito versículos, que começam todos com a mesma letra do alfabeto hebreu. Este salmo, dividido em 11, até 1912 era o salmo invariável das pequenas horas do breviário romano; desde 1913 ele está reservado aos domingos e festas. No ofício monástico, as 22 estrofes do salmo 118 são distribuídas entre as pequenas horas do domingo e da segunda-feira.
Compostos naturalmente em hebraico, os salmos foram traduzidos para o grego mais ou menos em 283 A.C a pedido do rei do Egito, Ptolomeu Filadelfo, por setenta ou setenta e dois escribas: este foi o início da célebre versão dos Setenta, mais tarde estendida a toda a Bíblia (foram necessárias dezenas de anos para realiza-la) e considerada por toda a tradição judaica e cristã como inspirada, a mesmo título que os originais hebreus. Essa venerável versão grega foi sempre empregada na liturgia oriental. A liturgia romana primitiva era grega. Entretanto os salmos foram logo traduzidos para o latim, porque eram utilizados como oração particular; os cristãos aprendiam certos salmos de cor e se serviam deles em sua vida de oração individual e familiar; e é provavelmente através dos salmos que o latim foi introduzido na liturgia desde o século II. A passagem do grego para o latim na liturgia romana não se fez bruscamente, nem por via de autoridade; aconteceu por uma evolução lenta e espontânea que durou ao menos dois séculos.
A antiga versão latina dos salmos era imperfeita, mas popular. Para não perturbar os hábitos, São Jerônimo, encarregado pelo Papa São Dâmaso (366-384) de “restituir o Antigo Testamento à verdade hebraica”, retocou o texto latino dos salmos com muita prudência. Sua primeira revisão, feita a partir da versão dos Setenta, constitui o que se chamou o saltério romano; usado em Roma até o século X, ainda é utilizado no salmo Venite exsultemos que inicia Matinas, e nos textos litúrgicos da missa, tirados do saltério. Uma segunda versão, feita a partir dos Hexaples de Orígenes (2) é chamada de saltério gálico; adotada primeiro na Gália, acabou por se impor a Roma; é esta segunda versão que figura na Vulgata e em todos os breviários latinos anteriores a 1946. Uma terceira versão dos salmos feita por São Jerônimo diretamente do hebraico e chamada psalterium juxta hebraeos nunca foi adotada para a liturgia porque ela se afastava demais do texto original. O saltério gálico guardou então seu lugar até os nossos dias, pelo menos no ofício cantado. A versão realizada em 1945 pelo Pe. Bea, jesuíta alemão, foi adotada para a recitação privada; ela é extremamente pesada e não convém para o canto. Ela foi abandonada desde a morte de seu autor. (...)
O Ofício Divino revestiu-se de diversas formas de acordo com os tempos e os lugares. Parece que Roma adotou, desde o século IV, a distribuição dos 150 salmos por toda a semana. A ordem dos salmos, fixada definitivamente durante a Idade Média, não havia sido modificada por São Pio V; mas foi radicalmente mudada por Pio X, com o duplo cuidado de encurtar o ofício e evitar as repetições. Os primeiros monges haviam adquirido o hábito de recitar o saltério inteiro diariamente. São Bento sabiamente repartiu os salmos pela semana, mas numa ordem diferente do esquema romano.
Os salmos são divididos em versículos e são normalmente alternados em dois coros. No Mesnil-Saint-Loup, o Pe. Emmanuel tinha estabelecido uma bela alternância entre vozes masculinas e femininas, e explicava os salmos a seus paroquianos.
Os salmos freqüentemente evocam os grandes acontecimentos da história sagrada, e exprimem admiravelmente os sentimentos da alma: adoração, temor de Deus, louvor, amor, esperança, súplica, ação de graças. Os salmos são feitos para serem cantados; seus títulos, às vezes, dão indicações, de interpretação difícil, acerca de seu canto primitivo em hebraico. Em latim, cantam-se com melodias simples, correspondentes aos oito modos gregorianos; um asterisco indica a mediante de cada versículo. O tom do salmo é determinado pela antífona. As antífonas são muito antigas; elas figuram no antifonário romano, hoje impossível de ser encontrado, e, numa forma mais pura, no antifonário monástico de 1934, devido a Dom Gajard. Os antifonários não contêm as Matinas. Encontram-se nos livros de canto gregoriano chamados “800”, também estes impossíveis de se achar, os trechos mais usuais do antifonário romano, assim como as matinas de Natal, da semana santa, de Páscoa, de Pentecostes, de Corpus-Christi e dos mortos. As paróquias e comunidades que possuem esses livros preciosos farão bem em cantar o máximo possível os ofícios que contêm e em transmitir aos moços os tesouros da liturgia. A salmodia sagrada será sempre o louvor mais agradável a Deus e o mais fecundo para nossas almas.
Notas:
- O autor dessa pérola, hoje arcebispo de uma diocese americana, foi durante oito anos primaz dos Beneditinos.
- Orígenes (185-254) fez uma apresentação comparativa em seis colunas; as duas primeiras colunas indicavam, em caracteres hebraicos e gregos, a versão hebraica: as outras quatro, as versões gregas existentes em seu tempo.
Tradução de Maria Tereza Hernandes, de “Itineraires” n° 243.
Revista Permanência N° 146-147, Janeiro/Fevereiro de 1981.
TERCEIRO ARTIGO
A TERCEIRA CARACTERÍSTICA DA LITURGIA É A AUTORIDADE.
É impossível que a linguagem da Igreja indefectível contenha erro.
Respostas aos sectários das novas liturgias.
A antigüidade e a universalidade acarretam uma terceira característica, que denominamos autoridade. A Igreja a possui em si em grau eminente, porque suas crenças remontam do primeiro dia de sua existência, e porque, em todos os lugares e épocas, conservou-as fortes e imutáveis. Este caráter inimitável, que a faz ser o que ela é, está impressa em suas obras. Por isso nunca puderam compreender, e muito menos imitar, seus pensamentos, que à primeira vista são exteriores e indiferentes; por isso, tentaram estabelecer doutrinas imponentes. O protestantismo já o confessou mais de uma vez, quando por esforços infinitamente superiores aos da Igreja só produziram confusão e esterilidade. Dentre as características da Igreja, a autoridade é a única que não admite paródias, pois a autoridade é a presença real da Divindade.
A linguagem antiga e universal – a liturgia – é, entre as instituições da Igreja Católica, a que mais deve se mostrar imbuída de autoridade. Como é majestosa, sonora a voz que nos percute os ouvidos através das eras e, semelhante a voz do mesmo Deus, rompe as cadeias do orgulho e abala o fundamento dos desertos! Como é grandioso o livro que inscreve a palavra do séculos, e invencível o ensinamento egresso do interior do santuário, saído do pé do altar do Senhor! A verdade não vem apenas do púlpito, mas também se oferece e retém no silêncio do recolhimento e da oração, no instante em que a assembléia reúne-se em nome de Jesus. Quem ousará contestar sua infalível verdade? Quem ousara confrontá-la com as idéias de ontem?
Gozam as sagradas orações, nas quais os dogmas se desenvolvem em ricos corolários, do mais alto grau de autoridade. Não ignora o católico que a Igreja, palavra que não lhe sai da ponta da língua, é a coluna e apoio da verdade. Estão cientes da incompatibilidade entre trevas e luz, e de que a linguagem da Esposa não contradiz o pensamento do Esposo. É permitido pois dizer que é certo, na medida em que algo pode ser, que a liturgia romana não contém nem conteria erro no ensinamento e na confissão dos dogmas; bem ao contrário, todas as palavras deve ser acatadas com profundo respeito e docilidade, por quem é e deseja permanecer membro da verdadeira Igreja; o universo fulminaria de anátema quem ousasse julgar a palavra daquela que recebera o nobre encargo de transmitir a todo homem vindo a este mundo a luz da verdade.
Mas a alma se espanta quando fixa o olhar sobre estas liturgias efêmeras, nem universais no tempo, nem católicas no espaço, que de próprio alvitre não querem ser a linguagem da Igreja! Como é possível que se encontrem homens que tenham ousado substituir a palavra dos séculos com a palavra do dia, a palavra infalível com a palavra frágil e muitas vezes mentirosa do homem?
Mais impressionante ainda, como ousaram conferir à estranha substituição as honras de um acontecimento glorioso para a Igreja galicana? Como deram crédito a tais homens? É assim tão fácil encantar, com modos lisonjeiros, as almas pouco ciosas da santa delicadeza da fé?
Os autores e os defensores da nova liturgia opõem-nos uma objeção especiosa, vitoriosa em si mesma, caso não cedesse sob o próprio peso. Dizem o seguinte:
“Eles se lamentam das supressões que fizemos nas antigas orações, repetindo que nossas liturgias se apresentam desprovidas da autoridade que os séculos conferiram às velhas fórmulas romanas, mas em verdade se perdeu alguma coisa? No lugar das palavras dos santos que, antes de tudo, eram apenas homens, quiséramos as palavras do próprio Deus. A Escritura em si mesma já tem as rubricas dos novos ofícios. Vosso respeito pelos novos breviários dar-nos-á a medida de vossa veneração aos livros sagrados”.
Muitas almas boas se deixam fisgar por tal sofisma. Contudo, vamos à resposta. Vossas liturgias, dizeis vós, se comparam em autoridade com as nossas: a Santa Escritura vos serve de rubrica. Levando em consideração, por um instante, vosso testemunho, pergunto o que aconteceu às palavras sagradas que saíam de vossas bocas? Por que a Igreja, amedrontada, não mais as reconhece como suas? Por acaso, ela havia se enganado? Tornastes-vos desprezíveis considerando palavra de Deus as fantasias da alma humana? A palavra de Deus! Quem vos deu o direito de interpretá-las, submetendo-as à uma ordem completamente nova, e de calar as centenas de bocas da tradição, sem as quais as Escrituras seria um livro selado?
Ignorais que é a autoridade da Igreja que determina a crença do católico no Evangelho e nas Escrituras? Estais cientes que não raro acusam tais exegeses sem garantias de falsear o sentido delas, senhores sectários da interpretação engenhosa das Escrituras? Sabeis que olhos circunspetos por mais de uma vez já leram aí os segredos duma seita que profana o que toca? Vós acreditais que, sem a Igreja, tendes sempre o sentido verdadeiro das Escrituras, e exigis para vossas interpretações veneração semelhante a que damos às palavras que saem da Igreja – não vos enganeis, contudo. O uso das Escrituras é mui recomendável. Leiamo-las e meditemo-las incessantemente, mas não acreditemos que todas as exegeses que o espírito particular garanta estejam certas, nem que se pode confrontá-las à confissão de fé da Igreja. Prestai atenção, e vede onde vão parar. De qualquer forma, tem de se concordar: não se poderia encontrar um erro sequer na santa liturgia romana, sem que a Igreja se convencesse de erro em seu ensinamento e de, por isso, estar desprovida de santidade e infalibilidade; isso não impede, ao contrário, que a liturgia francesa, a mais difundida entre todas, encerre um algo de suspeito; e de fato, ela encerra mesmo algo de suspeito. Mais ainda, se por acaso se concedesse – mas isso jamais acontecerá – que vossa autoridade na exegese das Escrituras se equiparasse a das palavras da liturgia romana, ainda haveria uma barreira terrível na seleção das passagens dos Santos Padres, meio explorado com sucesso pelos jansenistas em seus breviários. E quem nos asseguraria da ortodoxia dos hinos e das legendas?
Continuando, se os bispos – pastores do povo e juizes da fé – tivessem composto as novas liturgias, tal circunstância talvez desse a elas alguma importância e, com um pouco mais de entusiasmo, poder-se-ia ver nesta fábrica a obra da Igreja de França. Mas eis como tudo aconteceu, há mais ou menos um século. Uns meros padres, meros doutores em teologia investigaram avidamente o novo campo aberto à criatividade eclesiástica. Sustentados e nutridos pelo espírito de partido, armados com a mútua concordância, viu-se neles o zelo infatigável na composição da nova liturgia – sequer tomavam fôlego - a começar do domingo do Advento até o último domingo depois de Pentecostes. Em meio a seus importantes trabalhos, por vezes uma rivalidade inaudita arrancava-os do descanso do gabinete. Embatiam-se os novos planos, cada qual causando furor a seu turno; um breviário travava formidável luta contra outro breviário; um missal derrotava outro missal. Brochuras que mal nos chegavam às mãos iniciavam o público nas diversas circunstâncias desta guerra litúrgica. Tratavam-se por heréticos de parte a parte, e algumas vezes uma e outra parte tinham razão. Feliz de quem conseguia que seu trabalho fosse apreciado, recebendo assim a palma diante dos doutos e infatigáveis concorrentes! Durante muito tempo, o vencido nutria em segredo a esperança de enfim ver um bispo fazer justiça às belezas do seu breviário, aguardando o dia em que uma preclara diocese viesse solicitar o favor de apelidá-la de Breviarium Ecclasiasticum, para o público gozá-lo sob esta condição. Não, esta não foi obra do episcopado, mas concebida e executada por homens que não pertenciam à hierarquia; as cartas pastorais que apareceram junto às composições, totalmente novas em doutrina, foram redigidas mais de uma vez, à guisa de prefácio, por aqueles que fabricaram a obra.
Realmente, considerando apenas a dignidade da liturgia católica, não se sabe o que pensar quando se testemunha tantas igrejas se apropriarem com elevadíssimo respeito da linguagem e das idéias de um homem, algumas vezes um sectário, escolhendo docilmente por expressão de sua fé e de seus juramentos as palavras que saíram daquela cabeça. É certo que não há muita liberdade, mas o destino desta nova liberdade seria o mesmo das outras. Sejamos menos livres, por dever de submissão à autoridade superior. Infelizmente, é estranho que não percebam sua inconseqüência. Todos os dias, escutais os padres a vos dizer, quando falam do breviário ou do missal de sua diocese: “A Igreja nos diz tal coisa; a Igreja se exprime de tal modo sobre o mistério; vejam como a Igreja celebra as louvações de tal santo: não é admirável? Como suas palavras tem o perfume da piedade! Como são repletas de dignidade e conveniência!”
- Ah, não, dir-lhes-ia eu, a Igreja não vos disse nada disso. Nunca vos afirmou isso, a menos que vós não sejais da Igreja, mas de outra. Não, a Igreja não dissera nada disso: é a história que nos diz que Mézenguy, Foinard, Vigier, Rondet, Valla e outras personagens, graça a Deus, não pertencem à Igreja, eu vos asseguro.
Assim, qual foi o resultado de tudo isso? Um desprezo universal em face das liturgias artificiais, uma futilidade de julgamentos inconcebível até nos galicanos mais empedernidos. Assim que se admitiu que um breviário ou missal são obras como outras quaisquer, a crítica, antes de tudo pasmada em vê-las incluídas em seu domínio, logo se valeu a mancheias de seus direitos. Este breviário está bem feito, aquele outro mal feito, dizem-nos todos os dias, e depois que levantaram dúvidas sobre a linguagem da Igreja, permitiram-lhes afirmar sem constrangimentos que a Igreja exprime ou não adequadamente seu pensamento, por causa de fulano ou sicrano, que tinha mais ou menos talento. Finalmente, tornou-se a liturgia um gênero entre outros, passível de se aperfeiçoar dia a dia. Eis aí a autoridade das novas liturgias: nem os partidários mais ferrenhos podem contestar a verdade do quanto foi dito.
Querem atribuir aos novos hinos, um triunfo da inovação galicana, apesar do total desligamento com as Escrituras, uma autoridade que não têm nem saberiam ter. Como não recebessem a sanção da Igreja, o que de fato exprimem? A verdade católica?
Creio neles, mas quem me certifica deles? Quem imprimiu neles o selo da infalibilidade? Isso não é tudo: vejo homens, contemporâneos que se elevam num instante às dignidades dos postos da Igreja, e que a Igreja de França aceita nesta qualidade. Talvez, para que sejam admitidos como voz do povo fiel, haja neles alguma autoridade, virtude, seriedade ou fé que os tornem dignos da honraria mais sublime a que se eleva a inteligência. Destinados a eclipsar, a lançar nas trevas as poesias bárbaras de Santo Ambrósio, de São Gregório, de Prudêncio, de Sedúlio, de Fortunato, de São Bernardo, eles edificaram e consolaram a Igreja, ombreando com aqueles homens afamados; enfim, para que eles pudessem tranqüilamente repudiar seus pais, os sucessores deviam pelo menos demonstrar o mesmo espírito que animou os antepassados. Seus lábios são puros como os de Isaías, e suas almas puras são as únicas agradáveis a Deus.
Abro estas ricas coletâneas, e me impressiono, como o povo em geral, com a nobreza, a elevação, a riqueza da poesia. Sob o poder do gênio cristão, a lira de Horácio e Píndaro soa como jamais soara. Tão-logo, afirmo: bem-aventuradas as basílicas que reboam os nobres cânticos! Quero conhecer o nome do poeta sublime, a quem foi dado sentir e celebrar os mistérios do céu; informo-me e descubro que mil vozes apaixonadas, que me dizem o nome de um homem profano, destruíram a razão de meu encantamento.
Desapareceu tudo! Entoarão ao pé do altar do Deus de majestade versos de um homem superficial, de gosto profano e espirituoso, que casam tão mal com a gravidade do hábito? Criança de cabelos grisalhos, conforme dizia La Bruyère, homem de companhia agradável, sobretudo bom conviva, a memória dos tempos lhe anotou os dias de noitada na hospedaria de Rambouillet, e de como ingressou de repente para dentro do santuário – e saber que seus hinos estarão de par com os cânticos do Profeta Real, a quem a santa dor e o pungente sentimento das grandezas e misericórdias divinas inspiraram. Ignoro a pureza da fé deste homem, mas deixo-me esquecer as nuvens que por vezes obscurecem o céu; mas a caridade, origem de toda oração, ardia no fundo de seu coração? Desconheço, mas parece que ele também. Por isso dizia com razão o conde de Maistre, um dos nossos maiores, que aqueles hinos não eram orações. Admiro-lhes a pompa, a elevação, mas não há a poesia da religião do amor. As sagradas odes, riquíssimas em imagens e grandes conceitos, não têm unção, e o talento por si só não pode conferi-la. Que há de assombroso nisso? São as palavras de um homem profano que se tornaram palavras sagradas! Os versos que hoje são objeto de seu triunfo, escolho de sua pueril vaidade, amanhã se vão passar por linguagem da Igreja, por falta de algo melhor a exprimir seu pensamento! É certo que a Igreja percebera tal inconveniência, pois que conhece a quem escolheu para seus quadros.
Agora, algo ainda mais estranho: não existe nada mais caro para a Igreja que a fé, a sua vida. A ela repugna a heresia, por isso ordena fugir-lhe e evitá-la; ela sabe que cada uma daquelas palavras são sacrilégios, e tamanha é a repulsa que ela sente do que sai da boca dos revoltados, que admoesta e mesmo proíbe a seus filhos discutirem o que haveria de ortodoxo naquela doutrina.
Todavia, que outro poeta é esse, cuja voz religiosa e sublime se eleva nos templos franceses faz um século? Donde parte as entoações tão emocionantes e puras que até há pouco retumbava em nossos ouvidos? Enfim, a igreja francesa teria encontrado o canto divino por que suspira há tanto tempo?
Antes de felicitá-lo pela realização de seus sonhos, perguntemos aos códices sagrados o nome do poeta imortal, tão altamente inspirado. Nos fastos da Igreja de França, rebrilha o nome do compositor nas páginas mais ilustres. Ela entoa seu hino, tão prazenteira, mostrando com orgulho sua vida e virtudes, associando sua voz com a do homem que reconheceu como fiel. Mas que? É em vão que busco entre seus escritos um só que tenha o selo dos céus. Ele não é homem da Igreja, habita fora de seu seio. O que é mais: uma seita reclama a paternidade e o triunfo das honras que lhe prestaram, admirada que uma voz sufocada sob os anátemas pudesse agradar àqueles que os lançaram... [...]
Dizei-me, pois: sois sempre assim tão otimistas acerca da autoridade de vossas liturgias? Vede sua origem, e enfim julgai-as. Recordai-vos das repetidas correções de que foram alvo até agora, e confessai a substituição das imponentes liturgias de vossos pais, por outras sem autoridade, e cuja origem se deve esconder, para não irritar demais os olhos da fé. Não tremeis diante da possibilidade de que vossas orações sagradas exsudam o erro; não é impossível que, durante uma oração de feição ortodoxa, suba até o Altíssimo pérfidos juramentos heréticos, ou que um sectário esconda o veneno sob palavras em aparência santas. Tais considerações são tanto mais penosas, sobretudo porque a Igreja está aí, apresentando uma liturgia de doutrina certa, com a chancela divina.
Se quisermos examinar de perto a gabada utilização das Escrituras nas novas liturgias, ainda haveria muitas verdades incômodas para se comentar. Ingênua e simploriamente, desejando que conferissem o justo valor a suas exegeses de pretensa engenhosidade, afirmava outrora Collet: “Vistas fora de contexto, muitas antífonas se parecem com os mais belos vasos do mundo, mas se remetidas a suas origens, são os mais deploráveis!” Poderia dar inúmeros exemplos para atestar esta afirmação, mas devo parar aqui. Não temos por fim torturar a piedade; recordar os princípios gerais é o bastante. Digamos tão-somente que, em todas as novas liturgias, sem exceção, este aleijão é mui perceptível, e que suas exegeses estão carentes daquela autoridade que a liturgia romana nos dá, a cada página; estão elas desprovidas do sentido que se esforçam em dar para elas. Caso nos acusem de severidade, a resposta já está na ponta da língua. Antes de tudo, é preciso de ser severo em matéria tão grave, e mais, visto que se quis substituir a antiga liturgia, a liturgia universal por outra mais perfeita, não estamos nós no direito de exigir tal perfeição?
1830
Fonte: www.domgueranger.net
Tradução: Permanência
PRIMEIRO ARTIGO
A LITURGIA, LINGUAGEM DA IGREJA, DEVE SE CARACTERIZAR PELA ANTIGÜIDADE, MARCA DISTINTIVA DA LITURGIA ROMANA.
Dentre os vários ramos da ciência eclesiástica abandonados hoje em dia, por infelicidade dos tempos, o estudo da liturgia é, sem dúvidas, um dos mais interessantes.
Entretanto, devido ao espírito do século, tal asserção parecerá a mais de um leitor eclesiástico gratuita e original. Mas não seria difícil fornecer as provas. O culto é o corpo da religião: por isso, a liturgia é sua expressão, sua linguagem; logo, não há conhecimento perfeito da Igreja sem o da liturgia. É vão conhecer os principais hábitos de um povo; seu gênio e pensamento só se desvendariam quando se penetrasse nos mistérios de sua linguagem.
Além das causas gerais de decadência universal, há uma causa em participar responsável pela cessação completa dos estudos litúrgicos entre nós, causa que deveria necessariamente levá-los à ruína, juntamente com a terrível comoção que ameaçara extinguir de vez o fogo sagrado em nossa infeliz pátria. Há mais de um século, a introdução de novas liturgias na Igreja de França preparava o humilhante resultado. Como estudar uma língua que se divide a cada dia numa multidão de dialetos desconhecidos entre si, e que tendem mais e mais a eliminar os derradeiros traços de semelhança com a língua mãe que já não mais os reconhece, e que poderiam ser conservados?
Sei que vou afrontar preconceitos, fazer oposição em uma matéria que parece não mais ser objeto de discussão: mas, quando se tem razão, somos sempre fortes; eu desafiaria qualquer homem sensato, qualquer teólogo a contestar meus princípios, assim como qualquer lógico a refutar minhas conseqüências. Recordarei verdades que escandalizarão as idéias preconcebidas; mas o que vai acontecer? Há-de se calar sempre, só porque se tem certeza de que não nos ouvem?
Em primeiro lugar, começarei por declarar minha total falta de hostilidade contra a instituição que, desde o elevado ponto de vista do qual vou considerá-la, por vezes me obriga a ser severo. O século passado sancionou uma obra em seu princípio temerária: apesar do risco e do inconveniente de tais inovações, pensou Roma que só poderia mostrar seu descontentamento de modo indireto e cheio de reverências. Estes pontífices, considerados ambiciosos, tinham no coração o desejo da paz e da salvação das almas, mais do que levavam a crer alguns canonistas franceses. Em vão no-los mostrariam sempre armados com suas fundas, semelhantes ao Deus que representariam: eles sabem esperar, porque desejam que ninguém pereça. Seus filhinhos compreendem esta linguagem muda que o orgulho e a revolta se esforçaram em não escutar. Não tenho por meta perturbar aqueles a quem o direito ou o costume obriga ou autoriza repudiar os livros da Igreja de Roma, para substitui-los por uma liturgia diocesana. Continuam a fazê-lo em paz, à sombra da indulgência da Sé Apostólica. Declaro também que não aspiro a perseguir aqui a liturgia de qualquer diocese em particular.
Sei que não desejo desferir ataques pessoais, mas ao se pôr em prática, sob belos nomes, princípios arriscados, é bom que os homens não se acostumem a considerá-los como artigos de fé.
Antes do mais, as considerações gerais que aqui se apresentam demonstram a importância da matéria. Partimos sempre do mesmo princípio. A liturgia é a língua da Igreja, a expressão de sua fé, dos seus anseios, de suas homenagens a Deus; logo, em primeiro lugar, um de seus traços distintivos deve ser a antigüidade. Qualquer liturgia que vimos aparecer, que não veio de nossos pais, não merece o nome de liturgia. Um povo não chega a mil de setecentos anos de existência sem possuir uma linguagem adequada a seu pensamento, sobretudo se este povo é essencialmente imutável.
Desde o começo da Igreja cristã, um dos primeiros cuidados de seus fundadores haveria de ser, e foi, a fixação dos ritos sagrados, das cerimônias exteriores, das orações do culto, enfim, da liturgia. Os mais antigos monumentos pressupõem a existência de um corpo litúrgico completo, e todavia nenhum deles assinala com clareza sua origem exata. Os fatos se perdem na noite dos tempos, em que os homens privavam amiúde com o Homem-Deus. Os primeiros discípulos cuidavam em realizar suas idéias divinas.
Quando a Igreja saiu das catacumbas, ela surgiu com liturgia que o segredo dos mistérios e a duração das perseguições lhe permitiram desenvolver. Mas logo, sob a proteção dos césares, elevaria o cristianismo, em todo lugar, imponentes basílicas; o conjunto definitivo dos ritos sagrados, até então tolhidos, vieram impressionar os olhos do paganismo vencido e se somar ao triunfo da verdade.
No Oriente, observamos bispos eminentes, luminares da Igreja, consagrar piedade, gênio e vigílias em relevantes trabalhos de liturgia. Seus grandes nomes ficaram ligados a tais obras. Recolhida a herança dos séculos por mãos discretas e fiéis, enriqueceram-na de vários acréscimos. Deste modo se formou, a partir do séc. V, esta magnífica compilação de orações, em que a unção disputa com a majestade. A Igreja grega ainda conserva cuidadosamente este espólio: os acentos emocionantes e nobres que, dia e noite, as bocas dos cismáticos elevam ao céu, reboaram, nos dias da unidade, nos templos de Constantinopla, de Antioquia e de Alexandria. Armênios, coptas, maronitas, etíopes conservam como tesouro inalienável as palavras secretas que os seus pais na fé consagraram ao culto do Eterno. Os longos ofícios são sempre os mesmos: eles permanecem como testemunho da passagem da verdadeira fé, que se evadiu daqueles territórios. Ao menos, tiremos alguma lição do respeito hereditário das Igrejas Orientais para com a antiga liturgia, e reconheçamos aí uma prova do sentimento de um cristianismo que nunca se extingue – o sentimento de repulsa por qualquer inovação, na medida em que o erro, que também é inovação, possa se insinuar.
Roma, sede inabalável da fé, também dera provas de seu zelo pelo culto divino. Desde o séc. IV, o papa São Dâmaso e seus predecessores recolheram os cantos, os ofícios sagrados que a antiga tradição romana conservou. Eram estas as palavras dos antigos pontífices, seladas em sangue, gravadas com piedade, consagradas pelo peso da autoridade suprema. Esta Igreja bem-aventurada, cujos fundamentos se espalharam à reboque do sangue de Pedro e Paulo, conforme aquilo de Tertuliano, esta Igreja primitiva limitava-se tão-somente a consultar suas gloriosas recordações para formar o corpo completo da liturgia; os recintos dos templos que Constantino construiu testemunharam, e ainda testemunham, as solenidades daquele ano cristão, cuja glória resplandecente deixa para trás as pompas, também poéticas, da Roma pagã. Às custas do próprio sangue, a Igreja emancipada adotou uma língua digna de si, língua divina, que só poderia se enriquecer, nunca perder, no correr dos séculos.
Assim, havia uma expressão para tudo, para as confissões de fé, os suspiros de esperança, as efusões do amor, as glórias dos triunfos, as necessidades das crianças, os gemidos dos pecadores. Fala a Igreja diante dos séculos: para ela, não existem vicissitudes, sua voz é sempre a mesma. Desde o primeiro dia, soube o que dizer ao Divino Esposo. Ó vós que amastes estudar a antigüidade cristã, que sois sensíveis às admiráveis recordações, que sentis que esta é a única e divina religião, que estais em posse do passado, lede, experimentai os resquícios da antigüidade que duram até nossos dias, nos tesouros veneráveis da liturgia romana. Os maiores papas deixaram nela sua marca. Depois de São Dâmaso, São Gelásio, e mais tarde, São Gregório Magno, dispuseram de diversas partes. No séc. XI, um pontífice gloriosíssimo, dos maiores homens da Igreja, São Gregório VII consagrou venturosos recreios em trabalhos litúrgicos, conservando sempre, em sua pureza primitiva, o depósito sagrado, que a ignorância e a barbárie alteraram por imprudência. Mais tarde, curvando-se aos anelos do Concílio de Trento, ordenara São Pio V a revisão do missal e do breviário romanos, retificados mais uma vez pelas fontes mais antigas, e fixados na forma que até hoje usamos.
E ainda que nos falte a garantia da história e dos monumentos, e que o sacramentário, o antifonário, o livro responsorial de São Gregório não tenha chegado a nossos dias conformes em tudo à resumida liturgia atual, quando se depara com os responsos, com as antífonas compostas das palavras da antiga Vulgata, cuja simplicidade religiosa e apostólica é mui anterior ao século de São Jerônimo, haveria como duvidar da recuada antigüidade dos ofícios romanos,? E a divisão dos salmos, que este santo doutor traçou segundo os antigos usos, sob encomenda do papa Dâmaso, recordando-nos as vigílias dos primeiros cristãos? E a simplicidade dos ofícios, mui distante da confusão dos próprios, de que pululam os novos breviários? E o estilo misterioso, inimitável e profundo das coletas e demais fórmulas deprecatórias? E os hinos do grande bispo, na basílica ambrosiana, compostos para ocupar com ofícios santos o povo fiel sitiado por uma princesa furibunda? E os hinos dos Prudêncios, dos Sedúlios, dos Gregórios, dos Hilários, que sob a aparente simplicidade escondem a unção eloqüente dos corações cristãos? E os ritos misteriosos da Semana Santa, os impropérios da Sexta-Feira, as solenidades da noite de Páscoa, que ainda se conservam incólumes às mutilações e reconstroem de modo emocionante o dia em que o afortunado catecúmeno apreciava a demolição das barreiras do santuário, que até então se impunham? E os livros da Escritura, ordenados na seqüência que os santos doutores observavam nas homilias, lembrando nesta ordenação a magnífica série de obras-primas da eloqüência cristã – não pararíamos de falar, se quiséssemos contar as vantagens da liturgia romana relativas apenas à antigüidade.
Devo falar dos cantos sublimes que nos legaram juntamente com as admiráveis orações? Posso aqui citar o testemunho de célebres músicos franceses e estrangeiros, que exaltaram à porfia a melodia antiga e religiosa que, sem a muleta da métrica, produzia emoções vivíssimas e profundas. Poderia citar autores protestantes de gosto, em cujos corações vibrava a corda católica quando reboava o canto da Igreja Romana. Ah! Quem nunca se arrepiou mil vezes nos acentos desta música grave, que apesar da severidade anima a chama das paixões e arremessa a alma edificada numa fantasia religiosa muito mais arrebatadora que a imponente voz das grandes águas, de que nos conta a Escritura? Quem não experimentou o encanto dos trechos sublimes e originais, prenhes do gênio dos séculos, que já são passados, que não deixaram rastros?
Quem nunca se arrepiou com o cantochão do ofício dos mortos, em que a ternura e o terror se mesclam de forma admirável? Qual cristão escutou o canto pascal Haec Dies sem experimentar o sentimento vago do infinito, como se Jeová vibrasse a voz majestosa? Quem nunca escutou, nas solenidades da Assunção e de Todos os Santos, a massa do povo percutindo as abóbadas sagradas com os acentos inspirados do Gaudeamus, e não ser transportado por eras, por épocas em que este canto ecoava na Roma subterrânea, quando o império agonizava, e a Igreja começava a trilhar seus destinos eternos.
A liturgia romana possui a principal qualidade de uma liturgia, a antigüidade. Nascida por assim dizer com a Igreja, está destinada a lhe servir de linguagem cá embaixo, até o dia em que todos os véus se rasgarem, e substituírem os cânticos da terra pelo Aleluia eterno, celebrando para sempre a união da Esposa e do Esposo.
Agora, se aplicássemos os mesmos princípios às novas liturgias que grassam na Igreja francesa, deparar-nos-íamos com um angustiante paralelo. Em meio a esta desordem singular, onde encontrar a palavra eterna da Igreja!
Vejo uma Igreja se orgulhar de um século de sujeição; outros, mais modestos, não contam mais de sessenta; alguns, ainda mais humildes, só justificam dez, quatro, e até mesmo um ano. Que posso dizer? [...] Há Igrejas - poderia citar duas, sem muito esforço - que para o ano, com o auxílio dos tipógrafos, estarão em condições de inaugurar as novas liturgias que suas hábeis mãos construíram, de cima a baixo, no silêncio do gabinete.
Ah!, lhe perguntaria eu, qual era vossa atividade antes das mudanças? Com quem rezáveis vós, há dois séculos? Com a Igreja Romana. À exceção dos santos cuja cerimônia é patrimônio particular de cada diocese, vossos ofícios não pertenciam a ela? Por que repudiastes a mãe das Igrejas? Por que recusaram a comunhão de orações? Temeis vós as suas bênçãos? Esperastes que vossos concertos a vozes separadas seriam mais agradáveis ao Eterno?
Entretanto, tal é o artifício das seitas, que se valem de seu prestígio para conseguir seus fins culpáveis e por vezes seduzir até os inimigos. Depois de um século, talvez nos permitam julgar essas mudanças. A história que nos ensina quem foram os autores, nos ensina também a apreciar as intenções. Força é lembrar dos nomes dos principais instigadores de novidades, do apoio sacrílego que os parlamentos emprestaram, das vozes que na época se levantaram contra a tendência que se imprimia àquela empresa, toda feita de vaidades. A seita jansenista tinha como principal alvo o rompimento com a antigüidade, ao mesmo tempo em que a apregoava.
Eis o segredo de seus imensos trabalhos. O passado os aborrece; por isso, deve-se romper com ele, criar tudo do nada, numa nova direção, com a finalidade de preparar os espíritos para mudanças mais radicais, quebrando os laços que uniam as Igrejas à Sé Apostólica.
Não agrada a Deus que eu difame aqui vários santos pontífices e padres virtuosos que se deixaram levar pelas aparências lisonjeiras com que coloriram intenções criminosas! Os santos padres só desejavam reflorescer o culto divino, cultivar nos novos breviários a flor da antigüidade. Gostaria de que fossem verdades mais brandas, mas não é por serem ignorados, esquecidos ou desconhecidos que os fatos se tornam menos factuais. É deveras espantoso que uma Igreja particular, depois de dezessete séculos, ouse perpetrar uma crítica tão feroz à liturgia da Igreja universal, e mais ainda, fazer para si outra totalmente nova. [...]
Que ninguém acredite todavia que a revolução pode acontecer sem grande escândalo para o povo fiel. Durante os séculos de fé, a Igreja era perseguida. Suplicaram os cristãos a seus pastores para que deixassem as orações, os cantos que herdaram, por assim dizer, junto com o cristianismo, e nos quais dormiram seus antecessores, em cujos templos reboavam aquelas entonações.
O mais poderoso dos sentimentos católicos fizera-os apreciar o justo valor destes planos de aperfeiçoamento, destes projetos de melhoria elogiados por um escritor atual e insuspeito. Depois de assinalar a época em que ousaram tocar no breviário romano pela primeira vez, acrescenta: “Sob o pretexto de aperfeiçoamento, o espírito de inovação cresce dia a dia; mais alguns melhoramentos e a majestosa simplicidade dos tempos antigos desaparecerá completamente”.
Mas ao menos, dirão eles, é uma boa idéia. Eles querem uma liturgia composta inteiramente com palavras da Escritura: que haveria de mais convincente e digno para a santidade do culto divino? A idéia é boa, mas por que a Igreja não a concebera antes de vós? por que, nos séculos mais insignes, ela sempre desejou consagrar com a própria voz a louvação ao Divino Esposo? Admiradores da antigüidade, sabeis quantos séculos depõem contra vós? A idéia é boa: mas a intenção é pura? Donde vêm este entusiasmo, este ardor que leva a substituir pela Santa Escritura todo o resto? Vosso zelo já parecia suspeito à mãe das Igrejas. Ela já havia obstado, de forma solene, as traduções, o ardor na pregação da leitura dos livros santos. Em todos os lugares, reprovaram vosso odioso parentesco. Não vos admireis se tememos vossos presentes.
Além disso, de onde tirastes que não podemos dirigir a Deus orações que não estejam nas Escrituras? É certo que tendes o segredo de fazê-las dizer o que quiserdes. Contudo, não é este o espírito da Igreja. Ela também sabe rezar e celebrar seus mistérios. Em muitas ocasiões, escolhe os livros santos para interpretar seus sentimentos. Ela tem o direito, que não é vosso, de consagrar e sacralizar os seus usos. Mas freqüentemente tira de seu próprio tesouro, e suas palavras ecoam no fundo do coração de seus filhos. Estamos sempre de Escritura em punho: não recusamos os preciosos desdobramentos que a Esposa do Espírito Santo oferece nos momentos de inspiração.
Encerremos estas reflexões com uma palavra sobre a melodia dos novos ofícios. Novas palavras exigiam novos cantos. Mas era uma tarefa imensa compô-los. O espírito sectário não recuou diante de tal empreendimento, e pôs mão à obra, dando nascimento à uma multidão de passagens, de obras-primas do enfado, da nulidade e do mau gosto. Entre as dioceses mais desditosas, Paris está sem dúvida em primeiro lugar. Encarregaram o padre Labeuf, sábio compilador, de anotar o antifonário e o gradual de Paris. Depois de gastar dez anos a meter notas sob linhas, e linhas sob notas, apresentou ao clero da capital uma composição monstruosa, com passagens fatigantes para se executar e escutar. Quis Deus com isso demonstrar que há coisas que se não imitam, porque nunca devem mudar.
1830
Tradução: Permanência
Fonte: http://www.domgueranger.net
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MISSAL DA SEMANA SANTA

Texto Latim-português - Canto Gregoriano
do Domingo de Ramos ao Domingo de Páscoa
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A SEMANA SANTA
Dom Lourenço Fleichman OSB
Enquanto a vida segue seu rumo, e uma aparência de normalidade retoma seu lugar no dia a dia dos homens, os bastidores da Igreja se agitam, paira no ar um perfume de mistério e de sublimidade.
Objetos são consertados, outros pintados, lustrados, verificados. Rapazes cuidam da liturgia, o coro ensaia com insistência e perseverança. Tudo deve estar pronto em poucas semanas, porque o Esposo há de chegar no meio da noite, ouviremos o grito: "saiam com vossas lâmpadas acesas para receber o Senhor para as bodas".
Não queremos ser contados no número daquelas virgens loucas, negligentes a ponto de não levarem o azeite juntamente com as lamparinas. Ao contrário, queremos o cortejo, almejamos nosso lugar na fila, a honra de acompanhar Nosso Senhor nos passos de sua Paixão. Em pouco tempo estaremos às portas da Semana Santa, no centro da vida litúrgica da Igreja. Após as rudes semanas de jejum e penitência que formam a Quaresma, é justo que Nosso Senhor se incline sobre as almas com suas mãos carregadas de graças e presentes espirituais. Leia mais
Após ter feito o sermão do 1º Domingo da Paixão, deste ano de 2006, pareceu-me importante transmitir aos nossos leitores alguns dos dados apresentados naquela ocasião aos paroquianos da Capela Nossa Senhora da Conceição, em Niterói, e da Capela São Miguel, no Rio. Estamos vivendo tempos estranhos e é preciso vigilância e atenção para não sermos levados de roldão pelo mundo.
Quando entramos na igreja no Primeiro Domingo da Paixão, e sentimos um certo choque com a austeridade penitencial do velamento das imagens, vem imediatamente à alma a questão: qual o objetivo da Santa Igreja ao cobrir as imagens, tirá-las de diante dos nossos olhos, justamente no momento em que ela levanta bem alto o estandarte da Santa Cruz?
Pois o que a Igreja busca com esta situação nova e tão desconfortável para nós é levar nossa oração a uma fé mais profunda, para que o tempo da Cruz não nos pareça apenas uma comemoração, um aniversário, mas esteja presente com sua carga de dor, de confusão e obscuridade.
O que vem a ser Rezar ?
Mas se é para medir e regular nossa oração, caberia a cada um de nós perguntarmos: e eu rezo? O tempo da Quaresma serviu para melhorar minha oração?
Para responder a esta pergunta é necessário saber o que seja rezar. Ora, tanto o Catecismo como os santos doutores nos falam sobre a boa oração. Diz lá, então, a doutrina perene:
- Rezar é elevar a alma a Deus.
Santo Agostinho nos dará uma compreensão melhor ao afirmar:
- Rezar é ter uma intenção afetiva do espírito para Deus.
Outros santos dirão:
- Rezar é ter uma conversa íntima com Deus.
Ora, estas definições ou explicações se completam maravilhosamente e nos ajudarão a medir o nosso grau de oração, a sabermos se, de fato, rezamos de verdade ou não.
Ainda se encontra quem reze?
Mas a experiência de qualquer sacerdote, nos dias de hoje, deixa-nos assustados, a ponto de podermos interrogar: - O que está acontecendo conosco? Onde estão as almas que rezam de verdade? E se muitos adultos ainda guardam o costume salutar de recolher-se, todos os dias, diante de Deus, já os adolescentes, os jovens, deixando a idade da infância, porque abandonam tão facilmente a prática da oração que nos dá o céu? Onde encontraremos oração que seja elevação da alma, intenção afetiva, ou conversa íntima com Deus?
Não! Não! O que vemos hoje nestas almas é uma oração pesada, um coração irritado, uma oração rápida e mecânica.
Mas se é pesada por causa da contrariedade que se sente em rezar, então não se eleva.
Se vem carregada com irritação, nunca será uma intenção afetiva.
Se é mecânica, não se pode pensar em conversa íntima com Deus.
Que quadro desolador o que encontramos nas almas. Passaram-se quatro semanas da Quaresma e nada! O mundo segue seu curso e as almas não se converteram!
Pergunto então, assustado e solene: O que falta à oração da grande maioria dos homens?
O que falta é o AMOR! Falta o Amor do espírito que busca o Espírito do Amor, o Deus que é Caritas, que é Caridade!
Todo amor é um apetite. Se nosso amor vai em busca das coisas sensíveis, será um amor baixo, sensível, humano, animal. Estaremos de corpo e alma entregues às coisas deste mundo, e este amor toma conta do nosso coração, elimina a Presença de Deus, e causa o pecado.
Mas se inclinarmos nosso corpo e nossa alma para o bem, para agradar a Deus em tudo, mesmo quando estamos fazendo algo de humano, estaremos intencionalizando nossos atos na direção de Deus, dando uma intenção nova, elevada, vivificante. Nestes atos de amor espiritual encontraremos a união com Deus, a Presença de Deus em tudo que fazemos, mesmo se não estivermos, naquela hora, pensando Nele.
Por que não se consegue mais rezar?
Devemos então nos perguntar, levando adiante esta pesquisa dos nossos corações:
Porque não se consegue mais rezar direito, segundo a elevação da alma, as intenções santas e a intimidade de Deus?
Porque somos constantemente SEDUZIDOS.
Os nossos três inimigos , o demônio, o mundo e a carne armaram uma guerra sutil e subterrânea que invade nosso coração, nosso corpo, nossas intenções, com todo tipo de sedução. Atraem nossa atenção para afastar-nos do gosto pelas coisas santas, pela vida de Deus.
Como somos seduzidos?
Pelos VÍCIOS. Somos seduzidos todos os dias por vícios antigos e por vícios modernos.
Os vícios antigos são aqueles conhecidos de todos: excesso de bebida, gula, sensualidade, preguiça e todo tipo de vícios capitais.
Os vícios modernos são: a televisão, os video-games, o uso de Messengers, orkut e Internet, telefone celular e todo tipo de modernidade que provoca atitudes compulsivas. Todas estas coisas desviam as almas de seus compromissos, tornando-as agressivas, estressadas, desobedientes, preguiçosas e "burrificadas".
Formaram uma vida em torno de nós que nos prende, ligados 24 horas por dia: trabalho, dinheiro, saúde, esportes, e os novos vícios, tirando todo o tempo que poderíamos ter para rezar, ler bons livros, pensarmos na nossa salvação eterna. Como rezar bem numa vida assim?
Então passamos quatro semanas da Quaresma onde se constata que, se alguns fizeram algum esforço de penitência e oração, a grande maioria nem se lembra de que os católicos são chamados com toda urgência a se converterem. Continuam no churrasquinho da sexta-feira, nas festas, em muitos pecados. Até quando vamos viver como se a vida da Igreja fosse uma OPÇÃO? Quando muito um dever secundário que realizamos com aquele espírito de revolta de que falamos acima. Como rezar se não combatemos a sedução?
É preciso rezar sempre
Eis o que ensina Nosso Senhor: "Oportet semper orare - É preciso rezar sempre". E os santos doutores concluirão: "Quem reza se salva, quem não reza fecha as portas do Paraíso".
Então, católico, levante as armas capazes de vencer o sedutor das almas, capaz de dobrar tua cerviz dura e revoltada. Falta-te o Espírito de Fé!
Não se trata exatamente da fé. A Fé pode ser considerada como o conjunto de verdades reveladas por Deus; é o que os teólogos chamam o Objeto da Fé. Dentro de nós, se produz pela graça divina os Atos de Fé, que são as marcas da nossa adesão ao Objeto da fé, a tudo que Deus nos revelou e a Igreja ensina.
Mas a arma poderosa para combater a sedução dos vícios anti-oração é o Espírito de Fé, que consiste em tomar a fé que está, como um dom divino, colocada em nossas almas, e aplicá-la a todos os momentos, situações, encontros, diversões que fazemos ao longo do dia e da vida. Pelo Espírito de fé fica estabelecida em nossas vidas a Presença de Deus. Esta presença de Deus é que nos aproxima Dele, tornando nosso coração mais próximo, mais íntimo, preparando-o para as conversas sublimes, para a afeição amorosa e para a elevação de nossas almas na verdadeira e pura oração.
É preciso, portanto, intencionalizar todos os nossos atos, transformá-los em armas de combate contra os vícios que nos devoram. É preciso forçar o desejo do nosso coração e todos os sentimentos dele para que não impeçam o momento da oração, da meditação, da leitura espiritual que abre nossas mentes para as coisas divinas.
É preciso acreditar que, perdendo tempo com Deus, o trabalho renderá muito mais e compensará ao cêntuplo o tempo perdido. Ao contrário, quando não rezamos, acabamos presas fáceis para os vícios modernos e perdemos mais tempo do que seria o da oração.
Meditação sobre a morte
Se ainda agora, depois de pensar nestas coisas, neste diagnóstico terrível que mostra o céu fechado, ainda assim não conseguir se desvencilhar da malha viciosa, então, vamos pensar na morte. Por que não? Afinal de contas, estamos no tempo da Paixão, de luto pela morte de Nosso Salvador. Imaginemos, então, que estamos perto da morte, ou que um ente querido, um filho, um esposo, a mulher, tenha acabado de falecer. Parece duro, pensar nestas coisas? Pior é continuar vivendo sem rezar! O terrível peso que a alma sente pela perda joga por terra todos aqueles vícios horríveis que prendiam a alma. Então, de repente, ela percebe o quanto era fraca, envenenada, ridícula, por não conseguir se dominar e produzir algo de sólido e elevado. A morte nos atrai para o essencial, e é exatamente isso que a Igreja deseja quando vela as imagens no Tempo da Paixão. O Essencial é Cristo, sua Paixão, sua morte na Cruz para nos salvar. O essencial é vivermos unidos todo tempo a Jesus, e dizer com o Apóstolo: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim".
Cabe a cada um de nós mostrarmos aos nossos adolescentes, aos nossos filhos, que é bom rezar. É bom querer rezar. E, mais do que tudo, é muito bom amarmos a oração porque por ela aprendemos a amar a Deus em sua própria intimidade.
Um filme, um evento, um impressionante acontecimento que sacode o mundo e que nos faz pensar num caleidoscópio de nuances e cores variadas. Hoje eu queria lhes falar deste filme como numa conversa. Amanhã estaremos reunidos para conferências e exposições mais aprimoradas, mais estudadas, de modo a tirarmos o melhor proveito para a nossa Semana Santa, para as nossas almas.
Hoje eu queria apenas comentar o que temos lido e ouvido para já irmos entendendo um pouco mais sobre este terremoto.
Consideremos, antes de mais nada, que o filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, ecoa como um brado ensurdecedor, como um grito da humanidade que já não agüenta mais viver nesta mortal indiferença diante do Sangue derramado por Nosso Senhor para nos salvar. Basta! Chega!
E de onde vem este brado, de onde nos chegam estes ecos? Do mais mundano lugar da terra; da pátria do cinema pornográfico, do cinema revolucionário, principalmente do cinema milionário que paga para ter todos os pecados e assim beber o sangue dos inocentes; do campo de sangue da violência brutal, gratuita e agitadora das almas. É da usina construída para decompor a família, a boa conduta, a honestidade e a decência que se lança um grito que alcança os confins da terra. E se este trovão atravessa a terra, se este relâmpago é "visto de oriente a ocidente" , não podemos dizer que ele seja um gemido insignificante. Ele tem volume, ele tem peso, ele tem autoridade.
Autoridade de quem sabe o que é cinema; peso de quem é consagrado nas telas; volume de quem pôs a mão no bolso para pagar a conta! Forte dessas prerrogativas este homem venceu as montanhas do ódio, da calúnia, do desprezo, abrindo passagem como outrora o próprio Cristo abriu no meio dos fariseus que não ousaram por as mãos sobre Ele; forte da simplicidade do pobre, da sensatez do sábio, da esperteza da serpente, este homem do mundo mundano gritou e disse: "esta é a minha fé; nisso eu acredito"... "por nossos pecados, pelos pecados de todos nós é que Jesus sofreu tal martírio... a mão que segura o cravo, na hora da crucifixão é a minha própria mão, para mostrar que eu me ponho em primeiro lugar como culpado da morte de Cristo".
E enquanto estas coisas eram ditas, enquanto o mundo pasmava diante desse testemunho de fé, aqui ao nosso lado, aos pés do Cristo Redentor do Corcovado, milhares de mundanos do mundo pagão, do mundo podre, desfilava e dançava na festa da carne, da bestialidade, dos gestos obscenos, para aplauso do mundo inteiro: "o maior espetáculo da terra", anunciam os marqueteiros do pecado. E chegam ao Rio milhares e milhares de turistas para pagar a conta do sonho da orgia.
Só este contraste já seria suficiente para nos fazer pensar e meditar: o planeta inteiro esquecido do Sangue de Jesus, dançando e cantando como no tempo da Arca de Noé.... e o corajoso filme sacudindo o mundo para lhes mostrar....
Para mostrar o quê?
É aí que está o mais surpreendente: para mostrar que Cristo morreu por nós e que nós devemos pensar nisso, devemos nos lembrar sempre, que estamos na Quaresma e no tempo da Paixão para que ao menos durante seis semanas estes acontecimentos de dois mil anos espetem nosso coração com a lança, machuquem nosso corpo como o de Jesus flagelado, atravessem a nossa carne que ainda sacode no gozo do pecado, como os cravos atravessaram o corpo virginal do Salvador.
Mas esse anúncio vigoroso da Quaresma, do jejum, da penitência, não tinha que partir de outras pessoas? Onde estão os bispos católicos que já não ensinam mais que se não morrermos com Cristo não seremos ressuscitados com Ele? O que fazem estes modernos doutrinadores de um evangelho adocicado, esmaecido, afeminado? Ah! sim. Estão reunidos num Concílio, já tinha esquecido. Estão perdidos no tempo e no espaço, vagando pelas ilusões de um falso cristianismo onde tudo é amor mesmo sem ordem, tudo é perdão, mesmo sem arrependimento; onde todos já estão salvos, sabendo ou não, querendo ou não. Vivem dessa ilusão com os homens de toda a terra já completamente entorpecidos por um século de liberdades e liberalidades. Tudo pode, o homem é livre e nada há que o possa impedir de fazer o que ele quer. Nada há que limite sua vontade todo-poderosa. Nem o pai, nem a pátria, nem Deus.
Ei-los, os bispos, aqueles que deveriam ser os sucessores dos Apóstolos, que enchem a boca para pregar a Nova Religião de Vaticano II. Eis a ridícula imagem que lhes resta viver quando do fim do mundo, do fundo do poço ressoa um grito que atinge em cheio o seu rosto. Uma bofetada!
É assim que eu defino este filme, A Paixão de Cristo. Uma real bofetada em muita gente:
Você quer carnaval? - slapch! Veja a carne rasgada pela flagelação!
Você quer sexo seguro? - slapch! Olhe bem para o rosto desta Virgem Dolorosa!
Você quer missa-refeição? - slapch!! Veja a Cruz levantada, o Coração aberto, o Sangue e a água!
Você quer ecumenismo? - slapch! slapch! Veja, aprenda que só a Cruz de Jesus pode congregar todos os povos e todas as línguas numa única fé, num único rebanho. Aceite esta lição vinda de um homem simples, comum, do cinema, do fundo do poço. Só a verdadeira fé católica é caminho de salvação e as falsas religiões são obra do demônio.
Ah! O sagrado chicote com que Jesus expulsou os vendilhões do templo foi posto nas mãos de um homem comum para esbofetear estes falsos levitas. São eles os maiores incriminados pela Paixão de Cristo. São as autoridades que vivem de Vaticano II que há quarenta anos falsificam e desfiguram a Esposa de Cristo.
Não, os incriminados não são os judeus. Os judeus de hoje só receberam do filme uma mensagem de verdadeiro amor fraterno; mensagem vinda dos irmãos que abriram a alma à Fé no Messias, Jesus Cristo, nosso Deus Encarnado, e que na oração que brota da fé esperam com sinceridade o retorno do filho pródigo, o retorno do filho mais velho para a Casa do Pai, o retorno de Esaú vindo encontrar-se com Jacó (Gênesis, 32).
Dom Lourenço Fleichman OSB
A Missa do Galo, a missa da meia-noite, a Missa da escuridão. Noite escura. Quantos significados tem para a alma esta expressão, esta realidade.
No princípio a terra estava vazia e informe e as trevas cobriam a face do abismo (Gn, 1)
As trevas da noite que são as trevas da alma, que também nasce na escuridão do pecado.
As trevas da noite que são também as trevas da Fé, pois o mistério é uma grande escuridão, vivida por tantos santos no grande sofrimento da ausência do Amado. La noche obscura, escreveu S. João da Cruz. Noite de grandes purificações espirituais que nos leva mais adiante no caminho da santidade e do amor de Deus.
E Deus disse: faça-se a luz!(Gn, 1)
No meio da noite as trevas desapareceram, fez-se luz, o ser amado pelo Criador emerge da noite para banhar-se no Sol divino.
Vejam o que diz a poetisa francesa, tão profunda que seus escritos são verdadeiras meditações:
· «O Espírito do Mal, Lúcifer, chama-se Luz. E a Árvore do Bem e do Mal chama-se Ciência, que significa também Luz. Como se houvesse na Luz um perigo mortal para o Anjo e para o Homem. Na ordem material, alguns raios sutis decompõem o corpo, destroem a vida.
· Em estado puro a Luz mata.
· Só existe vida, ela só é possível, onde a Luz se atenua e se turva.
· Só Deus, que é Luz, suporta a sua Luz. Quando Deus criou a Vida, criou a sombra. A sombra é a misericórdia da Luz que se acalma para poupar a criatura. E o mistério é o véu que Deus joga sobre Deus para aliviar o Homem. Pois "aquele que vê a Deus - Luz - deve morrer".
· No primeiro jardim crescem e se opõem as duas árvores: a Árvore da Vida e a Árvore da Ciência.
· A Árvore da Vida: Luz de Deus, misturada de sombra, dada como alimento ao homem segundo a capacidade do homem, como o sangue da mãe torna-se leite para a criança. E esta Luz cheia de sombra misericordiosa, este Deus reduzido ao Homem, chama-se Graça.
· E a Árvore da Ciência?..."Colha o fruto, roubem a luz, sereis como Deus..." (Gn,3)
· E morrereis». (Marie-Nöel)
Que visão, que inspiração teve esta mulher em 1933! E quando pensamos que a civilização moderna nos séculos de Revolução, era "iluminada", buscando a luz da Ciência. E a contemporânea busca a luz da matéria para criar um mundo ótico e virtual onde tudo é luz....e morrereis!
Ó Deus, onde está a Árvore da Vida, que escondestes de nossos primeiros pais, no Paraíso perdido? Qual o caminho que a espada de fogo do Arcanjo fecha até que venha o Desejado das Colinas Eternas
«No Princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus.
Nada do que foi feito foi feito sem Ele. O que foi feito, Nele era Vida, e a Vida era a Luz dos homens; e a Luz brilha nas Trevas. Et Verbum caro factum est.»
Esta é a Luz de Deus na misericórdia da sombra, é a união das duas naturezas na mesma Pessoa adorável do Filho. E o lugar onde Ele quis temperar sua Luz inacessível foi numa gruta de Belém, da Cidade do Pão, para que Aquele que é Luz que cega e fogo abrasador descesse até nós na sombra de sua misericórdia, no alimento sagrado, onde não somente ele esconde sua Luz como também nos transforma Nela.
Mas não podemos deixar de considerar que, se a Árvore da Ciência, o toque no relâmpago divino trouxe a morte para Adão e Eva, Deus quis trazer sua sombra até nós através daquela que não tocou na Árvore, que não buscou a Luz proibida, mas escondeu-se na sombra de Deus, na sua humildade, na sua Caridade. Contentou-se com as trevas de sua fraca condição para nos trazer a Salvação. A Virgem Imaculada, Mãe de Deus, Mãe da Luz, água cristalina e pura de onde brota a Árvore da Vida, o Deus humanado.
Nesta Noite de Natal, é assim que a Igreja canta, que a Igreja reza:
«Ó Deus, que fizestes resplandecer esta noite com a claridade da verdadeira Luz, concedei-nos que depois de conhecermos na Terra os mistérios dessa Luz, gozemos também no Céu de suas alegrias».
Os mistérios dessa Luz! Que venha novamente a poetisa completar seu pensamento:«Dei muitas vezes graças a Deus pela Luz! Mas com quanta humildade darei graças pelo Mistério! E com quanta doçura estarei ao abrigo de Deus na sombra de Deus.»
Para todos vocês, da Capela N.Sra da Conceição, da Capela São Miguel e a todos os nossos leitores espalhados pelo Brasil, um santo e feliz Natal. Que ele seja vivido na intensidade das verdades que a Santa Igreja Católica não cessa de nos desvendar, em seus sacramentos, no Batismo de adultos que tivemos em novembro, na Santa Crisma recebida neste mês de dezembro. Na Missa Santa que santifica, Missa de sempre, da Tradição; na Verdade Católica sem medos e sem concessões. E que esses humildes meios que Deus nos deu para nos santificarmos, hoje: um terço, uma Capela, um catecismo semanal, sejam vistos por todos vocês como a maior graça que Deus poderia lhes dar. É a sementinha de mostarda que só crescerá se for exposta à Luz e se for refrescada na sombra.
E que o ano bom traga a doce presença de Jesus nas cruzes de todo o dia.
Dom Lourenço Fleichman OSB
O que deve ser o voto de Feliz Natal de um padre, de uma Capela como a nossa a todos os nossos fiéis, a todos os nossos amigos e leitores? É de praxe e de bom tom trocar votos de felicidades nesta data do nascimento do Menino Jesus. E fazemos bem. Pois no fundo de nossas almas paira ainda a teologal esperança que avança sem tréguas em meio ao mar revolto deste mundo. Servirão os votos que damos e recebemos, pois de alguma forma as pessoas precisam da paz natural para viver em sociedade.
Mas é esse lado natural o que me incomoda. E onde está a realidade sobrenatural do Natal? Onde encontraremos, perdidos e abandonados nos cantos das ruas, os santos de outrora, que talvez corressem agitados, preparando tudo, organizando os mínimos detalhes de uma festa sem fim: Et Verbum caro factum est! Pois o Verbo se encarnou e habitou entre nós. O Verbo de Deus, segunda Pessoa da Santíssima Trindade, recebe uma natureza como a nossa para nascer na manjedoura em Belém. E onde estão as almas admiradas e contemplativas para fugir do shopping, largar as bolsas de compras, os presentes dos filhos, o novo celular, e correr desembestado por um estacionamento entupido..... Ah! Ele nasceu, eu vi a estrela, eu vi o Menino. Hosanna in excelsis! Eu vi, eu compreendi o que acontece. Por que não nos dizem isso? Onde estão os padres, onde estão os bispos, onde está o sangue católico, que já não corre nas veias dos homens, para nos dizer, para nos lembrar que o louco não sou eu que corri feito doido largando tudo no chão; os loucos são eles, que estão lá dentro, fazendo compras e mais compras; os doidos são eles, que, mesmo quando criticam o esvaziamento do Natal católico, não param para meditar no Mistério dos mistérios, na candura e inocência, na paz... na paz... Para que foi mesmo que ele nasceu? Para nos trazer a paz...
Não foi isso o que eu vi, não foi isso o que Ele quis me dizer quando me fez mergulhar naquele mundo de silêncio, no meio da multidão que corria agitada atrás das compras, das promoções, da última moda. Não foi isso o que o Príncipe da Paz me disse, quando abri seu Livro Santo e li: "Não vim trazer a paz, mas sim a espada!" Não, ele não veio nos trazer a paz, nesse sentido natural que os homens querem. É isso! Era isso o que me incomodava. Às favas com essa falsa paz de que nos fala o profeta, esse romantismo abusado que usa o Inocente, nosso Deus, para fingir que deseja a paz a todos. Não, não é isso o que eles desejam! O que eles querem é o paraíso na terra, é prolongar a vida até não poder mais, é liberar-se de toda obediência à Verdade Eterna. Pergunte a um deles se querem seguir os ensinamentos da Verdade? Qual Verdade? Eles não querem aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida. Eles querem, exigem, e batem pé: nós queremos a verdade de Pôncio Pilatos! Trata-se da verdade relativa, do liberalismo, de você seguir o que você pensa, autônomo, achando-se adulto, responsável... sem Deus, sem Cristo, sem a Igreja! Depois vêm me cantar musiquinhas bonitinhas na televisão para fazer chorar de emoção numa confraternização universal. Chega disso!
Por favor, não venham me dizer que é preciso esquecer certos acontecimentos, e deixar de lado as convicções, pois é noite de Natal. Acho que esse argumento pode ser válido para muitas ocasiões e para muitos natais. Mas se a causa de tantos desastres e tragédias está justamente no esquecimento de Jesus, no abandono da Criança de Belém, como não pensar nisso tudo? Se hoje a Argentina vive um Natal terrível e amanhã qualquer país o poderá viver também; se hoje aviões são lançados sobre prédios porque os loucos assassinos querem matar todos aqueles que não pensam como eles. Se tudo isso acontece porque o Rei Pacífico não tem direito de reinar sobre as nações, então essa paz e essa felicidade que eles desejam é de uma hipocrisia total!
E no entanto... E no entanto há lugar para a Paz, desde que não seja a paz dos jornais. Há lugar para cantar, numa noite de Natal, um cântico novo ao nosso Deus, ao Menino-Deus, desde que nossos olhos sejam olhos de filhos, puros e espirituais. Desde que nossas almas sedentas saibam dobrar os joelhos e rezar no silêncio da noite: Venite adoremus! vinde, adoremos a Criança, Jesus nosso Deus e Salvador, que nasceu hoje para morrer amanhã, para nos dar seu Sangue, para nos dar sua vida. Há lugar para desejar, ao menos para desejar, que o Rei da Paz seja o chefe das nações, o chefe de nossa Pátria; que ela se dobre diante do seu cetro e se deixe governar por seu Evangelho e por sua Igreja.
Então, sim, nesta hora em que nas igrejas soam os sinos, a missa do Galo, a Santa Eucaristia: meu Senhor e meu Deus. Que nossos corações tenham um ímpeto de amor e queiram com todas as forças espalhar pelo mundo as luzes do nosso Bom Deus. Então, sim, mergulhados na oração, saudemos nossos amigos e irmãos, troquemos nossos votos e orações, pois Ele nasceu, ele nos foi dado. "Hodie, filius datus est nobis — hoje, um Filho nos foi dado".
É por isso que desejamos a todos um Feliz Natal e um ano-bom repleto de todas as graças de Deus.
Eis os Reis Magos, que vêm de longe e chegam a Jerusalém e bradam: Onde está o recém-nascido, rei dos judeus?
Os Reis Magos, as primícias das gentilidades, eram nossa imagem.
Também viemos nós de longe, dessa região tenebrosa donde nos buscaram denominada pecado original; chegamos a Jerusalém e eis que estamos na Igreja; e na Igreja, deste cantinho que Deus nos preparou, perguntamos: Onde está o recém-nascido, rei dos judeus? Onde está o Rei? Onde está Jesus?
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Nesta ocasião cantamos o cântico santo: “Dize-me, ó amado de minha alma, onde apascentas teu gado, onde repousas ao meio-dia” (Cant. I, 6).
Eia! Vede, Jesus, as almas que vos pertencem e buscam e clamam e reclamam: Onde está o único Rei, o único Bem-Amado, o único Esposo, o único Jesus?
Está no Céu, está na Eucaristia, está vivo nos corações.
Ah, Ele nos há de amar, onde quer que esteja. Vinde e amemos, vinde e adoremos. Venite adoremus.