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Category: Dom Prosper Guéranger, OSBConteúdo sindicalizado

Beneditino francês, restaurador e abade de Solesmes e fundador da Congregação da França da Ordem de São Bento.

O dom de Sabedoria

O segundo favor que o divino Espírito destinou à alma que lhe é el na ação é o dom de Sabedoria, ainda superior ao de Inteligência. No entanto, está ligado a este último no sentido de que o objeto mostrado na inteligência é saboreado e possuído no dom de Sabedoria. O Salmista, convidando o homem a se aproximar de Deus, recomenda-lhe o sabor do soberano Bem. “Provai, diz ele, e experimentai que o Senhor é cheio de doçura”. A santa Igreja, no próprio dia de Pentecostes, pede a Deus para nós o favor de provar o Bem, recta sapere, porque a união da alma com Deus é antes uma experiência do gosto do que uma visão, a qual seria incompatível com nosso estado presente. A luz dada pelo dom de Inteligência não é imediata, ela alegra vivamente a alma e dirige seu sentido para a verdade; mas tende a se completar pelo dom de Sabedoria que é como se fosse seu m.

A Inteligência é então iluminação e a Sabedoria é união. Ora, a união com o soberano Bem se realiza pela vontade, quer dizer pelo amor que reside na vontade. Notamos essa progressão nas hierarquias angélicas. O Querubim refulge de inteligência, mas acima dele ainda está o Sera m abrasado. O Amor é ardente no Querubim, assim como a inteligência esclarece com sua luz viva o Sera m; mas um é diferenciado do outro pela qualidade predominante e o mais elevado é aquele que atinge mais intimamente a divindade pelo amor, aquele que saboreia o soberano Bem. 

 

O dom de Inteligência

O sexto Dom do Espírito Santo faz a alma entrar em uma via superior a que ela se encontrava até aqui. Os cinco primei- ros Dons tendem todos para a ação. O Temor de Deus remete o homem ao seu lugar humilhando-o, a Piedade abre seu coração às afeições divinas, a Ciência ensina-o a discernir entre a via da salvação e a via da perdição, a Força o arma para o combate e o Conselho dirige o homem em seus pensamentos e em suas obras; agora, então, ele pode agir e seguir pela estrada, com a esperança de chegar ao termo. Mas a bondade do Espírito divino lhe reser- va ainda outros favores, fazendo-lhe desfrutar desde este mundo, de um antegozo da felicidade que lhe reserva na outra vida. Este será o meio de fortalecer sua marcha, de animar sua coragem e de recompensar seus esforços. A via da contemplação lhe será, de agora em diante, aberta e o Espírito divino nela o introduzirá por meio da Inteligência.

Muitas pessoas, talvez, se inquietem com a palavra contem- plação, persuadidas erradamente de que as condições para isso só poderão ser encontradas na rara condição de uma vida passada no recolhimento e longe do comércio dos homens. É um grave e perigoso erro que, muitas vezes, freia o impulso das almas. A contemplação é o estado para o qual é chamado, em certa medida, toda alma que procura a Deus. Não consiste nos fenômenos pelos quais o Espírito Santo gosta de manifestar em algumas pessoas privilegiadas e que são destinados a provar a realidade da vida sobrenatural. Ela é, simplesmente, uma relação mais íntima que se estabelece entre Deus e a alma que lhe é el na ação; se esta alma não põe obstáculos, são-lhe reservados dois favores, entre os quais, o primeiro é o dom de Inteligência, que consiste na iluminação do espírito esclarecido desde então por uma luz superior.

Esta luz não retira a fé, mas clareia os olhos da alma, forti- cando-os e dando-lhes uma visão mais extensa sobre as coisas divinas. Muitas nuvens provenientes da fraqueza e da grosseria da alma ainda não iniciada, se desvanecem. A beleza cheia de encantos dos mistérios, a qual era vagamente sentida, se revela; inefáveis harmonias que nem eram suspeitadas, aparecem. Não é a visão face a face, reservada para o dia eterno; mas já não é mais aquela fraca luminosidade que dirigia seus passos. Um conjunto de analogias e de concordâncias mostram-se sucessivamente aos olhos do espírito, trazendo uma certeza cheia de doçura. A alma se dilata com essas claridades que enriquecem a Fé, aumentam a Esperança e desdobram o Amor. Tudo parece novo; e quando a alma olha para trás, compara e vê claramente que a verdade, sempre a mesma, agora é alcançada por ela de maneira incompa- ravelmente mais completa.

A leitura dos Evangelhos a impressiona mais; encontra um sabor nas palavras do Salvador desconhecido para ela até então. Compreende melhor o m a que Ele se propôs instituindo os Sacramentos. A santa Liturgia a emociona por suas fórmulas tão augustas e seus ritos tão profundos. A leitura da vida dos santos a atrai, nada a espanta nos seus sentimentos e nos seus atos; apre- cia seus escritos mais do que quaisquer outros e sente um aumen- to de bem estar espiritual, tratando com esses amigos de Deus. Rodeada de deveres de toda natureza, a chama divina guia essa alma para satisfazer a cada um deles. As diversas virtudes que deve praticar conciliam-se em sua conduta; uma nunca é sacri - cada pela outra, porque vê a harmonia que deve reinar entre elas. Está longe do escrúpulo como do relaxamento e sempre atenta para logo reparar os danos que pôde cometer. Algumas vezes, o próprio Espírito a instrui por uma palavra interior que, quando ouvida, ilumina sua situação com uma nova luz.

De agora em diante, o mundo e seus vãos equívocos, são tomados por aquilo que são e a alma se puri ca do resto de vín- culos e complacências que ainda poderia conservar por eles. Aquilo que só tem grandeza e beleza segundo a natureza parece insigni cante e miserável para esses olhos que o Espírito Santo

abriu para as grandezas e belezas divinas e eternas. Só uma coisa redime a seus olhos esse mundo exterior que ilude o homem car- nal: é que a criatura visível, que trás a marca da beleza de Deus, é susceptível de servir à glória de seu Autor. A alma aprende a fazer uso dela com ação de graças, tornando-a sobrenatural, glori cando com o Rei Profeta Àquele que imprimiu as marcas de sua beleza nessa multidão de seres que servem tantas vezes para a perda do homem, mas que são chamados a se tornarem degraus que o conduziriam a Deus.

O dom de Inteligência derrama também na alma o conhe- cimento de sua própria via. Faz com que ela compreenda o quan- to são sábios e misericordiosos os desígnios do alto que, muitas vezes, a quebra e a transporta para onde não contava ir. Vê que se ela fosse senhora de si mesma, para dispor de sua existência, teria perdido o seu m e que Deus nele a fez chegar, escondendo primeiramente os desígnios de sua paternal Sabedoria. Agora ela está feliz, pois goza da paz e seu coração não cabe de ações de graças para agradecer a Deus que a conduziu ao termo sem con- sultá-la. Se acontecer de ser chamada para dar conselhos, para exercer uma direção por dever ou por motivo de caridade, pode- se con ar nela; o dom de Inteligência a esclarece para os outros como para ela própria. No entanto não se intromete, dando lições àqueles que não lha pedem; mas se é interrogada, responde e suas respostas são luminosas como a chama que a ilumina.

Este é o dom de Inteligência, verdadeira luz da alma cristã e que se faz sentir nela em proporção à sua delidade aos outros dons. Este dom se conserva pela humildade, moderação dos de- sejos e recolhimento interior. Uma conduta dissipada detém o seu desenvolvimento e pode mesmo abafá-lo. Essa alma el pode se conservar recolhida mesmo em uma vida ocupada e cheia de deveres, e até no meio de distrações obrigadas às quais a alma se presta sem se prender. Que ela seja simples a seus próprios olhos e o que Deus esconde aos soberbos e revela aos pequenos lhe será manifestado e nela permanecerá.

Não há duvida de que tal Dom seja um imenso socorro para a salvação e a santi cação da alma. Devemos implorá-lo ao divino Espírito com todo ardor de nossos desejos, convencidos de que o atingiremos mais seguramente pelo impulso do nosso coração do que pelo esforço de nosso espírito. Na verdade é na Inteligência, , que se derrama a luz divina, objeto desse Dom; mas sua efusão provém, sobretudo, da vontade aquecida pelo fogo da Caridade, segundo a palavra de Isaias: “Crede, e tereis a inteligência”. Vamos nos dirigir ao Espírito Santo nos servindo das palavras de Davi, dizendo: “Abri nossos olhos e contempla- remos as maravilhas dos Vossos preceitos; dai-nos a inteligência e teremos a vida”. Instruídos pelo Apóstolo, manifestaremos nos- so pedido de maneira ainda mais insistente, nos apropriando da oração que ele dirige ao Pai celeste em favor dos éis de Éfeso, quando implora por eles “o Espírito de Sabedoria e de revelação pelo qual se conhece a Deus, os olhos iluminados do coração que descobrem o objeto de nossa esperança e as riquezas da gloriosa herança que Deus preparou para seus santos”. 

O dom de Conselho

O dom da Força que reconhecemos ser necessário para a obra da santificação do cristão, não seria suficiente para asse- gurar esse grande resultado, se o Divino Espírito não tomasse o cuidado de uni-lo a um outro Dom que vem em seguida e afasta todo perigo. Este novo benefício consiste no dom de Conselho. A Força não podia ser deixada sozinha: precisava de um elemento que a dirigisse. O dom de Ciência não poderia ser este elemento porque, se ele esclarece a alma quanto ao seu fim e as regras gerais de conduta que ela deve seguir, não trás, no entanto, luz suficiente quanto às aplicações especiais da lei de Deus e o governo da vida. Nas diversas situações em que podemos nos encontrar, nas resoluções que devemos tomar, é necessário que ouçamos a voz do Espírito Santo e é pelo dom de Conselho que esta voz divina chega até nós. É ela quem nos diz, se quisermos escutá-la, o que devemos fazer e o que devemos evitar, o que devemos dizer e o que devemos calar, o que podemos conservar e ao que devemos renunciar. Pelo dom de Conselho, o Espírito Santo age em nossa inteligência, assim como o dom da Força age em nossa vontade.

Este dom precioso aplica-se à vida inteira porque preci- samos, sem cessar, nos decidir por um partido ou por outro e é um grande motivo de reconhecimento para com o Espírito divi- no, pensar que Ele nunca nos deixa sozinhos conosco mesmos, desde que estejamos dispostos a seguir a direção que Ele nos imprime. Quantas armadilhas pode nos fazer evitar! Quantas ilusões pode destruir em nós! Quantas realidades nos mostra! Mas, para não perder suas inspirações, precisamos nos guardar do encadeamento natural das coisas, com que tantas vezes nos deixamos determinar, da temeridade que nos arrebata ao gosto da paixão, da precipitação que nos induz a julgar e a agir, mes- mo quando só vemos um lado das coisas, da negligência que nos faz decidir ao azar, no temor de nos cansarmos com a procura daquilo que seria melhor.

O Espírito Santo, pelo dom de Conselho, arranca o ho- mem de todas essas inconveniências. Reforma a natureza, tantas vezes excessiva quando não é apática. Mantém a alma atenta àquilo que é verdadeiro, ao que é bom, ao que é verda- deiramente vantajoso. Insinua a virtude que é o complemento e como se fosse o tempero de todas as outras, ou seja, a dis- crição, da qual Ele tem o segredo e pela qual as virtudes se conservam, se harmonizam e não degeneram em defeitos. Sob a direção do dom de Conselho, o cristão nada tem a temer. O Espírito Santo toma a responsabilidade de tudo para ele. Que importa que o mundo reclame ou critique, que se espante ou se escandalize! O mundo se crê sábio; mas não tem o dom de Conselho. É daí que vêm, muitas vezes, as resoluções tomadas sob uma inspiração e que acabam em um m diferente do que foi proposto. E tem que ser assim; porque foi ao mundo que o Senhor disse: “Meus pensamento não são os vossos pensamen- tos e meus caminhos não são os vossos caminhos”. Clamemos, então, com todo ardor de nossos desejos, pelo Dom divino que nos preservará do perigo de nos governarmos a nós mesmos; mas compreendamos que este Dom só habita naqueles que O estimam bastante para renunciarem-se em sua presença. Se o Espírito Santo nos encontra desligados das idéias humanas, convencidos de nossa fragilidade, dignar-se-á ser nosso Conse- lho; mas se somos sábios a nossos próprios olhos, Ele retirará sua luz e nos abandonará a nós mesmos.

Não queremos que isso aconteça conosco, ó Divino Es- pírito! Estamos fartos de saber que correr atrás da prudência humana não nos traz vantagem e, diante de Vós, abdicamos sinceramente das pretensões de nosso espírito, tão pronto a se deslumbrar e a se iludir. Conservai em nós e dignai-Vos desenvolver com toda liberdade esse Dom inefável que nos concedestes no batismo: sede para sempre nosso Conselho. “Mostrai-nos Vossos caminhos e ensinai-nos Vossas veredas. Dirigi-nos na verdade e instruí-nos; porque é de Vós que virá a salvação e é por isso que nos prendemos à Vossa di- reção”. Sabemos que seremos julgados por todas as nossas obras e por todos os nossos desígnios; mas sabemos tam- bém que não teremos nada a temer se formos fiéis à Vossa direção. Estaremos, pois, atentos “para ouvir o que nos diz o Senhor nosso Deus”, o Espírito de Conselho, seja nos fa- lando diretamente, seja nos enviando ao mediador que quis escolher para nós. Bendito seja Jesus que nos enviou seu Espírito para ser nosso condutor e bendito seja este Divino Espírito que se digna nos assistir sempre e que nossas resis- tências passadas não afastou de nós! 

 

O dom da Força

O dom de Ciência nos ensina o que devemos fazer e o que devemos evitar para estar de acordo com as intenções de Jesus Cristo, nosso divino Chefe. É preciso agora que o Espírito Santo estabeleça em nós um princípio, do qual possamos tomar a ener- gia que deverá nos sustentar no caminho que Ele acaba de nos mostrar. Devemos, com efeito, contar com obstáculos e, o grande número daqueles que sucumbem basta para nos convencer da necessidade de sermos ajudados. O socorro que o divino Espí- rito nos comunica é o dom da Força pelo qual, se somos éis ao empregá-lo, será possível e mesmo fácil para nós triunfar sobre tudo o que possa deter nossa marcha.

Nas di culdades e nas provações da vida, o homem é tanto levado à fraqueza e ao abatimento, quanto empurrado por um ar- dor natural, que tem sua fonte no temperamento ou na vaidade. Esta dupla disposição pouco ajudará na vitória dos combates pe- los quais a alma deve passar para sua salvação. O Espírito Santo trás então um novo elemento como força sobrenatural, que lhe é tão próprio, que o Salvador, ao instituir seus Sacramentos, esta- beleceu dentre estes um que tem por objeto especial nos dar esse Espírito divino como princípio de energia. Está fora de dúvida que tendo de lutar durante esta vida contra o demônio, o mundo e nós mesmos, precisamos de outra coisa para resistir além da pusilanimidade ou da audácia.

Temos necessidade de um dom que modere em nós o medo e que, ao mesmo tempo, tempere a con ança que seríamos levados a ter em nós mesmos. O homem assim modi cado pelo Espírito Santo certamente vencerá, pois a graça substituirá nele a fraqueza da natureza ao mesmo tempo em que corrigirá a impetuosidade.

Duas necessidades encontram-se na vida do cristão: a de saber resistir e a de saber suportar. O que poderia se opor às ten- tações de Satã, se a Força do divino Espírito não viesse cobri-lo de uma armadura celeste e fortalecer seu braço? O mundo não é também um adversário terrível, se considerarmos o número de vítimas que caem todos os dias pela tirania de suas máximas e de suas pretensões? Qual não deve ser a assistência do divino Espí- rito, quando se trata de tornar o cristão invulnerável aos golpes assassinos que fazem tantos estragos à sua volta?

As paixões do coração do homem não são um obstáculo me- nor à sua salvação e à sua santi cação: obstáculo tanto mais temível por que mais íntimo. É preciso que o Espírito Santo transforme o coração, que o leve mesmo a renunciar-se, quando a luz celeste in- dique um outro caminho para o qual nos empurra o amor e a busca de nós mesmos. Que Força divina não é preciso para “odiar até a sua própria vida”, quando Jesus Cristo o exige, quando se trata de escolher entre dois mestres cujos serviços são incompatíveis?

O Espírito Santo, todos os dias, realiza esses prodígios, por meio do dom que derrama em nós, se não o desprezamos, se não o abafamos com nossa covardia ou com nossa imprudência. Ele ensina ao cristão a dominar suas paixões, a não se deixar conduzir por guias cegos, a não ceder a seus instintos, a não ser, quando são conformes à ordem que Deus estabeleceu. Algumas vezes esse divino Espírito não pede somente que o cristão resista interior- mente aos inimigos de sua alma, mas exige também que proteste abertamente contra o erro e o mal, se o dever de estado ou a po- sição o reclamam. É aí, então, que é preciso afrontar uma espécie de impopularidade que se associa às vezes ao cristão, e que não deve surpreendê-lo ao lembrar-se das palavras do Apóstolo: “Se eu fosse agradável aos homens, não seria servidor de Cristo”. Mas o Espírito Santo não falta nunca e quando encontra uma alma re- solvida a fazer uso da Força divina da qual Ele é a fonte, não so- mente lhe assegura o triunfo, mas a estabelece numa paz cheia de doçura e de coragem que a leva à vitória sobre as paixões.

Tal é a maneira pela qual o Espírito Santo aplica o dom de Força no cristão, quando este deve exercer resistência. Dissemos que este precioso Dom trazia ao mesmo tempo a energia necessária

para suportar as provações cujo prêmio é a salvação. Há temores que gelam a coragem e podem levar o homem à sua perda. O dom de Força os dissipa, substituindo-os por uma calma e uma seguran- ça que desconcerta a natureza. Vejam os mártires! E não só um São Mauricio, chefe da legião Tebana, acostumado às lutas do campo de batalha, mas tantos outros, como Felicidade, mãe de sete lhos, como Perpétua, nobre senhora de Cartago para quem o mundo só tinha favores; como Inês, criança de treze anos, bem como milhares de outras, e digam se o dom da Força é estéril em sacrifícios. O que foi feito do medo da morte, desta morte cujo único pensamento nos acabrunha muitas vezes? E as generosas ofertas de toda uma vida imolada na renúncia e nas privações, a m de encontrar Jesus sem reserva e de seguir suas pegadas de mais perto? E tantas exis- tências veladas aos olhares distraídos e super ciais dos homens, existências cujo elemento é o sacrifício, onde a serenidade nunca é vencida pela provação, onde a cruz sempre reinante é sempre acei- ta! Que troféus para o Espírito de Força! Que dedicação ao dever ele sabe produzir! E se o homem sozinho é pouca coisa, o quanto é engrandecido sob a ação do Espírito Santo!

É ainda Ele que ajuda ao cristão a enfrentar a triste ten- tação do respeito humano, elevando-o acima das considerações mundanas que ditariam uma outra conduta. É Ele que empurra o homem a preferir às honras vãs do mundo, a alegria de não ter violado o mandamento de seu Deus. É esse Espírito de Força que nos faz aceitar as desgraças da fortuna assim como tantos de- sígnios misericordiosos do céu, que sustentam o cristão na perda dolorosa dos entes queridos, nos sofrimentos físicos que torna- riam a vida um fardo, se não soubesse que são visitas do Senhor. É Ele en m, como lemos na Vida dos Santos, que se serve das próprias repugnâncias da natureza, para provocar atos heróicos onde a criatura humana parece atravessar os limites de seu ser para elevar-se à ordem dos espíritos impassíveis e glori cados.

Espírito de Força, permanecei cada vez mais em nós e sal- vai-nos da indolência desse século. Em época nenhuma a energia das almas esteve mais enfraquecida, o espírito mundano e dia- bólico mais triunfante, o sensualismo mais insolente, o orgulho e a independência mais pronunciados. Saber ser forte contra si mesmo é uma raridade que excita o espanto daqueles que o tes- temunham: como as verdades do Evangelho perderam terreno! Detei-nos sobre esse declive que nos levaria como a tantos ou- tros, ó Divino Espírito! Deixai que peçamos como São Paulo aos cristãos de Éfeso e que ousemos reclamar de Vossa liberalidade “a armadura divina que nos porá em condições de resistir no dia mau e de permanecermos perfeitos em todas as coisas. Cingi nos- sos rins com a verdade, cobri-nos com a couraça da justiça, dai a nossos pés, como calçados indestrutíveis, o Evangelho da paz; muni-nos com o escudo da fé, contra o qual vem atingir as e- chas in amadas de nosso cruel inimigo. Colocai em nossa cabeça o elmo que é a esperança da salvação e em nossa mão a espada espiritual que é a própria palavra de Deus” e com a ajuda da qual possamos enfrentar, como o Senhor no deserto, todos os nossos adversários. Espírito de Força fazei que assim seja. 

 

O dom de Ciência

A alma, estando desligada do mal pelo Temor de Deus e aberta às nobres afeições pelo dom de Piedade, experimenta a necessidade de saber como evitará aquilo que é objeto de seu temor e como encontrará o que deve amar. O Espírito Santo vem em seu socorro e lhe trás o que deseja, derramando nela o dom de Ciência. Por este Dom precioso a verdade lhe aparece, ela sabe o que Deus pede e o que reprova, o que deve procurar e do que deve fugir. Sem a Ciência divina nossa vista corre o risco de perder-se por causa das trevas que muitas vezes obscurecem totalmente, ou em parte, a inteligência do homem. Essas trevas são provenientes, primeiramente, do fundo de nós mesmos, que carrega os traços, bem reais, da decadência do pecado original. São ainda causadas pelos preconceitos e máximas do mundo que enganam diariamente os espíritos que se crêem os mais retos. En m, a ação de Satã, que é o príncipe das trevas, exerce-se em grande parte com o m de envolver nossa alma na obscuridade ou perdê-la com a ajuda de luzes falsas.

A fé que nos foi infundida no batismo é a luz de nossa alma.

Pelo dom de Ciência, o Espírito Santo produz, na virtude da fé, raios tão vivos, que dissipam todas as trevas. As dúvidas, então, se esclarecem, o erro se desvanece e a verdade aparece com todo seu fulgor. Vemos cada coisa na sua verdadeira clari- dade que é a claridade da fé. Descobrem-se os deploráveis erros que estão em curso no mundo, que seduzem tão grande número de almas, dois quais, talvez tenhamos sido, nós mesmos, durante muito tempo, vítimas.

O dom de Ciência nos revela o m que Deus se propôs na criação, aquele m fora do qual os seres não poderiam encontrar nem o bem nem o repouso. Ensina o uso que devemos fazer das criaturas, que nos são dadas não para tropeço, mas para nos aju- dar em nossa marcha para Deus. Sendo-nos, assim, manifestado o segredo da vida, nossa estrada torna-se segura, não hesitamos mais e nos sentimos dispostos a nos retirar de todo caminho que não nos conduza àquele m.

É esta Ciência, dom do Espírito Santo, que o Apóstolo tem em vista quando, falando aos Cristãos diz: “Antes éreis trevas; agora sois luz no Senhor: andeis agora como lhos da luz”. Daí vem a rmeza e a segurança da conduta cristã. A experiência pode faltar algumas vezes e o mundo se perturba com o pensa- mento de dar algum temível passo em falso; mas o mundo não conta com o dom de Ciência. “O Senhor conduz o justo por vias retas e para assegurar seus passos lhe deu a Ciência dos santos”. Todos os dias esta lição é dada. O Cristão, por meio da luz so- brenatural, escapa a todos os perigos e, se não tem experiência própria, tem a experiência de Deus.

Seja bendito, Divino Espírito, por essa luz que derramais e mantendes em nós com tão amável perseverança. Não permi- tais que nunca procuremos uma outra. Somente ela nos baste; fora dela só há trevas. Guardai-nos das tristes inconseqüências em que muitos se deixam levar imprudentemente, aceitando um dia vossa conduta e depois se entregando às opiniões do mundo; levando uma vida que não satisfaz nem ao mundo nem a Vós. Precisamos, pois, amar esta Ciência que nos destes para que seja- mos salvos; o inimigo de nossas almas inveja em nós essa Ciência salutar; quer substituí-la por suas sombras. Não permitais, Di- vino Espírito, que ele consiga seu pér do desígnio e ajudai-nos sempre a discernir o que é verdadeiro do que é falso, o que é jus- to do que é injusto. Que segundo a palavra de Jesus, nosso olhar seja simples, a m de que nosso corpo, quer dizer o conjunto de nossos atos, de nossos desejos e de nossos pensamentos, esteja na luz; salvai-nos daquele olho que Jesus chama de mau e que torna tenebroso o corpo inteiro. 

 

O dom da Piedade

O dom do Temor de Deus destina-se a curar em nós a cha- ga do orgulho; o dom da Piedade é derramado em nossas almas pelo Espírito Santo para combater o egoísmo, que é uma das paixões más do homem decaído por causa do pecado original, e o segundo obstáculo à sua união com Deus. O coração do cristão não deve ser nem frio nem indiferente; é preciso que seja terno e devotado; do contrário não poderá se elevar à via para a qual Deus, que é amor, dignou-se chamá-lo.

Assim o Espírito Santo produz no homem o Dom da Pie- dade, inspirando-lhe um retorno lial para seu Criador. “Vós re- cebestes o Espírito de adoção, nos diz o Apóstolo, e é por este Es- pírito que gritamos para Deus: Pai! Pai!”. Essa disposição torna a alma sensível a tudo o que toca a honra de Deus. Faz o homem alimentar em si mesmo a compunção de seus pecados, tendo em vista a in nita Bondade que se dignou suportá-lo e perdoá-lo e o pensamento dos sofrimentos e da morte do Redentor. A alma iniciada no dom de Piedade deseja constantemente a glória de Deus; quer pôr todos os homens a seus pés e os ultrajes que Ele recebe lhe são particularmente sensíveis. Sua alegria é ver o pro- gresso das almas no amor e as devoções que este amor lhes ins- pira por Aquele que é o soberano Bem. Cheia de submissão lial para com o Pai universal que está nos céus, essa alma está pronta para todas as suas vontades. Resigna-se de coração com todas as disposições de sua Providência.

Sua fé é simples e viva. Mantém-se amorosamente submis- sa à Igreja, sempre pronta a renunciar às suas próprias idéias e àquelas mais caras, se estas afastam-se de alguma forma de seu ensinamento ou de sua prática, tendo um horror instintivo da novidade e da independência.

Essa devoção para com Deus que o dom de Piedade inspi- ra, unindo a alma a seu Criador pela afeição lial, a une, também, com uma afeição fraternal, a todas as criaturas, já que estas são obra do poder de Deus e que as são para Ele.

Em primeiro lugar, nas afeições do cristão animado pelo dom de Piedade, estão as criaturas glori cadas, das quais, Deus goza eternamente e as quais gozam Dele para sempre. Ama ter- namente a Santíssima Virgem Maria e é zeloso de sua honra; venera com amor os santos e os atos heróicos de virtude realiza- dos pelos amigos de Deus; delicia-se com seus milagres, honra religiosamente suas relíquias sagradas.

Mas sua afeição não é apenas pelas criaturas coroadas no céu; aquelas que ainda estão aqui embaixo ocupam um lugar importante em seu coração. O dom de Piedade faz com que ele encontre nelas o próprio Jesus. Sua boa vontade para com seus irmãos é univer- sal. Seu coração está inclinado ao perdão das injúrias, a suportar as imperfeições do outro, a desculpar as imperfeições do próximo. É compassivo para com o pobre, solícito aos pés do doente. Uma doçura afetuosa revela o fundo do seu coração e em suas relações com os irmãos da terra, o vemos sempre disposto a chorar com os que choram, a se alegrar com os que se alegram.

Tal é, ó Divino Espírito, a disposição daqueles que cultivam o dom de Piedade que derramais em suas almas. Por esse inefável be- nefício, neutralizais o triste egoísmo que a oraria em seus corações, livrando-os de uma frieza odiosa que torna o homem indiferente a seus irmãos e fechais suas almas à inveja e ao ódio. Para isso, só foi preciso esta piedade lial para com seu Criador; que amoleceu seus corações, fundindo-os com uma viva afeição por tudo o que sai das mãos de Deus. Fazei fruti car em nós este Dom tão precioso, ó Di- vino Espírito! Não permitais que ele seja abafado pelo amor de nós mesmos. Jesus nos encorajou dizendo-nos que seu Pai Celeste “faz o sol nascer sobre os bons e os maus”; não permitais, Divino Parácli- to, que uma tão paternal indulgência seja um exemplo perdido para nós e dignai-Vos desenvolver em nossas almas o germe de devoção, de benevolência e de compaixão que Vos dignastes infundir no momento em que delas tomastes possessão pelo santo batismo. 

 

O dom do Temor

O nosso obstáculo ao bem é o orgulho. O orgulho nos leva a resistir a Deus, a pôr o nosso m em nós mesmos, em uma palavra, a nos perder. Só a humildade pode nos salvar de tão grande perigo. Quem nos dará a humildade? O Espírito Santo, derramando em nós o Dom do Temor de Deus. Esse sentimento repousa na idéia da majestade de Deus que a fé nos dá, em presença da qual nada so- mos; na idéia da sua santidade in nita, diante da qual não passamos de indignidade e escória; do julgamento soberanamente eqüitativo que ele deve exercer sobre nós ao sairmos desta vida e do perigo de uma queda sempre possível, se faltarmos à graça, que nunca nos falta, mas à qual podemos resistir.

A salvação do homem se opera, pois, “com temor e tremor”, como ensina o Apóstolo; mas este temor que é um dom do Espí- rito Santo, não é um sentimento grosseiro que se limitaria a nos lançar no horror da consideração dos castigos eternos. Ele nos mantém com a compunção do coração, mesmo quando nossos pecados já foram há muito tempo perdoados; ele nos impede de esquecer que somos pecadores, que devemos tudo à misericórdia divina e que só estamos salvos na esperança.

O Temor de Deus não é um temor servil; ao contrário, se torna a fonte de sentimentos mais delicados. Pode-se aliar ao amor, não sendo mais do que um sentimento lial que abomina o pecado por causa do ultraje que este comete a Deus. Inspirado pelo respeito à majestade divina, pelo sentimento da santidade in nita, põe a criatura em seu verdadeiro lugar, São Paulo nos ensina que o temor, assim puri cado, contribui para “o aper- feiçoamento da santi cação”. Escutemos também esse grande Apóstolo, que foi arrebatado até o terceiro céu, confessar que é rigoroso consigo mesmo “a m de não ser reprovado”.

O espírito de independência e de falsa liberdade que reina hoje em dia contribui para tornar mais raro o Temor de Deus e aí está uma das chagas do nosso tempo. A familiaridade com Deus toma, na maior parte das vezes, o lugar dessa disposição funda- mental da vida cristã e, desde então, cessa todo progresso, a ilusão se introduz na alma e os divinos Sacramentos, que no momento de uma volta para Deus tinham operado com tanto poder, tor- nam-se quase estéreis. É que o dom do Temor foi abafado pela vã complacência da alma consigo mesma. A humildade se extinguiu; um orgulho secreto e universal veio paralisar os movimentos desta alma. Ela chega, sem perceber, a não mais conhecer a Deus, pelo próprio fato de não tremer mais diante dele.

Conservai em nós, ó Divino Espírito, o dom do Temor de Deus que nos foi derramado no nosso batismo. Este temor salu- tar assegurará nossa perseverança no bem, detendo os progres- sos do espírito de orgulho. Que ele seja como uma trave que atra- vessa nossa alma de lado a lado e que que sempre xada como nossa salvaguarda. Que abaixe nossa altivez, que nos arranque da indolência, nos revelando sem cessar a grandeza e a santidade Daquele que nos criou e que nos deve julgar.

Sabemos, ó Divino Espírito, que esse feliz Temor não abafa o amor; longe disso, afasta os obstáculos que o deteriam em seu desenvolvimento. As Potestades celestes vêem e amam com ardor o soberano Bem, elas são inebriadas pela eternidade; no entanto tremem diante da terrível majestade, tremunt Potes- tates. E nós, cobertos das cicatrizes do pecado, cheios de im- perfeições, expostos a mil armadilhas, obrigados a lutar contra tantos inimigos, não sentimos que é preciso estimular por um temor forte e ao mesmo tempo lial, nossa vontade que ador- mece tão facilmente, nosso espírito tomado por tantas trevas! Velai por Vossa obra, ó divino Espírito! Preservai em nós o Dom precioso que Vos dignastes dar-nos; ensinai-nos a conci- liar a paz e a alegria do coração com o Temor de Deus, segundo a advertência do Salmista:

“Serve o Senhor com temor e exulta de felicidade tremendo diante dele” .

 

Os dons do Espírito Santo

OS DONS DO ESPÍRITO SANTO

Dom Prosper Gueranger OSB

 

EDITORA PERMANÊNCIA 2007 

Considerações Sobre a Liturgia - III

TERCEIRO ARTIGO

A TERCEIRA CARACTERÍSTICA DA LITURGIA É A AUTORIDADE.

 

É impossível que a linguagem da Igreja indefectível contenha erro.

Respostas aos sectários das novas liturgias.

A antigüidade e a universalidade acarretam uma terceira característica, que denominamos autoridade. A Igreja a possui em si em grau eminente, porque suas crenças remontam do primeiro dia de sua existência, e porque, em todos os lugares e épocas, conservou-as fortes e imutáveis. Este caráter inimitável, que a faz ser o que ela é, está impressa em suas obras. Por isso nunca puderam compreender, e muito menos imitar, seus pensamentos, que à primeira vista são exteriores e indiferentes; por isso, tentaram estabelecer doutrinas imponentes. O protestantismo já o confessou mais de uma vez, quando por esforços infinitamente superiores aos da Igreja só produziram confusão e esterilidade. Dentre as características da Igreja, a autoridade é a única que não admite paródias, pois a autoridade é a presença real da Divindade.

A linguagem antiga e universal – a liturgia – é, entre as instituições da Igreja Católica, a que mais deve se mostrar imbuída de autoridade. Como é majestosa, sonora a voz que nos percute os ouvidos através das eras e, semelhante a voz do mesmo Deus, rompe as cadeias do orgulho e abala o fundamento dos desertos! Como é grandioso o livro que inscreve a palavra do séculos, e invencível o ensinamento egresso do interior do santuário, saído do pé do altar do Senhor! A verdade não vem apenas do púlpito, mas também se oferece e retém no silêncio do recolhimento e da oração, no instante em que a assembléia reúne-se em nome de Jesus. Quem ousará contestar sua infalível verdade? Quem ousara confrontá-la com as idéias de ontem?

Gozam as sagradas orações, nas quais os dogmas se desenvolvem em ricos corolários, do mais alto grau de autoridade. Não ignora o católico que a Igreja, palavra que não lhe sai da ponta da língua, é a coluna e apoio da verdade. Estão cientes da incompatibilidade entre trevas e luz, e de que a linguagem da Esposa não contradiz o pensamento do Esposo. É permitido pois dizer que é certo, na medida em que algo pode ser, que a liturgia romana não contém nem conteria erro no ensinamento e na confissão dos dogmas; bem ao contrário, todas as palavras deve ser acatadas com profundo respeito e docilidade, por quem é e deseja permanecer membro da verdadeira Igreja; o universo fulminaria de anátema quem ousasse julgar a palavra daquela que recebera o nobre encargo de transmitir a todo homem vindo a este mundo a luz da verdade.

Mas a alma se espanta quando fixa o olhar sobre estas liturgias efêmeras, nem universais no tempo, nem católicas no espaço, que de próprio alvitre não querem ser a linguagem da Igreja! Como é possível que se encontrem homens que tenham ousado substituir a palavra dos séculos com a palavra do dia, a palavra infalível com a palavra frágil e muitas vezes mentirosa do homem?

Mais impressionante ainda, como ousaram conferir à estranha substituição as honras de um acontecimento glorioso para a Igreja galicana? 1 Como deram crédito a tais homens? É assim tão fácil encantar, com modos lisonjeiros, as almas pouco ciosas da santa delicadeza da fé?

Os autores e os defensores da nova liturgia opõem-nos uma objeção especiosa, vitoriosa em si mesma, caso não cedesse sob o próprio peso. Dizem o seguinte:

“Eles se lamentam das supressões que fizemos nas antigas orações, repetindo que nossas liturgias se apresentam desprovidas da autoridade que os séculos conferiram às velhas fórmulas romanas, mas em verdade se perdeu alguma coisa? No lugar das palavras dos santos que, antes de tudo, eram apenas homens, quiséramos as palavras do próprio Deus. A Escritura em si mesma já tem as rubricas dos novos ofícios. Vosso respeito pelos novos breviários dar-nos-á a medida de vossa veneração aos livros sagrados”.

Muitas almas boas se deixam fisgar por tal sofisma. Contudo, vamos à resposta. Vossas liturgias, dizeis vós, se comparam em autoridade com as nossas: a Santa Escritura vos serve de rubrica. Levando em consideração, por um instante, vosso testemunho, pergunto o que aconteceu às palavras sagradas que saíam de vossas bocas? Por que a Igreja, amedrontada, não mais as reconhece como suas? Por acaso, ela havia se enganado? Tornastes-vos desprezíveis considerando palavra de Deus as fantasias da alma humana? A palavra de Deus! Quem vos deu o direito de interpretá-las, submetendo-as à uma ordem completamente nova, e de calar as centenas de bocas da tradição, sem as quais as Escrituras seria um livro selado?

Ignorais que é a autoridade da Igreja que determina a crença do católico no Evangelho e nas Escrituras? Estais cientes que não raro acusam tais exegeses sem garantias de falsear o sentido delas, senhores sectários da interpretação engenhosa das Escrituras? Sabeis que olhos circunspetos por mais de uma vez já leram aí os segredos duma seita que profana o que toca? Vós acreditais que, sem a Igreja, tendes sempre o sentido verdadeiro das Escrituras, e exigis para vossas interpretações veneração semelhante a que damos às palavras que saem da Igreja – não vos enganeis, contudo. O uso das Escrituras é mui recomendável. Leiamo-las e meditemo-las incessantemente, mas não acreditemos que todas as exegeses que o espírito particular garanta estejam certas, nem que se pode confrontá-las à confissão de fé da Igreja. Prestai atenção, e vede onde vão parar. De qualquer forma, tem de se concordar: não se poderia encontrar um erro sequer na santa liturgia romana, sem que a Igreja se convencesse de erro em seu ensinamento e de, por isso, estar desprovida de santidade e infalibilidade; isso não impede, ao contrário, que a liturgia francesa, a mais difundida entre todas, encerre um algo de suspeito; e de fato, ela encerra mesmo algo de suspeito. Mais ainda, se por acaso se concedesse – mas isso jamais acontecerá – que vossa autoridade na exegese das Escrituras se equiparasse a das palavras da liturgia romana, ainda haveria uma barreira terrível na seleção das passagens dos Santos Padres, meio explorado com sucesso pelos jansenistas em seus breviários. E quem nos asseguraria da ortodoxia dos hinos e das legendas?

Continuando, se os bispos – pastores do povo e juizes da fé – tivessem composto as novas liturgias, tal circunstância talvez desse a elas alguma importância e, com um pouco mais de entusiasmo, poder-se-ia ver nesta fábrica a obra da Igreja de França. Mas eis como tudo aconteceu, há mais ou menos um século. Uns meros padres, meros doutores em teologia investigaram avidamente o novo campo aberto à criatividade eclesiástica. Sustentados e nutridos pelo espírito de partido, armados com a mútua concordância, viu-se neles o zelo infatigável na composição da nova liturgia – sequer tomavam fôlego - a começar do domingo do Advento até o último domingo depois de Pentecostes. Em meio a seus importantes trabalhos, por vezes uma rivalidade inaudita arrancava-os do descanso do gabinete. Embatiam-se os novos planos, cada qual causando furor a seu turno; um breviário travava formidável luta contra outro breviário; um missal derrotava outro missal. Brochuras que mal nos chegavam às mãos iniciavam o público nas diversas circunstâncias desta guerra litúrgica. Tratavam-se por heréticos de parte a parte, e algumas vezes uma e outra parte tinham razão. Feliz de quem conseguia que seu trabalho fosse apreciado, recebendo assim a palma diante dos doutos e infatigáveis concorrentes! Durante muito tempo, o vencido nutria em segredo a esperança de enfim ver um bispo fazer justiça às belezas do seu breviário, aguardando o dia em que uma preclara diocese viesse solicitar o favor de apelidá-la de Breviarium Ecclasiasticum, para o público gozá-lo sob esta condição. Não, esta não foi obra do episcopado, mas concebida e executada por homens que não pertenciam à hierarquia; as cartas pastorais que apareceram junto às composições, totalmente novas em doutrina, foram redigidas mais de uma vez, à guisa de prefácio, por aqueles que fabricaram a obra.

Realmente, considerando apenas a dignidade da liturgia católica, não se sabe o que pensar quando se testemunha tantas igrejas se apropriarem com elevadíssimo respeito da linguagem e das idéias de um homem, algumas vezes um sectário, escolhendo docilmente por expressão de sua fé e de seus juramentos as palavras que saíram daquela cabeça. É certo que não há muita liberdade, mas o destino desta nova liberdade seria o mesmo das outras. Sejamos menos livres, por dever de submissão à autoridade superior. Infelizmente, é estranho que não percebam sua inconseqüência. Todos os dias, escutais os padres a vos dizer, quando falam do breviário ou do missal de sua diocese: “A Igreja nos diz tal coisa; a Igreja se exprime de tal modo sobre o mistério; vejam como a Igreja celebra as louvações de tal santo: não é admirável? Como suas palavras tem o perfume da piedade! Como são repletas de dignidade e conveniência!”

- Ah, não, dir-lhes-ia eu, a Igreja não vos disse nada disso. Nunca vos afirmou isso, a menos que vós não sejais da Igreja, mas de outra. Não, a Igreja não dissera nada disso: é a história que nos diz que Mézenguy, Foinard, Vigier, Rondet, Valla e outras personagens, graça a Deus, não pertencem à Igreja, eu vos asseguro.

Assim, qual foi o resultado de tudo isso? Um desprezo universal em face das liturgias artificiais, uma futilidade de julgamentos inconcebível até nos galicanos mais empedernidos. Assim que se admitiu que um breviário ou missal são obras como outras quaisquer, a crítica, antes de tudo pasmada em vê-las incluídas em seu domínio, logo se valeu a mancheias de seus direitos. Este breviário está bem feito, aquele outro mal feito, dizem-nos todos os dias, e depois que levantaram dúvidas sobre a linguagem da Igreja, permitiram-lhes afirmar sem constrangimentos que a Igreja exprime ou não adequadamente seu pensamento, por causa de fulano ou sicrano, que tinha mais ou menos talento. Finalmente, tornou-se a liturgia um gênero entre outros, passível de se aperfeiçoar dia a dia. Eis aí a autoridade das novas liturgias: nem os partidários mais ferrenhos podem contestar a verdade do quanto foi dito.

Querem atribuir aos novos hinos, um triunfo da inovação galicana, apesar do total desligamento com as Escrituras, uma autoridade que não têm nem saberiam ter. Como não recebessem a sanção da Igreja, o que de fato exprimem? A verdade católica?

Creio neles, mas quem me certifica deles? Quem imprimiu neles o selo da infalibilidade? Isso não é tudo: vejo homens, contemporâneos que se elevam num instante às dignidades dos postos da Igreja, e que a Igreja de França aceita nesta qualidade. Talvez, para que sejam admitidos como voz do povo fiel, haja neles alguma autoridade, virtude, seriedade ou fé que os tornem dignos da honraria mais sublime a que se eleva a inteligência. Destinados a eclipsar, a lançar nas trevas as poesias bárbaras de Santo Ambrósio, de São Gregório, de Prudêncio, de Sedúlio, de Fortunato, de São Bernardo, eles edificaram e consolaram a Igreja, ombreando com aqueles homens afamados; enfim, para que eles pudessem tranqüilamente repudiar seus pais, os sucessores deviam pelo menos demonstrar o mesmo espírito que animou os antepassados. Seus lábios são puros como os de Isaías, e suas almas puras são as únicas agradáveis a Deus.

Abro estas ricas coletâneas, e me impressiono, como o povo em geral, com a nobreza, a elevação, a riqueza da poesia. Sob o poder do gênio cristão, a lira de Horácio e Píndaro soa como jamais soara. Tão-logo, afirmo: bem-aventuradas as basílicas que reboam os nobres cânticos! Quero conhecer o nome do poeta sublime, a quem foi dado sentir e celebrar os mistérios do céu; informo-me e descubro que mil vozes apaixonadas, que me dizem o nome de um homem profano, destruíram a razão de meu encantamento.

Desapareceu tudo! Entoarão ao pé do altar do Deus de majestade versos de um homem superficial, de gosto profano e espirituoso, que casam tão mal com a gravidade do hábito? Criança de cabelos grisalhos, conforme dizia La Bruyère, homem de companhia agradável, sobretudo bom conviva, a memória dos tempos lhe anotou os dias de noitada na hospedaria de Rambouillet, e de como ingressou de repente para dentro do santuário – e saber que seus hinos estarão de par com os cânticos do Profeta Real, a quem a santa dor e o pungente sentimento das grandezas e misericórdias divinas inspiraram. Ignoro a pureza da fé deste homem, mas deixo-me esquecer as nuvens que por vezes obscurecem o céu; mas a caridade, origem de toda oração, ardia no fundo de seu coração? Desconheço, mas parece que ele também. Por isso dizia com razão o conde de Maistre, um dos nossos maiores, que aqueles hinos não eram orações. Admiro-lhes a pompa, a elevação, mas não há a poesia da religião do amor. As sagradas odes, riquíssimas em imagens e grandes conceitos, não têm unção, e o talento por si só não pode conferi-la. Que há de assombroso nisso? São as palavras de um homem profano que se tornaram palavras sagradas! Os versos que hoje são objeto de seu triunfo, escolho de sua pueril vaidade, amanhã se vão passar por linguagem da Igreja, por falta de algo melhor a exprimir seu pensamento! É certo que a Igreja percebera tal inconveniência, pois que conhece a quem escolheu para seus quadros.

Agora, algo ainda mais estranho: não existe nada mais caro para a Igreja que a fé, a sua vida. A ela repugna a heresia, por isso ordena fugir-lhe e evitá-la; ela sabe que cada uma daquelas palavras são sacrilégios, e tamanha é a repulsa que ela sente do que sai da boca dos revoltados, que admoesta e mesmo proíbe a seus filhos discutirem o que haveria de ortodoxo naquela doutrina.

Todavia, que outro poeta é esse, cuja voz religiosa e sublime se eleva nos templos franceses faz um século? Donde parte as entoações tão emocionantes e puras que até há pouco retumbava em nossos ouvidos? Enfim, a igreja francesa teria encontrado o canto divino por que suspira há tanto tempo?

Antes de felicitá-lo pela realização de seus sonhos, perguntemos aos códices sagrados o nome do poeta imortal, tão altamente inspirado. Nos fastos da Igreja de França, rebrilha o nome do compositor nas páginas mais ilustres. Ela entoa seu hino, tão prazenteira, mostrando com orgulho sua vida e virtudes, associando sua voz com a do homem que reconheceu como fiel. Mas que? É em vão que busco entre seus escritos um só que tenha o selo dos céus. Ele não é homem da Igreja, habita fora de seu seio. O que é mais: uma seita reclama a paternidade e o triunfo das honras que lhe prestaram, admirada que uma voz sufocada sob os anátemas pudesse agradar àqueles que os lançaram... [...]

Dizei-me, pois: sois sempre assim tão otimistas acerca da autoridade de vossas liturgias? Vede sua origem, e enfim julgai-as. Recordai-vos das repetidas correções de que foram alvo até agora, e confessai a substituição das imponentes liturgias de vossos pais, por outras sem autoridade, e cuja origem se deve esconder, para não irritar demais os olhos da fé. Não tremeis diante da possibilidade de que vossas orações sagradas exsudam o erro; não é impossível que, durante uma oração de feição ortodoxa, suba até o Altíssimo pérfidos juramentos heréticos, ou que um sectário esconda o veneno sob palavras em aparência santas. Tais considerações são tanto mais penosas, sobretudo porque a Igreja está aí, apresentando uma liturgia de doutrina certa, com a chancela divina.

Se quisermos examinar de perto a gabada utilização das Escrituras nas novas liturgias, ainda haveria muitas verdades incômodas para se comentar. Ingênua e simploriamente, desejando que conferissem o justo valor a suas exegeses de pretensa engenhosidade, afirmava outrora Collet: “Vistas fora de contexto, muitas antífonas se parecem com os mais belos vasos do mundo, mas se remetidas a suas origens, são os mais deploráveis!” Poderia dar inúmeros exemplos para atestar esta afirmação, mas devo parar aqui. Não temos por fim torturar a piedade; recordar os princípios gerais é o bastante. Digamos tão-somente que, em todas as novas liturgias, sem exceção, este aleijão é mui perceptível, e que suas exegeses estão carentes daquela autoridade que a liturgia romana nos dá, a cada página; estão elas desprovidas do sentido que se esforçam em dar para elas. Caso nos acusem de severidade, a resposta já está na ponta da língua. Antes de tudo, é preciso de ser severo em matéria tão grave, e mais, visto que se quis substituir a antiga liturgia, a liturgia universal por outra mais perfeita, não estamos nós no direito de exigir tal perfeição?

 

1830

 

Fonte: www.domgueranger.net

Tradução: Permanência

  1. 1. Atualmente, isto é verdade verificável não só em França, mas no mundo inteiro [N. da P.]

Considerações Sobre a Liturgia - I

PRIMEIRO ARTIGO

A LITURGIA, LINGUAGEM DA IGREJA, DEVE SE CARACTERIZAR PELA ANTIGÜIDADE, MARCA DISTINTIVA DA LITURGIA ROMANA.

 

Dentre os vários ramos da ciência eclesiástica abandonados hoje em dia, por infelicidade dos tempos, o estudo da liturgia é, sem dúvidas, um dos mais interessantes.

Entretanto, devido ao espírito do século, tal asserção parecerá a mais de um leitor eclesiástico gratuita e original. Mas não seria difícil fornecer as provas. O culto é o corpo da religião: por isso, a liturgia é sua expressão, sua linguagem; logo, não há conhecimento perfeito da Igreja sem o da liturgia. É vão conhecer os principais hábitos de um povo; seu gênio e pensamento só se desvendariam quando se penetrasse nos mistérios de sua linguagem.

Além das causas gerais de decadência universal, há uma causa em participar responsável pela cessação completa dos estudos litúrgicos entre nós, causa que deveria necessariamente levá-los à ruína, juntamente com a terrível comoção que ameaçara extinguir de vez o fogo sagrado em nossa infeliz pátria. Há mais de um século, a introdução de novas liturgias na Igreja de França preparava o humilhante resultado. Como estudar uma língua que se divide a cada dia numa multidão de dialetos desconhecidos entre si, e que tendem mais e mais a eliminar os derradeiros traços de semelhança com a língua mãe que já não mais os reconhece, e que poderiam ser conservados?

Sei que vou afrontar preconceitos, fazer oposição em uma matéria que parece não mais ser objeto de discussão: mas, quando se tem razão, somos sempre fortes; eu desafiaria qualquer homem sensato, qualquer teólogo a contestar meus princípios, assim como qualquer lógico a refutar minhas conseqüências. Recordarei verdades que escandalizarão as idéias preconcebidas; mas o que vai acontecer? Há-de se calar sempre, só porque se tem certeza de que não nos ouvem?

Em primeiro lugar, começarei por declarar minha total falta de hostilidade contra a instituição que, desde o elevado ponto de vista do qual vou considerá-la, por vezes me obriga a ser severo. O século passado sancionou uma obra em seu princípio temerária: apesar do risco e do inconveniente de tais inovações, pensou Roma que só poderia mostrar seu descontentamento de modo indireto e cheio de reverências. Estes pontífices, considerados ambiciosos, tinham no coração o desejo da paz e da salvação das almas, mais do que levavam a crer alguns canonistas franceses. Em vão no-los mostrariam sempre armados com suas fundas, semelhantes ao Deus que representariam: eles sabem esperar, porque desejam que ninguém pereça. Seus filhinhos compreendem esta linguagem muda que o orgulho e a revolta se esforçaram em não escutar. Não tenho por meta perturbar aqueles a quem o direito ou o costume obriga ou autoriza repudiar os livros da Igreja de Roma, para substitui-los por uma liturgia diocesana. Continuam a fazê-lo em paz, à sombra da indulgência da Sé Apostólica. Declaro também que não aspiro a perseguir aqui a liturgia de qualquer diocese em particular.

Sei que não desejo desferir ataques pessoais, mas ao se pôr em prática, sob belos nomes, princípios arriscados, é bom que os homens não se acostumem a considerá-los como artigos de fé.

Antes do mais, as considerações gerais que aqui se apresentam demonstram a importância da matéria. Partimos sempre do mesmo princípio. A liturgia é a língua da Igreja, a expressão de sua fé, dos seus anseios, de suas homenagens a Deus; logo, em primeiro lugar, um de seus traços distintivos deve ser a antigüidade. Qualquer liturgia que vimos aparecer, que não veio de nossos pais, não merece o nome de liturgia. Um povo não chega a mil de setecentos anos de existência sem possuir uma linguagem adequada a seu pensamento, sobretudo se este povo é essencialmente imutável.

Desde o começo da Igreja cristã, um dos primeiros cuidados de seus fundadores haveria de ser, e foi, a fixação dos ritos sagrados, das cerimônias exteriores, das orações do culto, enfim, da liturgia. Os mais antigos monumentos pressupõem a existência de um corpo litúrgico completo, e todavia nenhum deles assinala com clareza sua origem exata. Os fatos se perdem na noite dos tempos, em que os homens privavam amiúde com o Homem-Deus. Os primeiros discípulos cuidavam em realizar suas idéias divinas.

Quando a Igreja saiu das catacumbas, ela surgiu com liturgia que o segredo dos mistérios e a duração das perseguições lhe permitiram desenvolver. Mas logo, sob a proteção dos césares, elevaria o cristianismo, em todo lugar, imponentes basílicas; o conjunto definitivo dos ritos sagrados, até então tolhidos, vieram impressionar os olhos do paganismo vencido e se somar ao triunfo da verdade.

No Oriente, observamos bispos eminentes, luminares da Igreja, consagrar piedade, gênio e vigílias em relevantes trabalhos de liturgia. Seus grandes nomes ficaram ligados a tais obras. Recolhida a herança dos séculos por mãos discretas e fiéis, enriqueceram-na de vários acréscimos. Deste modo se formou, a partir do séc. V, esta magnífica compilação de orações, em que a unção disputa com a majestade. A Igreja grega ainda conserva cuidadosamente este espólio: os acentos emocionantes e nobres que, dia e noite, as bocas dos cismáticos elevam ao céu, reboaram, nos dias da unidade, nos templos de Constantinopla, de Antioquia e de Alexandria. Armênios, coptas, maronitas, etíopes conservam como tesouro inalienável as palavras secretas que os seus pais na fé consagraram ao culto do Eterno. Os longos ofícios são sempre os mesmos: eles permanecem como testemunho da passagem da verdadeira fé, que se evadiu daqueles territórios. Ao menos, tiremos alguma lição do respeito hereditário das Igrejas Orientais para com a antiga liturgia, e reconheçamos aí uma prova do sentimento de um cristianismo que nunca se extingue – o sentimento de repulsa por qualquer inovação, na medida em que o erro, que também é inovação, possa se insinuar.

Roma, sede inabalável da fé, também dera provas de seu zelo pelo culto divino. Desde o séc. IV, o papa São Dâmaso e seus predecessores recolheram os cantos, os ofícios sagrados que a antiga tradição romana conservou. Eram estas as palavras dos antigos pontífices, seladas em sangue, gravadas com piedade, consagradas pelo peso da autoridade suprema. Esta Igreja bem-aventurada, cujos fundamentos se espalharam à reboque do sangue de Pedro e Paulo, conforme aquilo de Tertuliano, esta Igreja primitiva limitava-se tão-somente a consultar suas gloriosas recordações para formar o corpo completo da liturgia; os recintos dos templos que Constantino construiu testemunharam, e ainda testemunham, as solenidades daquele ano cristão, cuja glória resplandecente deixa para trás as pompas, também poéticas, da Roma pagã. Às custas do próprio sangue, a Igreja emancipada adotou uma língua digna de si, língua divina, que só poderia se enriquecer, nunca perder, no correr dos séculos.

Assim, havia uma expressão para tudo, para as confissões de fé, os suspiros de esperança, as efusões do amor, as glórias dos triunfos, as necessidades das crianças, os gemidos dos pecadores. Fala a Igreja diante dos séculos: para ela, não existem vicissitudes, sua voz é sempre a mesma.  Desde o primeiro dia, soube o que dizer ao Divino Esposo. Ó vós que amastes estudar a antigüidade cristã, que sois sensíveis às admiráveis recordações, que sentis que esta é a única e divina religião, que estais em posse do passado, lede, experimentai os resquícios da antigüidade que duram até nossos dias, nos tesouros veneráveis da liturgia romana. Os maiores papas deixaram nela sua marca. Depois de São Dâmaso, São Gelásio, e mais tarde, São Gregório Magno, dispuseram de diversas partes. No séc. XI, um pontífice gloriosíssimo, dos maiores homens da Igreja, São Gregório VII consagrou venturosos recreios em trabalhos litúrgicos, conservando sempre, em sua pureza primitiva, o depósito sagrado, que a ignorância e a barbárie alteraram por imprudência. Mais tarde, curvando-se aos anelos do Concílio de Trento, ordenara São Pio V a revisão do missal e do breviário romanos, retificados mais uma vez pelas fontes mais antigas, e fixados na forma que até hoje usamos.

E ainda que nos falte a garantia da história e dos monumentos, e que o sacramentário, o antifonário, o livro responsorial de São Gregório não tenha chegado a nossos dias conformes em tudo à resumida liturgia atual, quando se depara com os responsos, com as antífonas compostas das palavras da antiga Vulgata, cuja simplicidade religiosa e apostólica é mui anterior ao século de São Jerônimo, haveria como duvidar da recuada antigüidade dos ofícios romanos,? E a divisão dos salmos, que este santo doutor traçou segundo os antigos usos, sob encomenda do papa Dâmaso, recordando-nos as vigílias dos primeiros cristãos? E a simplicidade dos ofícios, mui distante da confusão dos próprios, de que pululam os novos breviários? E o estilo misterioso, inimitável e profundo das coletas e demais fórmulas deprecatórias? E os hinos do grande bispo, na basílica ambrosiana, compostos para ocupar com ofícios santos o povo fiel sitiado por uma princesa furibunda? E os hinos dos Prudêncios, dos Sedúlios, dos Gregórios, dos Hilários, que sob a aparente simplicidade escondem a unção eloqüente dos corações cristãos? E os ritos misteriosos da Semana Santa, os impropérios da Sexta-Feira, as solenidades da noite de Páscoa, que ainda se conservam incólumes às mutilações e reconstroem de modo emocionante o dia em que o afortunado catecúmeno apreciava a demolição das barreiras do santuário, que até então se impunham? E os livros da Escritura, ordenados na seqüência que os santos doutores observavam nas homilias, lembrando nesta ordenação a magnífica série de obras-primas da eloqüência cristã – não pararíamos de falar, se quiséssemos contar as vantagens da liturgia romana relativas apenas à antigüidade.

Devo falar dos cantos sublimes que nos legaram juntamente com as admiráveis orações? Posso aqui citar o testemunho de célebres músicos franceses e estrangeiros, que exaltaram à porfia a melodia antiga e religiosa que, sem a muleta da métrica, produzia emoções vivíssimas e profundas. Poderia citar autores protestantes de gosto, em cujos corações vibrava a corda católica quando reboava o canto da Igreja Romana. Ah! Quem nunca se arrepiou mil vezes nos acentos desta música grave, que apesar da severidade anima a chama das paixões e arremessa a alma edificada numa fantasia religiosa muito mais arrebatadora que a imponente voz das grandes águas, de que nos conta a Escritura? Quem não experimentou o encanto dos trechos sublimes e originais, prenhes do gênio dos séculos, que já são passados, que não deixaram rastros?

Quem nunca se arrepiou com o cantochão do ofício dos mortos, em que a ternura e o terror se mesclam de forma admirável? Qual cristão escutou o canto pascal Haec Dies sem experimentar o sentimento vago do infinito, como se Jeová vibrasse a voz majestosa?  Quem nunca escutou, nas solenidades da Assunção e de Todos os Santos, a massa do povo percutindo as abóbadas sagradas com os acentos inspirados do Gaudeamus, e não ser transportado por eras, por épocas em que este canto ecoava na Roma subterrânea, quando o império agonizava, e a Igreja começava a trilhar seus destinos eternos.

A liturgia romana possui a principal qualidade de uma liturgia, a antigüidade. Nascida por assim dizer com a Igreja, está destinada a lhe servir de linguagem cá embaixo, até o dia em que todos os véus se rasgarem, e substituírem os cânticos da terra pelo Aleluia eterno, celebrando para sempre a união da Esposa e do Esposo.

Agora, se aplicássemos os mesmos princípios às novas liturgias que grassam na Igreja francesa, deparar-nos-íamos com um angustiante paralelo. Em meio a esta desordem singular, onde encontrar a palavra eterna da Igreja!

Vejo uma Igreja se orgulhar de um século de sujeição; outros, mais modestos, não contam mais de sessenta; alguns, ainda mais humildes, só justificam dez, quatro, e até mesmo um ano. Que posso dizer? [...] Há Igrejas - poderia citar duas, sem muito esforço - que para o ano, com o auxílio dos tipógrafos, estarão em condições de inaugurar as novas liturgias que suas hábeis mãos construíram, de cima a baixo, no silêncio do gabinete.

Ah!, lhe perguntaria eu, qual era vossa atividade antes das mudanças? Com quem rezáveis vós, há dois séculos? Com a Igreja Romana. À exceção dos santos cuja cerimônia é patrimônio particular de cada diocese, vossos ofícios não pertenciam a ela? Por que repudiastes a mãe das Igrejas? Por que recusaram a comunhão de orações? Temeis vós as suas bênçãos? Esperastes que vossos concertos a vozes separadas seriam mais agradáveis ao Eterno?

Entretanto, tal é o artifício das seitas, que se valem de seu prestígio para conseguir seus fins culpáveis e por vezes seduzir até os inimigos. Depois de um século, talvez nos permitam julgar essas mudanças. A história que nos ensina quem foram os autores, nos ensina também a apreciar as intenções. Força é lembrar dos nomes dos principais instigadores de novidades, do apoio sacrílego que os parlamentos emprestaram, das vozes que na época se levantaram contra a tendência que se imprimia àquela empresa, toda feita de vaidades. A seita jansenista tinha como principal alvo o rompimento com a antigüidade, ao mesmo tempo em que a apregoava.

Eis o segredo de seus imensos trabalhos. O passado os aborrece; por isso, deve-se romper com ele, criar tudo do nada, numa nova direção, com a finalidade de preparar os espíritos para mudanças mais radicais, quebrando os laços que uniam as Igrejas à Sé Apostólica.

Não agrada a Deus que eu difame aqui vários santos pontífices e padres virtuosos que se deixaram levar pelas aparências lisonjeiras com que coloriram intenções criminosas! Os santos padres só desejavam reflorescer o culto divino, cultivar nos novos breviários a flor da antigüidade. Gostaria de que fossem verdades mais brandas, mas não é por serem ignorados, esquecidos ou desconhecidos que os fatos se tornam menos factuais. É deveras espantoso que uma Igreja particular, depois de dezessete séculos, ouse perpetrar uma crítica tão feroz à liturgia da Igreja universal, e mais ainda, fazer para si outra totalmente nova. [...]

Que ninguém acredite todavia que a revolução pode acontecer sem grande escândalo para o povo fiel. Durante os séculos de fé, a Igreja era perseguida. Suplicaram os cristãos a seus pastores para que deixassem as orações, os cantos que herdaram, por assim dizer, junto com o cristianismo, e nos quais dormiram seus antecessores, em cujos templos reboavam aquelas entonações.

O mais poderoso dos sentimentos católicos fizera-os apreciar o justo valor destes planos de aperfeiçoamento, destes projetos de melhoria elogiados por um escritor atual e insuspeito. Depois de assinalar a época em que ousaram tocar no breviário romano pela primeira vez, acrescenta“Sob o pretexto de aperfeiçoamento, o espírito de inovação cresce dia a dia; mais alguns melhoramentos e a majestosa simplicidade dos tempos antigos desaparecerá completamente”.

Mas ao menos, dirão eles, é uma boa idéia. Eles querem uma liturgia composta inteiramente com palavras da Escritura: que haveria de mais convincente e digno para a santidade do culto divino? A idéia é boa, mas por que a Igreja não a concebera antes de vós? por que, nos séculos mais insignes, ela sempre desejou consagrar com a própria voz a louvação ao Divino Esposo? Admiradores da antigüidade, sabeis quantos séculos depõem contra vós? A idéia é boa: mas a intenção é pura? Donde vêm este entusiasmo, este ardor que leva a substituir pela Santa Escritura todo o resto? Vosso zelo já parecia suspeito à mãe das Igrejas. Ela já havia obstado, de forma solene, as traduções, o ardor na pregação da leitura dos livros santos. Em todos os lugares, reprovaram vosso odioso parentesco. Não vos admireis se tememos vossos presentes.

Além disso, de onde tirastes que não podemos dirigir a Deus orações que não estejam nas Escrituras? É certo que tendes o segredo de fazê-las dizer o que quiserdes. Contudo, não é este o espírito da Igreja. Ela também sabe rezar e celebrar seus mistérios. Em muitas ocasiões, escolhe os livros santos para interpretar seus sentimentos. Ela tem o direito, que não é vosso, de consagrar e sacralizar os seus usos. Mas freqüentemente tira de seu próprio tesouro, e suas palavras ecoam no fundo do coração de seus filhos. Estamos sempre de Escritura em punho: não recusamos os preciosos desdobramentos que a Esposa do Espírito Santo oferece nos momentos de inspiração.

Encerremos estas reflexões com uma palavra sobre a melodia dos novos ofícios. Novas palavras exigiam novos cantos. Mas era uma tarefa imensa compô-los. O espírito sectário não recuou diante de tal empreendimento, e pôs mão à obra, dando nascimento à uma multidão de passagens, de obras-primas do enfado, da nulidade e do mau gosto. Entre as dioceses mais desditosas, Paris está sem dúvida em primeiro lugar. Encarregaram o padre Labeuf, sábio compilador, de anotar o antifonário e o gradual de Paris. Depois de gastar dez anos a meter notas sob linhas, e linhas sob notas, apresentou ao clero da capital uma composição monstruosa, com passagens fatigantes para se executar e escutar. Quis Deus com isso demonstrar que há coisas que se não imitam, porque nunca devem mudar.

 

1830

 

Tradução: Permanência

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