Category: Pe. Emmanuel-André
Grande espiritual do século XIX, restaurou a fé na sua pequena paróquia do Mesnil de Saint Loup, na França, tendo fundado em seguida um mosteiro beneditino, do qual foi o primeiro abade.
Capítulo undécimo
Resposta a um leitor anônimo.
Um leitor do Bulletin, que preferiu manter-se no anonimato, nos enviou uma longa carta criticando um de nossos artigos sobre o pecado original. Destacamos dessa carta as passagens principais, confrontando-as com autoridades que nosso correspondente certamente respeita tanto quanto nós.
O sr. sustenta uma proposição sobre a qual há divergência entre autores católicos e da qual você quer fazer um dogma de fé.
Nós dissemos: as crianças mortas sem batismo estão condenadas, e citamos como prova os Concílios de Lyon e de Florença; citamos Bossuet e o Cardeal Belarmino, dizendo que essa doutrina é de fé católica e a contrária, herética. Nosso catecismo nos diz a mesma coisa: “Os efeitos do pecado original em relação à alma são: a perda da graça, a ignorância, a concupiscência ou a inclinação para o mal, e a morte eterna” (p. 82). A morte eterna, a danação, o inferno são todos a mesma coisa.
Se há divergência entre autores católicos, não é sobre esse ponto, mas sobre a extensão das penas, e especialmente da pena do fogo. Não quisemos entrar nessa questão, precisamente porque queríamos nos ater à fé, sem entrar no terreno das opiniões.
Essas crianças serão punidas pelo pecado original apenas por não serem admitidas no céu.
Não, não serão apenas privadas do ingresso no céu, mas descenderão ao inferno, onde sofrerão punições. É o que diz o texto mesmo dos Concílios de Lyon e de Florença.
...Mas isso pode se dar sem que estas crianças sejam punidas ou infelizes, como se fossem culpadas do pecado que existe nelas.
Nosso correspondente afirma que “o pecado existe nelas”, mas não parece inclinado a considerá-las como realmente culpáveis. Todavia, São Paulo nos diz: “Pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores” (Rom 5, 19). E o Concílio de Trento diz que o pecado de Adão, transfundido em seus filhos, é um pecado próprio a cada um deles: Transfusum omnibus, inest unicuique proprium (Sess. V. Canon III).
Adão afastou-se de Deus, e daí formou em sua alma uma aversão habitual... Mas em seus filhos, o pecado original transmitido é verdadeiramente uma aversão habitual, um vício moral?
Sim, exatamente: o pecado original coloca a alma do filho de Adão no mesmo estado da alma do próprio Adão; é o mesmo vício moral, a mesma aversão habitual a Deus; é o estado de pecado, é a morte da alma, como diz o Concílio de Trento. (Sessão V. Cânone 1).
O vício é a continuação do ato; como aquele que não cometeu o ato pode receber sua continuação?
Este argumento levaria a negar o próprio pecado original; mas como nosso correspondente não quer de modo algum ir tão longe, apenas assinalaremos que, se quisermos negar as penas infligidas ao pecado original, facilmente chegaremos à negação do próprio pecado original.
Que o pecado original seja uma feiúra da alma, a falta de uma graça que Deus tem o direito de reclamar, um estigma que nos priva de um dom puramente gratuito, isto resulta claramente da revelação.
O pecado original certamente é isso; porém, por mais que nosso correspondente tenha dificuldade em reconhecê-lo, ele não é só isso.
Mas que esse pecado de origem seja equivalente a um pecado atual, por meio do qual o homem se afasta de Deus, seu criador, isto não é evidente e requer provas totalmente satisfatórias.
As provas não são difíceis de encontrar. Pois:
1) São Paulo diz: “por um só homem entrou o pecado neste mundo (...) no qual todos pecaram” (Rom 5, 12); e ainda: “pelo pecado de um só, incorreram todos os homens na condenação” (Rom 5, 18).
2) O Concílio de Trento lança o anátema contra quem diga que Adão transmitiu ao gênero humano a morte e as penas do corpo, mas não o pecado, que é a morte da alma. (Sessão V, Cânone 1).
3) O catecismo nos diz que o pecado original tem por efeito a morte eterna.
Um pecado que é a morte da alma, que nos faz cair na condenação, na morte eterna, não é o equivalente a um pecado mortal pelo qual o homem se afasta de seu Criador?
Acreditamos que nosso correspondente não veja as coisas dessa forma, e tenha dificuldade em admitir que o pecado original seja um pecado em todo o rigor do termo. O Concílio de Trento, entretanto, ensina-o muito claramente (Sessão V, Cânone 5): Veram et propriam rationem peccati habet.
Nosso correspondente chama algumas vezes de inocentes as crianças mortas sem batismo:
A criança não batizada e morta na inocência… Estas almas inocentes e no entanto manchadas… Os inocentes privados do batismo…
Essas expressões são bem pouco conformes à fé, para dizer o mínimo. Os católicos só chamam de “inocentes” as crianças batizadas. Todas as outras, segundo São Paulo, são pecadoras.
Nosso correspondente, não enxergando o verdadeiro estado das almas dessas crianças, atribui-lhes a faculdade de amar a Deus: “Elas permanecem capazes de conhecê-Lo e amá-Lo, não como filhos, mas como criaturas racionais... Os homens que morreram apenas com o pecado original não podem ver a Deus, mas O amam.”
Sim, eles conhecem a Deus e sabem que o perderam, mas como seriam capazes de amá-Lo? Perderam a caridade, estão no pecado e na morte; sua vontade está ferida pelas concupiscências que os invadiram e dominaram: como poderiam se elevar a um ato de amor para com o seu Criador? Estão em desgraça no tocante a Deus, como poderiam entrar na sua amizade? Isso só é possível pela graça do Redentor.
Jesus Cristo prefere que não sejam lançados nas garras do demônio, e que gozem de alguma felicidade, segundo sua natureza.
Este pensamento leva à negação de que a criança não batizada esteja cativa de Satanás. A fé cristã não nos permite, no entanto, duvidar disso. O Concílio de Trento ensina claramente e fulmina com o anátema quem não professar que Adão, por seu pecado, caiu no cativeiro daquele que, desde então, possui o império da morte, isto é, o diabo (Sessão V, Cânone 1).
Todas as crianças não batizadas permanecem cativas de Satanás: para convencer-se, basta reler as orações do batismo citadas aqui. E ninguém pode se libertar dessa escravidão senão pelo batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Portanto, eterno reconhecimento a Nosso Senhor pela graça de termos sido batizados, pela graça de termos sido redimidos do pecado, da morte eterna e da tirania do demônio.
Capítulo décimo
O pecado original segundo as orações do batismo.
Depois de expor a doutrina católica sobre o pecado original, resta-nos enunciar esta conclusão prática: é preciso batizar as criancinhas.
É preciso fazê-lo, sob pena de danação inexorável e eterna para essas crianças; é preciso fazê-lo, sob pena de pecado gravíssimo para os pais; é preciso fazê-lo para tirar as crianças de um estado que não poderia ser mais funesto, e colocá-las felizmente no caminho da vida eterna.
Escutemos o que pensa a Santa Igreja de Deus, e procuremos seu pensamento nas orações solenes da administração mesma do santo batismo. O padre, colocando as mãos sobre a testa da criança, faz a seguinte oração:
“Deus todo-poderoso e eterno, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, olhai benignamente para este vosso servo N., que vos dignastes chamar aos rudimentos da Fé. Dissipai-lhe de vez a cegueira do coração; quebrai-lhe todos os laços com que o prendia o demônio; abri-lhe, Senhor, as portas da vossa misericórdia: para que, uma vez impregnado do sal, símbolo da sabedoria, seja preservado de toda corrupção das más paixões e, atraído pelo suave perfume da vossa Lei, com alegria de coração, vos sirva na vossa Santa Igreja, progredindo sempre de dia em dia na perfeição. Pelo mesmo Cristo, Senhor Nosso. Amém.”
Quem saberá exprimir a desventura que seria para uma criança conservar essa cegueira do coração, essa corrupção das más paixões e guardar, com o demônio, laços que a lançariam inexoravelmente no inferno junto com o próprio Satanás por toda a eternidade!
Quem saberá exprimir quão mais feliz é o estado da criança batizada. Escutemos ainda uma vez a voz da Igreja:
“Senhor, Deus dos nossos pais, fonte de toda verdade, suplicantes Vos pedimos olheis benigno para este vosso servo N., que saboreia este sal como primeiro alimento; não o deixeis por muito tempo esperar faminto o momento de ser saciado com o alimento celeste. Seja sempre de espírito fervoroso, alegre na esperança, constantemente dedicado ao vosso serviço. Conduzi-o, Senhor, às águas purificantes do renascimento espiritual, e fazei que mereça gozar, na companhia dos vossos fiéis, as eternas recompensas por Vós prometidas. Por Cristo Senhor Nosso. Amém”
A Igreja nos revela de modo ainda melhor o seu pensamento – e seu pensamento é o pensamento de Deus – nas orações do batismo dos adultos.
O padre faz vários sinais da cruz no futuro cristão. E diz:
“Eu te assinalo a fronte para que recebas a cruz de Cristo; eu te assinalo os ouvidos para ouvires os divinos preceitos; eu te assinalo os olhos para veres a glória de Deus; eu te assinalo as narinas para sentires o suave odor de Cristo; eu te assinalo a boca para pronunciares as palavras de vida; eu te assinalo o peito para creres em Deus; eu te assinalo as espáduas para receberes o jugo do seu serviço.”
As palavras do exorcismo não são menos instrutivas. Diz o padre:
“Ouvi, maldito Satanás; eu te esconjuro pelo nome do Deus eterno e de Jesus Cristo, seu Filho, nosso salvador; derrotado com tua inveja, tremendo e gemendo, vai-te! Que nada haja de comum entre ti e o servo de Deus N, que agora renuncia a ti e ao mundo para aspirar às coisas celestes e viver para a bem-aventurada imortalidade. Dá honra, pois, ao Espírito Santo que virá e, descendendo do céu superno, desfará teus embustes, purificará este coração na fonte sacra, e nele erigirá um templo e um habitáculo santo à Deus: de modo que, totalmente liberto de toda a culpa dos crimes pretéritos, o servo de Deus renda sempre graças ao Deus eterno, e bendiga o seu nome santo pelos séculos dos séculos. Amém”
“E tu não ignoras, Satanás, as penas e tormentos que te são reservados, sabes que o dia do julgamento se aproxima, dia de eterno suplício, dia semelhante a uma fornalha ardente, dia que reserva para ti e teus anjos a morte eterna. Assim, danado que és, danado que serás, dá honra ao Deus vivo e verdadeiro, dá honra a Jesus Cristo seu filho, dá honra ao Espírito Santo consolador, em nome e em virtude do qual eu te ordeno, espírito imundo que for, que saias e te afastes do servo de Deus N, a quem hoje, o mesmo Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo dignaram chamar à graça, à benção santa e, por um livre dom de Deus, à fonte batismal, para que se torne o seu templo pela água da regeneração em remissão dos pecados. Em nome de Jesus Cristo Senhor Nosso, que há de vir julgar os vivos e os mortos, e o mundo pelo fogo. Amém.
Logo, pais e mães católicos, desde o dia em que souberem que Deus, abençoando o seu casamento, lhes dará uma criança, não deixem de rezar, de rezar todos os dias, de pedir a graça do batismo para essa criaturinha que já vive, mas vive sob o jugo do maldito Satanás. Desejem vivamente, humildemente, instantemente que ela escape do mundo do demônio, da região das trevas, para entrar no reino de Deus, região de luz e paz, de esperança e imortalidade.
E quando seu filho tiver recebido o santo batismo, e tiver se tornado filho de Deus, velem sobre sua veste cândida, guardem-na sem mancha para a felicidade temporal e eterna de seu filho, pela alegria dele e sua, pela glória de Nosso Senhor Jesus Cristo: bendito seja Ele, e bendito seu santo nome, no século e na eternidade. Amém.
Capítulo nono
As crianças mortas sem batismo.
Nós vimos como o naturalismo trabalhava para renegar a fé no pecado original, e desse modo destruir todo o cristianismo. Queremos agora mostrar esse mesmo naturalismo na tarefa detestável que desempenha na questão das crianças mortas sem a graça do batismo.
Eis aqui um autor, um autor contemporâneo, que não hesita em escrever: “É evidente que essas crianças não serão nem punidas nem infelizes”. A citação é textual.
Sobre o que faremos a seguinte reflexão – que todos sem dúvida acompanharão: se essas crianças não serão nem punidas nem infelizes, é evidente que não são pecadoras; dito de outro modo, nelas não há propriamente o pecado original; isso é absoluta e totalmente contrário à fé cristã.
Eles dizem: as crianças mortas sem batismo não serão punidas. Nós dizemos: todo pecado tem de ser punido; ora, a fé nos ensina que essas crianças estão no pecado. Concluímos então que serão punidas.
Eles dizem: elas não serão infelizes. Nós dizemos: o pecado original fez com que essas crianças perdessem a graça e a amizade de Deus; ora, a fé nos ensina que o homem não saberia alcançar a felicidade sem a graça de Deus. Concluímos então que essas crianças serão infelizes.
Veremos mais adiante que essas conclusões são rigorosamente verdadeiras e pertencem à fé.
Mas eis que chegam os que imaginaram um estado intermediário entre o céu e o inferno: eles imaginaram uma felicidade que eles chamam de natural para essas pobres crianças deserdadas.
A bem dizer, não compreendemos sequer o que possa ser tal beatitude natural. No entanto, se chegarmos a admiti-la, será preciso admitir também suas conseqüências.
Se estes pobres deserdados não serão nem punidos nem infelizes, se lá onde estão gozam de uma felicidade natural, gostaríamos de saber se foram criados para essa bem-aventurança inferior, se foram destinados à pequena bem-aventurança, ou se foram criados, como nós, para verem a Deus.
Se admitirmos que eles foram criados para ver a Deus, que é a única verdadeira beatitude do homem, concluiremos então que eles não alcançaram seu fim e que, portanto, só poderão ser infelizes.
Se, ao contrário, admitirmos que eles foram criados para essa beatitude natural, que estão num estado de natureza pura, como dizia outrora uma voz eloqüente, seremos obrigados a admitir que estão fora da humanidade redimida por Nosso Senhor, donde se seguirá que Nosso Senhor não morreu por todos os homens. Essa é uma proposição de Jansênio, e não podemos sustentá-la sem incorrer na excomunhão.
Não ignoramos a objeção que se poderia tirar contra nós da doutrina de Santo Tomás. Charles Billuart, comentador autorizado de Santo Tomás, que retém tanto quanto pode da teoria do doutor angélico sobre o estado das crianças mortas sem batismo, afirma que não há questão de beatitude natural para elas. A razão que ele aduz é impressionante: essas crianças, diz o teólogo, morrendo em pecado original, morrem em um estado de aversão a Deus; por conseguinte, conclui, não poderia haver entre elas e Deus esta relação livre e amorosa que é a beatitude[1].
Ademais, é preciso destacar – e isto é capital para a questão – que Santo Tomás escreveu antes da definição da Igreja sobre o estado das crianças mortas sem batismo. Sabemos bem que ele escreveu também sobre a Concepção da Santíssima Virgem, igualmente antes da definição da Igreja.
A Igreja já se pronunciou acerca do estado das crianças mortas sem batismo? Sim, já o fez solenemente e por duas vezes: no Concílio de Lyon (1274) e no Concílio de Florença (1438).
Eis os termos do Concílio de Lyon, repetidos tais e quais pelo Concílio de Florença:
“Definimos que as almas daqueles que morrem em pecado mortal atual, ou tão-somente em pecado original, descem logo para o inferno, para aí serem, contudo, punidas com penas desiguais.”[2]
Citamos anteriormente Bossuet. Será bom ouvir o grande bispo comentar a definição de fé que acabamos de traduzir. Havia em seu tempo, na França, um racionalista famoso, e certamente um dos pais do racionalismo contemporâneo. Bossuet o refuta nos seguintes termos:
“Este grande crítico ignora a definição de dois Concílios ecumênicos, o Concílio de Lyon, sob Gregório X, e o de Florença, sobre Eugênio IV, onde as duas igrejas (a grega e a latina) reunidas decidem como sendo de fé, que as almas daqueles que morrem tanto em pecado mortal atual como apenas em pecado original, descem diretamente para o inferno, para aí serem, contudo, punidas com penas desiguais; donde o Cardeal Belarmino, e depois dele, o Pe. Pétau, concluem pela danação eterna de uns e outros, sem que seja permitido duvidar disto. Eis portanto que estão no inferno, nos suplícios, nas punições, na danação, nos tormentos perpétuos, segundo São Gregório[3]; na geena, segundo São Ávito, citado por esse mesmo teólogo; na morte eterna, diz o Papa João, citado no Direito, e depois por Belarmino, que conclui dessa passagem e de muitas outras que esta doutrina é de fé católica, e a contrária herética, condenando a falsa piedade daqueles que, para testemunhar uma afeição a essas crianças mortas, que de nada lhes serve, opõem-se às Escrituras, aos Concílios e aos Padres da Igreja. Será preciso afetar tanta astúcia quando se ignora os dogmas da fé, expressamente definidos e nos mesmos termos, por dois Concílios tão autênticos: na confissão da Igreja grega, aprovada pelo Concílio de Lyon, e no decreto de união do Concílio de Florença, pronunciado de comum acordo por gregos e latinos, com a a provação de toda a Igreja?”[4]
Assim falava Jacques Bossuet, refutando as teorias naturalistas de Richard Simon. Será preciso afetar tanta astúcia, exclamava ele, quando se ignora... O naturalismo, nos nossos dias, tem outra maneira de se fazer de astuto. Por exemplo: o autor que nos diz que as crianças mortas sem batismo não serão nem punidas nem infelizes, tinha sob seus olhos o texto dos dois Concílios que condenavam expressamente suas teorias desencontradas. Ele cita o texto, mas vejam a astúcia: onde estavam as palavras “ou tão-somente em pecado original”, ele substitui por três pontos...
Eis como alguns católicos abandonam a fé ao naturalismo, julgando, sem dúvida, que com três pontinhos são muito astutos.
Para evitar equívocos,
recomendamos fortemente a leitura da
"nota" da Permanência sobre o tema
[1] Beatitudo naturalis stare non potest cum aversione a Deo ut auctore naturæ; consistit enim beatitudo naturalis in libera et amicabili conversione ac unione cum Deo ut auctore naturæ: atqui parvuli ratione peccati originalis sunt aversi a Deo etiam ut auctore naturæ; ergo. (De effectibus peccati. Dissert. VII, art. VI.)
[2] “Illorum animas qui in actuali mortali peccato, vel solo originali decedunt, diffinimus mox in infernum descendere, poenis tamen disparibus puniendas.”
[3] Is quem salutis unda non diluit, originalis culpae supplicia non amittit. (S. Greg., Moral., Lib. IV, Præfatio) — Quos a culpa originis sacramenta non liberant, et hic ex proprio nihil egerunt, et illuc ad tormenta perveniunt... Perpetua quippe tormenta percipiunt, et qui nihil ex propria voluntate peccaverunt (Id., Lib. IX, no. 32, Ed. Ben.)
[4] Défense de la Tradition et des saints Pères, livro V, capítulo II.
Capítulo oitavo
As feridas da natureza
Para exprimir as conseqüências devastadoras do pecado original, os Padres da Igreja têm uma fórmula, aceita por Santo Tomás e repetida desde então por todas as vozes católicas: pelo pecado de Adão, o homem foi privado dos dons gratuitos e ferido nos dons naturais (Spoliatus gratuitis, et vulneratus in naturalibus).
Por dons gratuitos entende-se a graça santificante e todo o cortejo de bens sobrenaturais por meio dos quais o homem foi feito filho de Deus, herdeiro do céu, irmão dos anjos, e imortal mesmo no seu corpo. Todos esses bens foram completamente perdidos em conseqüência do pecado.
Resta a natureza; ou seja, o homem composto de corpo e alma: ora estes bens, que nos restaram depois da queda, não são mais o que eram, não são mais o que deveriam ser segundo o plano divino. Eles foram feridos, e feridos de modo grave.
Essas feridas são quatro: a ignorância, a malícia, a fraqueza e a concupiscência.
A ignorância afeta a razão, que não está mais na ordem que lhe convém em relação à verdade. A malícia afeta a vontade, que não está mais ordenada segundo o bem. A fraqueza e a concupiscência afetam igualmente a vontade e paralisam suas forças em relação ao bem árduo que ela deve procurar e em relação ao prazer que ela deve moderar e regular.
Vê-se que a natureza está muito enferma.
Ora, há hoje muitos espíritos – excelentes, de resto – que, depois de reconhecer que a natureza perdeu os dons sobrenaturais, esforçam-se para nos fazer crer que ela guarda integralmente os dons naturais. As feridas que enumeramos para eles não contam, ou contam muito pouco; são nada ou quase nada.
Um dia, chegou-nos às mãos um escrito devoto onde, a propósito da Imaculada Concepção da Santíssima Virgem, se pretende dizer o que é o pecado original. E assim o define: a perda da justiça original. Isto está bem, mas, em seguida, acrescenta: “Evitemos de ver aí uma deterioração da natureza!”
Como o Concílio de Trento assevera que pelo pecado original o homem se deteriorou segundo o corpo e segundo a alma, nos permitimos procurar o autor e perguntar-lhe como ele escapava do anátema lançado pelo Concílio. Ele nos respondeu: “Você não leu Suárez.” A resposta não nos pareceu suficiente, e insistimos. Mas o autor não tinha tempo para discutir conosco e, com palavras polidas, nos mandou passear.
Esta pequena história é a história de muita gente. Eles não querem olhar a verdade face a face; e se nos propomos a colocá-la diante de seus olhos, eles nos rejeitam.
Nós católicos não desprezamos a natureza. Distinguimos nela o que é de Deus, e bendizemos o Criador. Ao mesmo tempo, reconhecemos o que nela está ferido pelo pecado original, e suplicamos a cura a Jesus, nosso único Salvador.
Capítulo sétimo
O pecado original e a Maçonaria.
Como sempre dizemos, todo o Catolicismo se resume a duas pessoas: Adão e Jesus Cristo. Adão, por quem caímos; Jesus, por quem nos reerguemos.
Disto segue que os dois dogmas capitais de nossa fé são, de um lado, o pecado original; de outro, a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Bossuet, ao explicar o que o Apóstolo chama de “mistério da iniqüidade”, (2 Ts 2, 7) diz: “Este mistério consiste na corrupção das máximas do Evangelho e no estabelecimento do anticristianismo”[1]. No estabelecimento do anticristianismo! Bossuet foi profético no seu tempo: o estabelecimento do anticristianismo é hoje fato consumado, e seu nome é Maçonaria.
Todos sabem como a Maçonaria vê a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela acaba de proibir que se pronuncie o seu nome nas escolas que tornaram obrigatórias para os católicos[2]. Todos sabem disso. Mas não se conhece tão bem o que pensam os maçons do segundo dogma fundamental do Catolicismo. Nós o diremos, de acordo com um autor muito bem informado, o Padre Deschamps que em seu magnífico trabalho Les sociétés secrètes et la société afirma: “De todos os dogmas católicos não há outro que a maçonaria ataque com mais furor que o pecado original.”[3]
A seita anticristã sabe muito bem que ao atacar este dogma capital, ela derruba por inteiro o Catolicismo e não deixa no lugar senão o seu naturalismo.
O Protestantismo capitulou diante do anticristianismo, e não teve forças para afirmar nem a divindade de Nosso Senhor nem a realidade do pecado original. Compreendemos este recuo: quando se nega a fé em um ponto determinado, não se está mais em condição de defendê-la seriamente em nenhum outro.
A Igreja católica não conhece tais deficiências: ela está lá com sua fé antiga, seus antigos Concílios, seus definições solenes de fé, e apresenta a todas as almas a pura flama da verdade imutável.
Mas nem todos os filhos da Igreja têm a docilidade necessária em relação à sua mãe: muitos escutaram a voz que vem de fora, e que procura nos inocular o veneno do naturalismo, que com o tempo se transformará no próprio anticristianismo. Questionam então o dogma do pecado original, enquanto nós, sob o pretexto de evitar polêmicas e de lhes tornar a fé mais facilmente aceitável, diminuímos a verdade, patrimônio dos fiéis. Diminutae sunt veritates a filiis hominum (Sl 11, 2).
[1] Pensées détachées, t.VII, p. 126. Ed. Outhenin.
[2] Quando o Pe. Emmanuel-André publicou o presente opúsculo, vigorava na França a funesta III República, que fazia guerra ao catolicismo lançando-se sobretudo contra as escolas católicas. “Quero, com todas as ganas da minha alma, não apenas que se separe a Igreja do Estado, mas as escolas da Igreja”, dizia León Gambetta. E Jules Ferry, ‘pai’ da escola laica obrigatória, confessava: “Meu propósito é organizar a humanidade sem Deus e sem reis. Mas não sem patrões.” Ambos eram maçons. [N. do E.]
[3] A maçonaria possui um rito destinado a substituir o nosso batismo. É sobretudo nele que proclama sua negação do pecado original. Para nós, uma criança batizada é um filho de Deus, um anjinho. A criança que recebeu os ritos de iniciação maçônicos é chamada, no jargão das lojas, de lobinho. Comparem!
Capítulo sexto
O que resta do pecado original depois do batismo.
O pecado original é destruído, arrasado pelo batismo: nada resta no homem batizado, absolutamente nada, que fira a amizade dele com Deus. No entanto, a concupiscência ou inclinação para o pecado permanece nos batizados. Deus quis deixá-la para nos dar o mérito de lutar contra ela e vencê-la. A concupiscência não prejudica aqueles que lhe resistem pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Antes, torna-se para eles uma ocasião de mérito e um título a mais para a recompensa eterna.[1]
A concupiscência não é sequer um resto de pecado; mas, mesmo sem o ser, inclina nossa vontade em direção ao pecado, e se não lhe resistirmos com coragem, ela acaba por nos fazer perder a graça e cair na danação eterna.
Suas seduções são poderosas: ela nos bajula, ela nos faz crer que sua voz é a voz da natureza, e sob esse pretexto seduz a muitos.
Só a fé pode nos esclarecer acerca da concupiscência. Para os que não têm fé, trata-se de um enigma indecifrável. Eles se perguntam de onde viriam tantas inclinações do tipo, se não fossem naturais: sem poder descobrir sua origem, sua natureza íntima, acabam por pensar que elas são inseparáveis da natureza, que elas são a natureza mesma e, portanto, que são legítimas.
Tamanho erro acarreta conseqüências formidáveis. Pois, como quase todas as leis foram feitas para barrar a expansão dessas inclinações funestas, ao declarar que essas inclinações são legítimas, segue-se que tais leis são abusivas.
E não faltam pessoas que não recuem diante de conseqüências tão desastrosas. Para elas, o mal está na sociedade e o bem nos indivíduos: o mal está nas leis, e o bem na natureza. Tudo o que conhecemos como socialismo tem aí seu ponto de partida: e é preciso que se diga que sua razão de ser é a ignorância. Um pouco de catecismo bastaria para curar todo o socialismo do mundo.
Não pretendemos que todas as legislações sejam perfeitas: longe disso, nós pensamos que, ao contrário, todas as legislações são passíveis de aperfeiçoamento. Mas acrescentamos que o indivíduo é o pior. A cura do corpo social deve começar pelo indivíduo: e quando os indivíduos se emendarem, a correção da sociedade se dará sem dificuldade nem abalos.
Só a Igreja pode trabalhar para a emenda do indivíduo; é por isso que os Estados desejosos de paz social deveriam se aplicar a atribuir à Igreja toda liberdade de ação: daí se seguiria necessariamente um aperfeiçoamento do estado moral dos povos e todos se beneficiariam invariavelmente. Vê-se com nitidez que ao entravar a liberdade da Igreja, os Estados apenas criam dificuldades para si mesmos e preparam catástrofes, que serão tão mais certas quanto mais a ação salutar da Igreja sobre os indivíduos for impedida.
Não queremos nos alongar mais sobre tais considerações, mas não poderíamos deixar de indicá-las, pois decorrem naturalmente de nossa exposição.
Concluamos então que a noção de pecado original é uma noção não apenas salutar, mas indispensável tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. Vejamos agora em que pé estão as sociedades e os indivíduos no que diz respeito a este dogma capital do Catolicismo.
[1] Ao cair no pecado a alma de Adão ficou manchada pela culpa do seu pecado. Porém, outras consequências se seguiram: a perda dos dons preternaturais, e a ferida da natureza humana, a qual passa do estado de integridade, ao estado de natureza decaída. Ao receber o batismo, a alma tem o pecado original destruído. Mas o batismo age sobre aquela alma em particular, nada acrescentando à natureza humana, a qual continua decaída. Daí as três concupiscências que nos inclinam ao pecado. Vide cap. 8. (Nota da E.)
Capítulo quinto
O pecado original é real e propriamente um pecado.
O santo Concílio de Trento, no quinto de seus cânones relativos ao pecado original, afirma:
“Se alguém negar que, pela graça de Jesus Cristo Senhor Nosso, o Batismo confira a remissão do reato do pecado original, ou declarar ainda que não suprime tudo o que tem verdadeira e própria razão de pecado, mas que este é tão-somente resvalado ou não imputado – seja anátema!”[1]
Nessas palavras graves e solenes com que o santo Concílio reafirma a doutrina católica, devemos reconhecer a insistência com que se esforça por nos inculcar a realidade do pecado original, que se torna próprio a cada um de nós, e sua remissão plena e inteira pelo batismo.
Mas nós queremos destacar especialmente estas palavras: “tudo o que tem verdadeira e própria razão de pecado”, pelas quais o Concílio – ou melhor, o Espírito Santo, falando pelo Concílio – nos faz saber que o pecado original é real e propriamente um pecado.
Não há pois que duvidar ou hesitar, nem buscar subterfúgios. O Apóstolo diz muito claramente em sua Epístola: “Pelo pecado de um só, incorreram todos os homens na condenação” (Rom 5, 18). É preciso entender a palavra “condenação” não como metáfora, mas em seu sentido próprio e real. A criança que nasce de Adão é realmente um pecador.
A criança que nasce de uma família real nasce realmente príncipe: e essa qualidade de príncipe ele a tira de seu próprio nascimento. Do mesmo modo, o filho de Adão nasce pecador e seu pecado lhe vem de seu próprio nascimento: o pecado lhe é transfundido, assim como ao filho do rei é transfundido a nobreza, o principado, a realeza. Do mesmo modo que a nobreza, a realeza são bens hereditários em certas famílias, o pecado de Adão tornou-se hereditário em sua descendência.
Dito isto, podem-se levantar questões intermináveis e perguntar-se: como? Mas é preciso saber que em todas as coisas a última palavra é de Deus, e somente d’Ele. E é assim não somente quanto à questão do pecado original, não somente quanto a todos os dogmas da fé, mas quanto a todas as coisas, mesmo as mais naturais e comuns.
Quem então sabe como a alma se une ao corpo? É um segredo de Deus e, no entanto, o fato está diante de nossos olhos, e o aceitamos sem titubear.
Quem sabe como o pão que comemos se transforma em carne e osso, em unhas e cabelos em nosso corpo? Ninguém sabe como, e, no entanto, o fato está diante dos nossos olhos, e ninguém sequer sonha em contestá-lo, ainda que esse como nos escape.
Do mesmo modo, na questão do pecado original, nós conhecemos o fato pela revelação de Deus, mas o como nos escapa, assim como ocorre em outros casos, e nem por isso devemos hesitar em crer na palavra de Deus. E o cristão que se recusa a crer na verdade revelada porque não compreende o como das coisas, será tão pouco razoável quanto o homem que se recusasse a comer porque não vê como o pão é necessário para a conservação da vida.
[1] Eis o texto original: “Si quis per Iesu Christi Domini nostri gratiam quae in baptismate confertur reatum originalis peccati remitti negat aut etiam asserit non tolli totum id quod veram et propriam peccati rationem habet sed illud dicit tantum radi aut non imputari: anathema sit.” [N. do E.]
Capítulo quarto
Doutrina do Concílio de Trento.
Vamos agora ouvir o que a santa Igreja nos ensina sobre a doutrina do pecado original: para isso bastará traduzir a quinta sessão do Concílio de Trento. Ela se compõe de um preâmbulo, cânones e, finalmente, de uma declaração relativa à Santíssima Virgem. Vejamos de início o preâmbulo:
“Para que nossa santa fé católica, sem a qual é impossível agradar a Deus (Heb 11. 6), purgada de todo erro, conserve-se íntegra e pura em sua sinceridade, e para que o provo cristão não se deixe agitar por qualquer vento de doutrina (Ef 4, 14), pois a antiga serpente, inimiga perpétua do gênero humano, entre os muitos males que em nossos dias perturbam a Igreja de Deus, não hesitou suscitar acerca do pecado original e seu remédio tanto novas como antigas discórdias, o sacrossanto Concílio Ecumênico e Geral de Trento, legitimamente reunido no Espírito Santo, e presidido pelos mesmos três Legados da Sé Apostólica, desejando desde já reconduzir os que laboram em erro e confirmar os vacilantes, tendo seguido os testemunhos das Sagradas Escrituras, dos Santos Padres, dos mais autorizados Concílios, bem como o julgamento e o consenso da própria Igreja, estabelece, confessa e declara o que segue: (...).”[1]
Para compreender esta linguagem, é preciso se dar conta do estado da sociedade em meados do século XVI. Estava-se ainda sob a influência de um grande movimento literário, moral e religioso chamado Renascença.
A Renascença começara pelas letras. Pretendeu pôr em destaque e prestar homenagem às belas-letras e, por conseqüência, aos bons autores. Exaltava e cantava Demóstenes e Cícero, Homero e Virgílio, Platão e Sêneca, e uma multidão de outros autores.
Ao lerem esses autores, os renascentistas assimilavam suas idéias, e estas não eram católicas, mas simplesmente pagãs. O paganismo puro e simples ingressou portanto na sociedade cristã. Passou-se então a negar o pecado original. E daí à negação de tudo, visto que o pecado original de um lado e a Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo de outro é todo o cristianismo.
Quando então o Concílio diz que em seu tempo antigas discórdias sobre o pecado original eram suscitadas, referia-se a alguns heréticos que então renovavam a antiga heresia de Pelágio, a qual negava pura e simplesmente o pecado original.
A esta heresia antiga se juntavam outras novas, por obra de Lutero e Calvino. Esses inovadores pretendiam que o o pecado original subsistia mesmo depois do batismo, que o batismo nos valia apenas a não-imputação do pecado, mas não o apagava realmente.
Por onde se vê que o espírito humano se presta a todos os excessos: alguns buscavam provar que o pecado original não existia, enquanto outros sustentavam que ele subsistia mesmo depois do batismo.
Posta entre inimigos de sentimentos tão opostos e tão miseravelmente errados a respeito do pecado original e do seu remédio que é o batismo, a Igreja, pela boca do Concílio, ensina a uns e a outros, e, ao mesmo tempo, a todos os fiéis, a doutrina pura e sem mácula das divinas Escrituras, dos Santos Padres e dos Concílios mais autorizados.
Esses Concílios são aqueles realizados contra os antigos pelagianos, a saber, os Concílios de Cartago, Milevi e, sobretudo, o segundo Concílio de Orange, no qual a doutrina do pecado original foi afirmada nos termos de que se apropriará o Concílio de Trento. Podemos lê-los no primeiro de seus cânones:
“Se alguém não confessar que Adão, o primeiro homem, após ter transgredido o mandado de Deus no paraíso, perdeu imediatamente a santidade e a justiça em que fora constituído; e que pela sua prevaricação incorreu na ira e na indignação de Deus, e por isso na morte com que Deus antes lhe havia ameaçado e, com a morte, na escravidão e no jugo daquele que desde então teve o império da morte (Heb 2, 14), a saber, o demônio; e que Adão por aquela ofensa foi segundo o corpo e a alma mudado para pior – seja anátema!”[2]
Como se pode ver, o Concílio nos instrui aqui sobre o estado de Adão antes e depois da queda. Antes de sua queda, ele possuía a santidade e a justiça. Pensa-se geralmente que Deus as deu a ele desde sua criação; entretanto, como certos autores católicos ensinavam que Deus havia primeiro criado Adão segundo a natureza, depois o havia elevado à santidade e à justiça que nós chamamos de original, o santo Concílio, não desejando condená-los, se contentou em dizer que Adão foi constituído nesse estado: ele não diz criado. Com isso, o santo Concílio nos permite perceber melhor sua diferença com respeito aos dons da ordem natural: mostra-nos que a graça de Adão era verdadeiramente uma graça sobrenatural, não devida à sua natureza.
Adão caiu, e por sua própria culpa perdeu a graça, a santidade e a justiça que compunham seu mérito diante de Deus. Decaído da amizade de Deus, incorreu em sua cólera e indignação: de imortal que era pela graça, tornou-se mortal segundo a condição da sua natureza. E de servidor livre de seu Criador, tornou-se escravo de Satanás, a quem obedecera.
A queda foi horrivelmente grande: o homem inteiro se ressente dela, ele foi deteriorado por inteiro, segundo seu corpo e sua alma. Segundo o corpo, tornou-se sujeito às doenças e, finalmente, à morte. Segundo a alma, ele foi despido dos dons da graça, e de todos os bens que lhe resultavam da presença desse dom sobrenatural.
Tendo sua alma rompido o jugo tão doce de sua dependência para com Deus, submeteu-se ao estranho jugo da concupiscência: e ele, que no Paraíso era puro e feliz, quase como os anjos no Céu, ele que andava nu e não se ruborizava, assim que pecou conheceu a vergonha, e foi obrigado a cobrir-se! Deus jogou-lhe uma pele de animal, e ele escondeu sua vergonha. Ele a cobriu, mas não a eliminou. Ela permanece!
Em seguida, Adão se tornou escravo de Satanás segundo o corpo e segundo a alma, e, por conseqüência, ele tinha de viver na morada do próprio demônio, lá onde a escravidão é eterna, sob o mais perverso dos mestres, num lugar de fogo.
O segundo cânone do Concílio de Trento relativo ao pecado original foi concebido nos termos seguintes:
“Se alguém sustentar que a prevaricação de Adão prejudicou somente a ele e não à sua descendência; e que a santidade e a justiça que recebera de Deus e perdera pelo pecado, foi perdida somente para ele mas não para nós; ou que estando ele manchado pelo pecado de desobediência, transmitiu a todo gênero humano tão-somente a morte e as penas corporais, não porém o mesmo pecado, que é a morte da alma – seja anátema!"[3]
Toda a doutrina de Pelágio é aqui derrubada e fulminada com o anátema. Ele reconhecia que Adão havia pecado e sido despido da justiça original, mas pretendia que a queda de Adão fora, para sua descendência, apenas um mau exemplo, nada mais.
Os discípulos do heresiarca, confrontados por toda parte com os anátemas da Igreja, consentiram em reconhecer que o pecado de Adão prejudicara todo o gênero humano; mas, quando instados a confessar que mal nos causara o pecado de nosso primeiro pai, reconheciam que Adão nos havia transmitido as penas de seu pecado, os sofrimentos, a doença, a morte, mas não queriam reconhecer que Adão nos transmitira o seu próprio pecado, com a ignorância e a concupiscência que são, a um tempo, a conseqüência dele e o seu indício cruelmente revelador. Em uma palavra, eles reconheciam que Adão nos transmitira a morte do corpo, mas não a morte da alma ou o pecado propriamente dito.
Os antigos Concílios condenaram as doutrinas pelagianas, e o Concílio de Trento, observando que essas mesmas doutrinas ressurgiam no século XVI, condena-as de novo se apropriando dos próprios termos dos Concílios anteriores.
A razão humana não tem dificuldade em reconhecer que nós herdamos as penas incorridas por Adão, as punições inflingidas ao seu pecado: nós concebemos isso facilmente porque vemos se realizar sob nossos olhos fatos absolutamente correspondentes: uma pena infligida a um pai lança a desonra sobre seus filhos; nós vemos isso e ninguém sonha em levantar objeções a esse dado moral que, no entanto, é bastante duro, durus sermo.
Mas o que não é concebível tão facilmente é que Adão nos transmitiu não apenas as penas do pecado, mas o próprio pecado. Instruídos pela divina revelação, nós aceitamos a doutrina do pecado original e, com a garantia da palavra divina, a fé repousa nesta verdade.
Depois de conduzir a razão a se submeter à razão de Deus, a fé provoca a razão a procurar o como daquilo que crê. Segundo as palavras profundas de Santo Anselmo, a fé busca a inteligência, a fé procura compreender, fides quaerit intellectum.
Aqui o papel da razão cresce, porque, ajudada pela razão de Deus, ela se eleva acima de si mesma, e se pergunta como é possível que o pecado de Adão tenha se tornado pecado nosso. Sozinha diante dessa grande questão, a razão tem de confessar sua impotência; mas, ajudada pela fé, a razão pode avançar sem temeridade. Eis o caminho que pode fazer e como ela procede.
O Concílio de Trento vem em nosso auxílio de um modo que não poderia ser mais satisfatório, dizendo: "O pecado de Adão, sendo único em sua origem, transvasou para todos por geração e não por imitação, e é próprio a cada um”[4].
Nós nos perguntávamos como o pecado de Adão passava para cada criança, e o Santo Concílio nos responde: “Por transvasamento, pela própria geração.” Abre-se assim à razão uma via de conhecimento absolutamente nova, absolutamente sobre-humana, absolutamente divina. A geração é uma espécie de duplicação de Adão: e este último, no ato mesmo da geração, engendra à sua imagem e semelhança, segundo as palavras das Escrituras (Gn 5, 3). Adão decaído engendra decaídos, Adão pecador verte nos seus filhos tanto a sua natureza como o seu pecado.
Eis um exemplo que nos ajudará a compreender essa importante verdade: um linotipista comete um erro numa gráfica. A página montada é enviada à impressora; a impressora é posta em movimento e todos os os exemplares que nos chegam às mãos reproduzem o erro inicial.
Sob a imagem do prote (protos, primeiro), reconhecemos Adão; sob a imagem da impressão, reconhecemos a geração; e sob aquela dos exemplares, reconhecemos todos os filhos de Adão.
Único na sua origem, o erro inicial torna-se próprio a cada um dos exemplares. Por aí, compreendemos, tanto quanto nos é possível no momento, o transvasamento do pecado original.
[1] Eis o texto original: “Ut fides nostra Catholica, sine qua impossibile est placere Deo: purgatis erroribus, in sua sinceritate integra et illibata permaneat, et ne populus Christianus omni vento doctrinae circumferatur; cum Serpens ille antiquus, humani generis perpetuus hostis, inter plurima mala, quibus Ecclesia Dei his nostris temporibus perturbatur, etiam de peccato originali, ejusque remedio non solum nova; sed vetera etiam dissidia excitaverit: sacrosanta oecumenica, et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata praesentibus in ea eisdem tribus Aspostolicae Sedis Legatis, jam ad revocandos errantes, et nutantes confirmandos accedere volens, sacrarum Scripturarum, et sanctorum Patrum, ac probatissimorum Conciliorum testimonia et ipsius Ecclesiae judicium, et consensum secuta, haec de ipso peccato originali statuit, fatetur, ac declarat.” [N. do E.]
[2] Eis o texto original: “Si quis non confitetur, primum hominem Adam, cum mandatum Dei in paradiso fuisset transgressus, statim sanctitatem et justitiam, in qua constitutus fuerat, amisise, incurrisseque per offensam praevaricationis hujumodi iram, et indignationem Dei, atque ideo mortem, quam antea illi comminatus fuerat Deus: et cum morte captivitatem sub ejus potestate, qui mortis deinde habuit imperium hoc est, diaboli, totumque Adam, per illam praevaricationis offensam, secundum corpus et animam in deterius commutatum fuisse; anathema sit.” [N. do E.]
[3] Eis o texto original: “Si quis Adae praevaricationem sibi soli, et non ejus propagini asserit nocuisse, et acceptam a Deo sanctitatem, et justitiam, quam perdidit, sibi soli, et non nobis etiam eum perdidisse, aut inquinatum illum per inobedientiae peccatum, mortem et poenas corporis tantum in omne genus humanum transfudisse, non autem et peccatum, quod mors est animae: anathema sit.” [N. do E.]
[4] Eis o texto original: “Si quis hoc Adae peccatum quod origine unum est et propagatione non imitatione transfusum omnibus inest unicuique proprium [...] negat [...] anathema sit” - cânone terceiro [N. do E.]
Capítulo terceiro
O pecado e o estado de pecado; o pecado original é um veneno.
Tudo o que dissemos antes sobre o pecado original não é mais do que uma espécie de introdução à exposição da doutrina católica sobre essa grave questão. Contudo, antes de seguir, resta-nos fazer uma observação de importância capital.
Uma coisa é o pecado, outra é o estado de pecado.
O pecado, tomando a palavra em seu sentido estrito, é o ato em si pelo qual se dá a desobediência a Deus; é o homem que se separa da vontade de Deus para seguir a inspiração enganadora de sua vontade própria.
O estado de pecado é a conseqüência do ato: é o que fica na alma depois da desobediência, a saber, a perda da graça, a sujeira, a inimizade de Deus, e tudo que disso pode resultar.
O ato do pecado dura o tempo de cometer a falta: o estado de pecado dura até a remissão da falta. Adão comeu o fruto proibido, este foi o ato do pecado: quando o ato foi realizado e o pecado consumado, Adão entrou em estado de pecado.
Pelos méritos do Salvador que lhe foi prometido, e em quem ele acreditou, Adão recebeu o arrependimento e o perdão por sua enorme falta: mas se ele foi reerguido, ele o foi pessoalmente: decaída com ele, a natureza não foi reerguida senão em Nosso Senhor Jesus Cristo.
O antigo Adão nos transmitiu sua natureza, mas sua natureza caída: pois ele nos gerou, não em virtude da graça que o reergueu, mas em virtude de sua natureza que se viciara. Todos os que nascem dele, nascem da carne e do sangue, e todos necessitam renascer para que a regeneração em Jesus Cristo os purifique da sujeira inerente à geração de Adão.
Nós dissemos que os antigos rabinos chamavam o pecado original de “veneno”. É um nome bastante exato. De fato, quando um veneno é inoculado em algum ponto de nosso corpo, ele tende a contaminar o corpo todo. Do mesmo modo, quando, por malícia da velha serpente, o veneno foi inoculado em nossos primeiros pais, ele não se limitou a eles, mas se espalhou por todo o corpo do qual eles eram as cabeças, isto é, à humanidade inteira.
É pelo ato mesmo da geração que o veneno é transmitido, e se transmite e se transmitirá enquanto durar a humanidade. Há aí uma dinâmica venenosa: o homem enrubesce dela e se esconde. Fosse ele pessoalmente um santo, não faria diferença: o indivíduo não conta aqui, pois é na natureza que está a concupiscência, e na concupiscência, o veneno. E o veneno é o pecado original.
São Tomás, com sua concisão peculiar, ensina essa mesma doutrina quando diz: Libido transmittit originale peccatum in prolem: é a concupiscência que transmite o pecado original à criança. O Concílio de Trento, que citaremos mais adiante, nos ensina o mesmo.
Depois destas preliminares, nós ouviremos a grande voz da Igreja nos ensinando, com a autoridade do próprio Deus, a doutrina sobre o pecado original.
Capítulo segundo
O pecado original nos é igualmente indicado pelas misérias da natureza, as contradições que o homem encontra em si mesmo e sobretudo pela vergonha.
Os geólogos, depois de estudar atentamente o globo terrestre, constataram que ele sofreu grandes revoluções, como o atestam ainda hoje os restos de plantas, animais e mesmo de corpos humanos enterrados em grandes profundidades. O estudo do homem demonstrou igualmente que ele também sofreu uma revolução considerável; e assim como pelo estudo das camadas terrestres podemos constatar a natureza e a extensão das perturbações de nosso planeta, da mesma forma, pelo exame atento do estado de nossa humanidade, somos levados a pensar que ela não é mais o que era ao surgir das mãos do Criador: ela também teve de passar por eventos que modificaram sensivelmente sua natureza e as condições de sua existência.
Tomemos o homem em seu nascimento. Não é doloroso constatar que o rei da criação, o homem, vem ao mundo em condições realmente inferiores às dos animais? O animal assim que nasce já procura a mama de sua mãe e imediatamente sai à luta de sua conservação. O homem, ao contrário, nasce em tal estado de fraqueza e impotência que, sem o socorro de outrem, socorro que sua própria mãe, maltratada pela dor, lhe seria incapaz de dar, ele estaria inexoravelmente condenado a morrer.
Há mais: a impotência desse primeiro instante não cessará logo no primeiro dia de vida: ela se estenderá por muito tempo, certamente para muito além do seu primeiro ano de vida.
Assim é com o corpo. Quanto à alma, o homem está numa condição ainda mais miserável, e será preciso esperar alguns anos até que atinja o pleno uso da razão.
Essas considerações nos conduzem a reconhecer que o homem, superior aos animais em tantas coisas, é inferior a eles em outras tantas, e somos forçados a concluir que as coisas para ele não são mais como devem ter sido primitivamente. O homem não parece estar em seu estado primitivo e normal, ele sofreu uma queda.
Continuemos nosso exame. O homem cresce, e a partir do momento em que adquire consciência de si mesmo, eis que nele se revelam fenômenos inexplicáveis. Há no homem como que dois homens. Um aspira ao alto, outro é atraído pelo baixo. Um é o homem da razão; outro é o homem da paixão. Ele sabe o que é a verdade, mas eis que nele se revela uma inclinação para a mentira. Quem ensinou à criança a arte de mentir? Ela mente uma vez, e para defender sua mentira, precisava mentir uma segunda vez. E se lhe mentem, ela se irrita, reivindicando, como razão, o direito inquestionável de que lhe digam a verdade.
Há no homem um verdadeiro dualismo. Mesmo tendo o conhecimento do bem, e o desejando segundo as melhores tendências de sua natureza, ele sucumbe à atração do mal, embora deteste o mal.
Os próprios pagãos o sublinharam. “Eu vejo o que é bom, dizia Ovídio, eu o vejo e o aprovo. E, no entanto, eu obedeço ao mal.”
Como explicar as contradições de nossa natureza, sem reconhecer que essa pobre natureza sofreu uma grande alteração. E que ela hoje se encontra em uma via que não é senão um desvio?
Ademais, é preciso reconhecer que essa alteração, que esse desvio não é um fato do indivíduo, mas da própria natureza humana, o que é bem mais grave. Pois se fosse um fato do individuo e não da natureza, teríamos ao menos a felicidade de ver indivíduos isentos do mal comum, o que não se dá. A natureza é a mesma em todos, e em todos ela é enferma.
É preciso então ir mais longe em nossa investigação sobre o mal em nós. Para remate do triste quadro de nossas misérias, diremos que o homem traz em si um sentimento inexorável que certamente não é obra de Deus: a vergonha. A vergonha se impõe a todos, ela adere à obra de Deus, e assim como nada saberia fazer com que ela desaparecesse, não há nada que humanamente a possa explicar. Como então ela está lá? Deus não poderia dotar o homem da cruel necessidade de se enrubescer da obra de seu Criador. A vergonha não é então obra de Deus; ela adere ao homem em conseqüência da obra do homem. E aqui é preciso dizer que essa vergonha não é tão-somente do indivíduo, mas da natureza humana. Mais uma vez, é preciso que reconheçamos que não é o homem que é enfermo, mas sua natureza.
Ouçamos as palavras graves e profundamente filosóficas de Pascal:
“As grandezas e misérias do homem são tão visíveis, que é preciso necessariamente que a verdadeira religião nos ensine tanto que haja algum grande princípio de grandeza no homem como algum grande princípio de miséria. Se o homem jamais tivesse se corrompido, ele, em sua inocência, gozaria com segurança da verdade e da felicidade. E se o homem nunca tivesse sido senão corrompido, não teria nenhuma idéia nem da verdade nem da beatitude.
“O que essa avidez e essa impotência clamam, senão que outrora houve no homem uma verdadeira felicidade, da qual só lhe restam, agora, a marca e o vestígio todo vazio, que ele tenta inutilmente preencher com tudo o que o rodeia, porque esse abismo infinito só pode ser preenchido com um objeto infinito e imutável, isto é, com o próprio Deus?
"Coisa assombrosa, no entanto, que o mistério mais distanciado do nosso conhecimento, que é o da transmissão do pecado [original], seja uma coisa sem a qual não podemos ter nenhum conhecimento de nós mesmos (…) Sem esse mistério, que é o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O nó da nossa condição tira seus contornos e desdobramentos nesse abismo. De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério é inconcebível ao homem.”
(Pensamentos, cap. 15, art. 7).