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Category: Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.Conteúdo sindicalizado

Dominicano, autor de livros de teologia, filosofia e espiritualidade, foi um dos grandes espirituais do século XX.

A plenitude de graças no instante da Encarnação e depois

Garrigou Lagrange, O.P.

[Nota da Permanência: O texto da semana é a continuação do livro "A Mãe do Salvador e nossa vida interior", do dominicano Garrigou-Lagrange, um dos maiores teólogos do século XX e um grande autor espiritual. A bonita magem que escolhemos para ilustrar esse artigo é de Sano di Pietro, da escola de Siena. A tradução é de Ricardo Bellei] 

 

Neste capítulo falaremos do progresso espiritual de Maria até a Anunciação, do aumento considerável da graça que ocorreu nela no instante da Encarnação e de sua virgindade perpétua; em seguida, do aumento sucessivo da caridade em certas horas mais importantes de sua vida, sobretudo no Calvário; e finalmente da inteligência de Maria, de sua sabedoria, de suas principais virtudes e de seus carismas ou graças denominadas gratis datae, gratuitamente concedidas e em certo modo exteriores, como a profecia e o discernimento de espíritos.

 

   

A plenitude inicial da graça em Maria

 Ave, gratia plena.

(Lc, 1, 28).

 

Depois de termos visto quão sublime é Maria por seu título de Mãe de Deus, razão de todos os privilégios que lhes foram conferidos, convém considerar qual é o significado e o alcance das palavras que lhe foram ditas pelo Arcanjo Gabriel no dia da Anunciação: “Deus te salve, cheia de graça; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres1. Para compreendermos o significado dessas palavras ditas em nome de Deus, consideraremos:

1º, as diferentes plenitudes de graça;

2º, o privilégio da Imaculada Conceição;

3º, a sublimidade da primeira graça em Maria. 

 

 

  1. 1. Lc 1, 28.

A eminente dignidade da maternidade divina

 

Pe. Garrigou-Lagrange, OP

 

As duas grandes verdades que, na doutrina revelada sobre a Virgem Maria, dominam tudo como dois picos e de onde derivam todas as outras, são a Maternidade Divina e a plenitude da graça, afirmadas ambas pelo Evangelho e pelos Concílios.

Para compreender bem sua importância, será bom compará-las, inquirindo qual das duas é a primeira e da qual tudo deriva na Mariologia. O que há de mais grandioso em Maria: sua Maternidade Divina, seu título de Mãe de Deus, ou a plenitude da graça?(Continue a ler)

 

 

 

Pecados de ignorância, fraqueza e malícia

Garrigou Lagrange, O.P.

Espalha-se, em alguns lugares, a opinião de que apenas o pecado de malícia é mortal, e que os pecados de ignorância e fraqueza jamais o são. É importante recordar, acerca deste ponto, o ensinamento da teologia, tal como se encontra formulado por Santo Tomás de Aquino na sua Suma Teológica (Ia-IIae, q. 76, 77, 78).

O pecado de ignorância é o que provém de ignorância voluntária e culpável, chamada ignorância vencível. O pecado de fraqueza é o que provém de forte paixão, que diminui a liberdade e obriga a vontade a dar seu consentimento. Quanto ao pecado de malícia, é o que se comete com plena liberdade “quasi de industria”, com aplicação e frequentemente com premeditação, sem paixão, nem ignorância. Recordemos o que Santo Tomás nos ensina sobre cada um deles. (Continue a ler)

Caridade e bem-aventuranças

 

Garrigou-Lagrange, OP

 

 

Introdução

A perfeição cristã, segundo o testemunho do Evangelho e das Epístolas, consiste especialmente na caridade que nos une a Deus1. Essa virtude corresponde ao maior dos Mandamentos, que é o do amor de Deus. Também foi dito: “quem permanece na caridade, permanece em Deus, e Deus nele2. E ainda: “sobretudo, porém, tende caridade, que é o vínculo da perfeição3.

Os teólogos perguntaram-se sobre se, para alcançar a perfeição propriamente dita, não a dos iniciantes, ou a das almas em progresso, mas a que caracteriza a via unitiva, seria preciso grande caridade, ou se poderia obtê-la sem grau elevado dessa virtude.

Alguns autores4 sustentaram que não seria preciso alto grau de caridade para a perfeição propriamente dita, visto que, segundo Santo Tomás “a caridade, mesmo em grau inferior, é capaz de vencer todas as tentações”5.  (Continue a ler)

  1. 1. Cf. S. Tomás, IIa IIae, q. 184, a. 1.
  2. 2. 1Jo 4, 16.
  3. 3. Cl 3, 14.
  4. 4. Entre eles, é preciso citar Suarez, de Statu perfectionis, 1. 1, c. 4, nº. 11, 12, 20. Essa opinião invocaram alguns que não queriam admitir que a perfeição cristã requer grande caridade e os dons do Espírito Santo em grau proporcional; em outras palavras, que a contemplação infusa procedente da fé viva iluminada pelos dons está na via normal da santidade e é como que o prelúdio normal da visão beatífica.
  5. 5. Cf. III Sent., d. 31, q. 1, a. 3; IIIa q. 62, a. 6, ad 3.

Dever de reparação

Pe. Garrigou-Lagrange, OP

 

“Alter alterius onera portate”.

Levais os fardos uns dos outros

Gl 6.

 

    Tratamos recentemente do dever do reconhecimento, convém falar agora do dever de reparação. A reparação da ofensa feita a Deus é geralmente chamada em teologia de “satisfação”. Os fiéis instruídos costumam conhecer suficientemente bem a doutrina do mérito; porém, é menos conhecida a doutrina da satisfação ou reparação, que, se lembra a do mérito, dela difere, contudo. Os fiéis crêem firmemente que Jesus satisfez por nós em estrita justiça, que a Santíssima Virgem satisfez por nós de uma satisfação de conveniência; mas conhecem menos o lugar que a satisfação deve ocupar nas nossas vidas.

    Lembremos sobre esse ponto os princípios; veremos em seguida como o católico em estado de graça pode satisfazer ou reparar por si e pelo próximo. (Continue a leitura)

A obrigação de buscar a perfeição da caridade

Pe. Garrigou-Lagrange, OP

Estado e dificuldade da questão: não se está tratando da perfeição ínfima, que exclui apenas os pecados mortais, nem tão-somente da perfeição média, que exclui os mortais e os veniais plenamente deliberados, mas da perfeição propriamente dita, que exclui imperfeições deliberadas e atos imperfeitos; logo, não é meramente o convite à perfeição propriamente dita pois, quanto a isso, não há dúvida: todos homens estão convidados à perfeição propriamente dita.

A questão versa sobre a existência de uma obrigação geral de todos católicos tenderem à perfeição da caridade. Não é, contudo, uma obrigação especial, cuja violação seria um pecado especial, como no estado religioso, mas de uma obrigação geral.

A dificuldade surge quando queremos conciliar certas sentenças de Nosso Senhor que, num primeiro momento, parecem contradizer-se.

Por um lado, Cristo aconselha o adolescente rico (Mt 19, 21): “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, e dá aos pobres... e vem e segue-me”. Estas palavras – “Se queres ser perfeito” – parecem exprimir um conselho, não uma obrigação. Logo, todos os católicos não estão obrigados a buscar a perfeição; aparentemente, somente aqueles que já prometeram seguir os conselhos evangélicos estariam obrigados a buscar a perfeição 1

Por outro lado, declara Cristo a todos (Mt 5, 48): “Sede pois perfeitos, como também vosso Pai celestial é perfeito”.  (continue a ler)

  1. 1. Sobre esta dificuldade, ver Suma Teológica IIa IIae, q. 184, a. 3 ad 1.

Alegria de ser filho de Deus

Garrigou-Lagrange, O.P.

 

[Nota da Permanência] Quando Garrigou-Lagrange escreveu estas linhas sobre a alegria que é preciso conservar no meio das tribulações, a sua França, “la douce France”, havia sido derrotada e ocupada pelos nazistas. Também a nós se aplicam estas reflexões, que vemos nossa Pátria na iminência de ser saqueada por revolucionários bolivarianos e nossa Igreja invadida por modernistas.

 

 

“Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós,
e para que a vossa alegria seja completa” (Jo 15, 11)

 

As Sagradas Escrituras dizem-nos insistentemente que, nos tempos de provação, o verdadeiro católico deve tanto quanto possível confortar os aflitos, levar-lhes a paz e algo desta alegria divina que ergue os corações e lhes permite seguir viagem contra ventos e marés até o porto da salvação.

Convém, portanto, nas tristezas presentes, falar da alegria de sermos filhos de Deus e do dever de transmitir algo desta alegria aos que não a possuem.

Se, na tristeza comum, a alegria superficial é importuna, irritante, quando não exasperante, a alegria cristã, ao contrário, consola. Esta deveria ser a alegria do domingo, e o domingo a produz de fato quando, pela Missa, pela oração, torna-se verdadeiramente o dia do Senhor; ao contrário, para muitos, pela cessação do trabalho, torna-se o mais triste dos dias, porque não é santificado, porque não passa de um dia de distrações, dedicado a uma alegria puramente exterior, vazia e imbecil, da qual muitos não podem fazer parte, e que fatiga ao invés de repousar. Não sabem mais o que fazer de seu tempo, porque não o dão a Deus; eis uma prova pelo vazio ou em baixo relevo da necessidade de santificar o domingo.

Ao buscarmos tão-somente uma alegria inferior, nos privamos de outra singularmente mais preciosa.

Aprendamos com as Sagradas Escrituras e com os santos o que é a verdadeira alegria espiritual, vejamos como eles a conservaram em meio a sofrimentos, e então saberemos melhor o que fazer para transmiti-la aos demais.

Não se trata em absoluto da procura por consolações sensíveis, nem de sentimentalismo, que é a afetação de um amor que não se possui. O sentimentalismo está para a alegria espiritual da qual falamos como a bijuteria para o diamante.

 

O que é a verdadeira alegria espiritual?

Compreenderemos sua natureza e valor se a compararmos com alegrias legítimas menos elevadas. Experimentamos uma alegria sensível diante de uma bela aurora ou, na primavera, diante do resplendor da natureza. Sentimos uma alegria superior ao considerarmos que somos os filhos de um homem de bem, de uma boa mãe, ao recordarmos as verdadeiras alegrias de uma família unida, alegria de irmãos que se amam, contentes por trabalhar juntos e por viver das mesmas tradições, dos mesmos pensamentos e afetos em vista de uma ação comum, verdadeiramente fecunda. Ainda nesta ordem, a alegria de sermos franceses, em meio às tristezas atuais, e de trabalhar para reerguer nossa pátria. 

A alegria espiritual é de ordem ainda superior; é a alegria de ser filho de Deus pelo batismo, de ser amado por Ele como filho adotivo, que recebeu uma participação em sua vida íntima, e que tende a possuí-lo eternamente. É a alegria de estar na verdade, na verdade divina, de viver dela, de caminhar sob a direção da Providência de Deus, para que Ele reine cada vez mais em nós, no tempo e na eternidade.

Esta alegria espiritual não é precisamente uma virtude, mas fruto ou efeito da mais alta virtude, que é a caridade, ou o amor de Deus e das almas em Deus1.

O amor de Deus nos regozija, em primeiro lugar, porque Deus é Deus, a própria Verdade, a Sabedoria, o Bem infinito, a Bondade suprema, a própria Santidade, a perfeita Beatitude.

O amor de Deus nos regozija de Deus reinar nas almas, na nossa, na do próximo.

A caridade, enfim, nos faz possuirmos já a Deus na obscuridade da fé, pois está escrito: “quem permanece na caridade, permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16). Também o disse Nosso Senhor: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e nós viremos a ele, e faremos nele morada” (Jo 14, 23). E, no mesmo momento, Jesus nos prometeu o Espírito Santo, que efetivamente nos foi dado com a graça e a caridade no batismo, e mais ainda na confirmação. A Santíssima Trindade habita assim em toda alma em estado de graça, e ela se faz por vezes sentir como vida de nossa vida. Em certos momentos, como o diz São Paulo, “o mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito, de que somos filhos de Deus” (Rom 8, 16). Dá testemunho inspirando em nós uma afeição toda filial, que é causa de uma santa alegria e nos faz dizer: “Pai!”. Não se trata de consolação sensível, nem de sentimentalismo, mas de uma alegria verdadeiramente divina pelo seu princípio e objeto.

É tal a alegria espiritual, ao pensamento de que Deus é Deus, a Bondade mesma, que Ele reina em nós e nos justos, que se torna a vida de nossa vida, que nos chama a viver dele por toda eternidade.  Esta alegria surge do pensamento de que, exceção feita ao pecado, sob a direção da Providência, tudo vem do amor eterno.

A alegria espiritual é, de modo manifesto, fruto da caridade. Contrariamente, a tristeza desordenada e deprimente é efeito do amor desregrado de si mesmo, procede do egoísmo insatisfeito, do orgulho ferido, da vaidade ofendida. Quanto mais, numa alma, a caridade domina o egoísmo, mais desaparece esta tristeza perversa, mais a ela se substitui uma santa alegria.

Esta alegria não saberá, contudo, ser plena e perfeita como no céu, pois a caridade aqui embaixo se entristece ela mesma com o pecado que diminui o reino de Deus e conduz à perda das almas. Porém, apesar das tristezas da terra, os santos conservam, com a paz, uma desejada alegria espiritual, que transmitem aos outros, sem mesmo o perceberem.

As Sagradas Escrituras nos falam diversas vezes desta alegria espiritual. Diz Jesus: “Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e para que a vossa alegria seja completa” (Jo 15, 11). São João Evangelista exorta seus discípulos para que tenham “a plenitude da alegria”, ao pensamento de que são filhos de Deus e que estão chamados a gozar dele eternamente2. Os Salmos já diziam: “Laetamini in Domino et exsultate justi. – Justos, alegrai-vos no Senhor e exultai nele” (Sl 21, 11). São Paulo escreve aos Filipenses: “Gaudete in Domino semper, iterum dico vobis, gaudete – Alegrai-vos incessantemente no Senhor; outra vez vos digo, alegrai-vos” (Fl 4, 4).

O mesmo São Paulo chegará a ponto de dizer, “estou inundado de alegria no meio de todas as nossas tribulações” (2Cor 7, 4). Dizem os Atos dos Apóstolos de todos eles, “contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (At 5, 41).

Já se disse, como explicação destas palavras, “a alegria é o segredo gigantesco do católico”. Com efeito, não recua diante das maiores provas, quando, lembrando-se das promessas do seu batismo, diz a si mesmo: “Quero o que Deus Pai quer para mim, apenas o que quer, tudo o que quer, por mais duro que seja”. O católico conversa deste modo não consigo mesmo, mas com Deus, seu Pai e, como dizem as Escrituras, neste colóquio não há amargura: “In conversatione Dei non est amaritudo” (Sb 8, 16).

A alegria cristã é pois a de possuir a Deus e de ser por Ele possuído. Por esta alegria, o verdadeiro católico dá aos demais o desejo de converter-se. Convém que repita amiúde esta palavra das Escrituras: “Eu também te ofereci alegre todas estas coisas, na simplicidade do meu coração” (1 Pr 29, 17). A verdadeira alegria é tender para a santidade do céu, com a certeza de que Deus, que jamais pede o impossível, nos oferece graças incessantes para lá chegar.

Os santos guardam esta alegria espiritual, sem contudo senti-la sempre de modo sensível, ou sequer de modo espiritual, mas guardam o bastante para transmiti-la aos outros, mesmo nas suas provações. Por quê? Porque o Espírito Santo, pela afeição filial que nas almas inspira por si, “dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus”. Recorda-lhes também “que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom 8, 28), e para o bem dos que perseveram neste amor até o fim; tudo, mesmo as doenças, as contradições, os fracassos. Santo Agostinho acrescenta: mesmo as faltas, à condição de nos humilharmos por tê-las cometido, como o fez São Pedro após a terceira negação. Os santos entreveem cada vez mais nitidamente o bem superior pelo qual a Providência permite os males da vida presente. Este bem superior, que veremos a nu, nós o entrevemos progressivamente na medida de nossos méritos, e o merecemos cumprindo a palavra de Deus em vez de nos contentarmos em conhecê-la e admirá-la.

São Francisco de Assis experimentava uma santa alegria quando se via menosprezado ou rechaçado. Também São Domingos, quando ridicularizado e maltratado pelos hereges do Languedoc, sentia-se mais semelhante a Nosso Senhor, que aceitou as humilhações da Paixão por amor a nós. Assim também São Bento-José Labre, Santo Cura D’Ars ou seu amigo, o padre Chevrier de Lyon, São João Bosco, que guardava em todas as suas provações essa santa alegria que levava às criancinhas pobres, que não tinham nenhuma.

A irmãzinha dos pobres lhes levava esta alegria, a irmãzinha da Assunção, todos os verdadeiros servidores e servas de Deus.

A Santíssima Virgem, nosso modelo, foi chamada “consolo dos aflitos”, “causa de nossa alegria”, e o coração de Jesus é chamado “delícia dos santos”.

 

Como transmitir esta alegria aos outros?  

Primeiro, é preciso cuidar de não os sobrecarregar com nossa própria tristeza e, se estamos abatidos, não os desencorajar. Importa dominar uma certa tristeza, assim como se resiste às tentações.

Evitemos também causar-lhes uma alegria enganosa, aprovando seus erros, seus desvios, suas omissões, sua falta de julgamento ou de energia. Isto seria uma falsa caridade, uma fraqueza, que lhes daria uma alegria mentirosa.

Levemos algo desta alegria espiritual aos que não têm o pão, a saúde, a vitalidade, aos detestados, aos mesquinhos, aos que não procuram Deus; façamos com que tenham vontade de procurá-lo. Demos Deus, aos que não o têm.

Então, Jesus nos dirá no último dia, “tive fome, e destes-me de comer; tive sede, estava enfermo, estava na prisão, e fostes visitar-me... todas as vezes que vós fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”.

Demos algo desta alegria aos amargurados, lembrando esta palavra de São João da Cruz: “Lá, onde não há mais amor, semeai amor e colhereis amor”. Nas grandes trevas, uma voz nos diz: “Levanta e canta teu louvor na noite”.

Então, de nossas trevas bem suportadas, luz poderá brotar para outras almas.

O bem-aventurado Henrique Suso, no seu livro “Sobre a Sabedoria Eterna” 3, escreveu belas páginas sobre os píncaros da alegria espiritual em meio a tribulações. Servindo-nos de suas próprias palavras – ou antes, das que ele põe na boca de Nosso Senhor – podemos resumi-la assim:

“Tanto mais duro o sofrimento, tanto mais doce o ter sofrido... O sofrimento, quando bem suportado, torna o homem amável, pois o faz semelhante a mim. A alegria do sofrimento (mesmo se não sentida, mas desejada) é tesouro escondido que jamais se poderá merecer. Se alguém se ajoelhasse diante de mim por cem anos pedindo-me a felicidade de sofrer, ainda não o teria merecido. De um homem terrestre, o sofrimento (suportado por amor) faz um homem celeste. Ao que sofre, o mundo torna-se estrangeiro, de sorte que minha ternura o envolve mais estreitamente. Os amigos do século afastam-se das provações, enquanto minhas graças o cercam mais e mais. É que tomo por amigos (íntimos) os que renegaram e abandonaram o mundo completamente... O sofrimento ressoará por toda a eternidade num dulcíssimo canto, em refrãos novos que não os poderão repetir os anjos, porque não sofreram.”

Se Deus pudesse assombrar-se e admirar-se de algo, seria com alguns de seus filhos que, movidos por sua graça, chegam a ponto de carregar suas cruzes com alegria, conformando-se ao Senhor Jesus.

Isto deve nos levar a considerar de modo sobrenatural as faltas de respeito e mesmo o menosprezo a nosso respeito, se assim nos sucede4. Conviria recebê-lo com uma alegria, se não sentida, ao menos desejada, e agradecer ao Senhor a graça que se encontra escondida nas humilhações a serem suportadas. Esquecemos amiúde de agradecer a Deus pelas cruzes que nos envia; são elas, contudo, bem necessárias ao nosso progresso. Vemo-lo em algumas que nos foram tão proveitosas.  Possamos nós não desperdiçar as que virão. O mundo, infelizmente, está cheio de cruzes perdidas, que não servem para nada, como foi a do mau ladrão. A verdadeira alegria espiritual é a de tender efetivamente para a santidade do céu, pelo caminho que o Senhor escolheu para nós, por penoso que seja em alguns momentos; é a alegria de tender para esta santidade com a certeza de que Deus não nos pede jamais o impossível, que Ele nos chama à vida eterna e que nos oferece incessantemente graças para lá chegarmos.

(La vie spirituelle nº. 262, fevereiro de 1942 - tradução: Permanência)

  1. 1. Cf. S. Tomás, IIa, IIae, q. 28.
  2. 2. 1Jo 4.
  3. 3. Ia. Parte, caps. 9 e 10 (Noutras edições e traduções, cap. 19)
  4. 4. Quando São João da Cruz pedia a Nosso Senhor a recompensa “de sofrer e ser menosprezado por Ele” (no que foi prontamente ouvido), era uma graça muito grande a que desejava. Não é, com efeito, o menosprezo por si mesmo que desejava, mas a graça de suportá-lo com amor. Sem esta graça, o menosprezo, em si mesmo, não serviria em absoluto para fazê-lo crescer na caridade e glorificar a Deus.

Irmã Maria-Marta Chambon e a devoção às Santas Chagas

Pe. Garrigou-Lagrange, OP

A vida desta brava irmã conversa da Visitação de Chambéry, nascida em 1841, falecida em 1907, foi escrita em 1928 com muito zelo, precisão e piedade pelas religiosas desse convento, conforme as notas deixadas pelas superioras. Este livro, que traz nas páginas iniciais a autorização e um precioso elogio de Mons. Castellan, arcebispo de Chambéry, contém sobretudo exemplos de piedade e virtude, e apresenta uma vida profundamente marcada à semelhança de Jesus crucificado, com algumas imperfeições involuntárias, que subsistem até o fim na serva de Deus, a fim escondê-la.

Julgamos útil assinalar aqui alguns traços desta fisionomia espiritual: as graças dos primeiros anos; aquilo que parece bem ser sua missão especial: fazer recordar ao mundo a devoção às santas chagas do Salvador; suas virtudes cristãs, particularmente, a mortificação, a humildade, a obediência, a simplicidade e as virtudes teologais. Há nesta vida uma grande lição para os nossos tempos.

 

Primeiros anos e vocação

Françoise Chambon nasceu em Croix-Rouge, pequenina aldeia verdejante situada perto de Chambéry, em 6 de março de 1841. Neste mesmo dia, tornou-se ela filha de Deus pelo santo batismo. Pobreza extrema, mesmo miséria, reinava no lar onde sua mãe lhe deu à luz, semelhança notável com a penúria de Belém. Destinada a seguir o divino Mestre em suas humilhações, esta criança privilegiada reproduzia-lhe os traços desde a aurora de sua vida. Pequenina, o pensamento de Deus lhe absorve, lhe invade, ao ponto de deixar fugir a única cabra confiada aos seus cuidados. Seus pais, honestos, piedosos e trabalhadores, transmitiram aos seus filhos os sentimentos de fé profunda, o espírito de dever, o amor do trabalho. Seu pai, homem simples e reto, trabalhador rude, dedicava-se à agricultura ou trabalhava na pedreira das proximidades. Pelo trabalho, sua família atingiu certo bem estar material.

Sua mãe tinha gosto em levar a pequena primogênita às cerimônias da Via Sacra. Uma tia estimulava igualmente seu pendor pela oração. Numa Sexta-feira Santa, levou-a à adoração da Cruz. Françoise tinha oito ou nove anos. Solicitada pela tia, e apesar do grande cansaço, diz os cinco Pater com os braços em cruz. Neste momento, Nosso Senhor aparece-lhe pela primeira vez, crucificado, a carne em pedaços, coberto de sangue. Esta visão causou-lhe grande impressão e acendeu na sua alma ardente caridade. Comungar tornou-se, a partir de então, seu maior desejo. Logo aprende oralmente seu catecismo, pois jamais soube ler nem escrever. Foram a estas poucas noções elementares que se restringiu toda sua instrução. Françoise, possuída do amor de Jesus, sente nascer nela a necessidade de mortificar-se...o amor quer comunicar-se! “Mãe, roga ela, dá-me a sopa antes de pôr-lhe manteiga” (p. 11). De noite, quando todos repousam, ela levanta-se para rezar longo tempo, joelhos sobre a terra nua.

Os sacrifícios preparam-na para sua primeira comunhão, que foi para ela um acontecimento decisivo. “Ao comungar, dizia ela, foi o menino Jesus que vi e recebi... Oh! Como fiquei feliz!... Ele me disse que sempre que eu comungasse seria assim... Era o céu! Tem-se o paraíso no coração”(pp 12-13).

Aquele que se regozija com os humildes manifestar-se-á a esta alma predestinada, quer carregando sua cruz, quer sob a forma de uma adorável criança. Ele mesmo se incumbirá da direção de sua vida interior, e purificará, instruí-la-á e imprimirá nela os traços de sua Infância e Paixão.

A Paixão do Salvador é o grande motivo de Françoise. Ela só pensa em Jesus, quer “ocupar-se somente dele, viver como os anjos... não considerar mais as coisas do mundo...” (p. 15).

Não demora a aspirar à vida religiosa. Sua saúde, de aparência pouco robusta, foi um obstáculo a sua admissão ao Carmelo. Encaminha-se à Visitação de Chambéry, onde ingressa no ano de 1862. Françoise tinha vinte e um anos. Era aí que Deus a queria, entre as filhas da Visitação, cuja vocação é a de reproduzir a vida escondida de Nosso Senhor, adorá-lo e imitar a humildade do Verbo Encarnado. “Erigidas no Monte Calvário, devem crucificar-se com Nosso Senhor” (Constituição XLIV). Veremos a que ponto Nosso Senhor realiza este programa nessa alma de elite.

A nova postulante foi inicialmente admitida entre as moças do serviço de pensionato. Foi aí, na prática dos mais humildes trabalhos, um pouco à margem da comunidade, que a veremos levar uma vida de sofrimento e apostolado. Sua tomada de hábito ocorreu no dia 29 de abril de 1863, quando recebeu o nome de Irmã Maria-Marta. O ano seguinte foi o da sua profissão.

É preciso reconhecer que a Irmã Maria-Marta não possuía as graças da natureza, os charmes do espírito, que atraem a simpatia e favorecem as relações. De caráter rude e pouco refinado, temperamento vivo, vontade tenaz e pensamento limitado, suas características exteriores pouco amáveis tornavam a pobre irmã, por vezes, fatigante. Apesar dos esforços que fazia, suas imperfeições subsistiram até o fim de sua vida: Nosso Senhor servia-se delas como de um meio para mantê-la na obscuridade. Queixava-se delas ao divino Mestre: “Com todas as vossas graças, não me tirastes todos os meus defeitos” – “Tuas imperfeições, respondia-lhe, são a grande prova de que vem de Deus aquilo que se passa em ti. Jamais as tirarei; são o manto que esconde meus dons. Tens desejo de se ocultar? Muito mais o tenho eu” (p. 30). Contudo, como soube modelar essa alma a seu gosto, cultivá-la em sua tão simples inteligência, ocupando-a com as verdades eternas, encher esse coração de desejo do divino, de sede de sacrifício, de amor pelas almas!

 

O tesouro das Santas Chagas

Nosso Senhor fê-la conhecer os tesouros infinitos guardados nas suas Chagas, e instava-a a oferecê-los sem cessar a Deus Pai pelas necessidades da Igreja e de sua comunidade, para a conversão dos pecadores e para retirar almas do purgatório. “Com minhas Chagas, disse-lhe, tens todas as riquezas do céu para distribuir na terra”. “Deves fazer valer as riquezas de minhas santas Chagas”. “Tua riqueza é minha santa Paixão” (pp. 54-55).

Nosso Senhor queixa-se do esquecimento por parte das almas de suas sagradas feridas; elas não sabem colher-lhes os frutos, e chegam a menosprezá-las. E seu amor misericordioso elegeu uma pobre religiosa, Irmã Maria-Marta, para fazer lembrar as almas da devoção às suas Chagas. Não é ela particularmente conveniente nesses tempos tão atribulados? Não é chegado o momento de espalhar nesse pobre e confuso mundo os méritos infinitos do sangue redentor?

“Eu te escolhi, diz a Irmã Maria-Marta, para fazer despertar a devoção à minha santa Paixão no tempo infeliz em que vives” (p. 61). Quantas almas meditam na Paixão de Cristo? Quão pouco são os que estimam a Cruz, ou, se a contemplam, querem carregá-la! No entanto, é ela a verdadeira escola de amor, escola austera na qual Nosso Senhor formará sua fiel discípula.

Eu te escolhi, diz ainda Jesus, para fazer valer os méritos de minha santa Paixão para todos; mas quero que tu mantenhas-te escondida. A mim caberá mais tarde de dar a conhecer que é por este meio que o mundo se salvará – e pelas mãos de minha Mãe Imaculada” (p. 61). “Minha filha, o mundo será mais ou menos atribulado conforme tu cumpras teu dever. Tu és escolhida para satisfazer minha justiça” (p. 61)

Mostrando-lhe suas Chagas: “Não desvies os olhos de cima deste livro e aprenderás mais que os grandes sábios. A oração às santas Chagas compreende tudo” (p. 61).

Segundo os testemunhos recolhidos de sua vida, Nosso Senhor fez com que ela participasse da sua crucifixão, imprimiu-lhe na carne os sagrados estigmas, alimentou-a unicamente com a Eucaristia por mais de quatro anos, enquanto seu amor a crucificava, na alma e no corpo, associando-a a sua obra redentora. Veremos como, por sua vez, Irmã Maria-Marta responde ao apelo do Mestre com todo o fervor e generosidade do seu amor.

 

Via Crucis

Bem parece que esta alma eleita, transparente como o cristal, não teria tanta necessidade de purificação para si mesma, mas as provações serão proporcionadas à sua missão apostólica e reparadora.

O divino Mestre convida-a a passar as noites estendida sobre o assoalho da sua cela. Tendo obtido de sua superiora permissão para tanto, que lhe fora inicialmente negada, dorme sobre a terra nua, e isto ao longo dos anos. Nosso Senhor vai além: é um rude cilício que ela deve usar noite e dia, que lhe causa muito sofrimento. A pedido e conforme as indicações do Mestre, faz uma coroa de espinhos muito pontiagudos e usa-a de noite. Doravante, carregada de vivas dores, não tem mais onde repousar a cabeça. Uma noite, no fim das forças, a esposa do Crucificado queixa-se ao seu Salvador. “Minha filha, persevere com mais força”, diz-lhe. Irmã Maria-Marta obedece corajosamente. Desta vez, Aquele que não se deixa vencer em generosidade, contenta-se com um simples aquiescer: e ela já não sente dor nenhuma. O dia em que Nosso Senhor disser-lhe: “Tua coroa não te faz mais sofrer o bastante” (p. 193), ela a trocará por um cinturão com pontas de ferro. Ei-la, estendida sobre o assoalho, coroada de espinhos, os braços em cruz, viva imagem do divino Crucificado. Nosso Senhor uniu desse modo a Irmã Maria-Marta à sua Paixão, que não pode fazer mais do que como Ele, com Ele. Seu coração abrasa-se de amor. Não realiza em si mesma o desejo do Salvador? “Gostaria de ver todas as minhas esposas como crucifixos!” (p. 76). Contudo, em certos momentos, a natureza se desespera; a pobre religiosa sente a tentação de abandonar essa intolerável coroa. Nosso Senhor aparece-lhe então em sofrimentos atrozes, a fronte traspassada de espinhos. “Minha filha, não abandone a minha coroa”, reprova-lhe amorosamente o Salvador (p. 194). Confusa, Irmã Maria-Marta retoma-a; cura-se de toda a recaída. Esposa, deve compartilhar a vida de seu divino Esposo, vida de sofrimentos e imolações; deve morrer a si mesma para viver somente para Ele.

“Elege em tudo e por onde for o que mais mortificar-te”, diz-lhe Jesus (p. 190). Sempre dócil, esta alma heróica escolhia, em tudo, o menos agradável, o mais penoso.

Nosso Senhor assedia a Irmã Maria-Marta com exigências, convida-a a sacrificar seu sono para velar perante o Santo Sacramento. Exausta, vemo-la solicitar um pouco de repouso aos seus superiores, mas eles, conhecendo o desejo formal de Nosso Senhor, conduzem-na a seu posto de oração, à tribuna.

Nosso Senhor aparece-lhe um dia em seu estado de crucificado, embebido em vinagre e fel. Irmã Maria-Marta afligiu-se tanto que jamais pôde esquecer. “É preciso, dizia o Mestre, que me mates a sede com tua mortificação” (p. 191). Contudo, a brava religiosa só tinha pensamentos para Jesus, desejava salvar almas para Ele. Apesar das suas vigílias, dos sofrimentos contínuos, permanecia fiel a todos os seus deveres, a ponto das superioras julgarem que fazia o trabalho de duas pessoas. Deus era toda a sua força. A esta mortificação exterior, juntava a mortificação de uma minuciosa fidelidade à Regra: sempre modesta, silenciosa, recolhida, percebia-se que estava ela mergulhada em profunda contemplação.

 

“Ele é tudo”

Nosso Senhor deliciava-se com esta alma límpida: “Tu não conheces mais o mal do que a criancinha antes de chegar à idade da razão”, dizia-lhe (p. 206). Aquele que se compraz com os lírios conservou este coração puro, sem o menor conhecimento do mundo. Ela podia dizer a uma de suas companheiras: “Ah, sim! Ele é todo amor, o bom Deus! Quando era pequenina, já me fazia compreender. Ele me deu tanto! Do mundo, não conheço nada, só conheço a Ele. Ah! eu o amo tanto!” (p. 209).

Todo seu pensamento era para Cristo. Por Ele, evitava toda reflexão inútil. Por ele, guardava seu coração desapegado. Certo dia, Jesus repreendeu-a severamente por procurar uma pequena satisfação do coração: “Ser religiosa, minha filha, significa ter banido de seu coração todo o criado... significa ver Jesus em tudo, seu Esposo, significa procurá-lo unicamente...Teu objetivo tem de ser o de estar face a face comigo” (pp. 210-211). A uma das irmãs que lhe indagava a razão das predileções divinas, respondeu: “Ah, minha irmã! eu sou ignorante, tenho um coração simples, sem estofo... tenho, portanto, um coração desapegado: Ele é tudo! Não busco nada... nada... não quero nada, não preciso de nada, não desejo nada, meu coração é livre” (pp. 209-210).

Puro, livre, o coração da Irmã Maria-Marta pertencia somente a Deus, seu pensamento ocupava-se apenas de seu objeto de amor. Semelhante a chama pura que sobe sempre, a alma desta esposa de Cristo eleva-se, degrau por degrau, rumo à perfeição do amor.

 

Combates

Nosso Senhor ensinara à Irmã Maria-Marta a fórmula para oferecer as santas Chagas; mas fazer com que a comunidade a adotasse não foi coisa fácil para as superioras. Descobre-se a origem destas invocações. O zelo da regra faz com que todas se alarmem. Não se podia tolerar que uma jovem noviça conversa se impusesse de tal modo. Quantos sofrimentos, vexações para Irmã Maria-Marta e suas devotadas superioras! Ela não demonstrava senão paciência, humildade, mansidão. Nosso Senhor encorajava, tranquilizava-a: “Maiores os obstáculos e dificuldades, mais abundantes as minhas graças” (p. 92). Nosso Senhor amava muito esta comunidade de Chambéry, apesar das críticas levantadas pela pretensa inovação. Críticas compreensíveis, diga-se. As religiosas da Visitação tinham suas Regras e Constituições como um legado sagrado de seus santos Fundadores. “Não lhes é permitido absolutamente, sob qualquer pretexto que for, incumbir-se de orações outras das que estão aqui assinaladas” (Constituição XVIII). Não se poderia ir contra isso. Deus permite, pois, essas contradições para lançar à luz do dia a virtude de sua privilegiada e aumentar seus méritos.

Uma vida tão extraordinária faz-nos compreender igualmente a atitude reservada dos superiores, e os defeitos que se verificavam sempre na humilde noviça conversa não deixam de espantar. Daí os murmúrios, recriminações. Irmã Maria-Marta sofria muito. Sustentada pelo dom da força, suportava tudo em silêncio: jamais uma alusão, uma queixa, e isso por quarenta anos! Mas quão mais dolorosa a provação que lhe veio de um superior mal informado por relatos imprudentes de algumas religiosas. O golpe foi duro. Entre outros, a comunhão quotidiana foi negada à Irmã Maria-Marta. Humildemente, ela se submete às ordens recebidas.

 

O Selo de Deus

Recordava-se ela da palavra de seu Mestre: “A vós (religiosas) só perguntarei uma coisa: o quanto obedeceram” (p. 204). A exemplo daquele que foi obediente até a morte, Irmã Maria-Marta conforma-se em tudo heroicamente à vontade divina, sancionada pela obediênca. Sua perfeita docilidade foi notável. Sacrificou sua vontade inteiramente às exigências de Nosso Senhor. Mestre absoluto, podia exercer sobre ela todos seus direitos. A Santíssima Virgem diz-lhe um dia: “Não quero que faças ato algum, por melhor que te pareça, fora desta obediência” (p. 110).

Se suas superioras recusam-se a conceder o que lhes pedia, a humilde Irmã inclinava-se sem insistir. “A obediência, para ela, é tudo” (p. 45), afirma sua superiora. Nunca uma réplica, nunca uma discussão diante dos mais duros sacrifícios. Somente esta palavra, obediência, poderia tirar-lhe de suas longas contemplações. É o sentimento unânime de seus confessores: “Ela seguia sempre literalmente as opiniões que lhe eram dadas” (p. 218). À luz das instruções divinas, Irmã Maria-Marta aprendera a pronta e simples obediência. Um dia, doente e acamada, sua superiora lhe diz: “Amanhã estarás boa” (p. 216). A dócil menina tomou o encorajamento por uma ordem. Nosso Senhor, contente com esta fé tão simples, curou-a no mesmo instante. Alimentou-se e retornou, no dia seguinte, a suas ocupações.

Quantas vezes as superioras recorreram à sua intercessão diante de Nosso Senhor! O vinho se avinagrava nos tonéis, as batatas apodreciam no porão, por obediência Irmã Maria-Marta incumbia-se de buscar a solução. Fazendo o sinal da cruz, ela invocava a Santíssima Trindade, as santas Chagas e tudo se restaurava: o vinho tornava-se bom, o bolor sobre as batatas secava. O Senhor atendia a todos seus desejos.

E era nas coisas espirituais, assim como com nas materiais; as superioras sempre experimentavam a eficácia das suas orações. Ela tinha o culto da autoridade – nela via Deus. Nosso Senhor lhe havia frequentemente repetido: “Minha filha, em tua superiora estou eu” (p. 215).

A abertura de coração, a confiança para com sua superiora, são traços distintivos de uma filha da Visitação. Para Irmã Maria-Marta Chambon, assaltada por dúvidas e temores, a palavra de sua superiora era infalível e sobremaneira eficaz. O demônio tenta-a a esse respeito; persuadindo-a de que era uma cruz para suas superioras, e por isso começa a evitá-las. Irmã Maria-Marta chega a experimentar repugnância extrema por sua superiora; não ousa mais aproximar-se e queixava-se disso a Nosso Senhor. “Se te afastares de tua superiora, errarás e perderás a verdadeira luz” (p. 217).

Amava muito sua regra, suas constituições. O temor de afastar-se delas por suas austeridades causava-lhe grande sofrimento. O santo Fundador da Visitação quis, com efeito, que o espírito de sacrifício interior e de perfeito abandono à vontade de Deus substituísse jejuns e outras mortificações exteriores do tipo, salvo em casos muito raros, desejados particularmente por Deus. São Francisco de Sales veio reconfortar sua estimada filha: “Segue o caminho que Jesus te traçou, esta é a Regra” (p. 85).

 

“Mestre, eu sou vossa pobre”

Irmã Maria-Marta não escreveu nada, não manteve conversações sábias, mas soube humilhar-se. Nosso Senhor pergunta-lhe um dia: “Minha filha, queres ser crucificada ou antes ser glorificada?” – “Bom Mestre, mais desejo ser crucificada”, responde, com ímpeto de coração (p. 76). Não busca a sua glória, mas o desprezo e a cruz. Pequenina, penetrada de sua insignificância, de sua indignidade, lançava-se no abismo do seu nada, querendo desaparecer. Viveu segundo a palavra de sua santa Fundadora: “O principal cuidado da alma deve ser o de humilhar-se”. Sua grande preocupação é sempre o temor de ser notada: vida escondida, humildade, esta é sua marca característica. Ademais, Nosso Senhor inclinava-a a isto. Ele humilhava-a severamente, repreendia as menores faltas: “Tu não serás uma verdadeira esposa se não amares a humilhação”. (p. 174)

“... A fim de te preparares a receber minhas graças, precisarás te aniquilar muito, pois só tenho olhos para o coração humilde!” (p. 174). Certo dia, extenuada de fadigas, após uma noite de sofrimentos, Irmã Maria-Marta para na porta do coro: “Bom Mestre, eu sou vossa pobre, dai-me esmolas, dai-me forças”, suplicava (p. 175). A humilde irmã não falava dos favores divinos que recebia senão com extrema repugnância. Tanto mais o Senhor cumulava-a de dons, tanto mais se apequenava. Mostrava-se ela ávida de correções, sempre a primeira a humilhar-se, a reconhecer e reparar seus erros, pois seu exterior guardara suas asperezas; daí os desencontros, os pequenos tropeços de sua natureza, tantas ocasiões de humilhações, de méritos. Por outro lado, as superioras não a poupavam. Irmã Maria-Marta, ao desprezar profundamente a si mesma, compreendia todo o benefício que daí tirava para sua alma e alegrava-se da glória que rendia a Deus. 

O Espírito Santo, pela iluminação dos dons de ciência e de inteligência, esclarecia-a mais e mais. Então, sentia-se como que esmagada sob o peso da grandeza divina e de sua própria miséria, sob a visão cada vez mais profunda de seus defeitos.

“Ó meu Jesus, dizia a Irmã, espero tudo de Vós somente, pois não sou senão miséria” (p. 171).

A mesma luz faz descobrir manchas nas nossas melhores ações. “Somos cheios de imperfeições, dizia ela, não há, na verdade, nada de bom em nós. – Quando nos vemos diante de Deus, não somos mais que pecado, miséria... mesmo aquilo que julgamos fazer bem, mesmo as ações mais santas, tudo é corrompido por nosso amor próprio...” (p. 186). Para retirar-lhe todo o amor próprio, Nosso Senhor mostrava-lhe por vezes, como num quadro, as qualidades bem superiores de suas irmãs, depois, humilhando-a: “Ser humilhada e tratada como mereces, eis o único desejo que deves ter” (p. 174), “Meu coração só age no selo da humildade” (p. 175). Um dia, lavando a louça, Irmã Maria-Marta viu-se de repente rodeada das Visitandinas do céu e de uma falange de santos. Cheia de alegria, falou-lhes: “Quereis transmitir uma palavra a Nosso Senhor? Dizei-lhe que sou... pecadora” (p. 175). Consciente de sua própria fraqueza, confiava totalmente no Salvador, esperando tudo dele pelos méritos infinitos de suas santas Chagas. Assim também, durante uma conversa com Nosso Senhor, Irmã Maria-Marta viu-se transportada ao céu e os santos, colocando-a num lugar de honra entre eles, cantavam em coro: “O menor torna-se o maior” (p. 188). Deus exalta os humildes!

 

Vida Teologal

Irmã Maria-Marta, enquanto imitava Jesus crucificado, trilhava a via da infância espiritual, tão propícia ao progresso e ao perfeito desenvolvimento das virtudes teologais. Com a simplicidade da criança, ela crê em Deus, espera nele e ama-o de todo seu coração.

Este espírito de fé espontânea inspira todos seus atos, todas as circunstâncias da sua vida: doenças, contradições, provações de todo gênero. Vê Deus em todas as coisas e não desperdiça parcela alguma da cruz.

A santa Missa, para ela, é a renovação do calvário. Irmã Maria-Marta vive do drama que se desenrola no altar, une-se à divina Vítima que recebe na santa comunhão com um fervor, com um amor cada vez maior. Deus faz com que ela viva dos mistérios da Santíssima Trindade, da Redenção, da Eucaristia. Ela vai o mais longe. Imersa em contemplação, é-lhe penoso voltar-se às coisas da terra. Contudo, chega o dia em que o divino sol dos espíritos se esconde, se obscurece. Desamparada, Irmã Maria-Marta sofre, busca seu Senhor e seu Deus. Estes abandonos torturam-na. Jesus, enfim, retorna: “purifiquei-te inteira ao abandonar-te” (p. 266). Outras vezes, após dias de sofrimento inauditos, Nosso Senhor, tendo-a unido a sua agonia e a seu abandono na cruz, diz-lhe: “Minha filha, chorei no jardim das Oliveiras e sobre a cruz em meu grande abandono” (p. 267).

Frequentemente, recebe rudes assaltos do espírito das trevas. Apresentando-se certo dia cinco vezes a ela sob uma forma corporal, Satanás diz-lhe: “Não há Deus!... De que servem tuas orações, não há Deus”. Irmã Maria-Marta responde-lhe: “Creio que há um Deus e que Ele é meu Esposo! Ele é meu Esposo! Meu alimento...” (p. 269). Ditas estas palavras, o demônio some numa fumaça. Perturbava-lhe também de mil maneiras com sugestões contra a autoridade, contra a humildade, contra a eficácia da oração, sempre tentando desencorajá-la, desviá-la de seu caminho. Mas esta humilde religiosa mantém-se firme no meio das trevas e lutas; fiel à sua missão, orava sem cessar com espírito de fé cada vez maior. Sua oração era ouvida, como demonstram-no as muitas conversões alcançadas.

“A terra nada é, minha filha, dizia Jesus a sua esposa, a terra inteira é um nada... olha para o céu! O céu é o único digno de teus desejos! Lembra-te da tua morada e não te esqueças de que pertences à grande família do céu...” (p. 292). Irmã Maria-Marta deseja sobretudo partir para ver a Deus. O inimigo de todo o bem aproveita-se para procurar desviá-la do único objeto de sua esperança. “O céu não é para ti”, diz-lhe (p. 265). A serva de Deus tem sua réplica, tão pronta como ingênua. Lança mão de mil astúcias para confundi-la: “bruxa hipócrita! enganas aos demais e és enganada...” (p. 264). Debocha de sua prática de oferecer as santas Chagas, chega até ao ponto de agredi-la. Irmã Maria-Marta sofre tormentos horríveis, julga ser joguete de ilusões. Torturada em sua alma e em seu corpo, embora sempre valente, repete com confiança invencível as invocações às santas Chagas. Tudo espera pelos méritos infinitos de seu Salvador. Fixando o olhar em Deus somente, abandona-se nos seus braços como uma criança, sem deixar de cumprir fielmente a missão que o Senhor lhe confiara. Como o Mestre não haveria de responder a tanta generosidade? Conduzindo-a ao seu Coração, sua doce voz lhe diz: “Minha bem-amada, estarás aqui agora e na eternidade” (p. 266)

Irmã Maria-Marta compreendera esta palavra de seu adorado Mestre: “Minha filha, ama-me acima de tudo, por mim mesmo” (p. 71). Com grande generosidade, respondia a este amor infinito que a atraía cada vez mais fortemente.

“Ensinar-te-ei a amar-me, dizia Jesus, pois não sabes como fazê-lo: a ciência do amor é dada à alma que considera o divino Crucificado e lhe fala, do coração ao coração” (p. 231). Com tocante bondade, ensina-a a rezar: “Descobre meu segredo de amor a alma que se une e entretém-se comigo no fundo se seu coração” (p. 231). “Minha união contigo é teu único bem: aqui é o teu progresso...” (p. 233). Toda sua vida foi um martírio de amor. Jesus crucificado possuíra seu coração. Podia Ele dizer-lhe: “Modelei teu coração para mim e segundo minha vontade. Tirei toda a consideração pelas criaturas... Coloquei nele a simplicidade da criança” (p. 168). “És a bem-amada de meu coração. Doravante, só amarás e respiraras pelo meu coração” (p. 72). Inteiramente livre, isenta de todo entrave humano, consumida pelo amor que a transforma, experimenta cada vez mais a fome de Deus: “Beati qui esuriunt et sitiunt justitiam”.

O chamado torna-se mais insistente: “Filhinha, suba o calvário comigo” “Quero-te vítima de pé” (p. 234) “Também tu, carrega os pecados dos homens” (p. 271). O amor busca a semelhança, e a união com o Salvador só se realiza na cruz. O amor transformante realizou sua obra. Marcada à imagem do Cristo, associada à sua missão redentora, a doce vítima segue, passo a passo, as pegadas de seu Mestre. Como Ele, oferece-se pelos pecadores, roga por eles, vive suas lutas, experimenta, nela mesma, suas dores e angústias. Certo dia, dá à sua superiora o nome do doente da paróquia que tantos sofrimentos lhe custava. Após sua morte, julgou ouvir dele as seguintes palavras:  “Foi por mim que tanto sofrestes. O demônio trabalhava pela perda da minha alma. Devo-te minha salvação: meu lugar era o inferno e, se estou no céu, é pelos méritos das chagas de Jesus que invocaste por mim” (p. 270).

A alma de Irmã Maria-Marta irradiava caridade ao seu redor. Interessava-se por cada uma de suas Irmãs. Sua dedicação não conhecia cálculos nem limites. Sabia às suas custas realizar o desejo de Jesus: “Jamais preocupar-se contigo, jamais recusar um serviço” (p. 236). Nosso Senhor pedia mais: “Deves a cada dia pagar as dívidas de cada alma desta comunidade para com minha justiça... Serás a vítima que expiará cada dia o pecado de todas” (p. 140). Que amor desinteressado não seria preciso para cumprir sua missão reparadora? O aproximar da morte de uma Irmã era sempre marcado por maior intensidade de sofrimentos: Irmã Maria-Marta, pela oração e pela imolação, supria o que lhe restava reparar.

Seu zelo apostólico levava-a a rezar constantemente e a sofrer pelas intenções do Vigário de Cristo e por todos os fiéis. Quantas almas do purgatório não se beneficiaram de suas orações? Um dia, na vigília da Ascensão, Nosso Senhor diz-lhe: “Não contes descansar hoje, pois muitas almas devem, pelos teus sofrimentos, chegar ao céu para ver o meu triunfo” (p. 256). Outro dia: “Minha filha, pela rude tentação que sofreste e por teu abandono interior, muitos pecadores se converteram e muitas almas do Purgatório foram para o céu... teu sofrimento era necessário para isso” (p. 268). Quantas noites não passou ela em oração pelos agonizantes! Nosso Senhor mostrava-os à Irmã: “Estás incumbida de todas estas almas, é preciso que lhes obtenha uma boa morte” (p. 253). Buscar a glória de Deus, a salvação das almas, tal era sua única ambição: “Meu Jesus, tenho sede das almas por vossa glória” (p. 253).

Verdadeira filha da santa Igreja, ultrapassava os muros de seu estreito claustro para cultivar os campos do Senhor. Sentindo-se cumulada dos pecados dos homens, esmagada sob o peso da justiça divina, clama: “Deus meu, não olheis nossa miséria, mas a vossa misericórdia!” (p. 251).

Jesus, por sua vez, instava-a: “Vem, conquiste almas!” (p. 248) Mostrando os pecadores por todo o mundo: “Mostro-os a fim de que não percas tempo algum” (p. 250). E a fervente missionária passava suas noites a colher almas. O sangue divino era o preço. Com firmeza dizia sua grande oração: o oferecimento das santas Chagas de nosso Salvador, que prometera renovar a cada dez minutos (p. 75).

Não se encontram aqui a heroicidade das virtudes teologais e morais, tanto quanto podemos julgar, até que a Igreja se pronuncie?

 

*

Conformada na sua vida a Jesus crucificado, a humilde esposa também o foi na sua morte. Combate supremo, em que as súplicas angustiadas à Mãe do céu nos permitem adivinhar o isolamento do coração, o abandono com Jesus na cruz, faz-nos lembrar a palavra que o Senhor um dia lhe dirigiu: ”Na cruz, no auge de meus sofrimentos, estava só... Eis por que quis que tu sofresses assim” (p. 267)

Por Maria, ela obteve esta última vitória sobre o inimigo, sobre o pecado. Esta Mãe celestial veio enfim buscá-la em 21 de março de 1907, nas primeiras vésperas de sua Compaixão.

 

*

Por meio de sua humilde serva, o divino Mestre dirige-se a nós: “Uma única gota do meu Precioso Sangue basta para purificar a terra, e não pensais nisso!” (p. 62). “A Chaga de meu Sagrado Coração abre-se largamente para conter todas as vossas necessidades!” (p. 79).

Toda esta vida é um apelo para lembrar-nos dos dons de Deus. O sangue redentor é de valor infinito.

Repetindo-nos isto a cada página, esta vida heróica nos faz sentir que nossa fé, que deveria nutrir-se cada vez mais desta verdade revelada, na maioria das vezes, é superficial. Ultrapassa pouco as fórmulas conservadas na memória e repetidas respeitosamente. Não atinge suficientemente as realidades divinas que exprimem.

Dignai-vos, ó Senhor, pela intercessão desta brava religiosa, conceder-nos algo ao menos de sua fé tão penetrante, tão estimulante, de sua contemplação do mistério da Cruz, perpetuada em substância sobre o altar durante a Missa!

Desta fé procede a firme esperança, o amor ardente de Deus e das almas, do qual precisamos nas tristezas da hora presente.

No momento em que o espírito de independência absoluta, de orgulho, levado até ao ateísmo, procura espalhar-se sobre a terra e sobre os países mais católicos, o Senhor sugere a muitas almas interiores rezar como o fazia a humilde conversa da Visitação de Chambéry. Ele as convida a pedir uma inteligência mais profunda do mistério da Redenção e o desejo de participar, na medida desejada para cada um de nós pela Providência, de suas santas humilhações, remédio a todos os orgulhos. O Senhor faz entrever a estas almas, como o fez a esta de que acabamos de falar, que encontrarão neste sincero desejo a força, a paz e, por vezes, a alegria, para suportar os sofrimentos que sobrevirem e encorajar os demais.

( La vie spirituelle, LIII, 150-168, 1937. Tradução: Permanência)

O heroismo da virtude nas crianças

Garrigou-Lagrange, O. P.

 

Recentemente, alguns estudos muito bons foram publicados sobre a vida interior das crianças 1. Nós gostaríamos de sublinhar aqui alguns aspectos relacionados às virtudes heróicas nelas, tomando como exemplo a vida de Anne de Guigné 2.

De acordo com Bento XIV 3, as virtudes heróicas, para serem comprovadas, exigem quatro condições: 1) a matéria, objeto da virtude, deve ser árdua ou difícil, acima das forças comuns dos homens; 2) os atos devem ser realizados com prontidão e facilidade; 3) também devem ser realizados com certa alegria, que é a de oferecer um sacrifício ao Senhor; 4) bem como com alguma frequência, quando surge a ocasião.

A primeira dessas condições mostra que o heroísmo nas crianças é relativo à sua idade, às suas forças, às condições que comumente possuem. Se alguns adultos são muito pequenos [espiritualmente], há crianças que, por suas virtudes, já são bem grandes. A escritura diz: Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem: "Da boca das crianças e meninos de peito fizeste sair louvor” (Sl 8, 3). Foi isso que Jesus recordou aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas indignados ao ver crianças gritarem no templo: "Hosana ao filho de Davi" (Mt 21, 16); e se, por vezes, a fé dos pequenos serve de exemplo para os grandes, o mesmo deve ser dito de sua confiança e amor.

Pensemos aqui o que pode e deve ser, de acordo com o pensamento e a vontade de Deus, o heroísmo de cada um nas várias idades da vida e nas mais diferentes condições. Deve-se tomar cuidado não apenas com o que se ensina, mas com o que se deve ensinar para se alcançar a perfeição cristã. Devemos também nos lembrar que o sacramento da confirmação já faz da criança um soldado de Cristo. Também não devemos nos esquecer de como as crianças entendem o heroísmo: na maioria das vezes, quando são heróicas, não sabem que são. A criança, quando é heróica, é simples, sem exibição; sua simplicidade lembra a de Jesus na sagrada família de Nazaré.

Convém também assinalar que, na inocência da criança batizada, o Espírito Santo não tem muito o que purificar antes de comunicar a sua luz de vida e sua força atrativa. De fato, existem certas conseqüências marcantes do pecado original, que são como feridas que curam após o batismo. Mas elas não foram agravadas pelos pecados pessoais reiterados. A criança em estado de graça, desde que não peque pessoalmente, está em contato direto com a Santíssima Trindade que nela habita; sua alma é como um diamante, que ainda precisa ser lapidado, mas que praticamente não tem escórias. Das dolorosas purificações, necessárias aos católicos pecadores na medida dos seus pecados, o Espírito Santo dispensa a criança que é fiel à graça no cumprimento dos deveres da sua idade. Então nós a vemos se elevar... ela se deixa levar, não mais por sua mãe, mas pela graça do Todo-Poderoso. Certamente, ainda é preciso deixar-se levar ou conduzir. A criança, menos cheia de coisas para sacrificar, mais livre, mais pura em suas intenções, com frequência sofre menos que o homem. 

A comunhão precoce por vezes leva a frutos de heroísmo nas almas desses pequeninos. A crisma traz uma nova floração de graças; por vezes se constata um belo desabrochar dos sete dons na alma infantil, na medida em que a criança ainda não raciocina de modo metódico e complicado, e segue diretamente para a verdade, como que por intuição.

Nas melhores delas, nota-se uma relativa elevação das virtudes teologais. Como a criança, consciente de sua ignorância e de sua fraqueza, é naturalmente inclinada a acreditar no que o seu pai e a sua mãe lhe dizem, a confiar neles e a amá-los, não apenas pelos benefícios recebidos, mas em si mesmos; do mesmo modo, ela é movida pela graça do batismo a crer na palavra de Deus, que lhe é transmitida pela sua mãe e, em seguida, pelo sacerdote que a instrui, ela é igualmente inclinada a confiar em Deus e a amá-Lo por si mesmo. Ela vive à sua maneira das três virtudes teológicas, antes de refletir sobre a necessidade das virtudes cardeais da prudência, justiça, força e temperança. Nas orações da manhã e da noite, são atos de fé, esperança e caridade que pedimos delas. Se ela é fiel, a cada dia fará esses atos um pouco melhor.

Mais tarde, quando os sentidos despertarem, quando tiverem de entrar em contato com os homens, compreenderão a necessidade das virtudes morais que disciplinam as paixões e que regulam nossos relacionamentos com os outros de maneira justa e equitativa. Então, impressionadas com a importância dessas últimas virtudes de ordem humana, talvez dêem menos atenção às virtudes muito mais elevadas que unem nossas almas a Deus. Ao perderem sua ingenuidade infantil, poderão perder também algo de sua intimidade com o Senhor; não atentarão o suficiente, talvez, para o fato de que, quanto mais avançamos, se é preciso agir menos como criança diante dos homens, é preciso agir mais como criança diante de Deus, pelo progresso da vida de graça, pela consciência de nossa dependência de nosso Pai Celestial, pela intimidade cada vez maior a que Ele se digna nos chamar; finalmente, temos de entrar, por assim dizer, no seio de Deus: os eleitos no céu estão em in sinu Dei, um pouco como o seu Unigênito que está em sinu Patris (Jo 1, 18).

A simplicidade das crianças ajudam-nas a entrar nas alturas de Deus pela Fé, pela Esperança e pela Caridade.

 

A Fé

As crianças acreditam de bom grado nas coisas do Céu, sem deixarem de querer ver e entender o máximo que podem. Não demoram a compreender que esses grandes mistérios não podem ser vistos aqui embaixo, que é preciso crer e, de todo o coração, elas querem fazê-lo. Se forem dóceis, irão crer de modo cada vez mais firme.

Essa perseverança na fé é uma maravilha em algumas crianças. Somente a graça divina pode levá-las a crer firmemente em mistérios tão elevados, invisíveis e incompreensíveis, e dedicar-lhes não uma atenção passageira, e sim uma atenção contínua e cada vez mais penetrante.

Vemos como isso foi o ponto de partida da vida interior de Anne de Guigné. Era essa a verdade fundamental que ela anotava cuidadosamente em seu caderno: “Precisamos salvar nossa alma, ela voltará a Deus, seu Criador. Nosso corpo vem da terra, mas nossa alma vem de Deus". Eis uma verdade elementar para todo católico, mas à qual ela sempre retorna quando fala com Nosso Senhor. Ela escreveu no início de um retiro em abril de 1921: "Quanto mais falo com Ele, mais Ele me responde. Jesus fala comigo poer meio do padre, por meio dos conselhos que o padre me dá. Onde Jesus mais fala comigo acima é no fundo da minha alma por meio da sua graça. O bom Senhor me dirá: quero você mais obediente, não quero que seja vaidosa. Se você já é assim na sua idade, o que será depois?"

Ela observa em outro lugar: "Devemos ter um grande respeito pela presença de Deus. Precisamos respeitar a Deus e a nossos pais... amá-los de todo coração, prestar o máximo de serviços possível, obedecê-los e fazer o que quiserem". Ela acolhe com entusiasmo a idéia de ir ao catecismo para aprender as verdades da religião.

A dificuldade da Fé não vem apenas da sua obscuridade, mas também do seu caráter prático, quando, por exemplo, ela nos pede assentimento para algum sacrifício, como a aceitação da doença ou de sofrimentos que se prolongam. Bem rápido, a criança dirá: “Chega!”. Crer que o bom Deus deseje o seu sofrimento como uma ocasião de luta e para promover um amor mais generoso lhe é difícil. É preciso uma vontade corajosa e, sobretudo, a luz e a força divina para dominar-se. 

A primeira grande dor para Anne de Guigné foi a morte do seu pai. O modo sobrenatural com que aceitou essa morte, como o seu biógrafo demonstra, representou para sua alma o ingresso numa vida nova: pela fé, ela começou a viver do pensamento do outro mundo e a enxergar a vida presente desde uma perspectiva superior. Desde então, essa criança, armada de uma vontade enorme, cede, luta a cada dia e, em alguns meses, é como que invadida pelo Espírito de luz, “doce hospedeiro da alma”. Anne se torna cada vez mais submissa; ela que era inclinada ao ciúme, busca a partir de então só pensar nos outros e não recusa mais nada ao bom Deus. Ao adoecer, declara: “Meu bom Jesus, tudo o que quiserdes!” Isso é mais do que uma simples resignação, pois inspira-se numa grande fé.

Anne, que ama muito a Santíssima Virgem sob o título de Nossa Senhora das Dores, escreve: “De pé diante da cruz, sobre a qual seu Filho estava pregado, Maria chorava… Dai-me a graça de chorar convosco…” — Por que chorar? — “Porque Jesus não é amado o bastante”.

Onde encontrar uma criança que deseje a graça de chorar? A luz divina da fé viva, esclarecida pelos dons do Espírito Santo, traçava o caminho por onde a sua alma avançava.

 

A Esperança

A Esperança não é menos viva que a fé numa criança profundamente católica. Assim como confia naturalmente em seus pais, dos quais se sente amada, a graça a leva a contar sobre o amor de Deus, a esperar o socorro da sua bondade e do seu poder. Sob a luz divina, percebe limpidamente, mas nem sempre sem pena, as manifestações da bondade infinita. Ela crê que a Providência dirige tudo, que nada acontece sem que "Deus o tenha desejado ou permitido”. Ela espera o socorro divino, conta com ele. Quando mais tarde lhe ensinarem que “o motivo formal da esperança é Deus, em quem sempre devemos contar”, compreenderá imediatamente, pois sua experiência há muito lhe terá instruído acerca do socorro divino.

Ao chegar a hora de fazer certos sacrifícios penosos, de renová-los com frequência, se a criança os fizer com perseverança, serenidade e alegria, como vemos na vida de Anne de Guigné, poderá alcançar o heroísmo, que se manifesta precisamente nisso de que a criança guarda não apenas intacta, mas muito viva, a sua confiança amorosa nesse Deus tão bom que lhe pede tantos sacrifícios.

No depoimento da Madre Saint Raymond sobre a vida e as virtudes de Anne de Guigne 4, lemos:

“Foi seu espírito de fé que lhe deu essa grande confiança em Deus que tanto admiramos nela: estava sinceramente persuadida que Deus conduz tudo, que estamos todos em suas mãos, que nada nos acontece sem que seja desejado por Ele, que tudo é, por conseguinte, bom. Daí a sua paz, a sua serenidade, essa alegria inalterável em todas as contradições. Pois Anne não teve a vida fácil que se pode imaginar. Ela sentia dores de cabeça frequentemente, precisava interromper os estudos; ela vivia um tempo aqui, outro tempo acolá; tinha de deixar seus amigos, separar-se; tudo isso devia lhe custar muito, mas ela via a mão da Providência nas menores coisas e, assim, tudo estava bem. 

"É por isso que tanto amava as Escrituras: nelas, via à descoberto a Providência de Deus. A história de Abraão, sobretudo, a impressionava. O Anjo vindo impedir a imolação de Isaac, a fé de Abraão triunfante, tudo isso fazia seu coração bater mais forte… Ela compreendeu muito bem que Deus é tudo! Ir até Ele continuamente, eis a sua vida: ela marchava para Ele em todas as suas ações.” 

As provações jamais alteraram a confiança de Anne de Guigné. Quando, em dezembro de 1921, foi acometida de graves dores de cabeça e nas costas, o seu rosto estava lívido, os músculos respiratórios paralisados. Ela não se queixava, mas gemia docemente: “Meu bom Jesus, não aguento mais”. Em seguida, um sorriso revelava o socorro divino: “Estou feliz”, dizia a pequena doente, feliz por oferecer tudo pelos pecadores. “Sim, ainda quero sofrer muito!”. Ela já vivia alhures, os olhos fixados na pátria celeste, no termo da viagem. Ao invés de ficar abatida com a dor, ela não apenas demonstrava uma confiança vivíssima, mas comunicava aos demais a sua esperança — e a pedia pelos pecadores.

 

A caridade

O amor de Deus em alguns predestinados aparece não apenas sob a forma da caridade afetiva que repousa na Bondade de Deus, amado por si mesmo, mas ainda sob a forma da caridade efetiva, que se prova pelo sacrifício e por um grande amor ao próximo.

Isso é muito marcante em Anne de Guigné; assim, falar de seu amor de Deus é falar, ao mesmo tempo, do seu despreendimento, da sua humildade, da sua mortificação e obediência.

A menina possuia a generosidade de uma noviça carmelita. Bastava-lhe compreender o que era mais perfeito para tentar fazer; foi preciso até mesmo moderar o seu desejo de mortificação quando se tornou muito pronunciado.

É o amor de Deus que lhe movia à prática das virtudes: “É preciso obedecer sempre”, era um dos pontos do seu programa. E ainda que por vezes fosse bem difícil, cumpria esse ponto admiravelmente. Fortificada pela graça da primeira comunhão, ela se dava inteiramente aos seus pequenos deveres familiares e escolares, pequenos em si mesmos, mas grandes para ela e para Deus, pela intenção que a movia a cumpri-los. Aplicava-se a servir aos seus pronta e alegremente. Chegando aos nove anos de idade, escreveu: “para mim, se faz preciso uma luta quotidiana”. Diante dos pequenos ou dos grandes esforços, dizia: “Bom Jesus, eu os ofereço a Vós”. É a sua maneira de caminhar para Deus, de adquirir coragem e perseverança. Não se sabe bem o quanto a mansidão custava à sua natureza irascível: “Ó, como é exasperante… quanta vontade de brigar!” Mas logo a graça triunfava, e a bondade dava a palavra final.

Ela compreendeu que oferecer tudo ao Senhor é um grande socorro para nós: “Nada é difícil quando nós o amamos”. Ela despertava rapidamente todos os dias, ainda que o sono a abatesse. Renunciava aos seus gostos, privava-se de sobremesa, comia os pratos de que gosta menos; uma vez, raspou o corpo em ortigas para agradecer o Senhor por ter atendido um dos seus desejos. Outro dia, tendo deslocado um músculo do joelho, levantou-se sem dar um pio, os olhos cheios de lágrimas, inquieta por ter preocupado os seus: “Mamãe querida, não fique assim, não é nada; fico muito triste por ter te assustado”. Quem viveu perto dela pôde dizer: “nunca a vimos recusar um sacrifício”.

A religiosa que dirigia o catecismo em Cannes nunca percebeu na pequenina — salvo uma pequena vez, quando tinha cerca de quatro anos — a menor inclinação à vaidade, e isso ao longo de cinco anos. Aí está um sinal de grande amor de Deus.

Ainda que fosse inclinada à censurar e mandar, Anne se apagava, fazia-se pequena, e se contentava em ser esquecida; folgava quando lhe davam o pior e buscava sempre reservar pequenas ajudas aos necessitados.

Se a graça que a atraia era bem poderosa, o ardor com que Anne lhe correspondia era dos mais generosos. Uma derrota a deixava humilde e confiante: “Foi porque não rezei bastante…”

Mal tinha quatro anos de idade, quando lhe aplicaram cataplasmas de mostarda bastante dolorosos: “Arde muito… mas, ah meu Jesus, eu Vo-lo ofereço”. Os familiares se compadeciam:  “Sofres muito, Aninha?" — “Ah, não! Ainda estou aprendendo a sofrer”. E acrescentava: “Sempre podemos sofrer alguma coisa por Nosso Senhor porque Ele sofreu por nós”.

Com profunda convicção, aos nove anos, declarou: “Uma vida longa é uma grande graça, porque nos permite sofrer muito por Jesus”. Vê-se aí manifestadamente uma altíssima inspiração do Espírito Santo, inspiração concedida por sua perseverante docilidade.

A sua contínua alegria e perseverança — gestos apagados, ignorados, que ela chamava de “modos pequeninos” — sua contínua Caridade e a sua união a Jesus no meio das suas ocupações, dos seus jogos, não é menos bela do que a sua maneira tão natural de ser… tão sobrenatural aos dez anos.

Quanta renúncia uma fidelidade tão grande exige! “Nós a vemos subir do mesmo modo que observamos no céu o vôo de uma águiazinha”, nos disse uma alma contemplativa que nos ajudou a conhecê-la melhor.

Sem dúvida, a sua educação, o meio em que nasceu, favoreceram o desenvolvimento dessa bela vida interior — o catecismo também ajuda a alma a se refinar, se adaptar, tornar-se delicada, reservada e afável — mas mesmo num berço privilegiado, a prática contínua dessas virtudes requer uma grande generosidade, sinal certo do amor de Deus que não cessa de crescer.

Esta criança tinha o zelo muito evidente da glória de Deus, estava “pronta para suportar tudo por sua fé.” O pecado feria o seu coração: “Ó meu Deus, perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem…”. Percebia surgir nela a vocação do Carmelo “pela glória de Deus”.

Ela velava, sobretudo nos primeiros sábados de cada mês, para evitar as menores faltas, para ser agradável à Santíssima Virgem e lhe oferecer nesse dia “mil sacrificiozinhos em reparação dos pecados cometidos contra a sua honra”. Oração, rosário, Ave maris Stella, rejubilavam o seu coração e o uniam a Jesus por sua Mãe Imaculada.

Entre as crianças cuja vida já foi escrita, bem poucas, aparentemente, receberam tantas graças de recolhimento, de união com Jesus, como a pequena Anne. Ela também sabia fazer penitência pelos pecadores, desejando fortemente “conversões extraordinárias… para que todos reconheçam a glória de Deus.” Ela adorava “quando lhe confiavam uma alma a ser convertida.”

Nesta menina bem equilibrada, percebemos uma caridade radiante e universal, a paz, a doçura e também a gravidade, que não impedia as brincadeiras nas horas de recreação; não encontramos nela nada de irrefletido.

Impressiona profundamente esse grande sinal do amor de Deus e do próximo que é o esquecimento de si mesmo. Desde os primeiros dias da sua doença, inquietava-se mais com a fadiga dos seus do que com o seu próprio mal, e a Nosso Senhor rezava: “Curai outros doentes”. É o ensinamento de Jesus: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros.” (Jo 13, 35)

A vida eucarística de Anne de Guigné merece menção especial; é um outro sinal do seu grande amor a Deus.

Ela ainda não sabia ler, e já seguia a missa num pequeno missa com imagens, sem perder um só gesto do padre 5.

Uns dois anos antes da sua primeira comunhão, já falava a todo hora desse dia e pedia à sua mãe que lhe falasse a respeito 6. Ela queria a todo custo preparar “uma bela morada no seu coração ao seu querido Menino Jesus”, e para isso não recusava nenhum sacrifício.

No dia da sua primeira comunhão, a alegria era grandíssima; eufórica, corria de uma a outra das suas amigas. A Madre Saint Raymond escreveu no seu depoimento que, depois desse dia, se fosse privada da comunhão por alguma falta, choraria com todas as forças do seu corpo 7

Também ficou felicíssima com a primeira comunhão das suas irmãs: ela transmitia-lhes o seu entusiasmo, vivendo com elas numa perfeita harmonia 8

Antes de se aproximar da santa mesa de comunhão, demonstrava grande delicadeza de consciência; um dia, perguntou à mãe: “Será que andei muito dispersa?” Por vezes, censurava a si mesma pela negligência na oração 9.

Desde a véspera, pensava na eucaristia, por vezes tomava seu pequeno livro, lia-o antes da Comunhão e se preparava com fervor para a grande ação do dia seguinte; ela comunicava a sua alegria à sua preceptora 10.

Ela dizia ao irmãozinho: “Ah, como você ficará feliz quando o menino Jesus estiver no seu coração!”. Mais tarde, enquanto brincava com ele, interrompeu de repente e propôs com gravidade e docilidade: “e se nós fizéssemos uma curta oração para nos prepararmos para a comunhão de amanhã?” 11 Em outro dia, nós a vemos ajoelhada sobre o degrau de uma escada. Interrogada sobre o que fazia, respondeu: “Eu agradecia ao bom Jesus, disse ela, por querer vir ao meu coração” 12. Seu biógrafo escreveu:

Nas suas visitas ao Santíssimo Sacramento, encontrava no tabernáculo o seu Deus vivo e, quando a hóstia pairava sobre o altar, seu olhar se fixava sobre o ostensório com profundidade e intensidade tão impressionantes, com uma chama tão luminosa, que sua fé parecia tocar na visão 13.

“Para que a vida de Jesus cresça em mim, escreveu Anne, é preciso que minha alma se alimente muito frequentemente.” “Eu quero comungar sempre que possível”, também escreveu. “A vida da graça é muito preciosa, e seu alimento, que é Jesus Cristo, é tão bonito que é preciso desejá-lo de todo coração."14

Ela confiou a uma das suas tias, que era religiosa: “Essa manhã, chorei porque mamãe não me deixou comungar”; em seguida, acrescentou: “mas agora já estou bem porque me ensinaram a fazer a comunhão espiritual."

Uma manhã, passou pela sua casa, à caminho da Missa, uma amiga da sua mãe; a menina lhe perguntou: “A senhora poderia me levar?” e, depois de obter a permissão da mãe, voltou tão contente que logo lhe perguntaram: “Desejas muito ir a missa?” — “Ah, sim!, respondeu ela, amo muito ir a missa… e depois, veja, é uma comunhão a mais.” 15

Durante o santo sacrifício, após ler o evangelho do dia, cerrava os olhos e, com a cabeça levemente inclinada, com as mãos juntas, deixava-se absorver inteiramente por um movimento profundo da sua alma, unindo o seu coração ao coração eucarístico de Jesus. O ardor da sua alma deixava-se trair pelos menores gestos, e quando retornava da santa mesa, estava “inteiramente perdida em Deus”, a ponto de ser preciso, por vezes, guiá-la até que reencontrasse o seu lugar 16.

Um dia, perguntou à sua mãe:

— Mamãe, posso rezar sem o livro durante a missa?

— Por que, minha filha?

— Eu já sei de cor todas orações do missal e muitas vezes me distraio ao ler. Mas, quando falo com o bom Jesus, nunca me distraio; é como quando a gente conversa com alguém, mamãe, a gente sempre sabe o que diz.

— E o que você fala ao bom Jesus?

— Que o amo. Em seguida, peço por você e pelos demais, para que Jesus os torne bons. Eu lhe falo sobretudo dos pecadores.

E, ruborizando-se um pouco, acrescenta:

— Depois eu digo a Ele que gostaria de vê-lo 17.

Diz-se que, durante a fase final da sua vida, sua piedade tinha “algo de celeste”. Após a comunhão, na festa de Todos os Santos, poucos meses antes da sua morte, ela parecia transfigurada. Na igreja ela era notada, e um fiel chegou a se levantar para “ver melhor aquele perfil que não tinha nada de humano” 18

No dia 28 de dezembro de 1921, o seu confessor lhe disse: “Quer que eu te traga Nosso Senhor?” — “Ah, sim!” respondeu com uma voz na qual transparecia um desejo imenso 19. Ela morreu alguns dias depois, após ter visto o seu anjo da guarda e voltando um olhar derradeiro à sua querida mãe. Uma única palavra saia de todo os corações: “É uma santa.” 20

Por seu amor à Eucaristia, Anne de Guigné nos faz pensar na beata Imelda Lambertini, morta aos onze anos durante a ação de graças da sua primeira comunhão.

Ao ler a sua biografia, lembramo-nos do princípio: a prova da caridade, do amor de Deus, são as obras das diferentes virtudes que a caridade inspira. “Pelos seus frutos os conhecereis”. Sem querer antecipar os julgamentos da Igreja, é possível pensar que encontramos nessa criança, também morta aos onze anos de idade, as quatro condições requeridas por Bento XIV para julgar da heroicidade das virtudes: 1a. a matéria difícil, acima das forças comuns às crianças dessa idade; 2a. a prontidão no cumprimento dos atos virtuosos; 3a. a alegria de oferecer sacrifícios ao Senhor; 4a. a freqüência desses atos, desde que a ocasião se apresente.

Isso nos faz pensar no que ensinou Santo Tomás: “além da virtude comum, [há] uma virtude heróica ou divina, que faz certos serem chamados homens divinos“21 — devemos ver aí uma inspiração especial do Espírito Santo.

O relato dessas virtudes deve nos mover a agradecer ao Senhor que se compraz em cumular os pequenos e a restabelecer, assim, o equilíbrio na balança do bem e do mal; a colocar um contrapeso em tantas vilanias que a iniquidade acumula. Nós encontramos também aí um grande exemplo e, tendo chegado ao limiar da velhice, percebemos que ainda temos muito a aprender dos melhores dentre esses pequeninos.

 

Outros exemplos de heroicidade manifesta

Anne de Guigné não foi uma exceção. Outras crianças nos oferecem exemplos semelhantes. Veja, em um ambiente completamente diferente, a filha de um operário comunista. Annette 22 perdeu a sua mãe; ela possui quatorze anos e educa seus quatros irmãos e irmãs. A caridade católica a conquistou e ela converte seus irmãos. Morre em seguida tentando impedir que seu pai cometesse numa igreja um furto sacrílego.

O pai estava desempregado; os camaradas o convidaram a roubar os vasos sacros da igreja… para transformá-los em lingotes de ouro e alimentar os filhos. O honesto operário hesita, mas os outros o desafiam e o pai da Annette entra com eles no santuário. Ela os acompanha… e se joga sobre um deles que repele este agressor desconhecido com tanta violência que a criança desmorona no chão. O pai de Annette corre, reconhece a sua filha e a leva consigo. Ela morre sob as benções do padre, como uma vítima pura e radiante de alegria. O pai, tocado, retorna à religião.

Não podemos falar desse tema sem lembrar a heroicidade da pequena Nellie, de quatro anos de idade, cuja vida foi escrita há poucos anos 23. Atormentada pela osteíte que corroía a sua mandíbula, para suportar as dores ela apertava o crucifixo contra o seu coração; enquanto lágrimas corriam, ela aceitava tudo, repetindo sem parar: “Olham como o Deus santo sofreu por mim!”

Podemos mencionar a vida de Lucila de Senilhes, morta aos quinze anos de idade, oferecendo a sua vida pela Igreja e pela sua pátria 24.

Antes de vir a pedir o sofrimento, essa menina escrevia:

“Renunciar a si mesma; não falar assim: “eu preferiria que…” — Para conservar a paz, é preciso obedecer quatro regras importantes: Procurar fazer antes a vontade de outro do que a própria. Escolher sempre ter menos do que mais. Buscar em tudo o último lugar. Desejar sempre e suplicar que a vontade de Deus se cumpra perfeitamente em nós!” 

Um dia, ela escreveu depois da comunhão:

Procurai a minha felicidade e procurarei a tua” — Eis, meu Deus, o pensamento que vós me enviastes essa manhã, durante a comunhão. Como eu procurarei a vosso felicidade, ó divino Coração do meu Jesus? Eu o farei cumprindo fielmente meu dever quotidiano, oferecendo-vos todas as minhas ações, fazendo muitos pequenos sacrifícios por amor de vós, rogando pelos pecadores, fazendo com que o Senhor seja amado, não resistindo jamais aos movimentos da vossa graça.”

Seguindo esta via e sob a inspiração do Espírito Santo, ela chegou a pedir o sofrimento.

"Minha natureza é tão fraca que ela se queixará — é o que temo, meu Deus, se vós a fizerdes sofrer; mas então, Senhor, não escutai o que eu vos disser, e quando tiverdes começado, ó Jesus, não parai mais; eu me entrego a vós; a única coisa que eu vos demando, é de me ajudar a suportar o sofrimento… Ó meu Deus! Eu vos consagro os meus quinze anos com todo o fervor da minha alma… Enviai-me o sofrimento… aumentai o número dos justos que salvarão a França.”

Pouco depois, ela morreu de pneumonia, suportando heroicamente, sem um suspiro sequer, uma punção na coluna vertebral feita com agulhas bem curtas.

Qual o peso de uma alma de criança tão heróica nas mãos de Deus?

Em 1909 morria também heroicamente, na Itália, a pequena Guglielmina Tacchi Marconi, conhecida em Pisa pelo seu amor extraordinário pelos pobres 25. Nas ruas, ela os procurava para poder vir socorrê-los. À mesa, ela não conseguia comer se algo lhes faltasse.

Ela morreu aos onze anos, torturada ao longo de sete meses por uma endocardite; durante esses meses, não se viu um capricho sequer. Desde o primeiro dia, ela, que não tinha mais do que uma hora de sono tranquilo, contentava-se em repetir com muita confiança: “Tutto per amore di Gesù!” Após a sua primeira comunhão, feita antes de morrer, permaneceu longo tempo em êxtase, e morreu dizendo: “Vinde, Jesus! Vinde, Jesus.”

Um livro recente: Mes Benjamins 26, relata os atos heróicos realizados por criancinhas anamitas, japonesas, das quais algumas, já conhecidas, morreram como mártires. Para terminar, citaremos algumas.

Uma pequena anamita, Dân, que morreu martirizada aos treze anos, havia sido aprisionada com sua família, sofreu de sede e, apesar dos maus-tratos, manteve-se sempre inflexível, dizendo: “Eu jamais negarei o meu Deus.” Como poderia ela, sem se queixar, suportar inúmeros golpes de rattan com que lhe fustigavam o corpo? Ela não cessava de rezar, adorando o Senhor, o Verbo incarnado, e depois gritou: “Que me acorrentem, que me metam na canga, que me submetam às demais torturas ou ao cruel suplício até a morte pela fé… já me decidi: estou decidida a sofrer tudo.” — Submeteram-lhe ao vergaste, a roda, ao cavalete; queimaram-lhe as extremidades dos membros, arrancaram-lhe as unhas, derramaram-lhe chumbo nas orelhas. Mas ela manteve-se inquebrantável. Sobre as suas chagas vivas, continuavam a golpeá-la! Dân logo viu os insetos roerem seus machucados.

A criança não pôde mais se reerguer; no entanto, nenhuma queixa! E Dân deixou assim a terra rumo ao Céu.

No mesmo livro, lê-se o relato do martírio de três meninos japoneses canonizados por Pio IX em 1862. Eles queriam morrer como mártires, como os católicos. Maximiniano, com onze anos de idade, pediu com lágrimas no rosto que o mandassem para a morte. Um soldado lhe deu um golpe de espada na cabeça. — Antônio, de trezes anos, antes de ser martirizado, soube responder ao governador que lhe exigia a apostasia: “Quão insensato eu seria de abandonar hoje os bens certos e eternos por bens incertos e passageiros!”— Luís Ibragi, com doze anos, era tão pequeno que julgaram que seria fácil fazer dele um apóstata. Mas, ao contrário, durante a longa e dolorosa viagem que teve de fazer antes de morrer, era ele que apoiava o missionário, recebendo os golpes em seu lugar. Ele obteve do padre permissão para cantar sobre a cruz o Laudate, pueri, Dominum. Mas o missionário, sobre a cruz, entrou em êxtase, e o menino teve de cantar o Salmo com os outros27.

Lendo esse relato dos feitos realizados por essas crianças de dez a doze anos, e mesmo menores, ao se lembrar das palavras sublimes pronunciadas por muitas delas antes de morrerem, percebemos que possuem uma sabedoria incomparavelmente superior, na sua simplicidade e na sua humildade, à complexidade normalmente pretensiosa da ciência humana. Encontramos aqui o dom de sabedoria em grau eminente, proporcional à caridade desses pequenos servidores de Deus, grandes pelo testemunho heróico que deram até a morte.

 

Roma, Angélico.

  1. 1. Cf., em particular, Etudes Carmélitaines, abril de 1934, L’enfant et la “voie d’Enfance”, Pe. Bruno de Jésus-Marie, O.C.D.
  2. 2. Anne de Guigné, Etienne-Marie Lajeunie, O.P., Éditions du Cerf, Juvisy - La vie Spirituelle, maio de 1931, p. 177 ss, “Un témoignage sur la vie et les vertus d’Anne de Guigné”.
  3. 3. De Servorum Dei beatificatione, I. III, c. 21 e ss.
  4. 4. Cf. La Vie Spirituelle, maio de 1931, pág. 184. Todos os outros aspectos que citamos aqui foram mencionados na biografia escrita pelo P. Lajeunie.
  5. 5. Vie, p. 67.
  6. 6. Ibid., p. 22.
  7. 7. Un témoignage (Vie Spirituelle, loc. cit.), p. 195.
  8. 8. Vie Spirituelle, loc. cit., p. 196.
  9. 9. Vie, p. 43.
  10. 10. Ibid, p. 68.
  11. 11. Ibid., p. 70.
  12. 12. Ibid., p. 70.
  13. 13. Ibid., p. 71.
  14. 14. Ibid,. p. 71.
  15. 15. Ibid., p. 67.
  16. 16. Ibid., p. 68.
  17. 17. Ibid., p. 73.
  18. 18. Ibid., p. 104.
  19. 19. Ibid., p. 111.
  20. 20. Ibid., p. 119.
  21. 21. Ia IIae q.68, a. 1 ad 1.
  22. 22. Petite annette, por Jeanne Froehlich, Apostolat de la Prière, Toulouse.
  23. 23. Nellie, Ir. Bernard des Ronces, Maison du Bon Pasteur, Paris, boulevard Pereire.
  24. 24. Librairie Sainte Cécile, 59 ter, rue Bonaparte, Paris.
  25. 25. Guglielmina, 1898-1909, por Myriam de G., Paris, Lethielleux, tradução italiana: Berruti, Turin.
  26. 26. Escrito por Myriam de G., Éditions du Foyer, Paris, 4, rue Madame.
  27. 27. Nas mesmas páginas, lê-se sobre o pequeno Chales, indiano, que, doente e sofrendo muito, dizia ao missionário que se compadecia dos seus sofrimentos: “Ah, padre, eu fico muito feliz quando me sinto mal, pois penso no Senhor que tanto sofreu por mim!”— O mesmo livro cita dois meninos (prefácio de E. Baumann) onde se fala de dois meninos que viveram frequentemente d emodo heróico. O menor tinha sede de sofrer mais, para que a sua coroa fosse mais bela. Sua irmã conheceu, antes de morrer, a tortura de crer que não havia feito nada pelo bom Deus.
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