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Artigo 6: Os dons intelectuais e as principais virtudes de Maria

Para compreender melhor o que foi a plenitude de graça na Santíssima Virgem, sobretudo no final de sua vida, será conveniente considerar qual foi a perfeição de sua inteligência, especialmente qual foi sua fé iluminada pelos dons de sabedoria, inteligência e ciência; qual foi também a elevação de suas principais virtudes, que, estando conexas com a caridade, encontravam-se em Maria como esta, a caridade, num grau proporcionado ao da graça santificante. Para completar essa síntese, falaremos brevemente também das graças gratuitas de ordem intelectual por ela recebidas, especialmente a de profecia e de discernimento dos espíritos.

 

A fé iluminada pelos dons em Maria 

Se pensarmos na perfeição natural da alma da Santíssima Virgem, a mais perfeita de todas após a alma do Salvador, teremos de admitir que sua inteligência natural já estivesse dotada de uma grande penetração e de uma grande retidão, e que essas qualidades naturais não deixaram de se desenvolver no curso de sua vida.

Sua fé infusa era, com maior razão, profundíssima da parte do objeto pela revelação que lhe foi feita imediatamente, no dia da Anunciação, dos mistérios da Encarnação e da Redenção, e por sua santa familiaridade de todos os dias com o Verbo feito carne. Subjetivamente, sua fé era firmíssima, certíssima e prontíssima em sua adesão, porque essas qualidades da fé infusa são tanto maiores quanto mais elevada é a fé. Maria recebeu a fé infusa no maior grau que já existiu, e o mesmo deve ser dito de sua esperança, porque Jesus, que teve a visão beatífica desde o primeiro instante de sua concepção, não tinha a fé nem a esperança, mas a plena luz e posse dos bens eternos que nos foram prometidos.

Não poderíamos ter uma idéia da sublimidade da fé da Virgem Maria. Na Anunciação, a partir do instante em que lhe foi proposta suficientemente a verdade divina sobre o mistério da Encarnação redentora, ela acreditou. Por isso lhe disse Santa Isabel, um pouco depois: “Bem-aventurada tu, que creste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas”1. No Natal, observou seu Filho nascer num estábulo, e acreditou que Ele é o criador do universo; percebeu toda a fragilidade do seu corpo de recém-nascido, e acreditou em sua onipotência; quando Ele começou a balbuciar as primeiras palavras, acreditou que Ele era a própria sabedoria; quando teve de fugir com Ele da cólera do rei Herodes, acreditou, não obstante, que era o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, como diria posteriormente São João. No dia da Circuncisão e da Apresentação no Templo, sua fé se tornou cada vez mais esclarecida sobre o mistério da Redenção. Maria viveu na Terra num contraste perpétuo, distinguindo claramente as trevas aqui de baixo, que provêm do erro e do mal, e a escuridão das alturas, uma escuridão que está acima da luz divina acessível na Terra, e que permite pressentir o que há de mais elevado nos mistérios divinos que os bem-aventurados contemplam abertamente no Céu.

Durante a Paixão, quando os Apóstolos se afastaram, exceto São João, ela permaneceu junto à Cruz, de pé, sem desfalecer; não cessou nem por um instante de crer que seu Filho era verdadeiramente o Filho de Deus, Deus mesmo, e que era, como disse o Precursor, “o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”; que aparentemente derrotado, era o vencedor do demônio e do pecado e que dentro de três dias seria vitorioso sobre a morte por sua ressurreição, como havia anunciado. Esse ato de fé da Virgem Maria no Calvário foi, naquela hora negra, o maior e mais profundo que já existiu, pois o objeto desse ato era o mais difícil: que Jesus alcançaria a maior vitória através da mais completa imolação.

Essa fé estava admiravelmente iluminada pelos dons que possuía em nível proporcionado ao de sua caridade. O dom da inteligência fazia-lhe penetrar e compreender os mistérios revelados, seu significado interior, sua conveniência, sua harmonia, suas conseqüências; fazia-lhe ver melhor sua credibilidade, em particular nos mistérios em que ela participou mais que qualquer outra pessoa, como o mistério da concepção virginal de Cristo e o da Encarnação do Filho de Deus e, conseqüentemente, nos mistérios da Santíssima Trindade e da economia da Redenção.

O dom da sabedoria, sob a inspiração do Espírito Santo, permitia-lhe julgar as coisas divinas por essa concordância ou conaturalidade que está fundada na caridade2. Ela conhecia assim experimentalmente quão bem esses mistérios correspondem às nossas aspirações mais elevadas e suscitam sempre novas para completá-las. Desejava os mistérios na proporção da sua caridade, que não cessava de aumentar, de sua humildade e de sua pureza. Em Maria se realizaram eminentemente as palavras: “É aos humildes que Deus dá sua graça”, “bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus”; já o vislumbram desde aqui na Terra.

Pelo dom da ciência, o Espírito Santo permitia-lhe julgar as coisas criadas, seja como símbolos das coisas divinas, no sentido de que os Céus cantam a glória de Deus, seja para compreender sua nulidade e fragilidade, e apreciar melhor, por contraste, a vida eterna.

 

Privilégios particulares de sua inteligência

À fé e aos dons do Espírito Santo, que se encontram em diversos graus em todos os justos como funções do organismo espiritual, agregavam-se em Maria, como em muitos outros santos, as graças gratuitas (gratis datae) ou carismas, outorgados sobretudo para o benefício do próximo. Estes são antes sinais exteriores para confirmar a revelação e a santidade do que formas da vida sobrenatural, e por isso distinguem-se da graça santificante, das virtudes infusas e dos dons, que são de ordem mais elevada3.

A esse respeito, os teólogos admitem geralmente este princípio: mais que todos os outros santos, Maria recebeu todos os privilégios que as grandes conveniências exigiam para ela e que não tinham nenhuma incompatibilidade com seu estado. Em outros termos, ela não podia ficar, com respeito ao título de Mãe de Deus, em condição de inferioridade em relação aos outros santos, aos quais superava muitíssimo pela medida em que tinha a graça habitual, as virtudes infusas e os sete dons.

É preciso bem compreender esse princípio, mas não de uma maneira muito material. Se, por exemplo, alguns santos viveram longos meses sem alimento, ou se caminharam sobre as águas para ir ao socorro de alguém, não se segue que a Santíssima Virgem o tenha feito também; é suficiente que esses dons estejam contidos nas graças de ordem superior4.

Mas em virtude do princípio enunciado, devem ser atribuídos a ela muitíssimos carismas, seja de uma maneira certa ou ao menos com grande probabilidade.

Em primeiro lugar, deve-se admitir que ela tenha tido por privilégio, em maior grau que os outros santos, o conhecimento profundo da Escritura, sobretudo no que se refere ao Messias, à Encarnação redentora, à Santíssima Trindade, à vida da graça, às virtudes e à vida eterna.

Embora não correspondesse a Maria exercer o ministério oficial da Igreja, ela deve ter esclarecido São João e São Lucas em muitíssimas coisas relativas à infância e à vida oculta de Jesus5.

Quanto aos objetos de ordem natural, ela deve ter tido o conhecimento claro e profundo das coisas que eram de alguma utilidade; não lhe era necessário saber que o sal comum é cloreto de sódio ou que a água é constituída de hidrogênio e oxigênio para conhecer bem suas propriedades naturais, e nem mesmo seu simbolismo superior. A Virgem tinha das coisas naturais o conhecimento que serve para penetrar melhor nas verdades morais e religiosas, esse que manifesta a existência de Deus, sua Providência universal que se estende ao mais ínfimo detalhe; esse conhecimento que manifesta também a espiritualidade e a imortalidade da alma, nosso livre arbítrio, nossa responsabilidade, os princípios e conclusões da lei moral e as relações da natureza e da graça. Compreendia admiravelmente a finalidade da natureza, a ordem da criação, a subordinação de toda causa criada à causa suprema; não confundia essa subordinação com o que não seria mais que coordenação da ação da criatura com aquela do Criador. Sabia que todo o bem procede de Deus, até a livre determinação de nossos atos salutares e meritórios, e que ninguém seria melhor que o outro se não fosse mais amado por Deus, o que constitui o fundamento da humildade e da ação de graças.

O conhecimento de Maria neste mundo tinha seus limites, sobretudo no início; assim, não compreendeu de início todo o alcance das palavras de Jesus menino referentes aos assuntos de seu Pai6. Mas, como se tem dito muitas vezes, eram limitações em vez de lacunas; não era ignorância, pois não se tratava da privação de um conhecimento que teria convindo que possuísse naquele momento. A Mãe de Deus soube, nos diferentes momentos de sua vida, o que convinha que soubesse.

Com maior razão, jamais esteve sujeita a erro; evitava toda precipitação no julgamento ou o suspendia enquanto não possuísse as luzes suficientes; e se ainda não estava segura, contentava-se em admitir a coisa como verossímil ou provável, sem afirmar, nem mesmo interiormente, que fosse verdadeira. Por exemplo, é dito em São Lucas7 que quando Jesus, à idade de doze anos, permaneceu em Jerusalém, Maria julgou ou supôs que ele estava na caravana junto com os parentes ou amigos. Era uma suposição verossímil, verdadeiramente provável, e nisso não se enganava.

Vimos antes8 que Maria teve muito provavelmente, segundo a apreciação de muitos teólogos, ao menos de maneira transitória, desde o seio de sua mãe, a ciência infusa para ter o uso do livre arbítrio e o mérito que fazia frutificar a plenitude inicial de graça. Se muito provavelmente lhe foi assim outorgada essa ciência infusa, fica difícil dizer que em seguida tenha ficado privada dela, pois teria se tornado menos perfeita, em vez de progredir incessantemente na linha do mérito. A mesma razão de conveniência, vimos também, levou muitos teólogos, como São Francisco de Sales e Santo Afonso, a afirmar que Maria possuía o uso dessa ciência infusa mesmo durante o sono, para continuar merecendo. Mas Jesus aceitou e ofereceu sua

Entre as graças gratuitas, não se pode negar a Maria o dom da profecia, que, aliás, torna-se manifesto no Magnificat, particularmente por estas palavras: “eis que, de hoje em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada”9. A realização dessa profecia é tão evidente e constante depois de séculos, quão concreto e definitivo é o anúncio. E não foi evidentemente a única profecia na vida da Santíssima Virgem, pois esse dom é muito freqüente em vários santos, como se pode ver na vida do Cura d'Ars e de São João Bosco10.

Como muitos santos, finalmente, Maria deve ter possuído o dom do discernimento dos espíritos, para reconhecer o verdadeiro espírito de Deus, distingui-lo de toda ilusão diabólica ou da exaltação natural, para poder penetrar assim os segredos dos corações, sobretudo quando lhe pediam conselhos, para responder sempre de maneira justa, oportuna e imediatamente aplicável, como faziam tantas vezes o Cura d'Ars e muitos outros servos de Deus.

Vários teólogos reconhecem ainda em Maria o dom de línguas, para usá-lo quando teve de viajar para países estrangeiros, como o Egito e Éfeso 11. Com maior razão, depois da Assunção, Maria teve a plenitude desse dom, uma vez que nas aparições de Lourdes, La Salette e em outros lugares, ela falava o dialeto da região onde aparecia; dialeto que, ademais, era o único idioma conhecido das crianças a quem dirigia a sua mensagem celestial.

Também se tem perguntado se Maria teve, em sua vida terrena, por alguns instantes, a visão imediata da essência divina, da qual gozam no Céu os bem-aventurados.

Os teólogos ensinam comumente, contra G. Vega e Francisco Guerra, que certamente ela não a teve de forma permanente, no que difere de Nosso Senhor, pois se a tivesse possuído, não teria tido fé.

Teve esse privilégio até o final de sua vida e de maneira transitória? É difícil responder com certeza. Tinha de ter uma visão intelectual da Santíssima Trindade superior àquela que recebeu Santa Teresa e outros santos que chegaram até a união chamada transformante (VII Morada de Santa Teresa); mas essa visão intelectual, por mais elevada que seja, é sempre da ordem da fé, inferior à visão imediata da essência divina, e é comunicada por idéias infusas.

Sabe-se que, segundo Santo Agostinho e Santo Tomás12, é provável que São Paulo tenha tido por um momento a visão beatífica, pelo que diz na segunda Carta aos Coríntios, “foi arrebatado (não sei se foi no corpo, se fora do corpo ― só com a alma ― Deus o sabe) até ao terceiro céu. (...) e arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis que não é lícito (ou possível) a um homem proferi-las (explicando-as)”13.

Santo Agostinho e Santo Tomás observam que o terceiro céu, segundo os hebreus, não é o céu do ar nem dos astros, mas o Céu espiritual onde Deus habita e é visto pelos anjos ― o paraíso, como diz o próprio São Paulo no texto citado. Esses dois grandes doutores consideram como provável que São Paulo tenha tido por um momento a visão beatífica, porque foi chamado a ser o Doutor dos Gentios e da graça, e que não se pode plenamente conhecer o preço da graça, o germe da glória, sem ter gozado por um momento desta. Existe uma séria probabilidade de que tenha sido assim, considerando a autoridade dos dois maiores teólogos da Igreja, que por sua vez também receberam inumeráveis graças místicas e que podiam julgar muitíssimo melhor que nós a questão que estamos tratando.

Essa opinião de Santo Agostinho e de Santo Tomás não é, todavia, aceita por Estio nem por Cornélio a Lápide. Exegetas modernos, como o Pe. B. Allo O. P., em seu comentário sobre a Segunda Epístola aos Coríntios, contentam-se em dizer que “São Paulo foi arrebatado aos cumes da contemplação divina e deve ter entoado os cânticos indizíveis dos bem-aventurados ao redor do trono de Deus”.

E de volta à Santíssima Virgem, deve-se notar com o Pe. Hugon14 que, se é provável que São Paulo tenha recebido esse privilégio por um momento, é muito difícil negá-lo à Mãe de Deus, pois sua divina maternidade, sua plenitude da graça e a carência absoluta de faltas dispunham-na mais que ninguém para a eterna bem-aventurança. Se não se pode afirmar com certeza que tivesse durante alguns instantes a visão beatífica aqui na Terra, é ao menos muito provável que tenha tido15.

Esse simples olhar é suficiente para formarmos uma idéia do que foram durante sua vida terrena os dons intelectuais da Santíssima Virgem.

 

As principais virtudes de Maria

Falamos um pouco antes de sua fé; convém indicar brevemente o que foram nela a esperança, a caridade, as quatro virtudes cardeais e em seguida sua humildade e bondade.

A Esperança, pela qual aspirava possuir a Deus que ainda não via, era uma perfeita confiança que se apoiava não nela mesma, mas na misericórdia divina e na onipotência auxiliadora. Esse fundamento lhe dava uma certeza muito segura, “certeza de tendência”, diz Santo Tomás16, que nos faz pensar naquela que o navegador possui, depois de ter tomado o rumo certo, de dirigir-se efetivamente para o termo da sua viagem, e que vai aumentando na medida em que se aproxima do final do itinerário. Em Maria, essa certeza aumentava também pelas inspirações do dom da piedade, pelo qual, ao despertar em nós um amor inteiramente filial para com Ele, “o Espírito Santo dá testemunho ao nosso espírito, de que somos filhos de Deus”17 e que podemos contar com seu auxílio.

Essa certeza da esperança era tanto maior em Maria quanto ela estava confirmada na graça, preservada de toda falta e, por conseguinte, de todo desvio, fosse para o lado da presunção ou para o da depressão e da falta de confiança em Deus.

Exercitou essa esperança perfeita ainda em sua infância, quando suspirava ardentemente pela vinda do Messias, quando a desejava para a salvação das nações, quando esperava que o segredo da concepção virginal do Salvador fosse revelado a José, seu esposo; quando fugiu para o Egito; e mais tarde no Calvário, quando tudo parecia perdido e ela esperava a perfeita e próxima vitória de Cristo sobre a morte, como Ele mesmo havia anunciado. Sua confiança, enfim, animou e assegurou a confiança dos Apóstolos em meio às lutas incessantes pela difusão do Evangelho e pela conversão do mundo pagão.

Sua caridade, seu amor a Deus por Ele mesmo e às almas por Deus, superava desde o princípio a caridade final de todos os santos reunidos, uma vez que existia no mesmo grau que a plenitude de graça, e Maria estava sempre mais intimamente unida ao Pai, como sua filha predileta, ao Filho, como sua Virgem Mãe, estreitamente associada à sua missão, e ao Espírito Santo, por um matrimônio espiritual que superava largamente aquele que tiveram os maiores místicos. Ela era, num grau que não podemos vislumbrar, o templo vivo da Santíssima Trindade. Deus a amava mais que a todas as outras criaturas juntas, e Maria correspondia perfeitamente a esse amor, após ter-se consagrado plenamente a Ele desde o primeiro instante de sua concepção e vivendo sempre na mais completa conformidade de vontade com Seu beneplácito.

Nenhuma paixão desordenada, nenhuma vã preocupação, nem mesmo a mínima distração freava esse impulso de seu amor por Deus; seu zelo pela regeneração das almas era proporcionado a esse impulso; ela se oferecia incessantemente e oferecia seu Filho para nossa salvação.

Exerceu essa caridade em grau tão eminente e de maneira contínua. Porém, mais especialmente quando se consagrou totalmente a Deus, ao ser apresentada no templo e fazer o voto de virgindade, encomendando-se à Providência para poder observá-lo perfeitamente; posteriormente, na Anunciação, quando deu seu consentimento com uma perfeita conformidade à vontade de Deus e por amor a todas as almas as quais havia de salvar; também quando concebeu seu Filho e lhe deu a vida; ao apresentá-lo no templo e encontrá-lo mais tarde no meio dos doutores, e ao oferecê-lo finalmente no Calvário, participando em todos os seus padecimentos para a glória de Deus, em espírito de reparação e para a salvação de todos. No momento mesmo em que escutava os gritos: “Que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”, uniu-se à oração do Salvador pelos seus algozes: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”18.

A Igreja aplica-lhe também estas palavras do Eclesiástico19: “Eu sou a Mãe do amor formoso e do temor de Deus, da ciência e da santa esperança”20.

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*   *

As virtudes morais infusas estão em todos os justos num grau proporcionado àquele de sua caridade: a prudência na razão para assegurar a retidão do juízo prático segundo a lei divina, a justiça na vontade para dar a cada um o que lhe é devido, a fortaleza e a temperança na sensibilidade para discipliná-la e fazer que resida nela a retidão da justa razão iluminada pela fé. A essas quatro virtudes cardeais acrescentam-se as outras virtudes morais infusas.

Quanto às virtudes adquiridas, que são de ordem natural, facilitam o exercício das precedentes, às quais são subordinadas, como a agilidade dos dedos do artista facilita o exercício da arte, que reside na inteligência.

A prudência em Maria dirigia todos os seus atos ao fim último sobrenatural, sem nenhum desvio; todas as suas ações eram deliberadas e meritórias. Por isso a Igreja a chama Virgo prudentissima. Maria exerceu particularmente essa virtude iluminada pelo dom do conselho, na Anunciação, quando “perturbada com as palavras do anjo, discorria pensativa que saudação seria esta”21 e quando perguntou depois: “Como se fará isso, pois eu não conheço varão”; e depois de ter sido iluminada, quando disse: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”.

Exerceu a justiça evitando toda falta contrária a essa virtude, observando todas as prescrições da lei, até a da purificação, ainda que não tivesse nenhuma necessidade de ser purificada, e ordenando toda a sua vida para o melhor bem da humanidade a ser regenerada e de seu povo.

Ela praticou no mais alto grau a justiça para com Deus, isto é, a virtude da religião, unida ao dom da piedade, consagrando-se totalmente ao serviço de Deus desde o primeiro instante, ao fazer o voto de virgindade, ao oferecer seu Filho durante a apresentação no templo, e ainda mais ao oferecer a sua morte na cruz. Ofereceu também com Ele o ato mais perfeito da virtude da religião: o sacrifício perfeito, o holocausto de valor infinito. Praticou também a obediência perfeita a todos os mandamentos, acompanhada da mais generosa prontidão em seguir todos os conselhos e inspirações do Espírito Santo.

Essa justiça foi sempre unida à misericórdia; perdoou, com seu Filho, todas as injúrias que lhe foram feitas, e mostrou grande comiseração pelos pecadores e pelos aflitos. A Igreja também a chama Mãe de Misericórdia, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, título que ostentam milhares de santuários nos diferentes países do mundo; por ela se realiza esta palavra do salmista: “Misericordia Dei plena est Terra”. A Terra está cheia da misericórdia de Deus.

A fortaleza ou a firmeza da alma que não se deixa abater pelos maiores perigos, nem pelos mais duros trabalhos e penosas aflições, brilhou em Maria em grau não menos eminente, sobretudo durante a Paixão do Salvador, quando permaneceu ao pé da Cruz, sem desfalecer, segundo o testemunho de São João22. Sabe-se que Caetano escreveu um opúsculo intitulado De spasmo Virginis contra a opinião que afirmava que Maria havia desfalecido no caminho do Calvário. Medina, Toledo, Suárez e a maioria dos teólogos rejeitaram igualmente essa opinião.

A Santíssima Virgem foi sustentada pelas inspirações do dom da fortaleza até o ponto em que mereceu, pelo martírio do coração, ser chamada de Rainha dos Mártires, pelo fato de ter participado interiormente das dores de seu Filho mais profunda e generosamente que todos os mártires em todos os seus tormentos exteriores. A Igreja recorda-nos isso na festa da Compaixão da Santíssima Virgem e na festa das Sete Dores de Nossa Senhora, principalmente no Stabat Mater, onde se diz:

16. Fac, ut portem Christi mortem,

passionis fac consortem,

et plagas recolere.

Traga em mim do Cristo a morte,

da Paixão seja consorte, 

suas chagas celebrando.

17. Fac me plagis vulnerari, 

fac me Cruce inebriari,

et cruore Filii.

Por elas seja eu rasgado,

pela cruz inebriado,

pelo sangue de teu Filho!

Foi ao mais alto grau da fortaleza, da paciência e da magnanimidade ou grandeza de alma, na mais extrema aflição.

A temperança em seus diferentes aspectos, especialmente a virgindade perfeita, aparece em sua angélica pureza, que assegurava totalmente o predomínio da alma sobre o corpo, das faculdades superiores sobre a sensibilidade, de maneira que Maria espiritualizava-se cada dia mais; a imagem de Deus refletia-se nela como num puríssimo espelho sem traço algum de imperfeição.

A humildade nunca teve de reprimir em Maria o menor primeiro movimento de orgulho ou de vaidade, mas elevou-a ao ato próprio e peculiar dessa virtude: reconhecer praticamente que ela, por si só, não era nada e nada podia fazer sem a graça, na ordem da salvação; inclinava-se também diante da infinita majestade de Deus e diante do menor traço que aparecia d’Ele em todo ser criado. Mais que qualquer outra criatura, colocou sua grandeza em Deus e nela se realizou eminentemente esta palavra do Missal: Deus humilium celsitudo.

No dia da Anunciação, disse: “Sou a escrava do Senhor” e no Magnificat deu graças ao Altíssimo por ter-se dignado olhar sua ínfima condição. No dia da Purificação, submeteu-se a uma lei que não se aplicava a ela. Ao longo de sua vida, sua humildade manifestou-se em todo o exterior: sua perfeita modéstia, sua pobreza voluntária, os trabalhos corporais mais singelos realizados por ela depois de ter recebido as maiores graças que qualquer outra criatura jamais receberá.

Sua bondade ou mansidão correspondia à sua humildade, segundo estas palavras da liturgia: Virgo singularis, inter omnes mitis; mesmo diante daqueles que crucificaram seu Filho, não proferiu a menor palavra de indignação, mas com Ele perdoou-os, rezando por eles; é a mansidão levada ao máximo grau, unida juntamente à virtude da fortaleza.

Todas as virtudes, mesmo aquelas que aparentemente são opostas, uniram-se em Maria na mais perfeita harmonia e nos fazem pensar na simplicidade eminente de Deus, onde se fundem, simultaneamente, as perfeições absolutas mais distintas, como a infinita justiça e a infinita misericórdia.

Tais são os dons intelectuais de Maria e suas principais virtudes, que fizeram dela o modelo da vida contemplativa, unida à maior devoção para com o Verbo Encarnado e ao apostolado escondido e silencioso mais profundo e universal que já existiu, pois ninguém esteve associado como ela à imensa obra da Redenção, como veremos mais tarde ao falar de sua mediação universal23.

O que acabamos de dizer sobre as principais virtudes de Maria, seus dons intelectuais e sua harmonia completa nos mostram mais concretamente o que foi nela o progresso espiritual e como a plenitude de graça aumentou consideravelmente nela no momento da Encarnação e nos principais mistérios que se seguiram: no nascimento do Salvador, na apresentação de Jesus no templo, em seguida, na fuga para o Egito, na vida oculta em Nazaré e mais ainda no Calvário, em Pentecostes e quando assistia e comungava na Missa celebrada por São João.

Convém tratar, a seguir, da plenitude final de graça no momento de sua morte e no instante de sua entrada no Céu. Poderemos seguir assim as fases sucessivas da vida espiritual de Maria desde a Imaculada Conceição até o momento de sua glorificação, da mesma forma que um rio proveniente de uma fonte muito alta e que, depois de fertilizar tudo por onde passa, precipita-se no oceano.

  1. 1. Lc 1, 45.
  2. 2. Cf. SANTO TOMÁS, IIª IIae, q. 45, a. 2.
  3. 3. Cf. SANTO TOMÁS, Iª IIae, q. III, a. 5.
  4. 4. Cf. e. dublanchy. Dict. Théol. cath., art. Marie, col. 2367-2368; ver também ibidem, col. 2409-2413 ss.: A ciência de Maria durante sua vida terrena; as fontes desse conhecimento, sua extensão e perfeição.
  5. 5. Observa Caetano in IIIam P., q. 27, a. 5: “Posset tamen dici quod non publica doctrina, sed familiari instructione, quam constat mulieribus non esse prohibitam, B. Virgo aliqua particularia facta explicavit Apostolis”, e isso com mais motivo e razão que Maria Madalena, chamada Apostolorum apostola, por ter levado aos Apóstolos a notícia da Ressurreição do Senhor.
  6. 6. Lc, 2, 48.
  7. 7. Lc 2, 44.
  8. 8. Capítulo II, artigo 5, ao final.
  9. 9. Lc 1, 48.
  10. 10. Pela mesma razão, muitos teólogos reconhecem que Maria, principalmente depois da Ascensão, como muitos outros servos e servas de Deus, teve a graça das curas milagrosas, para aliviar as dores, enxugar as lágrimas, socorrer os infelizes que a ela acudiam ou que encontrava pelo caminho. Maria foi, já neste mundo, o consolo dos aflitos, de uma forma que manifestava sua excelsa santidade. Isso é o que dizem Santo Alberto Magno, Santo Antonino, Suárez e a maior parte das obras atuais de Mariologia.
  11. 11. Tal é o parecer de santo alberto magno, santo antonino (IV p., cap. XIX), gerson (Sermo I de Espirito Sancto), suárez (in IIIam, disp. 20, sect. 2), de cornelio a lápide (in Act. Apost., II, 4) e de muitos outros teólogos modernos.
  12. 12. IIª IIae, q. 175, a. 3.
  13. 13. 2Cor 12, 2; 4.
  14. 14. Marie, pleine de grâce, 5ª edição, 1926, p. 106 e ss.
  15. 15. Cf. E. Dublanchy, Dict. Théol. cath., art. Marie, col. 2410: “Uma última e especial fonte de ciência para Maria, durante sua vida terrena, foi uma participação transitória da visão beatífica, que lhe foi comunicada algumas vezes, como o admitem para Moisés e para São Paulo muitos teólogos seguindo SANTO Agostinho, Epist., CXLVII, n. 31. ss., P. L., col. 610 ss e Santo Tomás, Sum. Theol., IIª IIae, q. 175, a. 3., De veritate, interpretando nesse sentido muitos textos bíblicos.

    “Conferido provavelmente a Moisés e a São Paulo, esse privilégio deve ter sido outorgado também à Mãe de Deus, segundo o princípio que autoriza atribuir-lhe os privilégios concedidos aos demais santos e que é muito conveniente por sua dupla dignidade de Mãe de Deus e de corredentora ou medianeira universal. Cf. Gerson, Super Magnificat, tr. III, Opera, Amberes, 1706, t. IV, col. 268; S. Antonino, Sum. Theol., part. IV, tít. XV, c. XVII, 1; Dionisio Cartuxo, De praeconio et dignitate Mariae, 1. II, art. 8; De dignitate et laudibus B. M. Virginis, 1. II, a. 12; Suárez, in IIIam S. Thomae, t. II, disp. XIX, sec. IV, 29, item Novato, Sedlmayr, Lépicier. Quanto à freqüência, duração e abrangência dessa participação (da visão beatífica), só se podem formar conjecturas”.

  16. 16. IIª IIae, q. 18, a. 4: “A esperança tende com certeza para o seu fim, como participando da certeza da fé, que tem a sua sede na potência cognoscitiva”. Ad 2: “A esperança não se apóia principalmente na graça já adquirida, mas na divina omnipotência e misericórdia, que levam a alcançar a graça mesmo o que não a tem, para assim, chegar à vida eterna”.
  17. 17. Rom 8, 16.
  18. 18. Lc 23, 34.
  19. 19. Eclo 24, 24.
  20. 20. Esse versículo não se encontra no texto hebraico, mas sim em muitíssimos manuscritos gregos e na Vulgata.
  21. 21. Lc 1, 29.
  22. 22. Jo 19, 25.
  23. 23. A doutrina comum sobre as virtudes de Maria foi exposta teologicamente por Justino Miechow, O. P., em sua obra latina, traduzida para o francês com o título Conférence sur les litantes -. Ver também, sobre esse ponto, o belo livro do p. r. bernard, O. P., O Mistério de Maria, Edições Desclée, de Brouwer, Buenos Aires, 1946, p 147 e ss. O que fez por nós a Santíssima Virgem Maria durante os anos da vida oculta de Nosso Senhor: “Jesus realizava então a parte mais afetuosa e elevada de sua obra, a santificação desses dois seres (Maria e José) a quem tinha tão próximos e que serão tão excelsos em Seu reino”.

    O Pe. Rambaud, O. P. tratou também recentemente das diferentes virtudes da Santíssima Virgem em seu livro Douce Vierge Marie, Lion, 1939. Ver os capítulos: Virgem prudentíssima, Virgem clemente, Virgem fiel, Sede da Sabedoria.

    Cf. também na coleção Les Cahiers de la Vierge (éditions de la Vie Spirituelle) as páginas profundas e delicadamente escritas pelo padre Ch. Journet na revista Notre-Dame des Sept-Douleurs e pelo cônego Daniel Lallement em Mater Misericordiae. Cf. ibidem, Le Mois de Marie, do Pe. A. D. Sertillanges.

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