Garrigou-Lagrange, O. P.
Recentemente, alguns estudos muito bons foram publicados sobre a vida interior das crianças . Nós gostaríamos de sublinhar aqui alguns aspectos relacionados às virtudes heróicas nelas, tomando como exemplo a vida de Anne de Guigné .
De acordo com Bento XIV , as virtudes heróicas, para serem comprovadas, exigem quatro condições: 1) a matéria, objeto da virtude, deve ser árdua ou difícil, acima das forças comuns dos homens; 2) os atos devem ser realizados com prontidão e facilidade; 3) também devem ser realizados com certa alegria, que é a de oferecer um sacrifício ao Senhor; 4) bem como com alguma frequência, quando surge a ocasião.
A primeira dessas condições mostra que o heroísmo nas crianças é relativo à sua idade, às suas forças, às condições que comumente possuem. Se alguns adultos são muito pequenos [espiritualmente], há crianças que, por suas virtudes, já são bem grandes. A escritura diz: Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem: "Da boca das crianças e meninos de peito fizeste sair louvor” (Sl 8, 3). Foi isso que Jesus recordou aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas indignados ao ver crianças gritarem no templo: "Hosana ao filho de Davi" (Mt 21, 16); e se, por vezes, a fé dos pequenos serve de exemplo para os grandes, o mesmo deve ser dito de sua confiança e amor.
Pensemos aqui o que pode e deve ser, de acordo com o pensamento e a vontade de Deus, o heroísmo de cada um nas várias idades da vida e nas mais diferentes condições. Deve-se tomar cuidado não apenas com o que se ensina, mas com o que se deve ensinar para se alcançar a perfeição cristã. Devemos também nos lembrar que o sacramento da confirmação já faz da criança um soldado de Cristo. Também não devemos nos esquecer de como as crianças entendem o heroísmo: na maioria das vezes, quando são heróicas, não sabem que são. A criança, quando é heróica, é simples, sem exibição; sua simplicidade lembra a de Jesus na sagrada família de Nazaré.
Convém também assinalar que, na inocência da criança batizada, o Espírito Santo não tem muito o que purificar antes de comunicar a sua luz de vida e sua força atrativa. De fato, existem certas conseqüências marcantes do pecado original, que são como feridas que curam após o batismo. Mas elas não foram agravadas pelos pecados pessoais reiterados. A criança em estado de graça, desde que não peque pessoalmente, está em contato direto com a Santíssima Trindade que nela habita; sua alma é como um diamante, que ainda precisa ser lapidado, mas que praticamente não tem escórias. Das dolorosas purificações, necessárias aos católicos pecadores na medida dos seus pecados, o Espírito Santo dispensa a criança que é fiel à graça no cumprimento dos deveres da sua idade. Então nós a vemos se elevar... ela se deixa levar, não mais por sua mãe, mas pela graça do Todo-Poderoso. Certamente, ainda é preciso deixar-se levar ou conduzir. A criança, menos cheia de coisas para sacrificar, mais livre, mais pura em suas intenções, com frequência sofre menos que o homem.
A comunhão precoce por vezes leva a frutos de heroísmo nas almas desses pequeninos. A crisma traz uma nova floração de graças; por vezes se constata um belo desabrochar dos sete dons na alma infantil, na medida em que a criança ainda não raciocina de modo metódico e complicado, e segue diretamente para a verdade, como que por intuição.
Nas melhores delas, nota-se uma relativa elevação das virtudes teologais. Como a criança, consciente de sua ignorância e de sua fraqueza, é naturalmente inclinada a acreditar no que o seu pai e a sua mãe lhe dizem, a confiar neles e a amá-los, não apenas pelos benefícios recebidos, mas em si mesmos; do mesmo modo, ela é movida pela graça do batismo a crer na palavra de Deus, que lhe é transmitida pela sua mãe e, em seguida, pelo sacerdote que a instrui, ela é igualmente inclinada a confiar em Deus e a amá-Lo por si mesmo. Ela vive à sua maneira das três virtudes teológicas, antes de refletir sobre a necessidade das virtudes cardeais da prudência, justiça, força e temperança. Nas orações da manhã e da noite, são atos de fé, esperança e caridade que pedimos delas. Se ela é fiel, a cada dia fará esses atos um pouco melhor.
Mais tarde, quando os sentidos despertarem, quando tiverem de entrar em contato com os homens, compreenderão a necessidade das virtudes morais que disciplinam as paixões e que regulam nossos relacionamentos com os outros de maneira justa e equitativa. Então, impressionadas com a importância dessas últimas virtudes de ordem humana, talvez dêem menos atenção às virtudes muito mais elevadas que unem nossas almas a Deus. Ao perderem sua ingenuidade infantil, poderão perder também algo de sua intimidade com o Senhor; não atentarão o suficiente, talvez, para o fato de que, quanto mais avançamos, se é preciso agir menos como criança diante dos homens, é preciso agir mais como criança diante de Deus, pelo progresso da vida de graça, pela consciência de nossa dependência de nosso Pai Celestial, pela intimidade cada vez maior a que Ele se digna nos chamar; finalmente, temos de entrar, por assim dizer, no seio de Deus: os eleitos no céu estão em in sinu Dei, um pouco como o seu Unigênito que está em sinu Patris (Jo 1, 18).
A simplicidade das crianças ajudam-nas a entrar nas alturas de Deus pela Fé, pela Esperança e pela Caridade.
A Fé
As crianças acreditam de bom grado nas coisas do Céu, sem deixarem de querer ver e entender o máximo que podem. Não demoram a compreender que esses grandes mistérios não podem ser vistos aqui embaixo, que é preciso crer e, de todo o coração, elas querem fazê-lo. Se forem dóceis, irão crer de modo cada vez mais firme.
Essa perseverança na fé é uma maravilha em algumas crianças. Somente a graça divina pode levá-las a crer firmemente em mistérios tão elevados, invisíveis e incompreensíveis, e dedicar-lhes não uma atenção passageira, e sim uma atenção contínua e cada vez mais penetrante.
Vemos como isso foi o ponto de partida da vida interior de Anne de Guigné. Era essa a verdade fundamental que ela anotava cuidadosamente em seu caderno: “Precisamos salvar nossa alma, ela voltará a Deus, seu Criador. Nosso corpo vem da terra, mas nossa alma vem de Deus". Eis uma verdade elementar para todo católico, mas à qual ela sempre retorna quando fala com Nosso Senhor. Ela escreveu no início de um retiro em abril de 1921: "Quanto mais falo com Ele, mais Ele me responde. Jesus fala comigo poer meio do padre, por meio dos conselhos que o padre me dá. Onde Jesus mais fala comigo acima é no fundo da minha alma por meio da sua graça. O bom Senhor me dirá: quero você mais obediente, não quero que seja vaidosa. Se você já é assim na sua idade, o que será depois?"
Ela observa em outro lugar: "Devemos ter um grande respeito pela presença de Deus. Precisamos respeitar a Deus e a nossos pais... amá-los de todo coração, prestar o máximo de serviços possível, obedecê-los e fazer o que quiserem". Ela acolhe com entusiasmo a idéia de ir ao catecismo para aprender as verdades da religião.
A dificuldade da Fé não vem apenas da sua obscuridade, mas também do seu caráter prático, quando, por exemplo, ela nos pede assentimento para algum sacrifício, como a aceitação da doença ou de sofrimentos que se prolongam. Bem rápido, a criança dirá: “Chega!”. Crer que o bom Deus deseje o seu sofrimento como uma ocasião de luta e para promover um amor mais generoso lhe é difícil. É preciso uma vontade corajosa e, sobretudo, a luz e a força divina para dominar-se.
A primeira grande dor para Anne de Guigné foi a morte do seu pai. O modo sobrenatural com que aceitou essa morte, como o seu biógrafo demonstra, representou para sua alma o ingresso numa vida nova: pela fé, ela começou a viver do pensamento do outro mundo e a enxergar a vida presente desde uma perspectiva superior. Desde então, essa criança, armada de uma vontade enorme, cede, luta a cada dia e, em alguns meses, é como que invadida pelo Espírito de luz, “doce hospedeiro da alma”. Anne se torna cada vez mais submissa; ela que era inclinada ao ciúme, busca a partir de então só pensar nos outros e não recusa mais nada ao bom Deus. Ao adoecer, declara: “Meu bom Jesus, tudo o que quiserdes!” Isso é mais do que uma simples resignação, pois inspira-se numa grande fé.
Anne, que ama muito a Santíssima Virgem sob o título de Nossa Senhora das Dores, escreve: “De pé diante da cruz, sobre a qual seu Filho estava pregado, Maria chorava… Dai-me a graça de chorar convosco…” — Por que chorar? — “Porque Jesus não é amado o bastante”.
Onde encontrar uma criança que deseje a graça de chorar? A luz divina da fé viva, esclarecida pelos dons do Espírito Santo, traçava o caminho por onde a sua alma avançava.
A Esperança
A Esperança não é menos viva que a fé numa criança profundamente católica. Assim como confia naturalmente em seus pais, dos quais se sente amada, a graça a leva a contar sobre o amor de Deus, a esperar o socorro da sua bondade e do seu poder. Sob a luz divina, percebe limpidamente, mas nem sempre sem pena, as manifestações da bondade infinita. Ela crê que a Providência dirige tudo, que nada acontece sem que "Deus o tenha desejado ou permitido”. Ela espera o socorro divino, conta com ele. Quando mais tarde lhe ensinarem que “o motivo formal da esperança é Deus, em quem sempre devemos contar”, compreenderá imediatamente, pois sua experiência há muito lhe terá instruído acerca do socorro divino.
Ao chegar a hora de fazer certos sacrifícios penosos, de renová-los com frequência, se a criança os fizer com perseverança, serenidade e alegria, como vemos na vida de Anne de Guigné, poderá alcançar o heroísmo, que se manifesta precisamente nisso de que a criança guarda não apenas intacta, mas muito viva, a sua confiança amorosa nesse Deus tão bom que lhe pede tantos sacrifícios.
No depoimento da Madre Saint Raymond sobre a vida e as virtudes de Anne de Guigne , lemos:
“Foi seu espírito de fé que lhe deu essa grande confiança em Deus que tanto admiramos nela: estava sinceramente persuadida que Deus conduz tudo, que estamos todos em suas mãos, que nada nos acontece sem que seja desejado por Ele, que tudo é, por conseguinte, bom. Daí a sua paz, a sua serenidade, essa alegria inalterável em todas as contradições. Pois Anne não teve a vida fácil que se pode imaginar. Ela sentia dores de cabeça frequentemente, precisava interromper os estudos; ela vivia um tempo aqui, outro tempo acolá; tinha de deixar seus amigos, separar-se; tudo isso devia lhe custar muito, mas ela via a mão da Providência nas menores coisas e, assim, tudo estava bem.
"É por isso que tanto amava as Escrituras: nelas, via à descoberto a Providência de Deus. A história de Abraão, sobretudo, a impressionava. O Anjo vindo impedir a imolação de Isaac, a fé de Abraão triunfante, tudo isso fazia seu coração bater mais forte… Ela compreendeu muito bem que Deus é tudo! Ir até Ele continuamente, eis a sua vida: ela marchava para Ele em todas as suas ações.”
As provações jamais alteraram a confiança de Anne de Guigné. Quando, em dezembro de 1921, foi acometida de graves dores de cabeça e nas costas, o seu rosto estava lívido, os músculos respiratórios paralisados. Ela não se queixava, mas gemia docemente: “Meu bom Jesus, não aguento mais”. Em seguida, um sorriso revelava o socorro divino: “Estou feliz”, dizia a pequena doente, feliz por oferecer tudo pelos pecadores. “Sim, ainda quero sofrer muito!”. Ela já vivia alhures, os olhos fixados na pátria celeste, no termo da viagem. Ao invés de ficar abatida com a dor, ela não apenas demonstrava uma confiança vivíssima, mas comunicava aos demais a sua esperança — e a pedia pelos pecadores.
A caridade
O amor de Deus em alguns predestinados aparece não apenas sob a forma da caridade afetiva que repousa na Bondade de Deus, amado por si mesmo, mas ainda sob a forma da caridade efetiva, que se prova pelo sacrifício e por um grande amor ao próximo.
Isso é muito marcante em Anne de Guigné; assim, falar de seu amor de Deus é falar, ao mesmo tempo, do seu despreendimento, da sua humildade, da sua mortificação e obediência.
A menina possuia a generosidade de uma noviça carmelita. Bastava-lhe compreender o que era mais perfeito para tentar fazer; foi preciso até mesmo moderar o seu desejo de mortificação quando se tornou muito pronunciado.
É o amor de Deus que lhe movia à prática das virtudes: “É preciso obedecer sempre”, era um dos pontos do seu programa. E ainda que por vezes fosse bem difícil, cumpria esse ponto admiravelmente. Fortificada pela graça da primeira comunhão, ela se dava inteiramente aos seus pequenos deveres familiares e escolares, pequenos em si mesmos, mas grandes para ela e para Deus, pela intenção que a movia a cumpri-los. Aplicava-se a servir aos seus pronta e alegremente. Chegando aos nove anos de idade, escreveu: “para mim, se faz preciso uma luta quotidiana”. Diante dos pequenos ou dos grandes esforços, dizia: “Bom Jesus, eu os ofereço a Vós”. É a sua maneira de caminhar para Deus, de adquirir coragem e perseverança. Não se sabe bem o quanto a mansidão custava à sua natureza irascível: “Ó, como é exasperante… quanta vontade de brigar!” Mas logo a graça triunfava, e a bondade dava a palavra final.
Ela compreendeu que oferecer tudo ao Senhor é um grande socorro para nós: “Nada é difícil quando nós o amamos”. Ela despertava rapidamente todos os dias, ainda que o sono a abatesse. Renunciava aos seus gostos, privava-se de sobremesa, comia os pratos de que gosta menos; uma vez, raspou o corpo em ortigas para agradecer o Senhor por ter atendido um dos seus desejos. Outro dia, tendo deslocado um músculo do joelho, levantou-se sem dar um pio, os olhos cheios de lágrimas, inquieta por ter preocupado os seus: “Mamãe querida, não fique assim, não é nada; fico muito triste por ter te assustado”. Quem viveu perto dela pôde dizer: “nunca a vimos recusar um sacrifício”.
A religiosa que dirigia o catecismo em Cannes nunca percebeu na pequenina — salvo uma pequena vez, quando tinha cerca de quatro anos — a menor inclinação à vaidade, e isso ao longo de cinco anos. Aí está um sinal de grande amor de Deus.
Ainda que fosse inclinada à censurar e mandar, Anne se apagava, fazia-se pequena, e se contentava em ser esquecida; folgava quando lhe davam o pior e buscava sempre reservar pequenas ajudas aos necessitados.
Se a graça que a atraia era bem poderosa, o ardor com que Anne lhe correspondia era dos mais generosos. Uma derrota a deixava humilde e confiante: “Foi porque não rezei bastante…”
Mal tinha quatro anos de idade, quando lhe aplicaram cataplasmas de mostarda bastante dolorosos: “Arde muito… mas, ah meu Jesus, eu Vo-lo ofereço”. Os familiares se compadeciam: “Sofres muito, Aninha?" — “Ah, não! Ainda estou aprendendo a sofrer”. E acrescentava: “Sempre podemos sofrer alguma coisa por Nosso Senhor porque Ele sofreu por nós”.
Com profunda convicção, aos nove anos, declarou: “Uma vida longa é uma grande graça, porque nos permite sofrer muito por Jesus”. Vê-se aí manifestadamente uma altíssima inspiração do Espírito Santo, inspiração concedida por sua perseverante docilidade.
A sua contínua alegria e perseverança — gestos apagados, ignorados, que ela chamava de “modos pequeninos” — sua contínua Caridade e a sua união a Jesus no meio das suas ocupações, dos seus jogos, não é menos bela do que a sua maneira tão natural de ser… tão sobrenatural aos dez anos.
Quanta renúncia uma fidelidade tão grande exige! “Nós a vemos subir do mesmo modo que observamos no céu o vôo de uma águiazinha”, nos disse uma alma contemplativa que nos ajudou a conhecê-la melhor.
Sem dúvida, a sua educação, o meio em que nasceu, favoreceram o desenvolvimento dessa bela vida interior — o catecismo também ajuda a alma a se refinar, se adaptar, tornar-se delicada, reservada e afável — mas mesmo num berço privilegiado, a prática contínua dessas virtudes requer uma grande generosidade, sinal certo do amor de Deus que não cessa de crescer.
Esta criança tinha o zelo muito evidente da glória de Deus, estava “pronta para suportar tudo por sua fé.” O pecado feria o seu coração: “Ó meu Deus, perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem…”. Percebia surgir nela a vocação do Carmelo “pela glória de Deus”.
Ela velava, sobretudo nos primeiros sábados de cada mês, para evitar as menores faltas, para ser agradável à Santíssima Virgem e lhe oferecer nesse dia “mil sacrificiozinhos em reparação dos pecados cometidos contra a sua honra”. Oração, rosário, Ave maris Stella, rejubilavam o seu coração e o uniam a Jesus por sua Mãe Imaculada.
Entre as crianças cuja vida já foi escrita, bem poucas, aparentemente, receberam tantas graças de recolhimento, de união com Jesus, como a pequena Anne. Ela também sabia fazer penitência pelos pecadores, desejando fortemente “conversões extraordinárias… para que todos reconheçam a glória de Deus.” Ela adorava “quando lhe confiavam uma alma a ser convertida.”
Nesta menina bem equilibrada, percebemos uma caridade radiante e universal, a paz, a doçura e também a gravidade, que não impedia as brincadeiras nas horas de recreação; não encontramos nela nada de irrefletido.
Impressiona profundamente esse grande sinal do amor de Deus e do próximo que é o esquecimento de si mesmo. Desde os primeiros dias da sua doença, inquietava-se mais com a fadiga dos seus do que com o seu próprio mal, e a Nosso Senhor rezava: “Curai outros doentes”. É o ensinamento de Jesus: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros.” (Jo 13, 35)
A vida eucarística de Anne de Guigné merece menção especial; é um outro sinal do seu grande amor a Deus.
Ela ainda não sabia ler, e já seguia a missa num pequeno missa com imagens, sem perder um só gesto do padre .
Uns dois anos antes da sua primeira comunhão, já falava a todo hora desse dia e pedia à sua mãe que lhe falasse a respeito . Ela queria a todo custo preparar “uma bela morada no seu coração ao seu querido Menino Jesus”, e para isso não recusava nenhum sacrifício.
No dia da sua primeira comunhão, a alegria era grandíssima; eufórica, corria de uma a outra das suas amigas. A Madre Saint Raymond escreveu no seu depoimento que, depois desse dia, se fosse privada da comunhão por alguma falta, choraria com todas as forças do seu corpo .
Também ficou felicíssima com a primeira comunhão das suas irmãs: ela transmitia-lhes o seu entusiasmo, vivendo com elas numa perfeita harmonia .
Antes de se aproximar da santa mesa de comunhão, demonstrava grande delicadeza de consciência; um dia, perguntou à mãe: “Será que andei muito dispersa?” Por vezes, censurava a si mesma pela negligência na oração .
Desde a véspera, pensava na eucaristia, por vezes tomava seu pequeno livro, lia-o antes da Comunhão e se preparava com fervor para a grande ação do dia seguinte; ela comunicava a sua alegria à sua preceptora .
Ela dizia ao irmãozinho: “Ah, como você ficará feliz quando o menino Jesus estiver no seu coração!”. Mais tarde, enquanto brincava com ele, interrompeu de repente e propôs com gravidade e docilidade: “e se nós fizéssemos uma curta oração para nos prepararmos para a comunhão de amanhã?” Em outro dia, nós a vemos ajoelhada sobre o degrau de uma escada. Interrogada sobre o que fazia, respondeu: “Eu agradecia ao bom Jesus, disse ela, por querer vir ao meu coração” . Seu biógrafo escreveu:
Nas suas visitas ao Santíssimo Sacramento, encontrava no tabernáculo o seu Deus vivo e, quando a hóstia pairava sobre o altar, seu olhar se fixava sobre o ostensório com profundidade e intensidade tão impressionantes, com uma chama tão luminosa, que sua fé parecia tocar na visão .
“Para que a vida de Jesus cresça em mim, escreveu Anne, é preciso que minha alma se alimente muito frequentemente.” “Eu quero comungar sempre que possível”, também escreveu. “A vida da graça é muito preciosa, e seu alimento, que é Jesus Cristo, é tão bonito que é preciso desejá-lo de todo coração."
Ela confiou a uma das suas tias, que era religiosa: “Essa manhã, chorei porque mamãe não me deixou comungar”; em seguida, acrescentou: “mas agora já estou bem porque me ensinaram a fazer a comunhão espiritual."
Uma manhã, passou pela sua casa, à caminho da Missa, uma amiga da sua mãe; a menina lhe perguntou: “A senhora poderia me levar?” e, depois de obter a permissão da mãe, voltou tão contente que logo lhe perguntaram: “Desejas muito ir a missa?” — “Ah, sim!, respondeu ela, amo muito ir a missa… e depois, veja, é uma comunhão a mais.”
Durante o santo sacrifício, após ler o evangelho do dia, cerrava os olhos e, com a cabeça levemente inclinada, com as mãos juntas, deixava-se absorver inteiramente por um movimento profundo da sua alma, unindo o seu coração ao coração eucarístico de Jesus. O ardor da sua alma deixava-se trair pelos menores gestos, e quando retornava da santa mesa, estava “inteiramente perdida em Deus”, a ponto de ser preciso, por vezes, guiá-la até que reencontrasse o seu lugar .
Um dia, perguntou à sua mãe:
— Mamãe, posso rezar sem o livro durante a missa?
— Por que, minha filha?
— Eu já sei de cor todas orações do missal e muitas vezes me distraio ao ler. Mas, quando falo com o bom Jesus, nunca me distraio; é como quando a gente conversa com alguém, mamãe, a gente sempre sabe o que diz.
— E o que você fala ao bom Jesus?
— Que o amo. Em seguida, peço por você e pelos demais, para que Jesus os torne bons. Eu lhe falo sobretudo dos pecadores.
E, ruborizando-se um pouco, acrescenta:
— Depois eu digo a Ele que gostaria de vê-lo .
Diz-se que, durante a fase final da sua vida, sua piedade tinha “algo de celeste”. Após a comunhão, na festa de Todos os Santos, poucos meses antes da sua morte, ela parecia transfigurada. Na igreja ela era notada, e um fiel chegou a se levantar para “ver melhor aquele perfil que não tinha nada de humano”
No dia 28 de dezembro de 1921, o seu confessor lhe disse: “Quer que eu te traga Nosso Senhor?” — “Ah, sim!” respondeu com uma voz na qual transparecia um desejo imenso . Ela morreu alguns dias depois, após ter visto o seu anjo da guarda e voltando um olhar derradeiro à sua querida mãe. Uma única palavra saia de todo os corações: “É uma santa.”
Por seu amor à Eucaristia, Anne de Guigné nos faz pensar na beata Imelda Lambertini, morta aos onze anos durante a ação de graças da sua primeira comunhão.
Ao ler a sua biografia, lembramo-nos do princípio: a prova da caridade, do amor de Deus, são as obras das diferentes virtudes que a caridade inspira. “Pelos seus frutos os conhecereis”. Sem querer antecipar os julgamentos da Igreja, é possível pensar que encontramos nessa criança, também morta aos onze anos de idade, as quatro condições requeridas por Bento XIV para julgar da heroicidade das virtudes: 1a. a matéria difícil, acima das forças comuns às crianças dessa idade; 2a. a prontidão no cumprimento dos atos virtuosos; 3a. a alegria de oferecer sacrifícios ao Senhor; 4a. a freqüência desses atos, desde que a ocasião se apresente.
Isso nos faz pensar no que ensinou Santo Tomás: “além da virtude comum, [há] uma virtude heróica ou divina, que faz certos serem chamados homens divinos“ — devemos ver aí uma inspiração especial do Espírito Santo.
O relato dessas virtudes deve nos mover a agradecer ao Senhor que se compraz em cumular os pequenos e a restabelecer, assim, o equilíbrio na balança do bem e do mal; a colocar um contrapeso em tantas vilanias que a iniquidade acumula. Nós encontramos também aí um grande exemplo e, tendo chegado ao limiar da velhice, percebemos que ainda temos muito a aprender dos melhores dentre esses pequeninos.
Outros exemplos de heroicidade manifesta
Anne de Guigné não foi uma exceção. Outras crianças nos oferecem exemplos semelhantes. Veja, em um ambiente completamente diferente, a filha de um operário comunista. Annette perdeu a sua mãe; ela possui quatorze anos e educa seus quatros irmãos e irmãs. A caridade católica a conquistou e ela converte seus irmãos. Morre em seguida tentando impedir que seu pai cometesse numa igreja um furto sacrílego.
O pai estava desempregado; os camaradas o convidaram a roubar os vasos sacros da igreja… para transformá-los em lingotes de ouro e alimentar os filhos. O honesto operário hesita, mas os outros o desafiam e o pai da Annette entra com eles no santuário. Ela os acompanha… e se joga sobre um deles que repele este agressor desconhecido com tanta violência que a criança desmorona no chão. O pai de Annette corre, reconhece a sua filha e a leva consigo. Ela morre sob as benções do padre, como uma vítima pura e radiante de alegria. O pai, tocado, retorna à religião.
Não podemos falar desse tema sem lembrar a heroicidade da pequena Nellie, de quatro anos de idade, cuja vida foi escrita há poucos anos . Atormentada pela osteíte que corroía a sua mandíbula, para suportar as dores ela apertava o crucifixo contra o seu coração; enquanto lágrimas corriam, ela aceitava tudo, repetindo sem parar: “Olham como o Deus santo sofreu por mim!”
Podemos mencionar a vida de Lucila de Senilhes, morta aos quinze anos de idade, oferecendo a sua vida pela Igreja e pela sua pátria .
Antes de vir a pedir o sofrimento, essa menina escrevia:
“Renunciar a si mesma; não falar assim: “eu preferiria que…” — Para conservar a paz, é preciso obedecer quatro regras importantes: Procurar fazer antes a vontade de outro do que a própria. Escolher sempre ter menos do que mais. Buscar em tudo o último lugar. Desejar sempre e suplicar que a vontade de Deus se cumpra perfeitamente em nós!”
Um dia, ela escreveu depois da comunhão:
“Procurai a minha felicidade e procurarei a tua” — Eis, meu Deus, o pensamento que vós me enviastes essa manhã, durante a comunhão. Como eu procurarei a vosso felicidade, ó divino Coração do meu Jesus? Eu o farei cumprindo fielmente meu dever quotidiano, oferecendo-vos todas as minhas ações, fazendo muitos pequenos sacrifícios por amor de vós, rogando pelos pecadores, fazendo com que o Senhor seja amado, não resistindo jamais aos movimentos da vossa graça.”
Seguindo esta via e sob a inspiração do Espírito Santo, ela chegou a pedir o sofrimento.
"Minha natureza é tão fraca que ela se queixará — é o que temo, meu Deus, se vós a fizerdes sofrer; mas então, Senhor, não escutai o que eu vos disser, e quando tiverdes começado, ó Jesus, não parai mais; eu me entrego a vós; a única coisa que eu vos demando, é de me ajudar a suportar o sofrimento… Ó meu Deus! Eu vos consagro os meus quinze anos com todo o fervor da minha alma… Enviai-me o sofrimento… aumentai o número dos justos que salvarão a França.”
Pouco depois, ela morreu de pneumonia, suportando heroicamente, sem um suspiro sequer, uma punção na coluna vertebral feita com agulhas bem curtas.
Qual o peso de uma alma de criança tão heróica nas mãos de Deus?
Em 1909 morria também heroicamente, na Itália, a pequena Guglielmina Tacchi Marconi, conhecida em Pisa pelo seu amor extraordinário pelos pobres . Nas ruas, ela os procurava para poder vir socorrê-los. À mesa, ela não conseguia comer se algo lhes faltasse.
Ela morreu aos onze anos, torturada ao longo de sete meses por uma endocardite; durante esses meses, não se viu um capricho sequer. Desde o primeiro dia, ela, que não tinha mais do que uma hora de sono tranquilo, contentava-se em repetir com muita confiança: “Tutto per amore di Gesù!” Após a sua primeira comunhão, feita antes de morrer, permaneceu longo tempo em êxtase, e morreu dizendo: “Vinde, Jesus! Vinde, Jesus.”
Um livro recente: Mes Benjamins , relata os atos heróicos realizados por criancinhas anamitas, japonesas, das quais algumas, já conhecidas, morreram como mártires. Para terminar, citaremos algumas.
Uma pequena anamita, Dân, que morreu martirizada aos treze anos, havia sido aprisionada com sua família, sofreu de sede e, apesar dos maus-tratos, manteve-se sempre inflexível, dizendo: “Eu jamais negarei o meu Deus.” Como poderia ela, sem se queixar, suportar inúmeros golpes de rattan com que lhe fustigavam o corpo? Ela não cessava de rezar, adorando o Senhor, o Verbo incarnado, e depois gritou: “Que me acorrentem, que me metam na canga, que me submetam às demais torturas ou ao cruel suplício até a morte pela fé… já me decidi: estou decidida a sofrer tudo.” — Submeteram-lhe ao vergaste, a roda, ao cavalete; queimaram-lhe as extremidades dos membros, arrancaram-lhe as unhas, derramaram-lhe chumbo nas orelhas. Mas ela manteve-se inquebrantável. Sobre as suas chagas vivas, continuavam a golpeá-la! Dân logo viu os insetos roerem seus machucados.
A criança não pôde mais se reerguer; no entanto, nenhuma queixa! E Dân deixou assim a terra rumo ao Céu.
No mesmo livro, lê-se o relato do martírio de três meninos japoneses canonizados por Pio IX em 1862. Eles queriam morrer como mártires, como os católicos. Maximiniano, com onze anos de idade, pediu com lágrimas no rosto que o mandassem para a morte. Um soldado lhe deu um golpe de espada na cabeça. — Antônio, de trezes anos, antes de ser martirizado, soube responder ao governador que lhe exigia a apostasia: “Quão insensato eu seria de abandonar hoje os bens certos e eternos por bens incertos e passageiros!”— Luís Ibragi, com doze anos, era tão pequeno que julgaram que seria fácil fazer dele um apóstata. Mas, ao contrário, durante a longa e dolorosa viagem que teve de fazer antes de morrer, era ele que apoiava o missionário, recebendo os golpes em seu lugar. Ele obteve do padre permissão para cantar sobre a cruz o Laudate, pueri, Dominum. Mas o missionário, sobre a cruz, entrou em êxtase, e o menino teve de cantar o Salmo com os outros.
Lendo esse relato dos feitos realizados por essas crianças de dez a doze anos, e mesmo menores, ao se lembrar das palavras sublimes pronunciadas por muitas delas antes de morrerem, percebemos que possuem uma sabedoria incomparavelmente superior, na sua simplicidade e na sua humildade, à complexidade normalmente pretensiosa da ciência humana. Encontramos aqui o dom de sabedoria em grau eminente, proporcional à caridade desses pequenos servidores de Deus, grandes pelo testemunho heróico que deram até a morte.
Roma, Angélico.
fr. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P.
Em outro momento, disséramos porque devíamos nos confiar e abandonar à Providência: por causa de sua sabedoria e bondade, temos de sempre nos dirigir a ela, de corpo e alma, sob a condição do cumprimento do deveres cotidianos e da lembrança de que, se permanecermos fiéis nas pequenas coisas, obteremos a graça para o sermos nas grandes.
Vejamos agora como devemos nos confiar e abandonar à Providência, segundo a natureza dos acontecimentos que dependem ou não da vontade humana, do espírito desse abandono e das virtudes em que se deve inspirar.
DOS DIFERENTES MODOS DE SE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA
SEGUNDO A NATUREZA DOS ACONTECIMENTOS
Para entender esta doutrina da santa indiferença, convém notar, como amiúde o fazem os autores espirituais, que o abandono não se deve exercer do mesmo modo em face dos acontecimentos que não dependem da vontade humana, das injustiças dos homens e das faltas e suas conseqüências.
Caso sejam fatos que não dependam da vontade humana, como acidentes de impossível previsão, doenças incuráveis, o abandono nunca seria demais. Seria inútil a resistência, e só serviria para nos infelicitar; por sua vez, a aceitação em espírito de fé, confiança e amor conferirá grandes méritos a esses sofrimentos inevitáveis
. Em circunstâncias dolorosas, cada vez que se diga fiat, haverá novos méritos; a verdadeira provação tornar-se-á santificante. Mais ainda, no abandono lucraremos as provações possíveis, que talvez não se abatam sobre nós, como lucrou Abraão ao se preparar com perfeito abandono para a imolação do filho, a qual o Senhor depois não mais exigiu. A prática do abandono modifica as provações atuais ou futuras em meios de santificação, e tanto mais quanto for tal prática inspirada por um imenso amor a Deus.
Caso sejam sofrimentos provindos da injustiça dos homens, da malícia, dos maus atos, das calúnias, que fazer? Falando acerca das injúrias, das admoestações imerecidas e afrontas, das detrações que atingem nossa pessoa, diz São Tomás que é mister estar preparado para suportá-las com paciência, segundo as palavras de Nosso Senhor: “Se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt. 5, 39). Algumas vezes, acrescenta ele, convém responder, seja pelo bem de quem insulta, para reprimir sua audácia, seja para evitar o escândalo que poderia nascer das detrações ou calúnias. Se acreditamos no dever da resposta e assim no da resistência, façamo-lo recomendando-nos ao Senhor para a felicidade da empresa.
Em outras palavras, devemos lamentar e reprovar tais injustiças, não porque ferem o amor-próprio ou o orgulho, mas porque são ofensa a Deus e comprometem a salvação de culpados e escandalizados. No que respeita a nós, devemos vislumbrar na humana injustiça a justiça divina que nos deu ocasião de expiar outras faltas, reais, que ninguém nos reprova. Convém considerar nessa provação a misericórdia divina, que por isso quisera nos separar das criaturas, livrar das afeições desordenadas, do orgulho, da tibieza, defrontando-nos com a necessidade premente de recorrer à oração de súplica fervorosa. Por vezes, as injustiças são, no ponto de vista espiritual, como cortes de bisturi dolorosíssimos, mas libertadores. Os sofrimentos causados devem mostrar o preço da justiça verdadeira, para nos inclinar não apenas a praticá-la em face do próximo, mas engendrar a beatitude nos que tem sede e fome de justiça e serão saciados – como consta no Evangelho.
O desprezo dos homens, em lugar de produzir a perturbação ou amargura, pode ser grandemente salutar, e revelar a vaidade da glória humana, em contraste com a beleza da glória divina, como bem entenderam os santos. Esse é o caminho que leva à verdadeira humildade, e faz aceitar e amar o ser tratado como pessoa digna de desprezo.
Finalmente, caso sejam inconvenientes de outros gêneros, resultados não da alheia injustiça contra nós, mas de nossas próprias faltas, imprudências ou fraquezas, que fazer?
Dentre as faltas e suas conseqüências, há de se distinguir o que existe de desordenado, de culpável e de humilhação salutar. A despeito do que diga o amor-próprio, não saberíamos penitenciar o bastante o desregramento da alma como injúria feita contra Deus e contra a mesma alma, não raro com prejuízo da alma do próximo. Quanto à humilhação salutar que daí resulta, devemos aceitá-la com total abandono, como se diz no Salmo 118, 71-75: “Bonum mihi, quia humiliasti me, Domine, ut discam justificationes tuas... Cognovi, Domine, quia aequitas judicia tua, et in veritate tua humiliasti me... – Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos. Melhor é para mim a lei da tua boca do que milhares de outro ou prata. As tuas mãos me fizeram e me formaram; dá-me inteligência para entender os teus mandamentos. Os que te temem alegraram-se quando me viram, porque tenho esperado na tua palavra. Bem sei eu, ó Senhor, que os teus juízos são justos, e que segundo a tua fidelidade, me afligiste”.
A humilhação que resulta das faltas é o verdadeiro remédio contra a estima exagerada de nós mesmos, estima conservada malgrado o desapreço ou desprezo que outrem nos manifesta. Sob a humilhação que vem de fora, podemos endurecer por orgulho, queimar-nos o incenso que nos é recusado. É uma das formas mais sutis e perigosas do amor-próprio e do orgulho. Quer corrigir-nos a misericórdia divina, por meio da humilhação oriunda das próprias faltas; em sua bondade, ele as faz se disputarem contra si, de modo a avançarmos; deste modo, enquanto nos aplicamos, é forçoso aceitar as humilhações com abandono perfeito. Bonum mihi, quia humiliasti me, Domine... Esta é a via que conduz à prática da palavra profunda da Imitação, tão fecunda para quem realmente a compreende. Amare nesciri et pro nihilo reputari: Amar ser ignorado e reputado como nada. Há de se viver dessa doutrina, segundo a natureza dos acontecimentos, dependam eles ou não de nós.
COMO SE DEVE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA?
Como dizem os quietistas, seria este um espírito que amesquinha a esperança de salvação, sob pretexto de alta perfeição?
Muito ao contrário, deve este ser um grande espírito de fé, de confiança e de amor.
A vontade de Deus, traduzida em seus mandamentos, é de que esperemos nele, obrando com confiança a nossa salvação, quaisquer que sejam os obstáculos; essa vontade está no domínio da obediência, e não no do abandono. A vontade de abandono respeita ao bel prazer da vontade de Deus, com relação ao futuro incerto e aos fatos que acontecem diariamente no curso da vida, como a saúde, a doença, o sucesso e os infortúnios.
Sob o pretexto da perfeição, sacrificar a salvação, a beatitude eterna, seria algo absolutamente contrário à inclinação natural à felicidade, inclinação que, semelhante à nossa natureza, vem de Deus. Seria contrário à esperança cristã, não apenas àquela dos fiéis, mas a dos santos que, durante as maiores provações, heroicamente esperaram “contra toda esperança humana”, segundo aquilo de São Paulo, quando tudo parecia perdido. Enfim, tal sacrifício da beatitude eterna seria contrária a mesma caridade cristã, que nos faz amar a Deus por si mesmo, e desejá-lo possuir para glorificá-lo pela eternidade.
A inclinação natural, que vem de Deus e nos faz desejar a felicidade, não é desordenada, pois já ela impulsiona o amar a Deus, soberano bem, mais que a nós mesmos. Demonstrou-o São Tomás: Assim, disse ele, no organismo a mão está naturalmente inclinada para amar o todo acima de si, e caso seja necessário, para se sacrificar. Assim a galinha, por instinto, junta os pintinhos sob as asas, como disse Nosso Senhor, e caso seja necessário, se sacrifica para preservá-los do gavião; porque ama inconscientemente o bem da espécie, mais que a si mesma. Essa inclinação natural existe no homem, sob uma forma superior. Amando o bem do que é superior em si, o homem ama mais ainda o Criador; cessar de querer a perfeição e a salvação é desviar-se de Deus. Não há como sacrificar o desejo de salvação ou de beatitude eterna, sob o pretexto de alta perfeição, como pensaram os quietistas.
Longe disso, o abandono a Deus é exercício excelente das três virtudes teologais, da fé, da esperança e da caridade, por assim dizer mescladas uma nas outras.
É verdade afirmar que Deus purifica o desejo de salvação, o amor-próprio que nele se mescla, por meio das incertezas que ele permite nos acometam, obrigando-nos a amá-lo mais à puridade.
É preciso abandonar-se a Deus com espírito de fé, acreditando que, como diz São Paulo (Rm. 8, 28), tudo concorre para o bem na vida daqueles que amam a Deus e que perseveram no seu amor. Este ato de fé é o mesmo do santo homem Jó, que ao ficar privado dos bens e dos filhos, permaneceu submisso a Deus, ao declarar: O Senhor deu, o Senhor tirou, que seja louvado o nome do Senhor (Jó 1, 21).
Foi desta forma que Abraão preparou-se para obedecer a Deus, que lhe ordenava a imolação do filho; e foi com grande fé e boa vontade que abandonava o devir de sua raça à vontade divina. Recorda-o São Paulo, ao escrever na Epístola aos Hebreus 11, 17: “Pela fé ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado; sim, aquele que recebera as promessas ofereceu o seu unigênito. Sendo-lhe dito: Em Isaque será chamada a tua descendência, considerou que Deus era poderoso para até dentre os mortos o ressuscitar”.
Claro, nossas provações são bem menores, apesar de parecer às vezes pesadas, por causa da fraqueza.
Pelo menos, a exemplo dos santos, acreditamos que o Senhor em tudo obra o bem, seja enviando a humilhação e a secura, seja nos cumulando de honrarias e consolações. Como nota o pe. Piny, não há fé maior e mais viva do que acreditar que Deus dispõe tudo para o bem das almas, mesmo que pareça destruí-las, e lhes desfazer os melhores desejos; mesmo que permita a calúnia, a degradação irreversível da saúde ou coisas ainda mais dolorosas. Eis uma grande fé, pois é acreditar no que parece menos crível: que Deus eleva ao rebaixar; e não somente de modo abstrato e teórico, senão que de modo prático e vivido. É experimentar o que diz o Evangelho: “Quem se eleva (como o fariseu) será humilhado; quem se humilha (como o publicano) será elevado” (Lc. 18, 14). É viver a palavra do Magnificat: “Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles; esurientes implevit bonis, et divites dimisit inanes – O Senhor abateu os orgulhosos, e elevou os humildes; encheude bens os famintos, e os ricos despediu-os com as mãos vazias” (Lc. 1, 52). Devemos todos ser pequenos pela humildade, e famintos dum vivo desejo pela verdade divina, que é o verdadeiro pão da alma.
Cumprindo os deveres cotidianos, devemos nos abandonar ao Senhor com espírito varonil de fé. É mister fazê-lo com confiança filial em sua paternal bondade. A confiança (fiducia ou confidentia) é, afirma São Tomás, a firme ou forte esperança que vem da grande fé na bondade de Deus, autor da salvação. O motivo formal da esperança é a bondade de Deus, sempre caridosa, segundo as promessas, Deus auxilians.
“Bem-aventurado, cantam os salmos, os que confiam no Senhor” (Sl. 2, 12). “Os que confiam nele são como a montanha de Sião; ela não se abala, porque permanece sempre sobre sua base” (Sl. 124, 1). “Conserva-me, Senhor, porque espero em vós” (Sl. 15, 1). “Vós sois o meu refúgio, jamais serei confundido” (Sl. 30, 1).
Escrevendo sobre Abraão, que mau-grado a idade avançadíssima, acreditou na promessa divina, de que se tornaria pai de inumeráveis nações, diz São Paulo (Rm. 40 18): “Em esperança, creu contra toda esperança; ...não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo de que o que ele tinha prometido também era poderoso para fazer”.
De igual modo, cumprindo nosso dever cotidiano, devemos esperar de Nosso Senhor a realização de sua palavra: “As minhas ovelhas conhecem a minha voz, e eu conheço-as, e elas me seguem... ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo. 10, 28). Como nota o pe. Piny: depois de cumprir com siso o dever, o abandonar-se confiadamente nas mãos do Senhor é ser de fato ovelha. Aquiescer sempre com suas ordens; rezar com amor para que tenha piedade de nós; arrojar-se confiante nos braços da misericórdia com faltas e remorsos – não é a melhor forma de escutar a voz do Bom Pastor? Depor em seu seio todos os temores do passado e do futuro, num santo abandono que, longe de se opor à esperança, constitui-se em sacratíssima confiança filial, unida ao amor purificante.
Consiste o amor puríssimo no alimentar-se da vontade de Deus, a exemplo de Nosso Senhor, que disse: O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e de cumprir sua obra” (Jo. 4, 34). “Não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou” (Jo. 5, 30). “Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade” (Jo. 6, 38). Não existe modo mais nobre, mais perfeito, mais puro de amar a Deus, senão fazer da divina vontade a minha, cumprindo sua vontade positiva e abandonando-se em seguida a seu bel prazer. Para as almas que seguem esse caminho. Deus é tudo; no final, podem afirmar: Deus meus et omnia. Deus é o centro, e só nele estão em paz, ao submeter todas as aspirações a seu bel prazer, ao aceitar tranqüilamente tudo que ele faz. Nos momentos mais difíceis, Santa Catarina de Sena recordava-se desta palavra do Mestre: “Pensa em mim, que eu pensarei em ti”.
Raras são almas que chegam a tal perfeição. Mas é mister tentar. São Francisco de Sales escreve: “Nosso Senhor ama com amor delicadíssimo aqueles felizes que se abandonam à divina providência sem divagar em considerações acerca da natureza, aproveitável ou danosa, dos efeitos dessa providência; estão certos de que nada se enviaria do amantíssimo coração paternal, nem que tal seria permitido acontecer, de que não lucrassem o bem e a utilidade, uma vez que depositamos nele toda a confiança... Quando (no cumprimento do dever cotidiano) nos abandonamos de todo à providência divina, Nosso Senhor cuida de tudo e nos conduz... A alma está junto dele como um menino junto à mãe; quando ela o põe no chão para caminhar, ele o faz até que sua mãe o pegue novamente no colo; quando ela o quer carregar, ele se larga em seus braços: não diz nada nem pensa para onde vão, mas se deixa levar ou conduzir para onde praz à sua mãe. Igualmente para esta alma, que ama a vontade do bel prazer de Deus em tudo o que lhe acontece, e se deixa levar, e não obstante caminha, cumprindo denodadamente o que é da vontade de Deus positiva.” A exemplo de Nosso Senhor, pode dizer verdadeiramente: “O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai”; é aí que ela encontra a paz, aquela paz que já mora em nós, como vida eterna começada, “inchoatio vitae aeternae”.
La Vie Spirituelle Septembre 1931 n°143
Tradução: Permanência
Fonte: www.salve-regina.com