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Artigo 1: O progresso espiritual em Maria até a Anunciação

O método que seguimos obriga-nos a insistir sobre os princípios para recordar sua certeza e elevação, de forma a aplicá-los seguramente, em seguida, à vida espiritual da Mãe de Deus.

O progresso espiritual é, antes de tudo, o progresso da caridade, que inspira, anima as outras virtudes e torna os seus atos meritórios, uma vez que estando unidas a ela, todas as outras virtudes infusas desenvolvem-se proporcionalmente, como na criança, diz Santo Tomás, desenvolvem-se conjuntamente os cinco dedos da mão1.

Convém ver, então, por que e como a caridade de Maria desenvolveu-se constantemente na Terra, e qual foi o ritmo desse progresso.

 

A aceleração do progresso na Santíssima Virgem

Por que a caridade deveria crescer incessantemente em Maria até o dia da sua morte? ― Em primeiro lugar, porque é conforme a própria natureza da caridade no caminho para a eternidade e conforme também ao preceito supremo: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e com toda a tua força e com todo o teu espírito”, conforme a gradação ascendente expressa em Deuteronômio 6, 5 e em São Lucas 10, 27. Segundo esse preceito, que domina todos os outros e todos os conselhos, os cristãos, cada um segundo o seu estado, devem tender à perfeição da caridade e, por conseguinte, das outras virtudes, este no estado do matrimônio, aquele no estado religioso ou sacerdotal2. Nem todos são chamados à prática dos três conselhos evangélicos, mas todos devem aspirar a alcançar o espírito deles: o desapego dos bens terrenos e de si mesmo, para que cresça em nós a união com Deus.

Só em Nosso Senhor não houve progresso ou aumento da graça e da caridade, porque ele havia recebido, desde o instante de sua concepção, a plenitude absoluta, conseqüência da união hipostática, posto que o II Concílio de Constantinopla afirma que Jesus não se fez melhor pelo progresso das boas obras3, ainda que tenha cumprido sucessivamente os atos de virtude correspondentes às diferentes épocas da vida.

Maria, ao contrário, tornava-se cada vez melhor no decurso da sua vida terrena. Mais ainda, houve em seu progresso espiritual uma aceleração maravilhosa segundo um princípio formulado por Santo Tomás a propósito destas palavras da Epístola aos Hebreus: “animando-nos uns aos outros, e tanto mais, quando virdes que se aproxima o dia (final)”. 4 O Doutor Angélico escreveu em seu Comentário sobre essa Epístola: “Alguém pode perguntar: Por que devemos progredir sempre e cada vez mais na fé e no amor? O movimento natural (ou conatural) torna-se cada vez mais rápido conforme se aproxima do seu termo (o fim ao qual tende). Acontece o contrário com o movimento violento. (Hoje dizemos: a queda de um corpo é uniformemente acelerada, enquanto que o movimento inverso, de uma pedra lançada ao ar verticalmente é uniformemente retardado). Ora, continua Santo Tomás, a graça aperfeiçoa e inclina para o bem ao modo da natureza (como uma segunda natureza); segue-se, portanto, que aqueles que estão em estado de graça devem crescer mais na caridade quanto mais se aproximam de seu fim último (e que são mais atraídos por ele). E isso é dito na Epístola aos Hebreus 10, 25: “animando-nos uns aos outros, e tanto mais, quando virdes que se aproxima o dia (final), ou seja, o fim da viagem”. Diz-se em outra parte: “A noite está quase passada e o dia aproxima-se” (Rm 13, 12). “Mas a vereda dos justos, como a luz que resplandece, vai adiante, e cresce até o dia pleno” (Pr 4, 18) 5.

Santo Tomás fez essa observação profunda, de uma forma muito simples, antes da descoberta da lei da gravitação universal, quando ainda era conhecida de modo muito imperfeito, pois não havia sido medida a aceleração da queda dos corpos; ele viu, na época, um símbolo do que deve ser a aceleração do progresso do amor de Deus nas almas dos santos que gravitam para o sol dos espíritos e para a fonte de todo bem.

O santo doutor deseja dizer que, para os santos, a intensidade da sua vida espiritual acentua-se cada vez mais, dirigem-se mais rápida e generosamente para Deus quanto mais se aproximam d’Ele e são mais atraídos por Ele. Tal é, na ordem espiritual, a lei da atração universal. Como os corpos se atraem em razão direta às suas massas e em razão inversa ao quadrado de suas distâncias, isto é, tanto mais quanto mais próximos se encontram, assim também as almas dos justos são atraídas por Deus quanto mais se aproximam d’Ele.

Por isso, a trajetória do movimento espiritual das almas dos santos eleva-se até o zênite e não decresce mais, não há crepúsculo para eles; apenas o corpo e as faculdades sensíveis debilitam-se com a velhice. Na vida dos santos, o progresso do amor é muito mais rápido, e isso é algo muito mais evidente em seus últimos anos que nos primeiros. Marcham espiritualmente não com passo uniforme, mas apressados, apesar do entorpecimento da velhice; “sua juventude espiritual se renova como a juventude da águia” 6.

Esse progresso cada vez mais rápido ocorreu sobretudo na vida da Santíssima Virgem sobre a Terra, porque não encontrou nenhum obstáculo, nenhuma interrupção ou atraso, nenhum impedimento nas coisas terrenas ou nela mesma. E esse progresso espiritual em Maria era tanto mais intenso quanto maior foi a velocidade inicial ou a graça primeira. Houve assim em Maria (especialmente se, como é provável, conservou, pela ciência infusa, o uso da liberdade e o mérito durante a vigília) uma aceleração maravilhosa do amor de Deus, de cuja aceleração a lei da gravitação dos corpos é uma imagem muito distante.

A física moderna ensina que, se a velocidade da queda de um corpo é 20 no primeiro segundo, no próximo segundo será 40, no terceiro 60, no quarto 80 e no quinto será 100. É o movimento uniformemente acelerado, símbolo do progresso espiritual da caridade numa alma à qual nada retarda, e que se dirige tanto mais rápido para Deus quanto mais d’Ele se aproxima e é mais atraída por Ele. Assim, pois, nessa alma, cada comunhão espiritual ou sacramental é normalmente mais fervorosa que a anterior com um fervor de vontade e, portanto, mais frutífera.

Ao contrário, o movimento de uma pedra atirada para o ar na vertical, sendo uniformemente retardado até que inicia sua queda, simboliza o progresso de uma alma tíbia, sobretudo se por seu apego progressivo ao pecado venial, suas comunhões são cada vez menos fervorosas ou feitas com uma devoção substancial de vontade que diminui a cada dia.

Essas considerações nos mostram o que deve ter sido o progresso espiritual de Maria, desde o instante de sua Imaculada Conceição, sobretudo se teve, como é provável, o uso ininterrupto do livre arbítrio desde o seio de sua mãe 7. Como, por outro lado, parece certo que nela a plenitude inicial de graça superava a graça final de todos os santos reunidos, a aceleração dessa marcha ascendente para Deus supera tudo o que pode ser dito8. Nada a atrasava, nenhuma conseqüência do pecado original, nenhum pecado venial, nenhuma negligência ou distração, nenhuma imperfeição, pois nunca esteve menos pronta a seguir as inspirações dadas na forma de conselho. Tal é o caso de uma alma que, após ter feito o voto de realizar sempre o mais perfeito, observa esse voto fielmente.

Santa Ana devia ficar impressionada da perfeição singular de sua santa filha; mas nunca poderia suspeitar que ela era a Imaculada Conceição, nem mesmo que fora chamada a ser a Mãe de Deus. Sua filha era incomparavelmente mais amada por Deus do que Santa Ana poderia suspeitar. Cada justo, guardando as proporções, é mais amado por Deus do que ele pensa; para sabê-lo, precisaria conhecer plenamente o valor da graça santificante, o germe da glória, e para conhecer totalmente o valor desse germe espiritual, precisaria ter gozado, por um instante, da beatitude celeste, da mesma forma que para conhecer o germe contido numa bolota é necessário contemplar um carvalho completamente desenvolvido, que provém naturalmente desse germe tão pequeno. As grandes coisas estão freqüentemente contidas numa semente quase imperceptível, como o grão de mostarda; o mesmo ocorre com um rio imenso, oriundo de um insignificante riacho.

 

O progresso espiritual em Maria pelo mérito e pela oração

A caridade deveria, pois, crescer incessantemente na Santíssima Virgem conforme o preceito supremo do amor. Mas como e por quais meios foi aumentando? Pelos méritos, pela oração e pela comunhão espiritual a Deus espiritualmente presente na alma de Maria desde o princípio de sua existência.

Convém recordar que a caridade não aumenta precisamente em extensão, pois em seu grau ínfimo ela já ama a Deus acima de tudo com um amor de estima e ao próximo como a si mesmo, sem excluir ninguém, mesmo que depois a abnegação cresça progressivamente. A caridade cresce sobretudo em intensidade, enraizando-se cada vez mais em nossa vontade, ou, falando sem metáfora, inclinando mais a vontade a afastar-se do mal e também daquilo que não é tão bom e a dirigir-se generosamente para Deus. 

Não é um crescimento de ordem quantitativa, como o de uma meda de trigo, mas qualitativa, como quando o calor se torna mais intenso ou no caso da ciência que, sem chegar a novas conclusões, torna-se mais penetrante, mais profunda, mais unificada e certa. Assim, a caridade tende a amar a Deus mais perfeita e puramente, mais intensamente e acima de tudo, e ao próximo como a nós mesmos, para que todos glorifiquemos a Deus no tempo e na eternidade. O objeto e motivo formal da caridade, como o das outras virtudes, é assim cada vez mais enfatizado e colocado acima de todo motivo secundário ou acessório, em que se insistia muito ao começar. No início, amamos a Deus pelos bens recebidos ou esperados, não por Ele mesmo; em seguida, considera-se mais que o benfeitor é muito melhor em si mesmo que todos os bens que procedem d’Ele, e que Ele merece ser amado por si mesmo, por sua infinita bondade.

A caridade aumenta em nós, então, como uma qualidade, como o calor que se torna mais intenso, e isso acontece de várias maneiras: pelo mérito, pela oração e pelos sacramentos. Com mais forte razão aconteceu o mesmo em Maria, porém, sem imperfeição alguma de sua parte.

O ato meritório que procede da caridade ou de uma virtude inspirada por ela dá direito a uma recompensa sobrenatural e, em primeiro lugar, a um aumento da graça habitual e da própria caridade. Os atos meritórios não produzem por si mesmos diretamente o aumento da caridade, porque esta não é uma virtude adquirida, causada e aumentada pela repetição dos atos, mas uma virtude infusa. Assim como somente Deus pode produzi-la, pois é uma participação em sua vida íntima, só Ele também pode aumentá-la. E por isso diz São Paulo9: “Eu plantei (pela pregação e pelo batismo), Apolo regou, mas Deus (é que) deu o crescimento”; “E aumentará sempre mais os frutos da vossa justiça10.

Se nossos atos de caridade não podem produzir o aumento dessa virtude infusa, eles contribuem com esse aumento de duas maneiras: moralmente, merecendo-a; e fisicamente na ordem espiritual, dispondo-nos a recebê-la. A alma, por seus atos meritórios, tem direito de receber esse acréscimo que lhe fará amar seu Deus mais pura e intensamente. Além disso, esses atos a dispõem a receber esse acréscimo, no sentido em que os atos meritórios aprofundam, de certo modo, nossas faculdades superiores e as dilatam, para que a vida divina possa penetrá-las e elevá-las purificando-as.

Mas acontece muitas vezes conosco que os atos meritórios são imperfeitos, remissi, como dizem os teólogos, remissos (como se diz do calor remisso, fervor remisso), quer dizer, inferiores ao grau ou à virtude de caridade que está em nós. Tendo uma caridade de três talentos, muitas vezes agimos como se nada tivéssemos além de dois, como um homem muito inteligente que, por preguiça, não empregasse senão muito apaticamente sua inteligência. Esses atos de caridade imperfeitos ou remissos são ainda meritórios, mas, segundo Santo Tomás e os antigos teólogos, não obtêm imediatamente para a alma o aumento de caridade que merecem, porque não a dispõem ainda a recebê-lo11. Aquele que possui uma caridade de três talentos e age como se só tivesse dois não se dispõe imediatamente a receber um aumento dessa virtude para até quatro talentos. Não a obterá até que faça um ato mais generoso ou mais intenso dessa virtude ou de outras virtudes inspiradas ou obtidas pela caridade.

Esses princípios esclarecem qual foi o progresso espiritual de Maria por seus próprios méritos. Nela, nunca houve um ato meritório imperfeito ou remisso; isso teria sido uma imperfeição moral, uma menor generosidade no serviço de Deus, e, como vimos, os teólogos estão de acordo em negar essa imperfeição na Virgem Maria. Seus méritos obtinham, pois, imediatamente o aumento de caridade por eles merecidos.

Ademais, para conhecer melhor o preço dessa generosidade, deve-se recordar, como se ensina geralmente12, que Deus é mais glorificado por um só ato de caridade de seis talentos que por dez atos de caridade de um só talento. Do mesmo modo, um só justo perfeitíssimo agrada mais a Deus que muitos outros reunidos e que permanecem na mediocridade ou na tibieza relativa. A qualidade importa sobre a quantidade, sobretudo no domínio espiritual.

Os méritos de Maria eram, portanto, cada vez mais perfeitos; seu coração puríssimo se dilatava, por assim dizer, cada vez mais e sua capacidade divina se expandia, segundo as palavras do Salmo: “Correrei pelo caminho dos teus mandamentos, quando dilatares o meu coração13.

Embora muitas vezes esqueçamos que estamos em viagem para a eternidade e busquemos instalar-nos na vida presente como se ela fosse durar para sempre, Maria sempre teve os olhos fixos no fim último da viagem, no próprio Deus, e não perdia nem um minuto do tempo que lhe havia sido dado. Cada um dos instantes de sua vida terrena entrava, assim, pelos méritos acumulados e cada vez mais perfeitos, no único instante da imutável eternidade. Via os momentos da sua vida não só na linha do horizonte temporal em sua relação com o futuro terrestre, mas na linha vertical que os relaciona todos com instante eterno que não passa.

Deve-se notar por outro lado, como ensina Santo Tomás, que na realidade concreta da vida não existe um ato deliberado indiferente; se tal ato é indiferente (quer dizer, nem moralmente bom nem moralmente mau) por seu objeto, como passear ou ensinar matemática, esse mesmo ato é moralmente bom ou moralmente mau pelo fim ao qual se propõe, porque um ser racional deve sempre agir por motivos racionais, por um fim honesto, e não só agradável ou útil14. Segue-se que, numa pessoa em estado de graça, todo ato deliberado que não é mau, que não é pecado, é bom; está, portanto, virtualmente ordenado a Deus, fim último do justo, e é, pois, meritório. In habentibus caritatem, omnis actus est meritorius vel demeritorius 15. Resulta daqui que todos os atos deliberados de Maria eram bons e meritórios, e, no estado de vigília, não houve nela nenhum ato indeliberado ou puramente mecânico, que se produziria independentemente da direção da inteligência e da influência de sua vontade vivificada pela caridade16.

À luz desses princípios certos, devemos considerar todos os momentos, sobretudo os principais, da vida terrena de Maria, e, já que estamos falando daqueles que precederam a Encarnação do Verbo, pensemos em sua apresentação no templo, quando ainda era pequena, e nos atos que realizou assistindo nele as grandes festas nas quais se liam as profecias messiânicas, principalmente as de Isaías, que aumentavam sua fé, sua esperança, seu amor por Deus e a expectativa do Messias prometido. Quão bem compreendia já estas palavras do profeta Isaías, relativas ao Salvador que estava para vir: “Um menino nasceu para nós e um filho nos foi dado, e foi posto o principado sobre o seu ombro; e será chamado: Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro, Príncipe da Paz17. A fervorosa fé da criança Maria, já sendo tão elevada, deveria compreender estas palavras: “Deus forte”, mais do que o próprio Isaías tinha entendido. Ela já penetrava esta verdade: que nesse menino residirá a plenitude das forças divinas, e que o Messias será um Rei eterno, imortal e que sempre será o pai de seu povo18.

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A vida da graça não cresce somente pelo mérito, mas também pela oração que possui uma força impetratória distinta. Por isso suplicamos todos os dias para crescer no amor de Deus, quando dizemos: “Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino (cada vez mais em nós), seja feita a Vossa vontade (que todos observemos melhor a cada dia os Vossos mandamentos)”. A Igreja também nos faz repetir na Missa: “Da nobis, Domine, fidei, spei et caritatis augmentum”. Aumentai, Senhor, nossa fé, nossa esperança e nossa caridade (XIII domingo depois de Pentecostes).

Depois da justificação, o justo pode, portanto, obter o acréscimo da vida da graça, seja pelo mérito ― relacionado com a justiça divina, como um direito à recompensa ― seja pela oração, dirigida à misericórdia infinita de Deus. A oração é tanto mais eficaz quanto mais humilde, confiante e perseverante; e quando pede, em primeiro lugar, não os bens temporais, mas o aumento das virtudes, segundo as palavras: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e todas as demais coisas vos serão dadas por acréscimo”. Assim, o justo, por uma oração fervorosa, impetratória e meritória ao mesmo tempo, obtém muitas vezes, de imediato, muito mais que merece, quer dizer, não só o aumento da caridade merecida, mas aquela que se alcança especialmente pela força impetratória da súplica, distinta do mérito19.

No silêncio da noite, uma oração fervorosa, que é ao mesmo tempo uma súplica impetratória e um mérito, obtém muitas vezes, imediatamente, um notabilíssimo aumento de caridade, que nos faz experimentar que Deus é imensamente bom; é como uma comunhão espiritual, com um doce sabor de vida eterna.

A oração de Maria, desde sua infância, era não somente muito meritória, mas tinha também uma força impetratória que não conseguimos sequer estimar, pois era proporcionada à sua humildade, à sua confiança, à perseverança de sua ininterrupta generosidade, sempre em progresso. Obtinha assim, constantemente, conforme esses princípios certíssimos, um amor de Deus sempre mais puro e mais intenso.

Ela obtinha também as graças atuais eficazes, que não poderiam ser merecidas, ao menos por mérito de condigno: como a que conduz a novos atos meritórios, ou como a inspiração especial, que é o princípio, por meio dos dons, da contemplação infusa.

Isso era o que sucedia quando a Santíssima Virgem dizia, ao rezar, estas palavras do Livro da Sabedoria: “Invoquei o Senhor, e veio a mim o espírito da sabedoria. E preferi-a aos reinos e aos tronos, e julguei que as riquezas nada valiam em sua comparação. Nem pus em paralelo com ela as pedras preciosas, porque todo o ouro, em sua comparação é um pouco de areia, e a prata será considerada como lodo à sua vista20.

O Senhor vinha assim alimentá-la espiritualmente de si mesmo, e se entregava cada dia mais intimamente a ela, inclinando-a, ao mesmo tempo, a doar-se mais perfeitamente a Ele.

Ninguém melhor que ela, depois de Jesus, pronunciou estas palavras: “Unam petii Domino, hanc requiram, ut inhabitem in domo Domini”.Uma só coisa peço ao Senhor, esta solicito: é que eu habite na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar da suavidade do Senhor21. Compreendia melhor, a cada dia, que Deus é infinitamente bom para aqueles que O buscam, e ainda mais para aqueles que O encontram.

Antes da instituição da Eucaristia e mesmo antes da Encarnação, existiu em Maria a comunhão espiritual, que é a oração simplíssima e intimíssima da alma que já chegou à via unitiva, onde gozou de Deus presente nela como num templo espiritual: Gustate et videte quoniam suavis est Dominus: “Provai e vede quão suave é o Senhor22.

Se está dito no salmo: “Assim como o cervo suspira pelas fontes das águas, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus. Minha alma tem sede de Deus, de Deus vivo23, qual devia ser a sede espiritual da Santíssima Virgem desde o instante da sua concepção imaculada até o momento da Encarnação?

Esse progresso da caridade, diz Santo Tomás, não lhe fez merecer a Encarnação, que é o princípio de todos os méritos depois do pecado de Adão, mas lhe fez merecer pouco a pouco (pela primeira graça proveniente dos méritos futuros de seu Filho) o grau eminente de caridade, humildade e pureza que fez dela a digna Mãe de Deus, no dia da Anunciação24.

Maria não mereceu tampouco a Maternidade Divina, pois teria assim merecido a Encarnação em si; mas mereceu o grau de santidade e de caridade que constituía a disposição próxima para a Maternidade Divina. Ora, se a disposição remota, que era a plenitude inicial de graça, já superava a graça final de todos os santos juntos, o que pensar da perfeição dessa disposição próxima?

Os anos passados por Maria no Templo intensificaram nela o desenvolvimento da “graça das virtudes e dos dons” numa proporção de que não podemos fazer idéia; segundo uma progressão e uma aceleração que ultrapassa em muito aquela das almas mais generosas e dos maiores santos.

Sem dúvida, poderíamos exagerar se atribuíssemos à Santíssima Virgem uma perfeição que só pertence a seu Filho. Entretanto, permanecendo no plano de Maria, não seríamos capazes de formar uma idéia justa da elevação do ponto de partida de seu progresso espiritual, e menos ainda da elevação do ponto de chegada.

Isso que acabamos de dizer prepara-nos, no entanto, para compreender, de certo modo, o que teve de ser o aumento considerável de graça e de caridade que se produziu em Maria no momento mesmo da Encarnação.

 

Nota

 

Em que momento da nossa existência os atos menos fervorosos ou remissos obtêm o aumento da caridade que lhes é devida?

Segundo Santo Tomás, todo ato de caridade do “viator” (daquele que vive neste mundo) é meritório25; merece um aumento da virtude da caridade e o dispõe ao menos de maneira remota a recebê-lo; mas não dispõe de maneira próxima senão quando é fervoroso, quer dizer, quando ao menos é igual em intensidade ao grau da virtude infusa da qual procede.

Logo, somente os atos fervorosos obtêm imediatamente o aumento da caridade que merecem.

 

Quando os atos menos fervorosos obtém esse aumento de caridade? 

Pode-se pensar que é desde que um ato meritório fervoroso se produz. No entanto, existe uma dificuldade, porque este obtém certamente o aumento que lhe é devido e ao qual dispõe proximamente, mas não é certo que obtenha ao mesmo tempo os atrasados, isto é, o aumento referente aos atos meritórios menos fervorosos precedentes.

Esses atrasados podem ser obtidos por atos de caridade fervorosa, que não são somente meritórios, mas que dispõem a receber já na vida presente, não apenas o que merecem por si mesmos, senão mais do que se merece.

Tal é o caso do ato de caridade fervorosa pelo qual alguém se dispõe a uma boa comunhão; este pode produzir ex opere operato um aumento de caridade correspondente à disposição fervorosa atual e à passada ou atrasada.

É importante que isso seja freqüente nos bons sacerdotes e bons cristãos, principalmente na comunhão mais fervorosa que fazem em determinados dias solenes ou na primeira sexta-feira do mês.

Deve acontecer ainda com mais forte razão quando, com uma boa disposição, recebe-se a comunhão no viático ou pela extrema-unção que, ao apagar os resquícios do pecado (reliquiae peccati), produz um aumento da caridade (não merecida) proporcionada ao fervor com o qual se recebe esse sacramento; pode-se produzir assim os efeitos atrasados merecidos mas ainda não obtidos. 

Também pode acontecer isso quando o “viator” faz uma oração fervorosa pela qual pede o aumento da caridade; porque essa súplica é ao mesmo tempo meritória, por ser inspirada pela caridade, e impetratória; por este segundo título ela obtém mais do que merece e o pode dispor proximamente para receber os efeitos atrasados já merecidos mas ainda não obtidos.

É provável, finalmente, que a alma que não tenha se aproveitado durante esta vida disso que acabamos de dizer, disponha-se proximamente pelos atos fervorosos do Purgatório, em nada meritórios, a receber os efeitos atrasados merecidos mas não obtidos.

É certo que as almas do Purgatório, na medida em que a purificação avança, praticam atos (não meritórios) cada vez mais fervorosos, que alcançam ao menos o grau de intensidade da virtude infusa da qual procedem. Esses atos não merecem um aumento dessa virtude, mas é provável que possam dispor atualmente a receber o efeito atrasado já merecido in via e ainda não obtido. Assim, uma alma que tivesse chegado ao Purgatório com uma caridade de cinco talentos poderia sair com uma caridade de sete talentos, com o grau de glória correspondendo sempre ao grau dos méritos.

E se isso é verdade, parece ser verdade especialmente em relação a todo ato final pelo qual a alma se dispõe (in genere causae materialis) a receber a luz da glória, um ato que se produz (in genere causae efficientis et formalis) sob essa luz no instante preciso em que é infundida, assim como o último ato que dispõe alguém imediatamente à justificação, procede da caridade no preciso momento em que ela é infundida. Assim, pois, os efeitos atrasados seriam obtidos ao menos no último momento, no instante da entrada na glória26.

  1. 1. Iª IIae, qq. 65 e 66, a. 2.
  2. 2. Iª IIae, q. 184, a. 3.
  3. 3. Cf. II Concílio de Constant. (Denzinger, nº 224): “Se alguém defende... que Cristo... melhorou com o progredir das obras... seja anátema”.
  4. 4. Hb 10, 25.
  5. 5. Cf. Santo Tomás, in Epist. ad Hebr., x, 25: “Motus naturalis quanto plus accedit ad terminum magis intenditur. Contrarium est de (motu) violento. Gratia autem inclinat in modum naturae. Ergo qui sunt in gratia, quanto plus accedunt ad finem, plus crescere debent”.

    Ver também Santo Tomás, in l. I de Coelo, c. VII, lect. 17, fin: “Terra (vel corpus grave) velocius movetur quanto magis descendit”. — Iª IIae, q. 35, a. 6: “Pois todo movimento natural é mais intenso no fim, quando se aproxima do termo conveniente à sua natureza, do que no princípio, quando se afasta do termo não conveniente à sua natureza. Assim, a natureza tende mais intensamente ao conveniente, do que foge do repugnante.”.

  6. 6. Sl 102, 5
  7. 7. Essa opinião, como vimos, é a de São Bernardino de Siena, de Suárez, de Contenson, do Pe. Terrien e principalmente de são francisco de sales, que diz: “Quão mais provável é que a mãe do verdadeiro Salomão teve o uso da razão em seu sono!” Tratado do Amor de Deus, 1. III, c. 8, a propósito das palavras do Cântico dos Cânticos: “Durmo, mas meu coração está desperto”.
  8. 8. É preciso entender bem o significado desta expressão “supera tudo o pode ser dito”. A própria graça consumada em Maria é sempre finita ou limitada e seria um exagero inadmissível atribuir-lhe uma perfeição que pertence somente a Nosso Senhor. Sabemos que, nesse sentido, o progresso espiritual de Maria não pode ir além de certos limites; sabemos o que Maria não podia fazer, termo negativo, mas não sabemos positivamente tudo o que podia fazer, nem o grau preciso de santidade ao qual chegou, nem o grau que tinha em seu ponto de origem. Assim, em outra ordem diferente, sabemos negativamente o que as forças da natureza não podem produzir: não podem produzir a ressurreição de um morto, nem os efeitos próprios de Deus, mas não sabemos positivamente até onde podem chegar as forças da natureza, e foram descobertas forças desconhecidas, como as ondas de rádio, que produzem efeitos surpreendentes.

    Da mesma forma, não sabemos positivamente tudo o que os anjos podem fazer com as forças próprias de sua natureza, mas, não obstante, é certo que o menor grau de graça santificante supera todas as naturezas criadas, inclusive os anjos e suas forças naturais. Para conhecer plenamente o menor grau de graça, o germe da glória, seria necessário ter gozado, por um momento, da visão beatífica; com muito mais razão, para conhecer a importância da própria plenitude inicial da graça em Maria.

  9. 9. 1 Cor 3, 6, 9.
  10. 10. 2 Cor 9, 10
  11. 11. IIª IIae, q. 24, a. 6, ad. 1.
  12. 12. Cf. Salmanticenses S, De caritate, disp. V, dub. III, parágrafo 7, n.os 76, 80, 85, 93, 117.
  13. 13. Sl 118, 32.
  14. 14. Cf. SANTO TOMÁS, Iª IIae, q. 18, a. 9.
  15. 15. Cf. SANTO TOMÁS, De Malo, a. 5, ad 17.
  16. 16. Isso é o que ensina muito acertadamente o p. e. hugon. Marie, pleine de grâce, 5ª edição, 1926, p. 77.
  17. 17. Is 9, 6.
  18. 18. Ninguém pode dizer com certeza que Maria, antes da Encarnação, não visse, no sentido literal desse anúncio messiânico de Isaías, Deus Forte, a divindade do Messias prometido. A Igreja, iluminada pelo Novo Testamento, vê essa verdade nessas mesmas palavras ditas nas Missas de Natal. Quem poderá afirmar que Maria não conseguia entendê-las assim desde antes da Encarnação? O Messias é o Ungido do Senhor, e pela luz do Novo Testamento compreendemos que essa unção divina está principalmente constituída pela graça da união, ou seja, pelo próprio Verbo que dá à humanidade de Jesus uma santidade inata, substancial e incriada. Cf. Santo Tomás, IIIª, q. 6, a. 6, q. 22, a. 2, ad 3.
  19. 19. Assim pode o justo obter, pela oração, graças que não poderiam ser merecidas, como a da perseverança final, que não é outra que o próprio princípio do mérito, ou o estado de graça conservado no momento da morte, cf. Iª IIae, q. 114, a. 9. Da mesma forma, não pode ser merecida a graça atual eficaz, que ao mesmo tempo preserva do pecado mortal, conserva em estado de graça e o faz aumentar, mas é obtida muitas vezes por meio da oração. Assim também a inspiração especial que é o princípio, por meio dos dons da inteligência e da sabedoria, da contemplação infusa.
  20. 20. Sb 7, 7-9.
  21. 21. Sl 26, 4.
  22. 22. Sl 33, 9.
  23. 23. Sl 41, 2.
  24. 24. Cf. Santo Tomás, IIIª, q. 2, a. 11, ad 3: “Dizemos que a Bem-aventurada Virgem mereceu trazer o Senhor de todas as coisas não por ter merecido que Ele se encarnasse, mas por ter merecido, pela graça que lhe foi dada, um tal grau de pureza e de santidade que pudesse congruamente ser a Mãe de Deus”.
  25. 25. IIª IIae, q. 24, a. 6.
  26. 26. Essas diferentes explicações, que têm a sua probabilidade, foram propostas por diferentes comentadores de Santo Tomás em IIª IIae, q. 24, a. 6. Explicamo-las mais amplamente em outras obras: L'amor de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, pp. 415-422, em nas As Três Idades da vida interior, Edições Desclée de Brouwer, Buenos Aires, 1945, t. I, p. 154 e ss.
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