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Artigo 1: As diversas plenitudes de graça

Nesta expressão, “cheia de graça”, trata-se, segundo o significado habitual da Escritura, que se torna cada vez mais explícito no Novo Testamento, da graça propriamente dita, que se distingue realmente da natureza, seja humana ou angélica, como um dom de Deus completamente gratuito, que supera as forças naturais e as exigências de toda natureza criada e mesmo criável1. A graça habitual ou santificante faz-nos participar da natureza de Deus ou da sua vida íntima, segundo as palavras de São Pedro: “Jesus Cristo nos deu tão grandes e preciosas promessas, a fim de que por elas vos torneis participantes da natureza divina2. Pela graça, tornamo-nos filhos adotivos de Deus, seus herdeiros e co-herdeiros de Cristofn]Rom 8, 7.; por ela somos “nascidos de Deus”3. Dispõe-nos a receber a vida eterna como herança e como recompensa dos méritos, de quem ela é o princípio. É o germe da vida eterna, semen gloriae, diz a Tradição, enquanto nos dispõe desde agora a ver a Deus imediatamente como Ele se vê e a amá-lo como Ele se ama.

Essa graça habitual ou santificante é recebida na essência mesma da nossa alma, como um enxerto sobrenatural que sobreleva a vida, deifica-a. Dela provém, em nossas faculdades, as virtudes infusas, teologais e morais, e também os sete dons do Espírito Santo, quer dizer, tudo o que constitui nosso organismo sobrenatural, que é para nós, em forma de virtudes adquiridas, como uma segunda natureza, de tal maneira que exercitamos conaturalmente os atos sobrenaturais e meritórios das virtudes infusas e dos sete dons. Decorre disso que, pela graça habitual, a Santíssima Trindade habita em nós como num templo, onde é conhecida e amada, onde é quase experimentalmente cognoscível, e conhecida com freqüência, quando por uma inspiração especial se deixa sentir em nós como vida da nossa vida, “mas recebemos o espírito de adoção de filhos, mercê do qual clamamos, dizendo, Abba (Pai)4. O Espírito Santo nos inspira, então, uma afeição filial por Ele e, nesse sentido, “dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus5.

Se desse modo a graça habitual nos faz filhos de Deus, a graça atual ou transitória nos faz agir, seja pelas virtudes infusas, seja pelos dons, ou simultaneamente por ambos, como verdadeiros filhos de Deus. Essa vida nova não é outra que a vida eterna começada, pois a graça habitual e a caridade devem permanecer eternamente.

Essa graça, também chamada vida divina, não é menos gratuita para os anjos que para nós. Como disse Santo Agostinho6: “Deus eos creavit, simul in eis condens naturam et largiens gratiam”. Deus, ao criar sua natureza, deu-lhes gratuitamente a graça, à qual sua natureza puramente espiritual, por mais elevada que fosse, não tinha direito algum. Os anjos, assim como nós, poderiam ter sido criados num estado puramente natural, sem esse enxerto divino que origina uma nova vida.

A graça que é tratada nestas palavras do anjo: “Ave, gratia plena” é, portanto, superior às forças naturais e às exigências de todas as naturezas criadas ou criáveis; sendo uma participação da natureza divina, ou da vida íntima de Deus, ela nos faz entrar, propriamente falando, no reino de Deus, imensamente superior aos diversos reinos da natureza, que podem ser chamados mineral, vegetal, animal, humano e mesmo angélico. De tal modo que Santo Tomás pôde dizer: “Mas o bem da graça é, para o indivíduo, melhor que o da natureza, para todo o universo7. O mínimo grau de graça santificante contida na alma de um recém-nascido depois de seu batismo vale mais que todos os bens naturais do universo, e mais que todas as naturezas criadas, inclusive as angélicas. Pois há uma participação da vida íntima de Deus, que é superior também a todos os milagres e outros sinais exteriores da revelação divina ou da santidade dos servos de Deus.

É dessa graça, germe da glória, que se trata nas palavras dirigidas pelo anjo a Maria: “Deus te salve, cheia de graça”, e o anjo teve de ver estupefato que, embora ele possuísse a visão beatífica, a santa virgem que acabava de saudar tinha um grau de graça santificante e de caridade superior ao seu, o grau conveniente para que ela se tornasse, naquele mesmo instante, a digna mãe de Deus.

Maria recebeu, sem dúvida alguma, do Altíssimo, e em toda sua perfeição, os dons naturais da alma e do corpo. Se, mesmo do ponto de vista natural, a alma de Jesus, pessoalmente unida ao Verbo, reúne em si tudo o que há de mais nobre e belo na alma dos maiores artistas, poetas, pensadores e dos homens mais talentosos, a alma de Maria, guardando sempre as proporções, por sua própria natureza, pela perfeição natural de sua inteligência, de sua vontade e de sua sensibilidade, é uma obra-prima do Criador. Ela supera em muito todo o bem que tenhamos podido comprovar nas pessoas melhor dotadas, em sua penetração natural e firmeza de julgamento, força de vontade, equilíbrio e harmonia de suas faculdades superiores e inferiores. Em Maria, pelo fato de ter sido preservada do pecado original e de suas desastrosas conseqüências, da concupiscência e da inclinação ao erro, o corpo não entorpecia a alma, mas lhe era perfeitamente submisso. Se a Providência, ao formar o corpo de um santo, tem em vista a alma que o há de vivificar, ao formar o corpo de Maria, tinha em vista o corpo e a alma santa do Verbo feito carne. Santo Alberto Magno se compraz ao recordar que os Santos Padres diziam que a Virgem Maria, mesmo do ponto de vista natural, reuniu em si a graça de Rebeca, a beleza de Raquel e a doce majestade de Ester; e acrescentam que essa beleza puríssima não se reduzia apenas a ela, senão que elevava sempre as almas para Deus.

Quanto mais perfeitos são os dons naturais, mais mostram a sublimidade da vida invisível da graça que os supera imensamente.

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Ao falarmos da plenitude de graça, devemos notar, finalmente, que esta existe em três graus diferentes: em Cristo, em Maria e nos santos. Santo Tomás o explica em diferentes passagens8.

Existe, em primeiro grau, a plenitude absoluta de graça que é própria de Cristo, Salvador da humanidade. Segundo o poder ordinário de Deus, não seria possível criar graça mais elevada e mais completa que a sua. É a fonte sublime e inesgotável de todas as graças que recebe a humanidade inteira depois da queda, e que receberá no transcurso dos tempos; é também a fonte da beatitude dos eleitos, porque Jesus Cristo nos mereceu todos os efeitos de nossa predestinação, como o demonstra muito bem Santo Tomás9.

Existe, em segundo grau, a plenitude chamada de superabundância, privilégio especial de Maria, e que se chama assim porque é como um rio espiritual que, há cerca de dois mil anos, se derrama sobre todos os homens.

Existe finalmente a plenitude de suficiência, que é comum a todos os santos, tornando-os capazes de cumprir os atos meritórios, cada vez mais perfeitos, e que os levarão à salvação eterna.

Essas três plenitudes subordinadas têm sido justamente comparadas a uma fonte inesgotável, com o rio que dela emana, e aos canais alimentados por esse rio para irrigar e fertilizar os campos que atravessa, quer dizer, as distintas partes da Igreja Universal no tempo e no espaço.

Esse rio de graças provém de Deus por intermédio do Salvador, segundo a bela imagem bíblica10: Rorate coeli desuper et nubes pluant justum. “Derramai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho, e as nuvens façam chover o justo; abra-se a terra, e brote o Salvador”. Depois esse rio de graça sobe para Deus, o oceano de paz, em forma de méritos, orações e sacrifícios.

Para seguir a mesma imagem, a plenitude da fonte não aumenta; a do rio que dela emana, ao contrário, não cessa de crescer na terra. E falando sem metáforas, a plenitude absoluta de graça nunca cresceu em Cristo Nosso Senhor, pois era completamente perfeita desde o primeiro instante de sua concepção, como conseqüência da união pessoal com o Verbo da qual se derivou, desde esse instante, a luz da glória e a visão beatífica, de modo que, como disse o II Concílio de Constantinopla11, Cristo não se tornou melhor pelo progresso de seus atos meritórios: “Ex profectu operum non melioratus est”.

A plenitude de superabundância, ao contrário, própria de Maria, não cessou de crescer até sua morte. E por isso os teólogos consideram de ordinário nela: lº, a plenitude inicial; 2º, a plenitude da segunda santificação no instante da concepção do Salvador; 3º, a plenitude final (no momento de sua entrada na glória), sua extensão e superabundância12.

  1. 1. “Gratia Plena”, sobretudo conforme ao texto grego, que significa “feita muito agradável a Deus” e “muito amável a Deus”, “gratissima effecta” ou “dilectissima Deo”. Uma alma é agradável a Deus pela graça habitual ou gratum faciens, que é nela o efeito do amor incriado e ativo de Deus, que a escolheu como um filho adotivo.
  2. 2. 2Pd, 1, 4.
  3. 3. Jo 1, 13
  4. 4. Rom 8, 15.
  5. 5. Rom 8, 16.
  6. 6. De Civit Dei, XII, c. 9.
  7. 7. Iª IIae, q. 113, a. 9, ad 2.
  8. 8. Ver em particular Comm. in Joan., cap. 1, lect. X.
  9. 9. IIIª, q. 24, a. 4.
  10. 10. Is 45, 8.
  11. 11. Denzinger, nº 224.
  12. 12. Cf. santo tomás, IIIª, q. 27, a. 5, ad 2.
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