A plenitude inicial de graça em Maria se nos apresenta sob dois aspectos: o primeiro, de certo modo negativo, sobretudo em seu enunciado: a preservação do pecado original; o segundo, de modo positivo: a concepção absolutamente pura e santa, pela própria perfeição da graça santificante inicial, raiz de todas as virtudes infusas e dos sete dons do Espírito Santo.
A definição dogmática
A definição do dogma da Imaculada Conceição pelo Papa Pio IX, em 8 de dezembro de 1854, diz assim: “Nós declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que afirma que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua concepção, foi preservada, por singular privilégio de Deus e em virtude dos méritos de Jesus Cristo, de toda mancha de pecado original, é doutrina revelada por Deus e, portanto, deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis1.
Essa definição contém, sobretudo, três pontos importantes:
1º ― Afirma-se que a Bem-aventurada Virgem Maria foi preservada de toda mancha de pecado original no primeiro instante de sua concepção, quer dizer, de sua concepção passiva e consumada, quando sua alma foi criada e unida ao corpo, porque somente então existe a pessoa humana, e a definição refere-se a esse privilégio outorgado à pessoa mesma de Maria. Diz-se que é um privilégio especial e uma graça particularíssima, efeito da onipotência divina.
O que devemos entender, conforme o pensamento da Igreja, pelo pecado original de que Maria foi preservada? A Igreja não definiu em quê consiste a natureza íntima do pecado original, mas nos deu a conhecer o que ele é por seus efeitos: inimizade ou maldição divina, mancha da alma, estado de injustiça ou de morte espiritual, escravidão sob o domínio do demônio, sujeição à lei da concupiscência, dos sofrimentos e da morte corporal, considerada como uma pena do pecado comum2.
Deve-se dizer, portanto, que Maria só pôde ser preservada de toda mancha do pecado original por ter recebido a graça santificante desde o momento da sua concepção. Ela foi assim concebida naquele estado de justiça e santidade que é o efeito da amizade divina em oposição à maldição divina, e, por conseguinte, foi subtraída da escravidão sob o domínio do demônio, da sujeição à lei da concupiscência, e mesmo dos sofrimentos e da morte considerados como pena do pecado da natureza3, ainda que em Maria, como em Nosso Senhor, o sofrimento e a morte tenham sido conseqüências de nossa natureza (in carne passibili) e que tenham sido oferecidos para nossa salvação.
2º ― Afirma-se nessa definição que Maria foi preservada do pecado original, em virtude dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, como já o havia declarado em 1661 Alexandre VII4. Não se pode, pois, admitir, como o sustentavam alguns teólogos no século XIII, que Maria é imaculada no sentido de que não necessitou da redenção, e que sua primeira graça é independente dos méritos futuros de seu Filho.
Segundo a bula Ineffabilis Deus, Maria foi resgatada pelos méritos de seu Filho e do modo mais perfeito, por uma redenção não só libertadora do pecado original já contraído, mas por uma redenção preservadora. Mesmo na ordem humana, aquilo que nos preserva de um golpe mortal é nosso salvador, de forma mais ampla e melhor, que aquilo que somente nos cura das feridas causadas pelo golpe.
Relaciona-se com a idéia de redenção preservadora a de que Maria, filha de Adão, descendente dele por via de geração natural, deveria incorrer na mancha hereditária, e teria incorrido de fato nela, se Deus não tivesse decidido, desde toda a eternidade, outorgar-lhe esse privilégio singular da preservação em virtude dos méritos futuros de seu Filho.
Esse ponto de doutrina era já afirmado na oração própria da festa da Imaculada Conceição, aprovada pelo Papa Sixto IV (1476), na qual se diz: “Ex morte ejusdem Filii tui praevisa, eam (Mariam) ab omni labe praeservasti”. A Santíssima Virgem foi preservada do pecado original pela morte futura de seu Filho; quer dizer, pelos méritos de Cristo, morrendo por nós na cruz.
Vê-se naturalmente que essa preservação de Maria difere bastante daquela do Salvador, pois Jesus não foi absolutamente resgatado pelos méritos de outro, nem pelos seus; Ele foi preservado do pecado original e de todo pecado por duplo motivo: primeiro, pela união hipostática ou pessoal de sua humanidade ao Verbo, no mesmo instante em que sua santa alma foi criada, pois nenhum pecado, seja original, atual ou pessoal, pode ser atribuído ao Verbo feito carne; segundo, por sua concepção virginal, realizada por obra do Espírito Santo, Jesus não descende de Adão por meio de geração natural5. Isso é próprio e privativo de Nosso Senhor.
3º ― A definição do dogma da Imaculada Conceição propõe essa doutrina como revelada e contida, portanto, ao menos implicitamente, no depósito da revelação, isto é, na Sagrada Escritura ou na Tradição, ou nas duas fontes.
O testemunho da Escritura
A bula Ineffabilis Deus cita dois textos da Escritura: Gênesis 3, 15 e Lucas 1, 28;42.
No Gênesis, esse privilégio é revelado implicitamente ou confusamente e como em germe nestas palavras de Deus dirigidas à serpente, a figura do demônio: “Porei inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar”6. O vocábulo “Ela” quer dizer a posteridade da mulher, pois no texto hebraico o pronome é masculino e designa os descendentes da mulher, e o mesmo ocorre na Septuaginta e na versão siríaca. A Vulgata coloca ipsa, que se refere à mulher. O sentido, por certo, não é essencialmente diferente, pois a mulher será associada à vitória daquele que representará eminentemente a sua posteridade na luta contra o demônio no transcurso dos séculos.
Essas palavras por si só não são suficientes para provar com certeza que o privilégio da Imaculada Conceição é revelado, mas os Santos Padres, em sua comparação entre Eva e Maria, viram naquelas uma alusão a esse privilégio, e por isso Pio IX cita essa promessa.
Um exegeta naturalista não verá nessas palavras mais que uma expressão da repulsa instintiva que o homem experimenta à vista da serpente. Mas a tradição judaica e a cristã vêem nela muito mais. A tradição cristã tem visto nessa promessa, que tem sido chamada de o protoevangelho, o primeiro traço que serve para designar o Messias e seu triunfo sobre o espírito do mal. Jesus representa de fato, eminentemente, a posteridade da mulher, em luta com a descendência da serpente. Mas se Jesus é assim chamado, não é em razão do laço comum e distante que o une a Eva, pois esta só pôde transmitir aos seus descendentes uma natureza decadente, ferida, privada da vida divina; mas sim, em razão do laço que o une a Maria, em cujo seio Ele tomou uma humanidade sem mancha. Como diz o Pe. Le Bachelet: “Não se encontra na maternidade de Eva o princípio dessa inimizade que Deus colocará entre a raça da mulher e a descendência da serpente, porque Eva, da mesma forma que Adão, caiu vítima da serpente. O princípio dessa inimizade só é encontrado em Maria, mãe do Redentor. Nesse protoevangelho, a personalidade de Maria, ainda que velada, está presente, e a lição da Vulgata, ipsa, expressa uma conseqüência que se deduz realmente do texto sagrado, porque a vitória do Redentor é moralmente, mas realmente, a vitória de sua Mãe”7.
A antigüidade cristã também não cessa de opor Eva, que participa do pecado de Adão ao seguir a sugestão da serpente, a Maria, que participa na obra redentora de Cristo ao dar crédito às palavras do anjo no dia da Anunciação8.
Na promessa do Gênesis, está afirmada uma vitória completa sobre o demônio: ela esmagará tua cabeça; e, portanto, sobre o pecado que coloca a alma num estado de escravidão sobre o domínio do demônio. Evidentemente que, como diz Pio IX na Bula Ineffabilis Deus, essa vitória sobre o demônio não seria decisiva se Maria não tivesse sido preservada do pecado original pelos méritos de seu Filho: “Triunfando completamente [da serpente], [Maria] triturou sua cabeça com o pé imaculado”.
O anúncio desse privilégio está contido na promessa do Gênesis como o carvalho está contido no germe que se encontra numa bolota; se nunca tivéssemos visto um carvalho, não teríamos conhecido o valor desse germe, nem para quê precisamente ele estaria ordenado; mas uma vez que conhecemos o carvalho, vemos que esse germe estava ordenado a produzi-lo e não para que gerasse um olmo ou um álamo. Essa é a lei da evolução que se verifica também na ordem progressiva da revelação divina.
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A bula Ineffabilis Deus cita também as palavras de saudação do anjo a Maria: “Deus te salve, cheia de graça; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres”9, e as mesmas palavras ditas por Santa Isabel sobre a revelação divina10. Pio IX não disse que essas palavras eram suficientes por si só para provar que o privilégio da Imaculada Conceição tenha sido revelado; para que elas sejam eficazes, é preciso acrescentar-lhes a tradição exegética dos Santos Padres.
Essa tradição se torna explícita com Santo Efrém, o Sírio († 373)11, e nos Padres gregos dos tempos posteriores ao Concílio de Éfeso (431), em particular nos bispos adversários de Nestório: São Proclo, um dos sucessores de São João Crisóstomo na sede de Constantinopla (434-446) e Teodoto, bispo de Ancira (430-439), e depois São Sofrônio, Patriarca de Jerusalém (634-38), André de Creta († 740) e São João Damasceno, morto na metade do século VIII, cujos testemunhos são aduzidos longamente pelo Pe. Le Bachelet12.
À luz dessa tradição exegética, as palavras do anjo à Maria: “Deus te salve, cheia de graça”, que querem dizer: “Deus te salve, tu que és plenamente agradável a Deus e amada por Ele”, não estão limitadas no tempo, de modo a excluir algum período inicial da vida de Maria; ao contrário, a Santíssima Virgem não teria recebido essa plenitude de graça se sua alma tivesse estado sequer um instante no estado de morte espiritual, como conseqüência do pecado original, se tivesse sido privada por um só momento da graça, afastada de Deus, filha da ira, num estado de servidão sob o poder do demônio. São Proclo disse que ela foi “formada de um barro puro”13. Teodoto de Ancira disse que “o Filho do Altíssimo nasceu da Excelsa”14. São João Damasceno escreveu que Maria é filha santíssima de Joaquim e Ana e que “escapou dos dardos inflamados do maligno”15, que ela é um paraíso novo “onde a serpente não tem entrada furtiva”16, que está isenta da dívida da morte, uma das conseqüências do pecado original17 ― e deveria estar isenta, portanto, da ruína comum.
Se Maria tivesse contraído o pecado original, a plenitude da graça teria sido restringida, no sentido de que não teria abarcado toda a sua vida. A Igreja, interpretando as palavras da saudação angélica à luz da Tradição e com a assistência do Espírito Santo, viu nelas o privilégio da Imaculada Conceição, implicitamente revelado, não como o efeito na causa que pode existir sem ele, mas como uma parte no todo; a parte está atualmente no todo ao menos implicitamente anunciada.
O testemunho da Tradição
A Tradição também afirma cada vez mais explicitamente essa verdade. São Justino18, Santo Irineu19, Tertuliano20 contrapõem Eva, a causa da morte, e Maria, a causa da vida e da salvação. Essa antítese é constantemente renovada pelos Santos Padres21 e encontra lugar nos documentos mais solenes do magistério supremo, em particular na bula Ineffabilis Deus. Essa antítese é dada como perfeita, sem restrição, e para que o seja, é necessário que Maria tenha sido sempre superior a Eva e, portanto, que não tenha sido inferior a ela desde o primeiro instante de sua vida. Os Santos Padres dizem freqüentemente de Maria que é imaculada, que é sempre abençoada por Deus para honra do seu Filho, que é intemerata, intacta, impolluta, intaminata, illibata, inteiramente sem mancha alguma.
Santo Efrém, ao comparar Eva e Maria, disse: “Ambas são, em sua origem, inocentes e puras, mas Eva logo se torna a causa da morte e Maria a causa da vida” 22. Dirigindo-se ao Senhor, disse também: “Vós, Senhor, e vossa santa Mãe sois os únicos perfeitamente belos em todos os aspectos. Em vós não há nenhuma falta, e em vossa Mãe, nenhuma mancha. Os demais filhos de Deus não se aproximam, nem de longe, dessa beleza” 23.
Santo Ambrósio disse igualmente de Maria que ela está isenta de toda mancha do pecado “per gratiam ab omni integra labe peccati” 24, e Santo Agostinho nos diz que “a honra de Cristo não permite nem mesmo levantar a questão do pecado em relação à Santíssima Virgem Maria” 25, enquanto que se for perguntado aos santos: “Estais sem pecado?”, todos nos responderão com o Apóstolo São João: “Se dissermos que não temos pecado, nós mesmos nos enganamos, e não há verdade em nós” 26. Dois outros textos parecem mostrar que a afirmação de Santo Agostinho sobre Maria isenta de todo pecado se estende à Imaculada Conceição 27. Encontrar-se-ão muitos outros textos e testemunhos dos Santos Padres nas obras de Passaglia 28, Palmieri 29 e Le Bachelet 30.
Deve-se acrescentar que, a partir dos séculos VII e VIII, celebrava-se na Igreja, sobretudo na Igreja grega, a festa da Concepção da Bem-Aventurada Virgem Maria; na Sicília no século IX, na Irlanda no século X e, no século XII, em quase toda a Europa.
O Concílio de Latrão de 649 31 chama Maria de “imaculada”. Em 1476 e 1483, Sixto IV fala em favor do privilégio a propósito da festa da Concepção de Maria 32. O Concílio de Trento 33 declara, ao falar do pecado original que alcança todos os homens, que não é sua intenção incluir nele a Bem-aventurada e Imaculada Virgem Maria. Em 1567, Baio é condenado por ter ensinado o contrário 34. Em 1661, Alexandre VII afirma esse privilégio ao dizer que quase todas as igrejas da cristandade o admitem, ainda que não tenha sido ainda definido 35. E finalmente, em 8 de dezembro de 1854, é promulgada a definição solene 36.
É necessário reconhecer que nos séculos XII e XIII grandes doutores como São Bernardo 37, Santo Anselmo 38, Pedro Lombardo 39, Hugo de São Victor 40, Santo Alberto Magno 41, São Boaventura 42 e Santo Tomás 43 pareceram pouco favoráveis ao privilégio, porque não tinham considerado o instante mesmo da animação ou da criação da alma de Maria, e não distinguiram com precisão, com a ajuda da idéia de redenção preservadora, que Maria, que deveria incorrer na mancha hereditária, não incorreu de fato. Não distinguiram entre “debebat contrahere” e “contraxit peccatum”. Veremos depois, no entanto, que existem na vida de Santo Tomás três períodos distintos sobre esse ponto, e que se no segundo período ele não afirma o privilégio e até parece negá-lo, no primeiro o afirma e também, assim parece, no último.
Razões teológicas do privilégio da Imaculada Conceição
A principal razão da conveniência desse privilégio é o desenvolvimento da explicação que Santo Tomás aduziu para demonstrar a conveniência da santificação de Maria no seio de sua mãe antes de seu nascimento 44: “Deve-se crer razoavelmente que aquela que deveria gerar o Filho único de Deus, cheio de graça e de verdade, tenha recebido, mais que qualquer outra pessoa, os maiores privilégios da graça. Se Jeremias e João Batista foram santificados antes de seu nascimento, deve-se crer razoavelmente que o mesmo aconteceu com Maria”. Santo Tomás disse ainda 45: “Quanto mais perto alguém está da fonte das graças, mais dela recebe, e Maria foi aquela que mais próxima esteve do princípio da graça, que é Cristo” 46.
Mas é necessário desenvolver essa razão de conveniência para chegar ao privilégio de que estamos falando.
Foi mérito de Duns Scot (e os tomistas devem tributar-lhe esta honra: reconhecer que seu adversário enxergou de forma clara nesse ponto) ter esclarecido a grande conveniência desse privilégio, respondendo a esta dificuldade formulada por muitíssimos teólogos e por Santo Tomás: Cristo é o Redentor universal de todos os homens, sem exceção 47. Ora, se Maria não contraiu o pecado original, ela não foi redimida por Cristo; não foi, então, resgatada por Ele.
Duns Scot 48 responde a essa dificuldade com a idéia de uma redenção que não seria libertadora, mas preservadora. Ele mostra toda a conveniência dessa idéia e, pelo menos em certos lugares, não a associa à opinião particular que possui sobre o motivo da Encarnação, de maneira que essa alta razão de conveniência pode ser admitida independentemente dessa sua opinião.
A idéia é a seguinte: convém que o Redentor perfeito exerça uma redenção soberana, pelo menos a respeito da pessoa de sua Mãe, que deve lhe ser associada mais intimamente que ninguém na obra da redenção da humanidade. Ora, a redenção suprema não é a libertação do pecado já contraído, mas a preservação de toda mancha; da mesma maneira que aquele que livra alguém de um golpe mortal é ainda mais salvador do que se lhe curasse as feridas produzidas pelo golpe. É, portanto, conveniente em sumo grau que o Redentor perfeito tenha, por seus méritos, preservado a sua Mãe do pecado original e de toda falta atual. O argumento havia sido esboçado anteriormente por Eadmero 49 e tem evidentemente raízes profundas na Tradição.
Essa razão de conveniência está, de certa maneira, indicada na bula Ineffabilis Deus, com algumas outras mais. A bula diz que a honra dos pais, bem como sua desonra, repercute nos filhos, e não convinha que o Redentor perfeito tivesse uma Mãe concebida no pecado.
Além disso, como o Verbo procede eternamente de um Pai santíssimo por excelência, convinha que ele nascesse na Terra de uma Mãe a quem jamais tivesse faltado o esplendor da santidade.
Enfim, para que Maria pudesse reparar a queda de Eva, vencer as artimanhas do demônio e dar-nos a todos, com Cristo, por Ele e n'Ele, a vida sobrenatural, convinha que ela própria não tivesse estado jamais na situação humilhante da escravidão do pecado e do demônio.
Se for objetado que somente Cristo é imaculado, é fácil responder: só Cristo é imaculado por si mesmo, e pelo duplo título da união hipostática e de sua concepção virginal; Maria o é pelos méritos de seu Filho.
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As conseqüências do privilégio da Imaculada Conceição foram desenvolvidas pelos grandes escritores místicos. Maria foi preservada das conseqüências desonrosas e desastrosas do pecado original, que são a concupiscência e a inclinação ao erro.
É preciso reconhecer, após a definição do dogma da Imaculada Conceição, que o foco da concupiscência não só esteve dominado em Maria desde o seio de sua mãe, como também jamais existiu nela. Nenhum movimento de sua sensibilidade poderia ser desordenado e escapar a seu julgamento e consentimento. Nela sempre existiu a subordinação perfeita da sensibilidade à inteligência e à vontade, e da vontade à Deus, como no estado de inocência. Por isso Maria é a Virgem das virgens, puríssima, inviolata, intemerata, torre de marfim, o espelho puríssimo de Deus.
Maria, igualmente, jamais esteve sujeita ao erro, à ilusão; seu julgamento foi sempre claro e reto. Se não tinha luz suficiente sobre alguma coisa, suspendia o julgamento e evitava a precipitação, que é a causa do erro. Ela é, como dizem as litanias, a Sede da Sabedoria, a Rainha dos doutores, a Virgem prudentíssima, a Mãe do Bom Conselho. Todos os teólogos reconhecem que a natureza falava-lhe do Criador mais profundamente que aos maiores poetas, e que ela teve, já neste mundo, um conhecimento eminente e naturalmente superior daquilo que dizem as Escrituras sobre o Messias, sobre a Encarnação e a Redenção. Esteve, pois, isenta completamente da concupiscência e do erro.
Mas por que o privilégio da Imaculada Conceição não afastou Maria da dor e da morte, que são as conseqüências do pecado original?
Na verdade, a dor e a morte de Maria, assim como em Jesus Cristo, não foram, como em nós, conseqüências do pecado original, que não os havia desgraçado ou manchado. Foram conseqüências da natureza humana, que em si mesma, como a natureza do animal, está sujeita às dores e à morte corporal. Somente por privilégio sobrenatural Adão inocente estava isento de toda dor e da necessidade de morrer, se tivesse conservado a inocência.
Jesus, para ser nosso Redentor com sua morte na cruz, foi virginalmente concebido de uma carne mortal, in carne passibili, e aceitou voluntariamente os sofrimentos e a morte para nossa salvação. Maria, por seu exemplo, aceitou voluntariamente a dor e a morte para unir-se ao sacrifício de seu Filho, para expiar com Ele em nosso lugar e nos resgatar.
E surpreendentemente, para admiração das almas contemplativas, o privilégio da Imaculada Conceição e a plenitude da graça, longe de afastar Maria da dor, aumentaram enormemente nela a capacidade de sofrer pelas conseqüências do maior dos males, o pecado. Precisamente porque era absolutamente pura, porque seu coração estava abrasado pela caridade divina, Maria sofreu excepcionalmente os maiores tormentos, dos quais nossa leviandade nos torna impassíveis. Sofremos com o que fere a nossa sensibilidade, nosso amor próprio, nosso orgulho. Maria sofreu pelo pecado, na mesma medida do seu amor por Deus, a quem o pecado ofende; na medida do seu amor por seu Filho, a quem o pecado crucificou; na medida do seu amor por nossas almas, as quais o pecado destrói e mata. O privilégio da Imaculada Conceição, longe de afastar Maria da dor, aumentou tanto seus sofrimentos e a dispôs tão bem para suportá-los, que ela não desperdiçou o menor deles e os ofereceu incessantemente com os sofrimentos de seu Filho para nossa salvação.
Pensamento de Santo Tomás sobre a Imaculada Conceição
Pode-se, segundo parece, e como têm apontado alguns comentadores, distinguir sobre esse ponto três períodos no pensamento de Santo Tomás.
No primeiro, ao princípio de sua carreira teológica (1253-1254), ele afirma o privilégio, provavelmente em virtude da tradição manifestada pela festa da Conceição celebrada em muitas Igrejas e pelo piedoso fervor de sua admiração pela santidade perfeita da Mãe de Deus. Escreveu então: “Puritas intenditur per recessum a contrario: et ideo potest aliquid creatum inveniri quod nihil purius esse potest in rebus creatis, si nulla contagione peccati inquinatum sit; et talis fuit puritas beatae Virginis, quae a peccato originali et actuali immunis fuit” 50. Segundo esse texto, a pureza da bem-aventurada Virgem era tal que ela permaneceu isenta do pecado original e de todo pecado atual.
No segundo período, Santo Tomás, vendo melhor as dificuldades do problema, hesita e não se pronuncia, pois os teólogos do seu tempo sustentam que Maria é imaculada independentemente dos méritos de Cristo. Ele recusa admitir essa posição por causa do dogma da redenção universal que, sem exceção, provém do Salvador 51. Apresenta, pois, a questão 52: a bem-aventurada Virgem foi santificada antes da animação, na concepção do seu corpo? Porque, segundo ele e muitos outros teólogos, a concepção (inicial) do corpo distingue-se da animação ou criação da alma, que será posterior em um mês aproximadamente, e que hoje se chama concepção passiva consumada.
O santo doutor dá, no início desse artigo, quatro argumentos em favor da concepção imaculada, mesmo anterior, cronologicamente, à animação. Em seguida, responde: “A santificação da bem-aventurada Virgem não pode se conceber antes da animação: lº, porque essa santificação deve purificá-la do pecado original, o qual não pode ser apagado a não ser pela graça, que tem por sujeito a própria alma; 2º, se a bem-aventurada Virgem Maria tivesse sido santificada antes da animação, jamais teria incorrido na mancha do pecado original e não teria tido necessidade de ser resgatada por Cristo... E isso é um inconveniente, porque Cristo é o Salvador de todos os homens” 53.
Mesmo após a definição dogmática de 1854 é verdadeiro afirmar que Maria não foi santificada antes da animação; mas Santo Tomás acrescenta, ao final do corpo do artigo: “Unde relinquitur, quod sanctificatio B. Virginis fuerit post ejus animationem”. Só resta, segundo ele, que tenha sido santificada depois da animação. Ele não distingue, como fez muitas vezes em outros lugares, a posteridade de natureza, que pode e deve ser admitida hoje, da posteridade de tempo, que é contrária ao privilégio da Imaculada Conceição. E, da mesma forma, no ad 2, Santo Tomás diz da bem-aventurada Virgem: “Contraiu o pecado original” 54.
Todo seu argumento tende a demonstrar que Maria, sendo descendente de Adão por geração natural, deveria incorrer na mancha do pecado original. Mas não distingue o suficiente esse debitum incurrendi do fato de incorrer nessa falta.
Quanto à questão de saber em que momento exato a Virgem Maria foi santificada no ventre de sua mãe, ele não se pronuncia. Declara que a santificação seguiu imediatamente à animação: cito post, disse ele nos Quodlibetos VI, a. 7; mas em qual momento, ignora-se, “quo tempore sanctificata fuerit, ignoratur” 55.
Na Summa, Santo Tomás não examina a questão: “Maria foi santificada no mesmo instante da animação?” São Boaventura também havia apresentado o problema e o havia respondido negativamente. Santo Tomás não se pronuncia claramente; inspira-se provavelmente na atitude reservada da Igreja Romana, que não celebrava a festa da Concepção, realizada em outras igrejas 56. Essa é, pelo menos, a interpretação do Pe. Norb. del Prado, O.P. 57, do Pe. Mandonnet, O.P. 58 e do Pe. Hugon 59. Segundo esses autores, o pensamento do santo doutor, mesmo nesse segundo período de sua carreira professoral, seria a expressada muito tempo depois por Gregório XV em suas cartas datadas de 04 de julho de 1622: “Spiritus Sanctus nondum tanti mysterii arcanum Ecclesiae suae patefecit”.
Os princípios invocados por Santo Tomás não concluem totalmente contra o privilégio, e subsistem perfeitamente se a redenção preservadora for admitida.
Objeta-se, no entanto, um texto difícil 60: “Sed nec etiam in ipso instanti infusionis (animae), ut scil. per gratiam tunc sibi infusam conservaretur ne culpam originalem incurreret. Christus enim hoc singulariter in humano genere habet, ut redemptionem non egeat”. O Pe. del Prado e o Pe. Hugon 61 respondem: “O sentido pode ser: a Santíssima Virgem não esteve preservada de tal maneira que não deveria incorrer na mancha original, pois não teria tido necessidade de redenção”. Desejaria-se, evidentemente, a distinção explícita entre o debitum incurrendi e o fato de incorrer na mancha original.
No último período de sua carreira, em 1272 ou 1273, Santo Tomás, ao escrever a Expositio super salutationem angelicam, certamente autêntica 62, diz: “Ipsa enim (beata Virgo) purissima fuit et quantum ad culpam, quia nec originale, nec mortale, nec veniale peccatum incurrit”.
Na edição crítica do Comentário da Ave Maria 63, demonstra-se, nas páginas 11 a 15, que a passagem relativa à Imaculada Conceição encontra-se em 16 dos 19 manuscritos consultados pelo editor, que conclui por sua autenticidade e coloca no apêndice as fotografias dos principais manuscritos 64.
Seria desejável que se fizesse para cada um dos principais opúsculos de Santo Tomás um estudo tão consciencioso 65.
Esse texto, apesar das objeções feitas pelo Pe. P. Synave 66, parece bem ser autêntico. Se assim fosse, Santo Tomás, no final de sua vida, depois de madura reflexão, teria voltado à afirmação do privilégio que tinha sustentado primeiramente em I Sent., dist. 44, q. 1, a. 3, ad 3, guiado, sem dúvida, pela sua piedade para com a Mãe de Deus. Podem-se também observar outros indícios desse retorno à sua primeira maneira de pensar 67.
Essa evolução, aliás, não é rara nos grandes teólogos, que afirmam, levados pela Tradição, primeiro um ponto de doutrina sem ver ainda todas as dificuldades; tornam-se depois mais reservados e, finalmente, a reflexão os conduz ao ponto de partida, ao perceberem que os dons de Deus são mais ricos que nos parecem, e que não podemos limitá-los sem justas razões. Como vimos, os argumentos invocados por Santo Tomás não concluem contra o privilégio e até conduzem-nos a ele, quando se tem a idéia explícita da redenção preservadora.
Em seu comentário à Suma Teológica, o Pe. J. M. Vosté, O. P. 68 aceita a interpretação de J. F. Rossi e sustenta também que Santo Tomás, no final de sua vida, voltou, depois de refletir, à afirmação do privilégio que havia expressado no princípio de sua carreira teológica. Pelo menos, é seriamente provável que tenha sido assim.
Existe contradição entre esse texto e aquele que parece bem autêntico, algumas linhas abaixo. É inverossímil que a poucas linhas de distância encontrem-se o sim e o não. A dificuldade desaparece quando se considera que para Santo Tomás a concepção do corpo, no princípio do desenvolvimento do embrião, precede, pelo menos em um mês, à animação, que é a concepção passiva consumada, antes da qual não existe a pessoa, porque ainda não existe a alma racional.
Convém recordar que Santo Tomás, in Epist. ad Galatas, III, 16, lect. 6, declara Maria imune do pecado original: excipitur purissima el omni laude dignissima. Item Expositio in Orat. domin., petitio V: Plena gratia, in qua nullum peccatum fuit. In Psal. XIV, 2: In Christo et B. Virgine Maria nulla omnino macula fuit. In Psal. XVIII, 6: Quae nullam habuit obscuritatem peccati.