Category: Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.
Dominicano, autor de livros de teologia, filosofia e espiritualidade, foi um dos grandes espirituais do século XX.
Para compreender melhor o que foi a plenitude de graça na Santíssima Virgem, sobretudo no final de sua vida, será conveniente considerar qual foi a perfeição de sua inteligência, especialmente qual foi sua fé iluminada pelos dons de sabedoria, inteligência e ciência; qual foi também a elevação de suas principais virtudes, que, estando conexas com a caridade, encontravam-se em Maria como esta, a caridade, num grau proporcionado ao da graça santificante. Para completar essa síntese, falaremos brevemente também das graças gratuitas de ordem intelectual por ela recebidas, especialmente a de profecia e de discernimento dos espíritos.
A fé iluminada pelos dons em Maria
Se pensarmos na perfeição natural da alma da Santíssima Virgem, a mais perfeita de todas após a alma do Salvador, teremos de admitir que sua inteligência natural já estivesse dotada de uma grande penetração e de uma grande retidão, e que essas qualidades naturais não deixaram de se desenvolver no curso de sua vida.
Sua fé infusa era, com maior razão, profundíssima da parte do objeto pela revelação que lhe foi feita imediatamente, no dia da Anunciação, dos mistérios da Encarnação e da Redenção, e por sua santa familiaridade de todos os dias com o Verbo feito carne. Subjetivamente, sua fé era firmíssima, certíssima e prontíssima em sua adesão, porque essas qualidades da fé infusa são tanto maiores quanto mais elevada é a fé. Maria recebeu a fé infusa no maior grau que já existiu, e o mesmo deve ser dito de sua esperança, porque Jesus, que teve a visão beatífica desde o primeiro instante de sua concepção, não tinha a fé nem a esperança, mas a plena luz e posse dos bens eternos que nos foram prometidos.
Não poderíamos ter uma idéia da sublimidade da fé da Virgem Maria. Na Anunciação, a partir do instante em que lhe foi proposta suficientemente a verdade divina sobre o mistério da Encarnação redentora, ela acreditou. Por isso lhe disse Santa Isabel, um pouco depois: “Bem-aventurada tu, que creste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas”. No Natal, observou seu Filho nascer num estábulo, e acreditou que Ele é o criador do universo; percebeu toda a fragilidade do seu corpo de recém-nascido, e acreditou em sua onipotência; quando Ele começou a balbuciar as primeiras palavras, acreditou que Ele era a própria sabedoria; quando teve de fugir com Ele da cólera do rei Herodes, acreditou, não obstante, que era o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, como diria posteriormente São João. No dia da Circuncisão e da Apresentação no Templo, sua fé se tornou cada vez mais esclarecida sobre o mistério da Redenção. Maria viveu na Terra num contraste perpétuo, distinguindo claramente as trevas aqui de baixo, que provêm do erro e do mal, e a escuridão das alturas, uma escuridão que está acima da luz divina acessível na Terra, e que permite pressentir o que há de mais elevado nos mistérios divinos que os bem-aventurados contemplam abertamente no Céu.
Durante a Paixão, quando os Apóstolos se afastaram, exceto São João, ela permaneceu junto à Cruz, de pé, sem desfalecer; não cessou nem por um instante de crer que seu Filho era verdadeiramente o Filho de Deus, Deus mesmo, e que era, como disse o Precursor, “o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”; que aparentemente derrotado, era o vencedor do demônio e do pecado e que dentro de três dias seria vitorioso sobre a morte por sua ressurreição, como havia anunciado. Esse ato de fé da Virgem Maria no Calvário foi, naquela hora negra, o maior e mais profundo que já existiu, pois o objeto desse ato era o mais difícil: que Jesus alcançaria a maior vitória através da mais completa imolação.
Essa fé estava admiravelmente iluminada pelos dons que possuía em nível proporcionado ao de sua caridade. O dom da inteligência fazia-lhe penetrar e compreender os mistérios revelados, seu significado interior, sua conveniência, sua harmonia, suas conseqüências; fazia-lhe ver melhor sua credibilidade, em particular nos mistérios em que ela participou mais que qualquer outra pessoa, como o mistério da concepção virginal de Cristo e o da Encarnação do Filho de Deus e, conseqüentemente, nos mistérios da Santíssima Trindade e da economia da Redenção.
O dom da sabedoria, sob a inspiração do Espírito Santo, permitia-lhe julgar as coisas divinas por essa concordância ou conaturalidade que está fundada na caridade. Ela conhecia assim experimentalmente quão bem esses mistérios correspondem às nossas aspirações mais elevadas e suscitam sempre novas para completá-las. Desejava os mistérios na proporção da sua caridade, que não cessava de aumentar, de sua humildade e de sua pureza. Em Maria se realizaram eminentemente as palavras: “É aos humildes que Deus dá sua graça”, “bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus”; já o vislumbram desde aqui na Terra.
Pelo dom da ciência, o Espírito Santo permitia-lhe julgar as coisas criadas, seja como símbolos das coisas divinas, no sentido de que os Céus cantam a glória de Deus, seja para compreender sua nulidade e fragilidade, e apreciar melhor, por contraste, a vida eterna.
Privilégios particulares de sua inteligência
À fé e aos dons do Espírito Santo, que se encontram em diversos graus em todos os justos como funções do organismo espiritual, agregavam-se em Maria, como em muitos outros santos, as graças gratuitas (gratis datae) ou carismas, outorgados sobretudo para o benefício do próximo. Estes são antes sinais exteriores para confirmar a revelação e a santidade do que formas da vida sobrenatural, e por isso distinguem-se da graça santificante, das virtudes infusas e dos dons, que são de ordem mais elevada.
A esse respeito, os teólogos admitem geralmente este princípio: mais que todos os outros santos, Maria recebeu todos os privilégios que as grandes conveniências exigiam para ela e que não tinham nenhuma incompatibilidade com seu estado. Em outros termos, ela não podia ficar, com respeito ao título de Mãe de Deus, em condição de inferioridade em relação aos outros santos, aos quais superava muitíssimo pela medida em que tinha a graça habitual, as virtudes infusas e os sete dons.
É preciso bem compreender esse princípio, mas não de uma maneira muito material. Se, por exemplo, alguns santos viveram longos meses sem alimento, ou se caminharam sobre as águas para ir ao socorro de alguém, não se segue que a Santíssima Virgem o tenha feito também; é suficiente que esses dons estejam contidos nas graças de ordem superior.
Mas em virtude do princípio enunciado, devem ser atribuídos a ela muitíssimos carismas, seja de uma maneira certa ou ao menos com grande probabilidade.
Em primeiro lugar, deve-se admitir que ela tenha tido por privilégio, em maior grau que os outros santos, o conhecimento profundo da Escritura, sobretudo no que se refere ao Messias, à Encarnação redentora, à Santíssima Trindade, à vida da graça, às virtudes e à vida eterna.
Embora não correspondesse a Maria exercer o ministério oficial da Igreja, ela deve ter esclarecido São João e São Lucas em muitíssimas coisas relativas à infância e à vida oculta de Jesus.
Quanto aos objetos de ordem natural, ela deve ter tido o conhecimento claro e profundo das coisas que eram de alguma utilidade; não lhe era necessário saber que o sal comum é cloreto de sódio ou que a água é constituída de hidrogênio e oxigênio para conhecer bem suas propriedades naturais, e nem mesmo seu simbolismo superior. A Virgem tinha das coisas naturais o conhecimento que serve para penetrar melhor nas verdades morais e religiosas, esse que manifesta a existência de Deus, sua Providência universal que se estende ao mais ínfimo detalhe; esse conhecimento que manifesta também a espiritualidade e a imortalidade da alma, nosso livre arbítrio, nossa responsabilidade, os princípios e conclusões da lei moral e as relações da natureza e da graça. Compreendia admiravelmente a finalidade da natureza, a ordem da criação, a subordinação de toda causa criada à causa suprema; não confundia essa subordinação com o que não seria mais que coordenação da ação da criatura com aquela do Criador. Sabia que todo o bem procede de Deus, até a livre determinação de nossos atos salutares e meritórios, e que ninguém seria melhor que o outro se não fosse mais amado por Deus, o que constitui o fundamento da humildade e da ação de graças.
O conhecimento de Maria neste mundo tinha seus limites, sobretudo no início; assim, não compreendeu de início todo o alcance das palavras de Jesus menino referentes aos assuntos de seu Pai. Mas, como se tem dito muitas vezes, eram limitações em vez de lacunas; não era ignorância, pois não se tratava da privação de um conhecimento que teria convindo que possuísse naquele momento. A Mãe de Deus soube, nos diferentes momentos de sua vida, o que convinha que soubesse.
Com maior razão, jamais esteve sujeita a erro; evitava toda precipitação no julgamento ou o suspendia enquanto não possuísse as luzes suficientes; e se ainda não estava segura, contentava-se em admitir a coisa como verossímil ou provável, sem afirmar, nem mesmo interiormente, que fosse verdadeira. Por exemplo, é dito em São Lucas que quando Jesus, à idade de doze anos, permaneceu em Jerusalém, Maria julgou ou supôs que ele estava na caravana junto com os parentes ou amigos. Era uma suposição verossímil, verdadeiramente provável, e nisso não se enganava.
Vimos antes que Maria teve muito provavelmente, segundo a apreciação de muitos teólogos, ao menos de maneira transitória, desde o seio de sua mãe, a ciência infusa para ter o uso do livre arbítrio e o mérito que fazia frutificar a plenitude inicial de graça. Se muito provavelmente lhe foi assim outorgada essa ciência infusa, fica difícil dizer que em seguida tenha ficado privada dela, pois teria se tornado menos perfeita, em vez de progredir incessantemente na linha do mérito. A mesma razão de conveniência, vimos também, levou muitos teólogos, como São Francisco de Sales e Santo Afonso, a afirmar que Maria possuía o uso dessa ciência infusa mesmo durante o sono, para continuar merecendo. Mas Jesus aceitou e ofereceu sua
Entre as graças gratuitas, não se pode negar a Maria o dom da profecia, que, aliás, torna-se manifesto no Magnificat, particularmente por estas palavras: “eis que, de hoje em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada”. A realização dessa profecia é tão evidente e constante depois de séculos, quão concreto e definitivo é o anúncio. E não foi evidentemente a única profecia na vida da Santíssima Virgem, pois esse dom é muito freqüente em vários santos, como se pode ver na vida do Cura d'Ars e de São João Bosco.
Como muitos santos, finalmente, Maria deve ter possuído o dom do discernimento dos espíritos, para reconhecer o verdadeiro espírito de Deus, distingui-lo de toda ilusão diabólica ou da exaltação natural, para poder penetrar assim os segredos dos corações, sobretudo quando lhe pediam conselhos, para responder sempre de maneira justa, oportuna e imediatamente aplicável, como faziam tantas vezes o Cura d'Ars e muitos outros servos de Deus.
Vários teólogos reconhecem ainda em Maria o dom de línguas, para usá-lo quando teve de viajar para países estrangeiros, como o Egito e Éfeso . Com maior razão, depois da Assunção, Maria teve a plenitude desse dom, uma vez que nas aparições de Lourdes, La Salette e em outros lugares, ela falava o dialeto da região onde aparecia; dialeto que, ademais, era o único idioma conhecido das crianças a quem dirigia a sua mensagem celestial.
Também se tem perguntado se Maria teve, em sua vida terrena, por alguns instantes, a visão imediata da essência divina, da qual gozam no Céu os bem-aventurados.
Os teólogos ensinam comumente, contra G. Vega e Francisco Guerra, que certamente ela não a teve de forma permanente, no que difere de Nosso Senhor, pois se a tivesse possuído, não teria tido fé.
Teve esse privilégio até o final de sua vida e de maneira transitória? É difícil responder com certeza. Tinha de ter uma visão intelectual da Santíssima Trindade superior àquela que recebeu Santa Teresa e outros santos que chegaram até a união chamada transformante (VII Morada de Santa Teresa); mas essa visão intelectual, por mais elevada que seja, é sempre da ordem da fé, inferior à visão imediata da essência divina, e é comunicada por idéias infusas.
Sabe-se que, segundo Santo Agostinho e Santo Tomás, é provável que São Paulo tenha tido por um momento a visão beatífica, pelo que diz na segunda Carta aos Coríntios, “foi arrebatado (não sei se foi no corpo, se fora do corpo ― só com a alma ― Deus o sabe) até ao terceiro céu. (...) e arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis que não é lícito (ou possível) a um homem proferi-las (explicando-as)”.
Santo Agostinho e Santo Tomás observam que o terceiro céu, segundo os hebreus, não é o céu do ar nem dos astros, mas o Céu espiritual onde Deus habita e é visto pelos anjos ― o paraíso, como diz o próprio São Paulo no texto citado. Esses dois grandes doutores consideram como provável que São Paulo tenha tido por um momento a visão beatífica, porque foi chamado a ser o Doutor dos Gentios e da graça, e que não se pode plenamente conhecer o preço da graça, o germe da glória, sem ter gozado por um momento desta. Existe uma séria probabilidade de que tenha sido assim, considerando a autoridade dos dois maiores teólogos da Igreja, que por sua vez também receberam inumeráveis graças místicas e que podiam julgar muitíssimo melhor que nós a questão que estamos tratando.
Essa opinião de Santo Agostinho e de Santo Tomás não é, todavia, aceita por Estio nem por Cornélio a Lápide. Exegetas modernos, como o Pe. B. Allo O. P., em seu comentário sobre a Segunda Epístola aos Coríntios, contentam-se em dizer que “São Paulo foi arrebatado aos cumes da contemplação divina e deve ter entoado os cânticos indizíveis dos bem-aventurados ao redor do trono de Deus”.
E de volta à Santíssima Virgem, deve-se notar com o Pe. Hugon que, se é provável que São Paulo tenha recebido esse privilégio por um momento, é muito difícil negá-lo à Mãe de Deus, pois sua divina maternidade, sua plenitude da graça e a carência absoluta de faltas dispunham-na mais que ninguém para a eterna bem-aventurança. Se não se pode afirmar com certeza que tivesse durante alguns instantes a visão beatífica aqui na Terra, é ao menos muito provável que tenha tido.
Esse simples olhar é suficiente para formarmos uma idéia do que foram durante sua vida terrena os dons intelectuais da Santíssima Virgem.
As principais virtudes de Maria
Falamos um pouco antes de sua fé; convém indicar brevemente o que foram nela a esperança, a caridade, as quatro virtudes cardeais e em seguida sua humildade e bondade.
A Esperança, pela qual aspirava possuir a Deus que ainda não via, era uma perfeita confiança que se apoiava não nela mesma, mas na misericórdia divina e na onipotência auxiliadora. Esse fundamento lhe dava uma certeza muito segura, “certeza de tendência”, diz Santo Tomás, que nos faz pensar naquela que o navegador possui, depois de ter tomado o rumo certo, de dirigir-se efetivamente para o termo da sua viagem, e que vai aumentando na medida em que se aproxima do final do itinerário. Em Maria, essa certeza aumentava também pelas inspirações do dom da piedade, pelo qual, ao despertar em nós um amor inteiramente filial para com Ele, “o Espírito Santo dá testemunho ao nosso espírito, de que somos filhos de Deus” e que podemos contar com seu auxílio.
Essa certeza da esperança era tanto maior em Maria quanto ela estava confirmada na graça, preservada de toda falta e, por conseguinte, de todo desvio, fosse para o lado da presunção ou para o da depressão e da falta de confiança em Deus.
Exercitou essa esperança perfeita ainda em sua infância, quando suspirava ardentemente pela vinda do Messias, quando a desejava para a salvação das nações, quando esperava que o segredo da concepção virginal do Salvador fosse revelado a José, seu esposo; quando fugiu para o Egito; e mais tarde no Calvário, quando tudo parecia perdido e ela esperava a perfeita e próxima vitória de Cristo sobre a morte, como Ele mesmo havia anunciado. Sua confiança, enfim, animou e assegurou a confiança dos Apóstolos em meio às lutas incessantes pela difusão do Evangelho e pela conversão do mundo pagão.
Sua caridade, seu amor a Deus por Ele mesmo e às almas por Deus, superava desde o princípio a caridade final de todos os santos reunidos, uma vez que existia no mesmo grau que a plenitude de graça, e Maria estava sempre mais intimamente unida ao Pai, como sua filha predileta, ao Filho, como sua Virgem Mãe, estreitamente associada à sua missão, e ao Espírito Santo, por um matrimônio espiritual que superava largamente aquele que tiveram os maiores místicos. Ela era, num grau que não podemos vislumbrar, o templo vivo da Santíssima Trindade. Deus a amava mais que a todas as outras criaturas juntas, e Maria correspondia perfeitamente a esse amor, após ter-se consagrado plenamente a Ele desde o primeiro instante de sua concepção e vivendo sempre na mais completa conformidade de vontade com Seu beneplácito.
Nenhuma paixão desordenada, nenhuma vã preocupação, nem mesmo a mínima distração freava esse impulso de seu amor por Deus; seu zelo pela regeneração das almas era proporcionado a esse impulso; ela se oferecia incessantemente e oferecia seu Filho para nossa salvação.
Exerceu essa caridade em grau tão eminente e de maneira contínua. Porém, mais especialmente quando se consagrou totalmente a Deus, ao ser apresentada no templo e fazer o voto de virgindade, encomendando-se à Providência para poder observá-lo perfeitamente; posteriormente, na Anunciação, quando deu seu consentimento com uma perfeita conformidade à vontade de Deus e por amor a todas as almas as quais havia de salvar; também quando concebeu seu Filho e lhe deu a vida; ao apresentá-lo no templo e encontrá-lo mais tarde no meio dos doutores, e ao oferecê-lo finalmente no Calvário, participando em todos os seus padecimentos para a glória de Deus, em espírito de reparação e para a salvação de todos. No momento mesmo em que escutava os gritos: “Que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”, uniu-se à oração do Salvador pelos seus algozes: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
A Igreja aplica-lhe também estas palavras do Eclesiástico: “Eu sou a Mãe do amor formoso e do temor de Deus, da ciência e da santa esperança”.
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As virtudes morais infusas estão em todos os justos num grau proporcionado àquele de sua caridade: a prudência na razão para assegurar a retidão do juízo prático segundo a lei divina, a justiça na vontade para dar a cada um o que lhe é devido, a fortaleza e a temperança na sensibilidade para discipliná-la e fazer que resida nela a retidão da justa razão iluminada pela fé. A essas quatro virtudes cardeais acrescentam-se as outras virtudes morais infusas.
Quanto às virtudes adquiridas, que são de ordem natural, facilitam o exercício das precedentes, às quais são subordinadas, como a agilidade dos dedos do artista facilita o exercício da arte, que reside na inteligência.
A prudência em Maria dirigia todos os seus atos ao fim último sobrenatural, sem nenhum desvio; todas as suas ações eram deliberadas e meritórias. Por isso a Igreja a chama Virgo prudentissima. Maria exerceu particularmente essa virtude iluminada pelo dom do conselho, na Anunciação, quando “perturbada com as palavras do anjo, discorria pensativa que saudação seria esta” e quando perguntou depois: “Como se fará isso, pois eu não conheço varão”; e depois de ter sido iluminada, quando disse: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Exerceu a justiça evitando toda falta contrária a essa virtude, observando todas as prescrições da lei, até a da purificação, ainda que não tivesse nenhuma necessidade de ser purificada, e ordenando toda a sua vida para o melhor bem da humanidade a ser regenerada e de seu povo.
Ela praticou no mais alto grau a justiça para com Deus, isto é, a virtude da religião, unida ao dom da piedade, consagrando-se totalmente ao serviço de Deus desde o primeiro instante, ao fazer o voto de virgindade, ao oferecer seu Filho durante a apresentação no templo, e ainda mais ao oferecer a sua morte na cruz. Ofereceu também com Ele o ato mais perfeito da virtude da religião: o sacrifício perfeito, o holocausto de valor infinito. Praticou também a obediência perfeita a todos os mandamentos, acompanhada da mais generosa prontidão em seguir todos os conselhos e inspirações do Espírito Santo.
Essa justiça foi sempre unida à misericórdia; perdoou, com seu Filho, todas as injúrias que lhe foram feitas, e mostrou grande comiseração pelos pecadores e pelos aflitos. A Igreja também a chama Mãe de Misericórdia, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, título que ostentam milhares de santuários nos diferentes países do mundo; por ela se realiza esta palavra do salmista: “Misericordia Dei plena est Terra”. A Terra está cheia da misericórdia de Deus.
A fortaleza ou a firmeza da alma que não se deixa abater pelos maiores perigos, nem pelos mais duros trabalhos e penosas aflições, brilhou em Maria em grau não menos eminente, sobretudo durante a Paixão do Salvador, quando permaneceu ao pé da Cruz, sem desfalecer, segundo o testemunho de São João. Sabe-se que Caetano escreveu um opúsculo intitulado De spasmo Virginis contra a opinião que afirmava que Maria havia desfalecido no caminho do Calvário. Medina, Toledo, Suárez e a maioria dos teólogos rejeitaram igualmente essa opinião.
A Santíssima Virgem foi sustentada pelas inspirações do dom da fortaleza até o ponto em que mereceu, pelo martírio do coração, ser chamada de Rainha dos Mártires, pelo fato de ter participado interiormente das dores de seu Filho mais profunda e generosamente que todos os mártires em todos os seus tormentos exteriores. A Igreja recorda-nos isso na festa da Compaixão da Santíssima Virgem e na festa das Sete Dores de Nossa Senhora, principalmente no Stabat Mater, onde se diz:
16. Fac, ut portem Christi mortem,
passionis fac consortem,
et plagas recolere.
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Traga em mim do Cristo a morte,
da Paixão seja consorte,
suas chagas celebrando.
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17. Fac me plagis vulnerari,
fac me Cruce inebriari,
et cruore Filii.
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Por elas seja eu rasgado,
pela cruz inebriado,
pelo sangue de teu Filho!
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Foi ao mais alto grau da fortaleza, da paciência e da magnanimidade ou grandeza de alma, na mais extrema aflição.
A temperança em seus diferentes aspectos, especialmente a virgindade perfeita, aparece em sua angélica pureza, que assegurava totalmente o predomínio da alma sobre o corpo, das faculdades superiores sobre a sensibilidade, de maneira que Maria espiritualizava-se cada dia mais; a imagem de Deus refletia-se nela como num puríssimo espelho sem traço algum de imperfeição.
A humildade nunca teve de reprimir em Maria o menor primeiro movimento de orgulho ou de vaidade, mas elevou-a ao ato próprio e peculiar dessa virtude: reconhecer praticamente que ela, por si só, não era nada e nada podia fazer sem a graça, na ordem da salvação; inclinava-se também diante da infinita majestade de Deus e diante do menor traço que aparecia d’Ele em todo ser criado. Mais que qualquer outra criatura, colocou sua grandeza em Deus e nela se realizou eminentemente esta palavra do Missal: Deus humilium celsitudo.
No dia da Anunciação, disse: “Sou a escrava do Senhor” e no Magnificat deu graças ao Altíssimo por ter-se dignado olhar sua ínfima condição. No dia da Purificação, submeteu-se a uma lei que não se aplicava a ela. Ao longo de sua vida, sua humildade manifestou-se em todo o exterior: sua perfeita modéstia, sua pobreza voluntária, os trabalhos corporais mais singelos realizados por ela depois de ter recebido as maiores graças que qualquer outra criatura jamais receberá.
Sua bondade ou mansidão correspondia à sua humildade, segundo estas palavras da liturgia: Virgo singularis, inter omnes mitis; mesmo diante daqueles que crucificaram seu Filho, não proferiu a menor palavra de indignação, mas com Ele perdoou-os, rezando por eles; é a mansidão levada ao máximo grau, unida juntamente à virtude da fortaleza.
Todas as virtudes, mesmo aquelas que aparentemente são opostas, uniram-se em Maria na mais perfeita harmonia e nos fazem pensar na simplicidade eminente de Deus, onde se fundem, simultaneamente, as perfeições absolutas mais distintas, como a infinita justiça e a infinita misericórdia.
Tais são os dons intelectuais de Maria e suas principais virtudes, que fizeram dela o modelo da vida contemplativa, unida à maior devoção para com o Verbo Encarnado e ao apostolado escondido e silencioso mais profundo e universal que já existiu, pois ninguém esteve associado como ela à imensa obra da Redenção, como veremos mais tarde ao falar de sua mediação universal.
O que acabamos de dizer sobre as principais virtudes de Maria, seus dons intelectuais e sua harmonia completa nos mostram mais concretamente o que foi nela o progresso espiritual e como a plenitude de graça aumentou consideravelmente nela no momento da Encarnação e nos principais mistérios que se seguiram: no nascimento do Salvador, na apresentação de Jesus no templo, em seguida, na fuga para o Egito, na vida oculta em Nazaré e mais ainda no Calvário, em Pentecostes e quando assistia e comungava na Missa celebrada por São João.
Convém tratar, a seguir, da plenitude final de graça no momento de sua morte e no instante de sua entrada no Céu. Poderemos seguir assim as fases sucessivas da vida espiritual de Maria desde a Imaculada Conceição até o momento de sua glorificação, da mesma forma que um rio proveniente de uma fonte muito alta e que, depois de fertilizar tudo por onde passa, precipita-se no oceano.
Esses mistérios foram principalmente aqueles que o Rosário nos convida a meditar, depois do nascimento de Jesus.
O nascimento do Salvador
Maria cresceu na humildade, pobreza e mais ainda no amor de Deus ao dar a vida a seu Filho num estábulo. Por berço, não havia mais que uma manjedoura. Mas no mesmo instante, por divino contraste, os anjos cantaram: “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade”. Se essas palavras foram doces ao coração dos pastores e ao de São José, muito mais o foram ao coração de Maria. Esse é o começo do Glória que a Igreja não deixará de cantar na Missa até o fim do mundo, e que é o prelúdio do culto do Céu.
Diz-se de Maria: “guardava todas essas coisas, meditando-as em seu coração”. Quanta alegria deve ter sentido no nascimento de seu Filho, e, não obstante, guardou silêncio e só compartilhou essa alegria com Santa Isabel. As grandes maravilhas que Deus faz nas almas superam toda expressão. O que poderia dizer Maria que igualasse o que sentia em seu coração?
A apresentação de Jesus no Templo
No dia da Anunciação, a Santíssima Virgem pronunciou o seu Fiat na paz, numa santa alegria, e também na dor, ao pressentir os tormentos do Salvador anunciados pelo profeta Isaías. O mistério da Redenção fica muito claro no momento da apresentação de Jesus no Templo, quando o santo e longevo Simeão, inspirado pelo Espírito Santo, viu no menino Jesus “a luz para iluminar as nações e a glória de Israel, teu povo” . Maria ficou muda de admiração e de reconhecimento; em seguida, o santo ancião acrescentou: “Eis que este (menino) está posto para ruína e para ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição”. Vindo Jesus, de fato, para a salvação de todos, será uma ocasião de queda, uma pedra de tropeço para um grande número de israelitas que, não querendo reconhecer n’Ele o Messias, cairão na infidelidade e na ruína eterna, como o testemunha São Paulo . O próprio Jesus dirá: “Bem-aventurado aquele que não encontrar em mim motivo de escândalo”.
Bossuet observa a esse respeito: “Opera todo o excelso e o simples juntamente. Não se pode chegar à sua altura; se alguém desdenha sua simplicidade ou bem quer alcançá-la pelos próprios meios, não consegue, turba-se e precipita-se em seu orgulho. Mas os humildes de coração penetram nos abismos de Deus sem perturbar-se e, afastados do mundo e de seus pensamentos, encontram a vida na profundidade das obras de Deus”.
“Simeão é inspirado para falar claramente a Maria” e, de fato, o mistério de Jesus e da predestinação dos eleitos aparece cada vez mais nítido para ela.
O santo ancião lhe disse ainda: “Uma espada de dor transpassará a tua alma, a fim de se descobrirem os pensamentos escondidos nos corações de muitos”. Maria tomará parte nas contradições que experimentará o Salvador; os sofrimentos de Jesus serão os seus sofrimentos; ela terá o coração transpassado pela mais viva dor; se o Filho de Deus não tivesse vindo, não teríamos conhecido a profunda malícia do orgulho que se revolta contra a mais excelsa verdade. Os pensamentos ocultos de hipocrisia e de falso zelo serão revelados quando os fariseus pedirem a crucificação d’Aquele que é a santidade por essência.
A plenitude de graça em Nosso Senhor teve dois efeitos aparentemente contraditórios: a mais perfeita paz e a inclinação a oferecer-se em sacrifício dolorosíssimo como vítima redentora, para cumprir da melhor forma possível sua missão de Salvador. A plenitude de graça em Maria teve igualmente dois efeitos também aparentemente contraditórios: por um lado, a alegria mais pura nos dias da Anunciação e da Natividade e, por outro, o desejo de unir-se o mais generosamente possível aos padecimentos de Seu Filho para nossa salvação.
Assim, na apresentação no Templo, Maria já oferece o Seu Filho por nós; a alegria e o sofrimento unem-se muito intimamente no coração da Mãe de Deus, que é já a Mãe de todos os que acreditarão nas palavras de seu Filho.
A Fuga para o Egito
São Mateus narra que, após a adoração dos Reis Magos, um anjo do Senhor apareceu a São José em sonho e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar”. De fato, Herodes ordenou o massacre dos meninos menores de dois anos que houvesse em Belém e em seus arredores.
O menino Jesus é o terror desse rei, que teme onde não há nada a temer, e não teme os castigos de Deus aos quais deveria temer. Maria e José já participam das perseguições que se levantam contra Nosso Senhor. “Até agora viviam tranqüilos e ganhavam calmamente a vida com o trabalho das suas mãos; mas assim que Jesus lhes foi entregue, não houve momento de descanso para eles... É necessário tomar parte em sua Cruz”. Com isso, cresceram muito no amor de Deus. Os Santos Inocentes participaram também da cruz de Cristo, pois sua morte nos indica que estavam predestinados desde toda a eternidade à glória do martírio. Depois de Herodes morrer, um anjo do Senhor anunciou em sonho a José que havia chegado a hora de ir para Nazaré, na Galiléia.
A vida oculta em Nazaré
Maria recebeu incessantemente um aumento de graça e de caridade ao carregar o menino em seus braços, ao alimentá-lo, ao receber suas carícias, ao escutar suas primeiras palavras, ao sustentá-lo em seus primeiros passos.
“O menino crescia e se fortificava cheio de sabedoria: e a graça de Deus era com nele”. Quando completou doze anos, acompanhou Maria e José a Jerusalém para celebrar a Páscoa e, no momento do retorno, permaneceu na cidade sem que seus pais percebessem. Somente no final de três dias o encontraram no templo no meio dos doutores. E ele lhes disse: “Para que me buscáveis? Não sabíeis que devo ocupar-me nas coisas de meu Pai? E eles não entenderam o que Jesus lhes disse”.
Maria aceita, na escuridão da fé, o que não podia ainda entender; o mistério da Redenção se revelará progressivamente a ela em toda a sua profundidade e extensão. Sentiu uma grande alegria ao encontrar Jesus, mas essa alegria permitia entrever desde já muitíssimos sofrimentos.
A propósito da vida oculta de Nazaré, que se prolongou até o ministério público de Jesus, Bossuet fez estas observações: “Aqueles que se sentem incomodados por Jesus Cristo e envergonham-se de que Ele tenha passado a vida em tão insólita obscuridade incomodam-se também pela Santíssima Virgem, e quiseram atribuir-lhe contínuos milagres. Mas ouçamos o santo Evangelho: ‘Maria guardava todas essas coisas em seu coração’ (Lc 2, 51)... Não é um encargo muito digno esse de conservar em seu coração tudo o que havia notado e visto de seu Filho querido? E se os mistérios da sua infância foram-lhe um doce colóquio, como ela não se alegraria em ocupar-se e meditar sobre todo o resto da vida de seu Filho? Maria meditava em Jesus... permanecia em perpétua contemplação, fundindo-se, desfazendo-se, por assim dizer, em amor e em desejo... Que diremos, pois, de todos aqueles que inventam tão belas lendas para a Santíssima Virgem? O que lhes diremos se a humilde e perfeita contemplação não lhes é suficiente? Mas se o foi para Maria e para o próprio Jesus durante trinta anos, não foi mais que suficiente para que a Virgem continuasse nesse santo exercício após esse período? O silêncio das Escrituras sobre essa divina Mãe é mais sublime e eloqüente que todos os discursos. Ó homem demasiado ativo e inquieto por tua própria atividade! Aprenda a contentar-te em ouvir Jesus em teu próprio interior, recordando-te d’Ele e meditando em Suas palavras... Orgulho humano, de que te queixas com tuas inquietudes, de não seres nada no mundo? Qual personagem foi Jesus nele? O que Maria representava? Eles eram a maravilha do mundo, o espetáculo de Deus e dos anjos. O que eles faziam? De que se ocupavam? Que fama tinham na Terra? E tu queres ter um nome e uma intervenção gloriosa? Não conheces Maria nem Jesus... E dizes: ‘Não tenho nada para fazer’; quando, em parte, a obra da salvação dos homens está em tuas mãos. Não há inimigos a reconciliar? diferenças a apaziguar? brigas a terminar, donde poderia dizer o Salvador: ‘Tereis salvado o vosso irmão’? (Mt 18, 15). Não existem miseráveis aos quais é preciso impedir que se entreguem à murmuração, à blasfêmia, ao desespero? E quando tudo isso estiver concluído, não te restará o negócio da tua salvação, a verdadeira obra de Deus para cada um de nós?”
Quando se medita na vida oculta de Nazaré, no silêncio e no progresso espiritual de Maria, e depois, ao contrário, naquilo que o mundo moderno chama com freqüência de progresso, chega-se a esta conclusão: nunca se falou tanto de progresso quanto depois que se esqueceu do mais importante de todos, o progresso espiritual. O que então aconteceu? Isso que tantas vezes observou Le Play: que o progresso inferior buscado por si mesmo está acompanhado ― ao facilitar o prazer, a ociosidade e o descanso ― de um imenso retrocesso moral ao materialismo, ao ateísmo e à barbárie, como o mostram claramente as últimas guerras mundiais.
Em Maria, ao contrário, encontramos a realização cada vez mais perfeita da palavra evangélica: “Amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu espírito, e ao próximo como a ti mesmo”.
Quanto mais ela avança, mais ama a Deus com todas as suas forças, ao ver, durante a vida pública de Jesus, a oposição se levantar contra Ele, até a consumação do mistério da Redenção.
A causa das dores de Maria no Calvário e a intensidade de seu amor a Deus, ao seu Filho e às almas.
Qual foi a causa profunda das dores de Maria no Calvário? Toda alma cristã, acostumada a fazer sua Via Sacra, responderá: a causa profunda desses sofrimentos, como das dores de Jesus, foi o pecado. Bem-aventurados os corações simples para os quais essa fórmula expressa uma verdade de vida, e que experimentam uma verdadeira dor de suas faltas, verdadeira pena que somente a graça pode produzir em nós.
Compreendemos pouco as dores de Maria, porque sofremos apenas quando nosso corpo é posto à prova e pelas feridas causadas ao nosso amor próprio, à nossa vaidade, ao nosso orgulho; sofremos também e naturalmente pela ingratidão dos homens, pelas injustiças que afligem nossa família e nossa pátria. Mas sofremos pouquíssimo pelo pecado, pelas nossas próprias faltas, enquanto são ofensas a Deus.
Teoricamente concebemos que o pecado é o maior dos males, pois fere a própria alma e todas as suas faculdades, como uma loucura, uma cegueira, uma infâmia e ingratidão, que nos priva das melhores energias e é também a causa de todas as desordens que deploramos nas famílias e na sociedade; é a causa evidente da luta às vezes tão violenta entre as classes sociais e entre os povos. Mas, apesar de vê-lo, não experimentamos grande dor pelas faltas pessoais com as quais cooperamos mais ou menos com a desordem geral. Nossa leviandade e nossa inconstância impedem-nos de tomar vivamente consciência do enorme mal que é o pecado; não compreendemos a profundidade de sua malícia, e precisamente porque ela é tão grave, passa despercebida aos espíritos superficiais. O pecado, que causa tantos estragos nas almas e na sociedade, assemelha-se àquelas doenças que atacam os órgãos vitais e que às vezes carregamos sem suspeitar, como o câncer; não sofremos ainda o mínimo, enquanto gritamos ao Céu por uma simples picadura sem gravidade.
Para sentir vivamente o bom sofrimento, que é a abominação do pecado, deveríamos ter um profundíssimo amor a Deus, a quem o pecado ofende, e um grande apreço pelas almas, as quais o pecado desvia de seu verdadeiro fim.
Os santos sofrem por causa do pecado na medida de seu amor a Deus e ao próximo. Santa Catarina de Sena reconhecia as almas que estavam em pecado mortal pelo odor insuportável que sentia em sua presença. Mas para compreender até onde pode chegar o tormento causado pelo pecado, é preciso perguntar esse segredo ao coração imaculado e doloroso de Maria.
A medida de sua dor foi a medida de seu amor a Deus ofendido, a seu Filho crucificado e às almas a serem salvas.
Ora, esse amor de Maria superava a caridade mais ardente dos maiores santos, de São Pedro, de São Paulo, de São João. Nela, a plenitude inicial de caridade superava já a graça final de todos os santos reunidos, e desde então não cessou de aumentar; jamais a menor falta venial retardou o impulso de seu amor, e cada um de seus atos meritórios, mais fervoroso que o anterior, multiplicou a intensidade do seu amor segundo uma progressão que não poderíamos imaginar.
Se tal era a intensidade do amor de Deus na alma de Maria, quanto deve ter sofrido pelo pecado, o mais grave de todos os males, do qual nossa leviandade e inconstância impedem-nos de afligir-nos. Ela distinguia incomparavelmente melhor que nós o que causa a perda eterna de muitíssimas almas: a concupiscência da carne, a dos olhos e o orgulho da vida. Sofria na mesma medida de seu amor por Deus e por nós. Essa é a grande luz que se encontra nesse contraste.
A causa das suas dores foi o conjunto de todos os pecados reunidos, de todas as revoluções, de todas as cóleras sacrílegas, que chegaram num instante de paroxismo, até o pecado de deicídio, ao ódio encarniçado contra Nosso Senhor, que é a luz divina libertadora e o Autor da salvação.
A dor de Maria é tão profunda como seu intenso amor natural e sobrenatural por seu Filho, a quem ama com um coração de Virgem ― o mais puro e o mais terno ― como a seu unigênito milagrosamente concebido e como a seu Deus.
Para se formar uma idéia clara dos sofrimentos de Maria, seria preciso ter recebido, como os estigmatizados, a impressão das chagas do Salvador; seria preciso ter participado de todos os seus sofrimentos físicos e morais por meio das graças lacerantes que lhes fazem percorrer a Via Crucis revivendo as horas mais dolorosas da Paixão. Voltaremos a insistir nesse ponto mais tarde quando falarmos de Maria mediadora e corredentora, e da reparação que ofereceu com seu Filho, por Ele e n’Ele.
Notemos aqui somente que esses três grandes atos de amor meritórios para nós o eram também para Maria, e aumentaram consideravelmente sua caridade e todas as outras virtudes, como a fé, a confiança, a religião, a humildade, a fortaleza e a mansidão, pois praticou, então, essas virtudes no grau mais difícil e mais heróico, tornando-se assim a Rainha dos Mártires.
A graça e a caridade do Coração de Jesus fluíam no Calvário sobre o coração de sua Mãe Santíssima; era Ele quem a fortificava e ela, por sua vez, amparava espiritualmente São João. Jesus oferece o martírio de sua Mãe juntamente com o seu e Maria oferece-se com seu Filho, que lhe é mais amado que sua própria vida. Se o menor dos atos meritórios de Maria durante a vida oculta de Nazaré aumentava a grandeza de sua caridade, qual não deve ter sido o efeito de seus atos de amor ao pé da cruz?
Pentecostes
A ressurreição gloriosa do Salvador e suas diversas aparições marcaram certamente novos progressos na alma de sua santa Mãe, que viu realizadas muitas profecias do próprio Jesus e sua vitória sobre a morte, sinal do triunfo que alcançou na Sexta-Feira Santa sobre o demônio e o pecado.
O mistério da Ascensão elevou cada vez mais os pensamentos de Maria para o Céu. Na tarde daquele dia, recolhida com os Apóstolos no Cenáculo, percebeu, como eles, que a Terra estava singularmente vazia depois da partida de Nosso Senhor, e entreviu todas as dificuldades da evangelização do mundo pagão que haviam de converter em meio às perseguições preditas. Diante dessa perspectiva, a presença da Santíssima Virgem deve ter sido um grande conforto para os Apóstolos. Em união com Nosso Senhor, mereceu-lhes com um mérito de conveniência as graças que receberiam naquele mesmo Cenáculo onde Jesus havia instituído a Eucaristia, onde os havia ordenado sacerdotes e onde havia aparecido após sua Ressurreição.
O dia de Pentecostes ― ao descer o Espírito Santo sobre ela e sobre os Apóstolos em forma de línguas de fogo ― veio iluminá-los definitivamente sobre os mistérios da salvação e fortalecê-los para a imensa e tão árdua obra que deveriam realizar. Se os Apóstolos nesse dia são confirmados na graça, se São Pedro manifesta por meio da pregação que recebeu a plenitude da contemplação do mistério do Filho de Deus, do Salvador e do autor da vida ressuscitado, se os Apóstolos, longe de continuar temerosos, estão agora “alegres de poder sofrer por Cristo”, qual não deve ter sido o novo aumento de graça e de caridade recebido por Maria nesse dia, ela que deveria ser aqui na Terra como o coração da Igreja nascente?
Ninguém mais que ela participará no profundo amor de Jesus a seu Pai e às almas; ela deve também, com suas orações, sua contemplação e sua generosidade incessante, sustentar, de certo modo, a alma dos Doze, segui-los como uma Mãe em seus trabalhos e em todas as dificuldades de seu apostolado, que terminará pelo martírio. Eles são seus filhos. Ela será chamada pela Igreja Regina Apostolorum, e começou, desde aqui na Terra, a velar por eles com suas orações e a fecundar o seu apostolado pela oblação contínua de si mesma, unida ao sacrifício de seu Filho perpetuado no altar.
Maria, modelo de devoção eucarística
Convém particularmente insistir sobre o que deve ter sido para a Mãe de Deus o sacrifício da Missa e a Sagrada Comunhão que recebia das mãos de São João.
Por que no Calvário foi ela confiada por Nosso Senhor a São João de preferência às santas mulheres que estavam ao pé da Cruz? Porque São João era sacerdote e tinha um tesouro que poderia comunicar à Maria; um tesouro inestimável: o tesouro da Eucaristia.
Por que, entre todos os Apóstolos, São João foi escolhido antes que São Pedro? Porque São João foi o único dos Apóstolos que ficou ao pé da Cruz, para onde foi atraído por uma graça fortíssima e dulcíssima, e porque ele é, diz Santo Agostinho, o modelo da vida contemplativa, da vida íntima e oculta, que foi sempre a vida de Maria e continuará sendo até sua morte. A vida de Maria não terá o mesmo caráter da vida de São Pedro, o Príncipe dos Apóstolos, e não intervirá em nada no governo dos fiéis. Sua missão será a de contemplar e amar Nosso Senhor, presente na Eucaristia, e de obter por suas incessantes súplicas a difusão da fé e a salvação das almas. Ela será assim verdadeiramente, na Terra, como o coração da Igreja nascente, pois ninguém participará como ela da intimidade e do poder do amor de Cristo.
Sigamo-la nessa vida oculta, sobretudo na hora em que São João celebrava diante dela o sacrifício da Missa. Não tendo Maria o caráter sacerdotal, não poderia exercer suas funções, mas recebeu, como diz M. Olier, “a plenitude do espírito do sacerdócio”, que é o espírito do Cristo Redentor, e também penetrava muito mais profundamente que São João no mistério dos nossos altares. Seu título de Mãe de Deus superava, ademais, o sacerdócio dos ministros do Salvador; ela nos deu o sacerdote e a vítima do sacrifício da Cruz e se ofereceu com ele.
A santa Missa era, para Maria, num grau impensável para nós, o memorial e a continuação do sacrifício da Cruz. No Calvário, a Virgem teve o coração transpassado pela espada da dor; a intensidade e a delicadeza do seu amor por seu Filho fizeram-lhe sofrer um verdadeiro martírio. O sofrimento foi tão profundo que a memória dele não poderia perder o mínimo de sua veemência, e era recordado por uma luz infusa.
Quando São João celebrava a Missa, Maria encontrava novamente sobre o altar a mesma vítima que na Cruz. É o mesmo Jesus que está ali realmente presente; não é somente uma imagem, é a realidade substancial do corpo do Salvador, com sua alma e sua divindade. É verdade que não havia imolação sangrenta, mas sim uma imolação sacramental, realizada pela consagração separada do corpo e do precioso sangue; o sangue de Cristo é sacramentalmente derramado sobre o altar. E essa figura da morte de Cristo era das mais expressivas para Maria, e que ela não podia esquecer, pois levava sempre no mais profundo da sua alma a imagem de seu tão querido Filho maltratado, coberto de feridas, ainda ressoando em seus ouvidos as injúrias e as blasfêmias contra Ele proferidas.
Essa Missa celebrada por São João, a qual Maria assiste, é a reprodução mais impressionante do sacrifício da cruz perpetuado substancialmente sobre o altar.
Maria via também no sacrifício da Missa o ponto de união entre o culto da Terra e o do Céu
Com efeito, é a mesma vítima que é oferecida na Missa e que, no Céu, apresenta por nós suas chagas gloriosas ao Pai celeste. O Corpo de Cristo permanece no Céu, não desce do Céu propriamente falando, mas, sem ser multiplicado, torna-se realmente presente sobre o altar pela transubstanciação da natureza do pão n’Ele.
É também no Céu e na Terra o mesmo Sumo Sacerdote, “vivendo sempre para interceder por nós”; o padre é, com efeito, apenas o ministro que fala em nome do Salvador. Ao dizer: Este é o meu corpo, é Jesus quem fala por ele.
É Jesus, em sua natureza divina, quem dá a essas palavras o poder transubstancial; é Jesus, em sua natureza humana, por um ato de Sua santa alma, quem transmite essa influência divina, e quem continua oferecendo-se assim por nós, como Sumo Sacerdote. Se o ministro distrair-se em algum detalhe do culto, o Sumo Sacerdote não se distrai, e Jesus, em sua natureza humana, ao continuar oferecendo-se assim sacramentalmente por nós, supre tudo o que não absorvemos e derrama todo o resplendor espiritual de cada Missa sobre todos os fiéis presentes ou ausentes e sobre as almas do Purgatório.
Ele age atualmente por seus ministros, mas é Ele quem continua oferecendo-se por essas palavras sacramentais; a alma do sacrifício de nossos altares é a oblação interior, que está sempre viva no coração de Cristo, e por ela continua aplicando-nos os méritos e a satisfação do Calvário no momento oportuno. Os santos, ao assistir a Missa, têm muitas vezes visto, no momento da consagração, que era Jesus quem oferecia o Santo Sacrifício no lugar do celebrante. Maria compreendeu mais que todos os santos e melhor que ninguém que a alma do sacrifício da Missa é a oblação sempre viva no coração de Seu Filho. Anteviu que, quando a última Missa tiver terminado, no fim do mundo, essa oblação interior perdurará eternamente no coração do Salvador, não mais como súplica, mas como adoração e ação de graças; será o culto da eternidade expressado já na Missa pelo Sanctus, em honra do Deus três vezes santo.
Como Maria unia-se a essa oblação de Jesus, Sumo Sacerdote? Unia-se, e o diremos mais adiante, como mediadora universal e corredentora. Ela continuava unindo-se como na cruz, em espírito de adoração reparadora, de súplica e de ação de graças. Modelo de almas vítimas, continuava oferecendo as dores tão lacerantes produzidas em sua alma pela negação que faziam da divindade de Jesus, em cuja refutação São João escreveu o quarto Evangelho. Dava graças pela instituição da sagrada Eucaristia e por todos os benefícios dela decorrentes. Suplicava para obter a conversão dos pecadores, pelo aperfeiçoamento das almas boas, para apoiar os Apóstolos em seus trabalhos e sofrimentos até o martírio. Em tudo isso Maria é nosso modelo, para que aprendamos a ser “adoradores em espírito e em verdade”.
O que dizer finalmente da comunhão da Santíssima Virgem? A condição principal de uma comunhão fervorosa é ter fome da Eucaristia; da mesma maneira, o pão comum não renova verdadeiramente nossas forças se não o comemos com apetite. Os santos tinham fome da Eucaristia; certa vez, a santa comunhão foi negada a Santa Catarina de Sena; mas seu desejo era tão forte que uma partícula da grande Hóstia se desprendeu, e sem o sacerdote saber, aquela partícula chegou milagrosamente à santa. A fome da Eucaristia era incomparavelmente maior, muito mais intensa, em Maria que nas almas mais santas. Pensemos na força de atração que arrasta Jesus à alma de sua Santa Mãe.
Toda alma é atraída por Deus, pois Ele é o soberano Bem para o qual fomos feitos. Mas as conseqüências do pecado original, o pecado atual e mil imperfeições mais diminuem a admirável conformidade entre Deus e a alma, debilitando em nós o desejo da união divina. A alma de Maria não sofreu as feridas do pecado original, nem do pecado atual; nenhuma infidelidade, nenhuma imperfeição diminuiu o fervor de sua caridade superior a de todos os santos juntos. Esquecendo-se de si mesma, Maria lançava-se para Deus com um impulso irresistível, que aumentava a cada dia juntamente com os seus méritos. Era o Espírito Santo, agindo livremente nela, que a conduzia inevitavelmente a entregar-se livremente a Deus e a recebê-lo; esse amor, como a sede ardente, era acompanhado de uma grande dor que cessaria somente quando morresse de amor e com a eterna união. Esse era o desejo de Eucaristia em Maria Santíssima.
Jesus, por sua vez, tinha grande desejo de santificar definitivamente Maria; pensava somente em comunicar os tesouros de graças que irrompiam do Seu coração. Se pudesse sofrer na glória, sofreria ao encontrar tantos obstáculos em nós que impedem essa divina comunicação. Em Maria, porém, não havia obstáculo algum. Essa comunicação era como a fusão mais intimamente possível aqui na Terra de duas almas espirituais, como um reflexo da comunhão da santa alma de Cristo com o Verbo, ao qual está pessoalmente unida, ou ainda, era como a imagem da comunhão das três Pessoas divinas na mesma verdade infinita e na mesma bondade sem limites.
Maria, no momento da comunhão, convertia-se no tabernáculo vivo e puríssimo de Nosso Senhor, tabernáculo dotado de conhecimento e de amor, mil vezes mais precioso que o cibório de ouro; era verdadeiramente a torre de marfim, a arca da aliança, a casa de ouro.
Quais eram os efeitos da comunhão em Maria? Superavam em muito o que nos disse Santa Teresa sobre a união transformadora na VII morada do Castelo Interior. Tem-se comparado essa união que, de certa maneira, transforma a alma em Deus pelo conhecimento e pelo amor, à união do ferro com o fogo, ou a do ar com a luz que o atravessa. Em Maria, os raios de luz e de calor sobrenaturais saídos da alma de Jesus iluminavam cada vez mais sua inteligência e inflamavam sua vontade. A humilde Virgem não podia relacionar de nenhuma maneira consigo mesma esses bens espirituais, essa sabedoria e essa bondade, mas tributava homenagem Àquele que é o princípio e fim de toda a sua vida: Qui manducat me et ipse vivet propter me: “O que me comer a mim, esse mesmo viverá também por mim (e da minha própria vida)”; quem come minha carne, vive por mim e para mim, como eu vivo por meu Pai e para Ele.
Cada comunhão de Maria era mais fervorosa que a anterior e, ao produzir nela um grande aumento de caridade, preparava-a para uma comunhão mais frutífera ainda. Se a pedra cai tanto mais rapidamente quanto mais se aproxima da terra que a atrai, a alma de Maria se comportava mais generosamente com Deus na medida em que se aproximava d’Ele e por Ele era mais atraída. Era como um espelho puríssimo que refletia de volta para Jesus a luz e o calor que recebia d’Ele e condensava ademais esse calor e essa luz para derramá-los sobre nossas almas.
Ela foi o mais perfeito modelo de devoção eucarística. Por isso, pode ensinar-nos sem meias palavras ― se nos dirigirmos a ela ― o que é o espírito de adoração reparadora ou de sacrifício na aceitação generosa das penas e trabalhos que se apresentam; qual deve ser o nosso desejo da Eucaristia, o fervor de nossas súplicas pelas grandes intenções da Igreja, e também a nossa ação de graças por tantos benefícios.
A Igreja Católica ensina três verdades sobre a virgindade de Maria: que ela era virgem quando concebeu Nosso Senhor, ao dar-lhe a vida, e que depois permaneceu perpetuamente virgem (Virgem antes do parto, no parto e depois do parto).
A Igreja defendeu as duas primeiras das três verdades contra os Cerintianos e Ebionitas no final do 1º século; posteriormente contra Celso, refutado por Orígenes; e no século XVI contra os Socinianos condenados pelos papas Paulo IV e Clemente VIII; recentemente contra os racionalistas, em particular contra Strauss, Renan e o pseudo Herzog. A segunda verdade foi atacada por Joviniano, condenado em 390. A terceira foi negada por Helvídio e refutada por São Jerônimo.
A concepção virginal
A virgindade na concepção está já assinalada pelo profeta Isaías: “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho”; esse é o sentido literal, pois, de outra maneira, como diz São Justino contra os judeus, não haveria o sinal anunciado pelo profeta no mesmo lugar. É afirmada, ademais, no dia da Anunciação, pela resposta do arcanjo Gabriel a Maria, quando esta lhe perguntou: “Como se fará isso, pois eu não conheço varão?” O anjo respondeu-lhe: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. E, por isso mesmo, o Santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus”.
Também é afirmada pela resposta do anjo a São José: “José, filho de Davi, não temas receber em tua casa Maria, tua esposa, porque o que nela foi concebido é (obra) do Espírito Santo”. O evangelista São Lucas finalmente diz, referindo-se a Jesus: “Filho, como se julgava, de José”.
Toda a Tradição confirma a concepção virginal de Cristo por meio de Santo Inácio Mártir, Aristides, São Justino, Tertuliano, Santo Irineu. Todos os Símbolos ensinam que o Filho de Deus feito carne “foi concebido pela Virgem Maria, por obra do Espírito Santo”. Foi definida no Concílio de Latrão, sob o pontificado de Martinho I, em 649, e novamente afirmada por Paulo IV contra os Socinianos.
As razões de conveniência da concepção virginal foram dadas por Santo Tomás: 1º) convém que aquele que é Filho natural de Deus não tivesse pai biológico na Terra, pois tem um único Pai nos céus; 2º) o Verbo, que é concebido eternamente na mais perfeita pureza espiritual, devia também ser concebido virginalmente ao fazer-se carne; 3º), para que a natureza humana do Salvador permanecesse isenta do pecado original, convinha que não fosse concebido como acontece comumente por via seminal, mas pela concepção virginal; 4º) finalmente, ao nascer segundo a carne, de uma virgem, Cristo queria nos mostrar que seus membros deveriam nascer segundo o espírito dessa virgem, sua Esposa espiritual, que é a Igreja.
O parto virginal
Santo Ambrósio o afirma ao comentar o texto de Isaías: “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho”; ela será, diz ele, virgem na concepção e também no parto. Antes dele, falaram da mesma maneira: Santo Inácio mártir, Aristides, Clemente de Alexandria. No século IV, Santo Efrém e mais tarde Santo Agostinho. O Concílio de Latrão, sob o pontificado de Martinho I, em 649, também o proclamou.
As razões de conveniência do parto virginal de Maria são as seguintes, segundo Santo Tomás: 1º) o Verbo que é eternamente concebido e que procede do Pai sem nenhuma corrupção devia, ao fazer-se carne, nascer de uma mãe virgem, conservando-lhe sua virgindade; 2º) Aquele que vem para remover toda corrupção não deveria destruir, ao nascer, a virgindade daquela que lhe deu a vida; 3º) Aquele que nos mandou honrar os nossos pais estava obrigado, ao nascer, a não diminuir a honra de sua Mãe.
A virgindade perpétua de Maria depois do nascimento do Salvador
O Concílio de Latrão, em 649, afirma esse ponto da doutrina e novamente Pio IV contra o Socinianos .
Entre os Padres Gregos, devemos citar como tendo explicitamente afirmado a tese: Orígenes, São Gregório Taumaturgo ; no século IV, o título de semper virgo é empregado comumente, sobretudo por Santo Atanásio e Dídimo, o Cego, assim como no II Concílio de Constantinopla em 533.
Entre os Padres latinos, devemos citar Santo Ambrósio, Santo Agostinho, e São Jerônimo contra Joviniano e Helvídio; e na igreja siríaca, Santo Efrém
As razões de conveniência dessa perpétua virgindade são dadas por Santo Tomás: 1º) o erro de Helvídio, segundo ele, atenta contra a dignidade de Cristo, porque da mesma maneira que desde toda a eternidade é o Unigênito do Pai, convinha que, no tempo, fosse o filho único de Maria; 2°) esse erro é uma ofensa ao Espírito Santo, que santificou para sempre o seio virginal de Maria; 3º) é também gravemente diminuída a dignidade e a santidade da Mãe de Deus, que pareceria muito ingrata se não tivesse se contentado com semelhante filho; 4º) em suma, como diz Bossuet , “São José foi envolvido nesse desígnio, e ter faltado a ele, depois de um nascimento tão glorioso, teria sido um sacrilégio indigno dele, uma profanação indigna do próprio Jesus Cristo. Os irmãos de Jesus, mencionados nos Evangelhos, e São Tiago, que é constantemente chamado irmão do Senhor, não eram mais que parentes, de acordo com o modo de falar da época: a santa Tradição nunca entendeu de outra forma”.
Os trabalhos recentes dos exegetas católicos contra os racionalistas contemporâneos têm confirmado esses testemunhos.
Santo Tomás explica a doutrina comum segundo a qual Maria fez promessa de virgindade perpétua. As palavras de São Lucas: “Como se fará isso, pois eu não conheço varão”, já indicam essa resolução. A Tradição se resume nestas palavras de Santo Agostinho: “Virgo es, sancta es, votum vovisti”. “Virgem sois, santa sois, fizestes voto”. O matrimônio da Santíssima Virgem com São José era, portanto, um verdadeiro matrimônio, mas existia esse juramento, emitido de comum acordo.
1º ― A Visitação
Após a Anunciação, a Santíssima Virgem, segundo São Lucas, foi visitar sua prima Isabel. No momento em que esta ouviu a saudação de Maria, o menino que carregava estremeceu em seu seio e ela ficou cheia do Espírito Santo; Então exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo? Porque logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino exultou de alegria no meu ventre. Bem-aventurada tu, que creste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas”.
Isabel, à luz da revelação divina, compreende que o fruto do ventre de Maria começa a derramar sobre ela mesma as suas bênçãos. Ela percebe que é o próprio Senhor que vem. De fato, o Filho de Deus vem por sua Mãe a seu precursor, e João Batista o reconhece pela sua.
São Lucas escreve nesse ponto o cântico de Maria. A autoridade da imensa maioria e dos melhores manuscritos, o testemunho unânime dos Padres mais antigos e mais doutos (Santo Irineu, Orígenes, Tertuliano, Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho etc.) concordam que Maria foi a autora inspirada do Magnificat.
Esse cântico é surpreendente, sobretudo por sua simplicidade e grandeza. É um cântico de ação de graças, lembrando que Deus é a grandeza dos humildes, aos quais exalta e, ao mesmo tempo, humilha o orgulho dos poderosos. Bossuet resume o que disseram os Padres sobre o Magnificat; sublinharemos algumas dessas reflexões.
2º ― Deus fez grandes coisas em Maria
Maria disse: “Minha alma engrandece o Senhor”. Abandona-se a si mesma para glorificar somente a Ele e colocar n’Ele toda sua alegria. Está em paz perfeita, porque ninguém pode tirar-lhe Aquele a quem canta.
“Meu espírito exulta em Deus meu Salvador”. O que Maria não pode encontrar em si própria, encontra n’Aquele que é a soberana riqueza. Ela exulta de alegria “porque Deus olhou para a pequenez de sua serva”. Crê-se indigna de atrair seus olhares; por ela mesma não é nada. Mas, uma vez que Deus, por pura bondade, voltou os olhos para ela, tem um apoio que não pode falhar: a misericórdia divina que se dignou olhá-la.
Certamente não hesita em reconhecer o que recebeu gratuitamente d’Ele; a gratidão é um dever para ela: “Por isso, desde agora chamar-me-ão de bem-aventurada todas as gerações”. Essa profecia não cessa de realizar-se há dois mil anos, cada vez que se recita a Ave-Maria.
Ela observa que seu júbilo será o de toda a Terra, de todas as almas de boa vontade: “O poderoso fez em mim maravilhas; santo é o seu nome, e sua misericórdia de geração em geração sobre aqueles que o temem”. O Todo-Poderoso realizou nela a maior obra de seu poder: o mistério da Encarnação redentora; servindo-se de Maria e conservando nela miraculosamente sua virgindade, Ele deu ao mundo um Salvador.
O nome do Altíssimo é santo, é a própria santidade que deve nos santificar. E isso aparece mais claramente quando o Seu Filho, que também é o filho de Maria, difunde a misericórdia, a graça e a santidade de século em século, entre os diferentes povos, sobre aqueles que possuem o temor filial, o princípio da sabedoria, e que, pela Sua graça, querem obedecer aos Seus preceitos.
3º ― Deus exalta os humildes, e por eles triunfa sobre o orgulho dos poderosos
Para explicar essas maravilhas tão grandes, Maria recorre ao poder de Deus: “Manifestou o poder do seu braço: dissipou aqueles que se orgulhavam nos pensamentos do seu coração. Depôs do trono os poderosos, e elevou os humildes”.
Deus já praticamente cumpriu essas maravilhas enviando o seu Filho único, que confundirá os soberbos com a pregação de seu Evangelho e se servirá da fraqueza dos Apóstolos, dos confessores e das virgens para aniquilar a força do paganismo que se orgulha de si mesmo; ocultará a grandeza desses mistérios aos prudentes e sábios e a revelará aos humildes e simples.
A própria Maria é um exemplo: Deus a elevou sobre todas as coisas, porque ela considerou-se a mais insignificante das criaturas. Quando o Filho de Deus veio à Terra, não escolheu a rica moradia dos reis, mas a pobreza de Belém, e quis que o Seu divino poder fosse sentido na própria fraqueza em que desejou se manifestar para exaltar os humildes.
“Saciou de bens aos famintos e aos ricos despediu com mãos vazias”. Jesus dirá: “Bem-aventurados os que têm fome... porque eles serão saciados. Ai de vós que estais saciados, porque vireis a ter fome”.
A alma encontra a paz, diz Bossuet, quando observa que todas as glórias do mundo desmoronam e só Deus permanece grande; toda falsa grandeza é aniquilada.
O Magnificat termina como começou, por uma ação de graças: “Deus tomou cuidado de Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia; conforme tinha prometido a nossos pais e à sua posteridadepara sempre”.
Se a promessa de enviar o Salvador cumpriu-se, tantos séculos após ter sido feita, não devemos duvidar que todas as outras promessas divinas se cumprirão. Se nossos pais, antes do Messias, creram n’Ele, quanto mais devemos acreditar agora que o Salvador prometido nos foi dado. Digamos com Santo Ambrósio: “Que a alma de Maria esteja em nós para glorificar o Senhor; que seu espírito esteja em nós para estar radiante de alegria em Deus, nosso Salvador”, para que o Seu reino venha a nós pelo cumprimento de Sua vontade.
O dia da Anunciação marca um grande progresso da graça e da caridade na alma da Virgem Maria.
Conveniência da Anunciação
Como explica Santo Tomás , convinha que o anúncio do mistério da Encarnação fosse feito à Santíssima Virgem, para que ela fosse instruída e pudesse dar o seu consentimento. Por ele, a Virgem concebeu espiritualmente o Verbo feito carne, dizem os Padres, antes de concebê-lo corporalmente. Ela deu esse consentimento sobrenatural e meritório, acrescenta Santo Tomás, em nome de toda a humanidade, que tinha necessidade de ser regenerada pelo Salvador prometido.
Convinha também que a Anunciação fosse feita por um anjo, como por um embaixador do Altíssimo. Um anjo rebelde tinha sido a causa da perdição e da queda; logo, um anjo santo, e o mais elevado dos arcanjos, anunciou a redenção . Convinha também que Maria fosse educada, antes de São José, no mistério que iria se cumprir nela, pois a Virgem era superior a ele por sua predestinação à Maternidade Divina. Convinha, enfim, que a Anunciação se fizesse por uma visão corporal acompanhada de uma iluminação intelectual, porque a visão corporal, no estado de vigília, é mais segura que a visão dada pela imaginação que ocorre algumas vezes em sonho, como aquela com a qual foi favorecido São José, e a iluminação sobrenatural da inteligência mostrava infalivelmente o significado das palavras anunciadas . A alegria e a segurança sucederam o temor reverencial e o assombro, quando o anjo disse à Maria: “Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, e porás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado Filho do Altíssimo... O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. E, por isso mesmo, o Santo, que há de nascer de ti, será chamado Filho de Deus” . O anjo acrescenta um sinal e a razão do acontecimento: “Eis que também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice; e este é o sexto mês da que se dizia estéril; porque a Deus nada é impossível” .
Maria deu então o seu consentimento, dizendo: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra” .
Bossuet observa, na obra Elevações sobre os mistérios , que a Santíssima Virgem manifestou por esse consentimento três virtudes principais: a santa virgindade, pela alta resolução de renunciar para sempre a todos os prazeres dos sentidos; a humildade perfeita diante da infinita grandeza de Deus que se inclinou para ela; a fé, porque era necessário conceber o Filho de Deus em seu espírito antes de concebê-lo em seu corpo. Por isso Isabel lhe disse: “Bem-aventurada tu, que creste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas” . Ela manifestou também uma grande confiança em Deus e muita coragem, pois não ignorava as profecias messiânicas, principalmente as de Isaías, que anunciavam os grandes sofrimentos do Salvador prometido, dos quais ela deveria participar.
O que na Santíssima Virgem mais causa admiração nas almas interiores, no dia da Anunciação, é seu total esquecimento de si mesma, que é seguramente o ápice da humildade. Ela pensou somente na vontade de Deus, na importância desse mistério para a glória divina e para a salvação de nossa pobre espécie. Deus, a grandeza dos humildes, foi sua única grandeza, e, portanto, sua fé, confiança e generosidade estiveram à altura do mistério do qual iria participar.
Fulano é estimado como o melhor e maior poeta do seu tempo; outro, o maior filósofo ou o maior político, e estes põem sua grandeza em sua genialidade. A Santíssima Virgem, a mais sublime de todas as criaturas, esqueceu-se totalmente de si mesma e colocou toda a sua grandeza em Deus. Deus humilium celsitudo , Deus, que sois a grandeza dos humildes, revelai-nos a humildade de Maria, proporcionada à elevação de sua caridade.
Santo Tomás observou que no instante da Encarnação houve em Maria, pela presença do Verbo de Deus feito carne, um grande aumento da plenitude de graça. Se ela não tinha sido ainda confirmada na graça, o foi naquele momento.
As razões desse grande aumento de graça e de caridade
Tem-se dado três razões desse crescimento da vida divina em Maria, considerando a finalidade da graça nela, depois a causa dessa graça, e finalmente o mútuo amor do Filho de Deus e de sua Mãe Santíssima.
Primeiramente, pela relação com o próprio mistério da Encarnação, esse crescimento é muitíssimo conveniente como uma preparação próxima e imediata para a Maternidade Divina.
Com efeito, deve haver uma proporção entre a disposição imediata para uma perfeição e essa própria perfeição. Ora, a Maternidade Divina é, por seu fim, de ordem hipostática, muito superior não só à ordem da natureza, mas também à ordem da graça. Foi necessário, portanto, que houvesse em Maria um aumento da plenitude da graça e da caridade que a tornasse imediatamente digna de ser a Mãe de Deus e que a preparasse para a sua missão excepcional e única em relação ao Verbo feito carne.
Em segundo lugar, o próprio Filho de Deus, ao tornar-se presente em Maria pela Encarnação, devia enriquecê-la com uma imensa graça. Ele é, com efeito, por sua divindade, a causa principal da graça; por sua humanidade, merece-a e é a causa instrumental da mesma. Ora, a Santíssima Virgem foi, entre todas as criaturas, a mais próxima a Cristo segundo a humanidade, uma vez que de Maria ele recebeu a sua natureza humana. Maria, então, deve ter obtido, no instante da Encarnação, um grande aumento da plenitude de graça.
A vinda do Verbo feito carne nela deve ter realizado tudo o que produz a comunhão mais fervorosa, e muito mais. Na Eucaristia, Nosso Senhor se dá inteiramente sob as aparências do pão; pela Encarnação, entregou-se totalmente a Maria em sua verdadeira forma e por um contato imediato, que produziu por si mesmo, ex opere operato, mais e melhor que o mais perfeito dos sacramentos: um aumento da vida divina.
Todos os efeitos da comunhão sacramental estão aqui superados, sem comparação. Pela comunhão sacramental, Jesus se dá a nós para que vivamos d’Ele; pela Encarnação, deu-se a Maria, mas vive também dela em sua natureza humana, pois é dela que recebe o alimento e o desenvolvimento do seu corpo que está sendo formado em seu seio virginal; no entanto, Ele alimenta espiritualmente a santa alma de Maria, aumentando nela a graça santificante e a caridade.
Em terceiro lugar, o amor recíproco do Filho por sua Mãe e da Mãe por seu Filho confirma o que dissemos. A graça é efetivamente o fruto do amor ativo de Deus pela criatura a quem Ele chama a participar aqui na Terra, cada vez mais, da sua vida íntima, antes de lhe comunicar o florescimento da vida eterna. Ora, se o Verbo feito carne ama todos os homens pelos quais se dispõe a dar o Seu sangue, se ama especialmente os eleitos, e entre esses os Apóstolos, os quais escolherá como seus ministros, e os santos que chamará no transcurso dos séculos a uma grande intimidade com Ele, ama muitíssimo mais sua santa Mãe, que estará muitíssimo mais intimamente associada a Ele que ninguém na obra da regeneração das almas. Jesus, enquanto Deus, ama a Virgem Maria com um amor especialíssimo, que produz nela uma superabundância de vida divina capaz de transbordar sobre as outras almas. Ele a ama também como homem e, como homem, mereceu todos os efeitos de nossa predestinação , logo, todos os efeitos da predestinação de Maria, em especial o aumento da caridade que a conduz à plenitude final da vida do Céu.
Finalmente esse duplo amor de Jesus, como Deus e como homem, por sua santa Mãe, longe de encontrar nela o menor obstáculo, encontrou já nesta vida a mais perfeita correspondência de amor maternal que Maria tem por Ele. Naturalmente derramava-se generosamente nela numa medida que não sabemos apreciar e que superava consideravelmente aquela que gozavam na Terra os maiores santos chegados ao cume da vida unitiva.
Se as mães são freqüentemente capazes de um amor heróico e dos maiores sacrifícios por seus filhos expostos a grandes sofrimentos, quanto mais o seria Maria Santíssima por seu Filho único, a quem amava com um coração de virgem-mãe, o mais terno e mais puro que já existiu, e a quem amava também como seu Deus. Tinha para com Ele não só o amor materno de ordem natural, mas um amor essencialmente sobrenatural, originado de sua caridade infusa, em grau elevadíssimo e que não cessava de crescer.
Como diz o Pe. E. Hugon , ao falar do tempo em que o corpo do Salvador estava se formando no seio virginal de Maria: “Deve ter se realizado nela um progresso ininterrupto durante os nove meses, por assim dizer ex opere operato, pelo contato permanente com o Autor da santidade... Se a plenitude no primeiro instante em que o Verbo se fez carne é já incompreensível para nós, que grau de incompreensão deve ter alcançado no nascimento do Menino Deus! (Depois) cada vez que lhe dava de beber o seu leite virginal, recebia em troca o alimento das graças... Quando o embalava docemente e lhe dava beijos de virgem e de mãe, recebia do menino o beijo da divindade, que a tornava ainda mais pura e mais santa”. Isso também nos diz a Santa Liturgia .
Quando esse contato físico terminar, a caridade de Maria e seu amor materno sobrenatural por Jesus não cessará de aumentar até a morte. A graça, longe de destruir a natureza no que ela tem de bom, a aperfeiçoa numa medida que é indizível para nós.
O método que seguimos obriga-nos a insistir sobre os princípios para recordar sua certeza e elevação, de forma a aplicá-los seguramente, em seguida, à vida espiritual da Mãe de Deus.
O progresso espiritual é, antes de tudo, o progresso da caridade, que inspira, anima as outras virtudes e torna os seus atos meritórios, uma vez que estando unidas a ela, todas as outras virtudes infusas desenvolvem-se proporcionalmente, como na criança, diz Santo Tomás, desenvolvem-se conjuntamente os cinco dedos da mão.
Convém ver, então, por que e como a caridade de Maria desenvolveu-se constantemente na Terra, e qual foi o ritmo desse progresso.
A aceleração do progresso na Santíssima Virgem
Por que a caridade deveria crescer incessantemente em Maria até o dia da sua morte? ― Em primeiro lugar, porque é conforme a própria natureza da caridade no caminho para a eternidade e conforme também ao preceito supremo: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e com toda a tua força e com todo o teu espírito”, conforme a gradação ascendente expressa em Deuteronômio 6, 5 e em São Lucas 10, 27. Segundo esse preceito, que domina todos os outros e todos os conselhos, os cristãos, cada um segundo o seu estado, devem tender à perfeição da caridade e, por conseguinte, das outras virtudes, este no estado do matrimônio, aquele no estado religioso ou sacerdotal. Nem todos são chamados à prática dos três conselhos evangélicos, mas todos devem aspirar a alcançar o espírito deles: o desapego dos bens terrenos e de si mesmo, para que cresça em nós a união com Deus.
Só em Nosso Senhor não houve progresso ou aumento da graça e da caridade, porque ele havia recebido, desde o instante de sua concepção, a plenitude absoluta, conseqüência da união hipostática, posto que o II Concílio de Constantinopla afirma que Jesus não se fez melhor pelo progresso das boas obras, ainda que tenha cumprido sucessivamente os atos de virtude correspondentes às diferentes épocas da vida.
Maria, ao contrário, tornava-se cada vez melhor no decurso da sua vida terrena. Mais ainda, houve em seu progresso espiritual uma aceleração maravilhosa segundo um princípio formulado por Santo Tomás a propósito destas palavras da Epístola aos Hebreus: “animando-nos uns aos outros, e tanto mais, quando virdes que se aproxima o dia (final)”. O Doutor Angélico escreveu em seu Comentário sobre essa Epístola: “Alguém pode perguntar: Por que devemos progredir sempre e cada vez mais na fé e no amor? O movimento natural (ou conatural) torna-se cada vez mais rápido conforme se aproxima do seu termo (o fim ao qual tende). Acontece o contrário com o movimento violento. (Hoje dizemos: a queda de um corpo é uniformemente acelerada, enquanto que o movimento inverso, de uma pedra lançada ao ar verticalmente é uniformemente retardado). Ora, continua Santo Tomás, a graça aperfeiçoa e inclina para o bem ao modo da natureza (como uma segunda natureza); segue-se, portanto, que aqueles que estão em estado de graça devem crescer mais na caridade quanto mais se aproximam de seu fim último (e que são mais atraídos por ele). E isso é dito na Epístola aos Hebreus 10, 25: “animando-nos uns aos outros, e tanto mais, quando virdes que se aproxima o dia (final), ou seja, o fim da viagem”. Diz-se em outra parte: “A noite está quase passada e o dia aproxima-se” (Rm 13, 12). “Mas a vereda dos justos, como a luz que resplandece, vai adiante, e cresce até o dia pleno” (Pr 4, 18) .
Santo Tomás fez essa observação profunda, de uma forma muito simples, antes da descoberta da lei da gravitação universal, quando ainda era conhecida de modo muito imperfeito, pois não havia sido medida a aceleração da queda dos corpos; ele viu, na época, um símbolo do que deve ser a aceleração do progresso do amor de Deus nas almas dos santos que gravitam para o sol dos espíritos e para a fonte de todo bem.
O santo doutor deseja dizer que, para os santos, a intensidade da sua vida espiritual acentua-se cada vez mais, dirigem-se mais rápida e generosamente para Deus quanto mais se aproximam d’Ele e são mais atraídos por Ele. Tal é, na ordem espiritual, a lei da atração universal. Como os corpos se atraem em razão direta às suas massas e em razão inversa ao quadrado de suas distâncias, isto é, tanto mais quanto mais próximos se encontram, assim também as almas dos justos são atraídas por Deus quanto mais se aproximam d’Ele.
Por isso, a trajetória do movimento espiritual das almas dos santos eleva-se até o zênite e não decresce mais, não há crepúsculo para eles; apenas o corpo e as faculdades sensíveis debilitam-se com a velhice. Na vida dos santos, o progresso do amor é muito mais rápido, e isso é algo muito mais evidente em seus últimos anos que nos primeiros. Marcham espiritualmente não com passo uniforme, mas apressados, apesar do entorpecimento da velhice; “sua juventude espiritual se renova como a juventude da águia” .
Esse progresso cada vez mais rápido ocorreu sobretudo na vida da Santíssima Virgem sobre a Terra, porque não encontrou nenhum obstáculo, nenhuma interrupção ou atraso, nenhum impedimento nas coisas terrenas ou nela mesma. E esse progresso espiritual em Maria era tanto mais intenso quanto maior foi a velocidade inicial ou a graça primeira. Houve assim em Maria (especialmente se, como é provável, conservou, pela ciência infusa, o uso da liberdade e o mérito durante a vigília) uma aceleração maravilhosa do amor de Deus, de cuja aceleração a lei da gravitação dos corpos é uma imagem muito distante.
A física moderna ensina que, se a velocidade da queda de um corpo é 20 no primeiro segundo, no próximo segundo será 40, no terceiro 60, no quarto 80 e no quinto será 100. É o movimento uniformemente acelerado, símbolo do progresso espiritual da caridade numa alma à qual nada retarda, e que se dirige tanto mais rápido para Deus quanto mais d’Ele se aproxima e é mais atraída por Ele. Assim, pois, nessa alma, cada comunhão espiritual ou sacramental é normalmente mais fervorosa que a anterior com um fervor de vontade e, portanto, mais frutífera.
Ao contrário, o movimento de uma pedra atirada para o ar na vertical, sendo uniformemente retardado até que inicia sua queda, simboliza o progresso de uma alma tíbia, sobretudo se por seu apego progressivo ao pecado venial, suas comunhões são cada vez menos fervorosas ou feitas com uma devoção substancial de vontade que diminui a cada dia.
Essas considerações nos mostram o que deve ter sido o progresso espiritual de Maria, desde o instante de sua Imaculada Conceição, sobretudo se teve, como é provável, o uso ininterrupto do livre arbítrio desde o seio de sua mãe . Como, por outro lado, parece certo que nela a plenitude inicial de graça superava a graça final de todos os santos reunidos, a aceleração dessa marcha ascendente para Deus supera tudo o que pode ser dito. Nada a atrasava, nenhuma conseqüência do pecado original, nenhum pecado venial, nenhuma negligência ou distração, nenhuma imperfeição, pois nunca esteve menos pronta a seguir as inspirações dadas na forma de conselho. Tal é o caso de uma alma que, após ter feito o voto de realizar sempre o mais perfeito, observa esse voto fielmente.
Santa Ana devia ficar impressionada da perfeição singular de sua santa filha; mas nunca poderia suspeitar que ela era a Imaculada Conceição, nem mesmo que fora chamada a ser a Mãe de Deus. Sua filha era incomparavelmente mais amada por Deus do que Santa Ana poderia suspeitar. Cada justo, guardando as proporções, é mais amado por Deus do que ele pensa; para sabê-lo, precisaria conhecer plenamente o valor da graça santificante, o germe da glória, e para conhecer totalmente o valor desse germe espiritual, precisaria ter gozado, por um instante, da beatitude celeste, da mesma forma que para conhecer o germe contido numa bolota é necessário contemplar um carvalho completamente desenvolvido, que provém naturalmente desse germe tão pequeno. As grandes coisas estão freqüentemente contidas numa semente quase imperceptível, como o grão de mostarda; o mesmo ocorre com um rio imenso, oriundo de um insignificante riacho.
O progresso espiritual em Maria pelo mérito e pela oração
A caridade deveria, pois, crescer incessantemente na Santíssima Virgem conforme o preceito supremo do amor. Mas como e por quais meios foi aumentando? Pelos méritos, pela oração e pela comunhão espiritual a Deus espiritualmente presente na alma de Maria desde o princípio de sua existência.
Convém recordar que a caridade não aumenta precisamente em extensão, pois em seu grau ínfimo ela já ama a Deus acima de tudo com um amor de estima e ao próximo como a si mesmo, sem excluir ninguém, mesmo que depois a abnegação cresça progressivamente. A caridade cresce sobretudo em intensidade, enraizando-se cada vez mais em nossa vontade, ou, falando sem metáfora, inclinando mais a vontade a afastar-se do mal e também daquilo que não é tão bom e a dirigir-se generosamente para Deus.
Não é um crescimento de ordem quantitativa, como o de uma meda de trigo, mas qualitativa, como quando o calor se torna mais intenso ou no caso da ciência que, sem chegar a novas conclusões, torna-se mais penetrante, mais profunda, mais unificada e certa. Assim, a caridade tende a amar a Deus mais perfeita e puramente, mais intensamente e acima de tudo, e ao próximo como a nós mesmos, para que todos glorifiquemos a Deus no tempo e na eternidade. O objeto e motivo formal da caridade, como o das outras virtudes, é assim cada vez mais enfatizado e colocado acima de todo motivo secundário ou acessório, em que se insistia muito ao começar. No início, amamos a Deus pelos bens recebidos ou esperados, não por Ele mesmo; em seguida, considera-se mais que o benfeitor é muito melhor em si mesmo que todos os bens que procedem d’Ele, e que Ele merece ser amado por si mesmo, por sua infinita bondade.
A caridade aumenta em nós, então, como uma qualidade, como o calor que se torna mais intenso, e isso acontece de várias maneiras: pelo mérito, pela oração e pelos sacramentos. Com mais forte razão aconteceu o mesmo em Maria, porém, sem imperfeição alguma de sua parte.
O ato meritório que procede da caridade ou de uma virtude inspirada por ela dá direito a uma recompensa sobrenatural e, em primeiro lugar, a um aumento da graça habitual e da própria caridade. Os atos meritórios não produzem por si mesmos diretamente o aumento da caridade, porque esta não é uma virtude adquirida, causada e aumentada pela repetição dos atos, mas uma virtude infusa. Assim como somente Deus pode produzi-la, pois é uma participação em sua vida íntima, só Ele também pode aumentá-la. E por isso diz São Paulo: “Eu plantei (pela pregação e pelo batismo), Apolo regou, mas Deus (é que) deu o crescimento”; “E aumentará sempre mais os frutos da vossa justiça”.
Se nossos atos de caridade não podem produzir o aumento dessa virtude infusa, eles contribuem com esse aumento de duas maneiras: moralmente, merecendo-a; e fisicamente na ordem espiritual, dispondo-nos a recebê-la. A alma, por seus atos meritórios, tem direito de receber esse acréscimo que lhe fará amar seu Deus mais pura e intensamente. Além disso, esses atos a dispõem a receber esse acréscimo, no sentido em que os atos meritórios aprofundam, de certo modo, nossas faculdades superiores e as dilatam, para que a vida divina possa penetrá-las e elevá-las purificando-as.
Mas acontece muitas vezes conosco que os atos meritórios são imperfeitos, remissi, como dizem os teólogos, remissos (como se diz do calor remisso, fervor remisso), quer dizer, inferiores ao grau ou à virtude de caridade que está em nós. Tendo uma caridade de três talentos, muitas vezes agimos como se nada tivéssemos além de dois, como um homem muito inteligente que, por preguiça, não empregasse senão muito apaticamente sua inteligência. Esses atos de caridade imperfeitos ou remissos são ainda meritórios, mas, segundo Santo Tomás e os antigos teólogos, não obtêm imediatamente para a alma o aumento de caridade que merecem, porque não a dispõem ainda a recebê-lo. Aquele que possui uma caridade de três talentos e age como se só tivesse dois não se dispõe imediatamente a receber um aumento dessa virtude para até quatro talentos. Não a obterá até que faça um ato mais generoso ou mais intenso dessa virtude ou de outras virtudes inspiradas ou obtidas pela caridade.
Esses princípios esclarecem qual foi o progresso espiritual de Maria por seus próprios méritos. Nela, nunca houve um ato meritório imperfeito ou remisso; isso teria sido uma imperfeição moral, uma menor generosidade no serviço de Deus, e, como vimos, os teólogos estão de acordo em negar essa imperfeição na Virgem Maria. Seus méritos obtinham, pois, imediatamente o aumento de caridade por eles merecidos.
Ademais, para conhecer melhor o preço dessa generosidade, deve-se recordar, como se ensina geralmente, que Deus é mais glorificado por um só ato de caridade de seis talentos que por dez atos de caridade de um só talento. Do mesmo modo, um só justo perfeitíssimo agrada mais a Deus que muitos outros reunidos e que permanecem na mediocridade ou na tibieza relativa. A qualidade importa sobre a quantidade, sobretudo no domínio espiritual.
Os méritos de Maria eram, portanto, cada vez mais perfeitos; seu coração puríssimo se dilatava, por assim dizer, cada vez mais e sua capacidade divina se expandia, segundo as palavras do Salmo: “Correrei pelo caminho dos teus mandamentos, quando dilatares o meu coração”.
Embora muitas vezes esqueçamos que estamos em viagem para a eternidade e busquemos instalar-nos na vida presente como se ela fosse durar para sempre, Maria sempre teve os olhos fixos no fim último da viagem, no próprio Deus, e não perdia nem um minuto do tempo que lhe havia sido dado. Cada um dos instantes de sua vida terrena entrava, assim, pelos méritos acumulados e cada vez mais perfeitos, no único instante da imutável eternidade. Via os momentos da sua vida não só na linha do horizonte temporal em sua relação com o futuro terrestre, mas na linha vertical que os relaciona todos com instante eterno que não passa.
Deve-se notar por outro lado, como ensina Santo Tomás, que na realidade concreta da vida não existe um ato deliberado indiferente; se tal ato é indiferente (quer dizer, nem moralmente bom nem moralmente mau) por seu objeto, como passear ou ensinar matemática, esse mesmo ato é moralmente bom ou moralmente mau pelo fim ao qual se propõe, porque um ser racional deve sempre agir por motivos racionais, por um fim honesto, e não só agradável ou útil. Segue-se que, numa pessoa em estado de graça, todo ato deliberado que não é mau, que não é pecado, é bom; está, portanto, virtualmente ordenado a Deus, fim último do justo, e é, pois, meritório. In habentibus caritatem, omnis actus est meritorius vel demeritorius . Resulta daqui que todos os atos deliberados de Maria eram bons e meritórios, e, no estado de vigília, não houve nela nenhum ato indeliberado ou puramente mecânico, que se produziria independentemente da direção da inteligência e da influência de sua vontade vivificada pela caridade.
À luz desses princípios certos, devemos considerar todos os momentos, sobretudo os principais, da vida terrena de Maria, e, já que estamos falando daqueles que precederam a Encarnação do Verbo, pensemos em sua apresentação no templo, quando ainda era pequena, e nos atos que realizou assistindo nele as grandes festas nas quais se liam as profecias messiânicas, principalmente as de Isaías, que aumentavam sua fé, sua esperança, seu amor por Deus e a expectativa do Messias prometido. Quão bem compreendia já estas palavras do profeta Isaías, relativas ao Salvador que estava para vir: “Um menino nasceu para nós e um filho nos foi dado, e foi posto o principado sobre o seu ombro; e será chamado: Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro, Príncipe da Paz”. A fervorosa fé da criança Maria, já sendo tão elevada, deveria compreender estas palavras: “Deus forte”, mais do que o próprio Isaías tinha entendido. Ela já penetrava esta verdade: que nesse menino residirá a plenitude das forças divinas, e que o Messias será um Rei eterno, imortal e que sempre será o pai de seu povo.
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A vida da graça não cresce somente pelo mérito, mas também pela oração que possui uma força impetratória distinta. Por isso suplicamos todos os dias para crescer no amor de Deus, quando dizemos: “Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino (cada vez mais em nós), seja feita a Vossa vontade (que todos observemos melhor a cada dia os Vossos mandamentos)”. A Igreja também nos faz repetir na Missa: “Da nobis, Domine, fidei, spei et caritatis augmentum”. Aumentai, Senhor, nossa fé, nossa esperança e nossa caridade (XIII domingo depois de Pentecostes).
Depois da justificação, o justo pode, portanto, obter o acréscimo da vida da graça, seja pelo mérito ― relacionado com a justiça divina, como um direito à recompensa ― seja pela oração, dirigida à misericórdia infinita de Deus. A oração é tanto mais eficaz quanto mais humilde, confiante e perseverante; e quando pede, em primeiro lugar, não os bens temporais, mas o aumento das virtudes, segundo as palavras: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e todas as demais coisas vos serão dadas por acréscimo”. Assim, o justo, por uma oração fervorosa, impetratória e meritória ao mesmo tempo, obtém muitas vezes, de imediato, muito mais que merece, quer dizer, não só o aumento da caridade merecida, mas aquela que se alcança especialmente pela força impetratória da súplica, distinta do mérito.
No silêncio da noite, uma oração fervorosa, que é ao mesmo tempo uma súplica impetratória e um mérito, obtém muitas vezes, imediatamente, um notabilíssimo aumento de caridade, que nos faz experimentar que Deus é imensamente bom; é como uma comunhão espiritual, com um doce sabor de vida eterna.
A oração de Maria, desde sua infância, era não somente muito meritória, mas tinha também uma força impetratória que não conseguimos sequer estimar, pois era proporcionada à sua humildade, à sua confiança, à perseverança de sua ininterrupta generosidade, sempre em progresso. Obtinha assim, constantemente, conforme esses princípios certíssimos, um amor de Deus sempre mais puro e mais intenso.
Ela obtinha também as graças atuais eficazes, que não poderiam ser merecidas, ao menos por mérito de condigno: como a que conduz a novos atos meritórios, ou como a inspiração especial, que é o princípio, por meio dos dons, da contemplação infusa.
Isso era o que sucedia quando a Santíssima Virgem dizia, ao rezar, estas palavras do Livro da Sabedoria: “Invoquei o Senhor, e veio a mim o espírito da sabedoria. E preferi-a aos reinos e aos tronos, e julguei que as riquezas nada valiam em sua comparação. Nem pus em paralelo com ela as pedras preciosas, porque todo o ouro, em sua comparação é um pouco de areia, e a prata será considerada como lodo à sua vista”.
O Senhor vinha assim alimentá-la espiritualmente de si mesmo, e se entregava cada dia mais intimamente a ela, inclinando-a, ao mesmo tempo, a doar-se mais perfeitamente a Ele.
Ninguém melhor que ela, depois de Jesus, pronunciou estas palavras: “Unam petii Domino, hanc requiram, ut inhabitem in domo Domini”. “Uma só coisa peço ao Senhor, esta solicito: é que eu habite na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar da suavidade do Senhor”. Compreendia melhor, a cada dia, que Deus é infinitamente bom para aqueles que O buscam, e ainda mais para aqueles que O encontram.
Antes da instituição da Eucaristia e mesmo antes da Encarnação, existiu em Maria a comunhão espiritual, que é a oração simplíssima e intimíssima da alma que já chegou à via unitiva, onde gozou de Deus presente nela como num templo espiritual: Gustate et videte quoniam suavis est Dominus: “Provai e vede quão suave é o Senhor”.
Se está dito no salmo: “Assim como o cervo suspira pelas fontes das águas, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus. Minha alma tem sede de Deus, de Deus vivo”, qual devia ser a sede espiritual da Santíssima Virgem desde o instante da sua concepção imaculada até o momento da Encarnação?
Esse progresso da caridade, diz Santo Tomás, não lhe fez merecer a Encarnação, que é o princípio de todos os méritos depois do pecado de Adão, mas lhe fez merecer pouco a pouco (pela primeira graça proveniente dos méritos futuros de seu Filho) o grau eminente de caridade, humildade e pureza que fez dela a digna Mãe de Deus, no dia da Anunciação.
Maria não mereceu tampouco a Maternidade Divina, pois teria assim merecido a Encarnação em si; mas mereceu o grau de santidade e de caridade que constituía a disposição próxima para a Maternidade Divina. Ora, se a disposição remota, que era a plenitude inicial de graça, já superava a graça final de todos os santos juntos, o que pensar da perfeição dessa disposição próxima?
Os anos passados por Maria no Templo intensificaram nela o desenvolvimento da “graça das virtudes e dos dons” numa proporção de que não podemos fazer idéia; segundo uma progressão e uma aceleração que ultrapassa em muito aquela das almas mais generosas e dos maiores santos.
Sem dúvida, poderíamos exagerar se atribuíssemos à Santíssima Virgem uma perfeição que só pertence a seu Filho. Entretanto, permanecendo no plano de Maria, não seríamos capazes de formar uma idéia justa da elevação do ponto de partida de seu progresso espiritual, e menos ainda da elevação do ponto de chegada.
Isso que acabamos de dizer prepara-nos, no entanto, para compreender, de certo modo, o que teve de ser o aumento considerável de graça e de caridade que se produziu em Maria no momento mesmo da Encarnação.
Nota
Em que momento da nossa existência os atos menos fervorosos ou remissos obtêm o aumento da caridade que lhes é devida?
Segundo Santo Tomás, todo ato de caridade do “viator” (daquele que vive neste mundo) é meritório; merece um aumento da virtude da caridade e o dispõe ao menos de maneira remota a recebê-lo; mas não dispõe de maneira próxima senão quando é fervoroso, quer dizer, quando ao menos é igual em intensidade ao grau da virtude infusa da qual procede.
Logo, somente os atos fervorosos obtêm imediatamente o aumento da caridade que merecem.
Quando os atos menos fervorosos obtém esse aumento de caridade?
Pode-se pensar que é desde que um ato meritório fervoroso se produz. No entanto, existe uma dificuldade, porque este obtém certamente o aumento que lhe é devido e ao qual dispõe proximamente, mas não é certo que obtenha ao mesmo tempo os atrasados, isto é, o aumento referente aos atos meritórios menos fervorosos precedentes.
Esses atrasados podem ser obtidos por atos de caridade fervorosa, que não são somente meritórios, mas que dispõem a receber já na vida presente, não apenas o que merecem por si mesmos, senão mais do que se merece.
Tal é o caso do ato de caridade fervorosa pelo qual alguém se dispõe a uma boa comunhão; este pode produzir ex opere operato um aumento de caridade correspondente à disposição fervorosa atual e à passada ou atrasada.
É importante que isso seja freqüente nos bons sacerdotes e bons cristãos, principalmente na comunhão mais fervorosa que fazem em determinados dias solenes ou na primeira sexta-feira do mês.
Deve acontecer ainda com mais forte razão quando, com uma boa disposição, recebe-se a comunhão no viático ou pela extrema-unção que, ao apagar os resquícios do pecado (reliquiae peccati), produz um aumento da caridade (não merecida) proporcionada ao fervor com o qual se recebe esse sacramento; pode-se produzir assim os efeitos atrasados merecidos mas ainda não obtidos.
Também pode acontecer isso quando o “viator” faz uma oração fervorosa pela qual pede o aumento da caridade; porque essa súplica é ao mesmo tempo meritória, por ser inspirada pela caridade, e impetratória; por este segundo título ela obtém mais do que merece e o pode dispor proximamente para receber os efeitos atrasados já merecidos mas ainda não obtidos.
É provável, finalmente, que a alma que não tenha se aproveitado durante esta vida disso que acabamos de dizer, disponha-se proximamente pelos atos fervorosos do Purgatório, em nada meritórios, a receber os efeitos atrasados merecidos mas não obtidos.
É certo que as almas do Purgatório, na medida em que a purificação avança, praticam atos (não meritórios) cada vez mais fervorosos, que alcançam ao menos o grau de intensidade da virtude infusa da qual procedem. Esses atos não merecem um aumento dessa virtude, mas é provável que possam dispor atualmente a receber o efeito atrasado já merecido in via e ainda não obtido. Assim, uma alma que tivesse chegado ao Purgatório com uma caridade de cinco talentos poderia sair com uma caridade de sete talentos, com o grau de glória correspondendo sempre ao grau dos méritos.
E se isso é verdade, parece ser verdade especialmente em relação a todo ato final pelo qual a alma se dispõe (in genere causae materialis) a receber a luz da glória, um ato que se produz (in genere causae efficientis et formalis) sob essa luz no instante preciso em que é infundida, assim como o último ato que dispõe alguém imediatamente à justificação, procede da caridade no preciso momento em que ela é infundida. Assim, pois, os efeitos atrasados seriam obtidos ao menos no último momento, no instante da entrada na glória.
Da plenitude inicial de graça em Maria derivam-se, a partir do instante de sua concepção, as virtudes infusas e os sete dons do Espírito Santo, que formam as diversas partes ou funções do organismo espiritual. A graça habitual ou santificante é chamada, por causa disso, e desde antes de Santo Tomás, “a graça das virtudes e dos dons”, porque as virtudes infusas, teologais e cardeais, derivam-se dela a título de propriedades e segundo um grau proporcionado ao seu, assim como as faculdades procedem da alma . Os sete dons derivam-se também, segundo o mesmo grau, a título de disposições infusas permanentes que tornam a alma prontamente dócil às inspirações do Espírito Santo, algo assim como o barco é dócil, pelas velas, ao impulso do vento favorável .
Ademais, as virtudes infusas e os dons estão unidos à caridade, que torna meritórios seus atos , e crescem com ela como os cinco dedos da mão desenvolvem-se em conjunto . Pode acontecer que os dons de sabedoria, de inteligência e de ciência, que são ao mesmo tempo especulativos e práticos, apareçam em algum santo em forma mais puramente contemplativa, e em outro de uma forma mais prática, mas normalmente, em toda alma em estado de graça, todas as virtudes infusas e os sete dons existem em um grau proporcionado ao da caridade, e esta corresponde igualmente ao grau de graça santificante.
Desses princípios geralmente admitidos e expostos nos tratados das virtudes em geral e dos dons, deduz-se comumente que em Maria, desde o primeiro instante de sua concepção, derivaram-se da plenitude inicial de graça santificante, segundo um grau proporcionado, as virtudes infusas teologais e morais e os sete dons. Maria, assim já preparada para seu destino de Mãe de Deus e Mãe de todos os homens, não deveria ser menos perfeita que Eva no momento de sua criação. Ainda que Maria não tenha recebido em seu corpo os privilégios da impassibilidade e da imortalidade, tinha em sua alma tudo o que espiritualmente pertencia ao estado de justiça original, e ainda mais, uma vez que a plenitude inicial da graça já superava nela a graça final de todos os santos reunidos, suas virtudes iniciais superavam, pois, as virtudes heróicas dos maiores santos . Sua fé esclarecida pelos dons da sabedoria, da inteligência e da ciência era de uma firmeza inabalável e de grande penetração; sua esperança era invencível, superior a todo movimento de presunção ou de desânimo; sua caridade era fervorosíssima desde o primeiro minuto. Em resumo, sua santidade inicial, que superava a dos maiores servos de Deus, era inata e não deixou de crescer até a sua morte.
A única dificuldade encontrada aqui é a relativa ao exercício dessas virtudes infusas tão elevadas e dos sete dons; esse exercício pressupõe o uso da razão e do livre arbítrio; deve-se então perguntar se Maria teve, desde o primeiro instante, o uso de suas faculdades.
Todos os teólogos assentem quando se trata da santa alma de Cristo ; eles reconhecem que Nosso Senhor teve, desde o primeiro instante, a visão beatífica ou imediata da essência divina , e o Santo Ofício, em 6 de Junho de 1918, declarou essa doutrina certa. Jesus, com efeito, em sua qualidade de soberano da ordem da graça, gozava desde o primeiro instante da glória que deveria dar aos eleitos, e essa glória era n’Ele uma conseqüência da união pessoal de sua humanidade com o Verbo. Ele tinha também a ciência infusa à maneira dos anjos, mas em grau superior a estes, bem como a ciência infusa que existiu em muitos santos, por exemplo, como naqueles que tiveram o dom de línguas sem tê-las aprendido . Os teólogos reconhecem até que essas duas ciências foram perfeitas em Jesus desde o princípio, pois o progresso só pode ser admitido em sua ciência adquirida pela experiência ou pela reflexão. Jesus, soberano sacerdote, juiz e rei do universo, desde a sua entrada no mundo ofereceu-se por nós, diz São Paulo , e conheceu tudo o que, no passado, presente ou futuro poderia estar submetido ao seu juízo.
Distingue-se, enfim, a propósito do Salvador, a ciência infusa por si (per se infusa), que alcança um objeto inacessível para a ciência adquirida e que pode ser exercida sem o concurso da imaginação desde o seio materno, quando ainda não foi recebida nenhuma imagem do mundo exterior, e a ciência acidentalmente infusa (per accidens infusa), cujo objeto não é inacessível para a ciência adquirida e que se exerce com o concurso da imaginação, como o dom de línguas, que pode ser adquirido com o tempo.
Sobre esses pontos, geralmente existe acordo entre os teólogos quando se trata do próprio Cristo. Com relação a Maria, nada permite afirmar que tenha tido a visão beatífica desde sua vida aqui na Terra, especialmente desde o primeiro instante . Mas muitos teólogos sustentam que teve desde o primeiro instante a ciência por si infusa (per se infusa), ao menos de forma transitória, e outros dizem que a teve de modo permanente. De maneira que teria tido, desde o seio materno, ao menos em alguns momentos, o uso da inteligência e do livre arbítrio, e conseqüentemente, o uso das virtudes infusas e dos dons, que já possuía em grau muito elevado. E não se pode negar isso sem supor que em Maria a inteligência, a liberdade e as virtudes infusas tenham ficado de certo modo adormecidas, como nas outras crianças, e que foram despertadas mais tarde, na idade normal do pleno uso da razão.
Em primeiro lugar, é ao menos muito provável, segundo a maioria dos teólogos, que Maria teve desde o primeiro instante de sua concepção o uso do livre arbítrio por ciência infusa, ao menos de modo transitório. Assim pensam São Vicente Ferrer , São Bernardino de Siena , São Francisco de Sales , Santo Afonso , e também Suárez , Vega , Contenson , Justino de Miechow e com eles quase todos os teólogos modernos . O Pe. Terrien declara ter encontrado apenas dois adversários dessa doutrina: Gérson e Muratori .
As razões alegadas em favor desse privilégio são as seguintes:
1º ― Não convém que Maria, rainha dos patriarcas, dos profetas, dos Apóstolos e de todos os santos, tenha sido privada de um privilégio concedido a São João Batista . Ora, em São Lucas é dito de São João Batista que, estando ainda no seio de sua mãe: “E aconteceu que, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino saltou no seu ventre”, e Isabel disse, por sua vez: “Logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino exaltou de alegria no meu ventre”, “exultavit infans in gaudio”. Santo Irineu, São Leão Magno e São Gregório Magno observaram que a alegria de João Batista antes de seu nascimento não era apenas de ordem sensível, mas causada pela vinda do Salvador, cujo precursor ele deveria ser . E acrescenta Caetano: essa alegria de ordem espiritual supunha um conhecimento e o uso do livre arbítrio, pois nesse momento não poderia tratar-se de conhecimento adquirido, mas de conhecimento infuso . A Igreja diz também na liturgia, no hino de Vésperas de São João Batista: “Senseras Regem thalamo manentem... Suae regenerationis cognovit auctorem” ― “Tu reconheceste teu rei e o autor de tua regeneração”. Se, pois, São João Batista teve, antes de seu nascimento, o uso da inteligência e do livre arbítrio, como precursor de Cristo, não se poderia negar esse privilégio àquela que deveria ser a Mãe de Deus.
2º ― Uma vez que Maria recebeu desde o primeiro instante a graça, as virtudes infusas e os dons em um grau superior à graça final de todos os santos, ela deveria ser justificada como convém aos adultos, isto é, com o uso do livre arbítrio, dispondo-se por uma graça atual à graça habitual e merecendo, por esta última, desde o próprio instante de sua recepção; quer dizer, na medida de seu conhecimento, ela ofereceu-se a Deus, como seu Filho, que “entrando no mundo, diz: Eis-me que venho para fazer, ó Deus, a tua vontade” . Maria não sabia certamente, portanto, que ela seria um dia a Mãe de Deus, mas pôde oferecer-se a Deus por tudo o que Ele queria dela e lhe pedisse posteriormente.
3º ― A plenitude inicial de graça, das virtudes infusas e dos dons, que já superava a graça final de todos os santos, não podia permanecer inativa, inoperante em Maria no princípio de sua vida. Isso seria contrário à maneira delicada e superabundante com a qual a Providência age muito especialmente com respeito à Mãe do Salvador. Ora, sem o uso do livre arbítrio por conhecimento infuso, as virtudes e os dons existentes, que já existiam em grau eminente, teriam permanecido inativos e como que estéreis durante um longo período da vida da Santíssima Virgem.
Assim, quase todos os teólogos reconhecem hoje que é pelo menos muito provável que Maria teve, desde o seio materno, o uso do livre arbítrio por ciência infusa, ao menos de forma transitória. E reconhecem também que usou dessa ciência infusa em certas circunstâncias mais notáveis, como no momento da Encarnação, da Paixão, da Ressurreição do Salvador, de Sua Ascensão, e também para ter um conhecimento mais perfeito das perfeições divinas e do mistério da Santíssima Trindade.
Se a ciência infusa foi dada aos Apóstolos no dia de Pentecostes, quando receberam o dom de línguas e um conhecimento mais profundo da doutrina de Cristo; se Santa Teresa, chegada à sétima Morada do Castelo Interior, gozava muitas vezes de uma visão intelectual da Santíssima Trindade, que só pode ser explicada por idéias infusas, não se pode negar esse privilégio em favor da Mãe de Deus, cuja plenitude inicial de graça já superava a graça final de todos os santos juntos.
Assim falam geralmente os teólogos, mesmo aqueles que só estão dispostos a avançar mais se apoiados em sérias razões . É o mínimo que se pode dizer da Mãe de Deus, que gozou da aparição do arcanjo Gabriel, da santa familiaridade do Verbo feito carne, que foi constantemente iluminada por Ele durante toda a sua vida oculta, que deveria receber durante e depois da Paixão as revelações especiais e, no dia de Pentecostes, a abundância das luzes do Espírito Santo em maior grau que os próprios Apóstolos.
Esse privilégio do uso da razão e do livre arbítrio em Maria, desde o seio materno, foi apenas temporário e depois interrompido?
Segundo São Francisco de Sales , Santo Afonso e teólogos como Sauvé , Terrien , Hugon etc., esse privilégio nunca foi interrompido. O Pe. Merkelbach, com alguns outros, disse, pelo contrário: nada nos permite afirmar que tenha sido permanente .
Respondemos: nada permite afirmar essa permanência com certeza, mas é seriamente provável e muito difícil negá-la. Com efeito, se fosse de outra maneira, se Maria tivesse sido privada desse privilégio, teria sido menos perfeita que no primeiro instante, e não parece conveniente que uma criatura tão santa tenha decaído sem culpa própria, tanto mais que sua dignidade exigia que fosse progredindo sem cessar e que seu mérito não fosse nunca interrompido .
Objeta-se que Santo Tomás parece negar esse privilégio ao dizer que é próprio do Cristo . É certo que o exercício permanente da inteligência e da vontade só existe em Cristo, como um direito próprio, conseqüência da visão beatífica; por esse motivo, é privilégio exclusivo seu. Não é devido a Maria pelo mesmo motivo, mas as grandes conveniências e a alta dignidade da futura Mãe de Deus parecem exigi-lo e inclinam o ânimo seriamente a admiti-lo. Ademais, como à época de Santo Tomás o privilégio da Imaculada Conceição não havia sido ainda esclarecido, não se tinham ainda aprofundadas as razões que haveriam de ser invocadas em favor do uso, desde o seio materno, do livre arbítrio .
Hoje, depois da bula Ineffabilis Deus, vemos mais claramente que Maria, desde o primeiro instante, foi cumulada de mais graças que todos os santos reunidos; quase todos os teólogos admitem nela, desde esse momento, o uso ao menos transitório do livre arbítrio, e, uma vez admitido, é muito difícil dizer que foi posteriormente privada dele, pois teria se tornado mais imperfeita, e não somente não teria progredido em mérito nesse período, mas teria sido interrompida no mérito, e a plenitude inicial da graça teria ficado improdutiva e como que estéril durante um tempo bastante longo, o que parece contrário à Providência especial que vela sobre Maria fortiter et suaviter, fortemente e suavemente, mais que sobre qualquer outra criatura.
Tal foi em Maria a plenitude inicial da graça, unida ao privilégio da Imaculada Conceição, e tais foram as primeiras conseqüências dessa plenitude. Vemos assim, cada vez mais claro, o significado da saudação do anjo: “Deus te salve, cheia de graça”.
A graça habitual que a Bem-aventurada Virgem Maria recebeu no instante mesmo da criação de sua santa alma foi uma plenitude na qual se verificou imediatamente o que o anjo deveria dizer-lhe no dia da Anunciação: “Deus te salve, cheia de graça”. Isso é o que Pio IX afirma com a Tradição ao definir o dogma da Imaculada Conceição, dizendo que Deus, desde o primeiro instante, “amou-a [Maria] mais que todas as criaturas, prae creaturis universis, e com amor tal, que colocou nela, de modo especial, todas as suas complacências. E por isso cumulou-a tão maravilhosamente com os tesouros de sua divindade, mais que a todos os espíritos angélicos, mais que a todos os santos” . Poderiam ser citados aqui muitíssimos testemunhos da Tradição .
Santo Tomás explica a razão dessa plenitude inicial de graça quando diz: “Quanto mais alguém se aproxima de um princípio (de verdade ou de vida), mais participa de seus efeitos. Por isso afirma Dionísio que os anjos, por estarem mais perto de Deus que os homens, participam mais de suas bondades. Ora, Cristo é o princípio da vida da graça; como Deus, nele está a causa principal, e como homem, transmite-a a nós (depois de tê-la merecido), pois sua humanidade é como um instrumento sempre unido à divindade: “A graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo” . Estando a bem-aventurada Virgem Maria mais próxima de Cristo que ninguém, posto que tomou dela sua humanidade, recebeu, portanto, d’Ele, uma plenitude de graça que supera a todas as outras criaturas”.
São João Batista e Jeremias foram também, segundo o testemunho da Escritura, santificados no seio de sua mãe, mas sem serem preservados do pecado original; Maria, desde o primeiro instante de sua concepção, recebeu a graça santificante num grau muitíssimo superior ao deles, com o privilégio especial de ser preservada no futuro de toda falta, mesmo venial, o que não se afirma de nenhum outro santo .
Em seu Comentário à Ave Maria , Santo Tomás descreve a plenitude de graça em Maria (verificada já na plenitude inicial) da maneira seguinte: enquanto que os anjos não manifestam seu respeito aos homens, porque são superiores a eles como espíritos puros e porque vivem sobrenaturalmente na santa familiaridade de Deus, o arcanjo Gabriel, ao saudar Maria, mostra-se cheio de respeito e veneração por ela, pois compreendeu que ela lhe superava pela plenitude de graça, pela intimidade divina com o Altíssimo e por sua perfeita pureza.
Maria recebeu, com efeito, a plenitude da graça sob um tríplice aspecto: para evitar todo pecado, por leve que fosse, e praticar eminentemente todas as virtudes; para que essa plenitude transbordasse de sua alma ao seu corpo e concebesse o Filho de Deus feito homem; para que essa plenitude transbordasse também sobre todos os homens e nos ajudasse na prática de todas as virtudes.
Ademais, ela superava os anjos por sua santa familiaridade com o Altíssimo, e por isso o Arcanjo Gabriel disse-lhe ao saudá-la: “O Senhor é convosco”, como se lhe dissesse: vós estais mais intimamente unida a Deus que eu, pois Ele será o vosso Filho, enquanto que eu não sou mais que seu servo. De fato, como Mãe de Deus, Maria tem uma intimidade mais estreita que os anjos com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Supera, enfim, aos anjos por sua pureza, ainda que sejam espíritos puros, pois ela não era apenas puríssima em si mesma, senão que dava pureza aos demais. Não só estava isenta do pecado original e de toda falta mortal ou venial, mas também da maldição devida ao pecado: “Darás à luz com dor... e em pó te hás de tornar” . Conceberá o Filho de Deus sem perder a virgindade, levá-lo-á com um santo recolhimento, dará a luz com alegria, será preservada da corrupção do sepulcro e será associada pela Assunção à Ascensão do Salvador.
Maria já é bendita entre todas as mulheres porque ela somente, com seu Filho e por Ele, removerá a maldição que pesava sobre a raça humana e nos trará a benção abrindo-nos as portas do Céu. Por isso é chamada de Estrela do Mar, porque dirige os cristãos para o porto da eternidade.
O anjo disse-lhe: Bendito é o fruto do vosso ventre. De fato, enquanto o pecador busca no que deseja aquilo que não pode ali encontrar, o justo encontra tudo o que deseja santamente. Desde esse ponto de vista, o fruto do ventre de Maria será três vezes bendito.
Eva desejou o fruto proibido para ter “a ciência do bem e do mal” e poder governar-se sozinha, sem obedecer a ninguém; foi seduzida pela mentira: “Sereis como deuses”; mas longe de fazer-se semelhante a Deus, distanciou-se e desviou-se d’Ele. Maria, pelo contrário, encontrará tudo no fruto bendito de seu ventre; n’Ele encontrará o próprio Deus e também nos fará encontrá-Lo.
Eva, ao ceder à tentação, desejou a deleitação dos prazeres e encontrou a dor; Maria, ao contrário, encontra e nos faz encontrar a alegria e a salvação em seu divino Filho.
Finalmente, o fruto desejado por Eva não tinha nada mais que uma beleza sensível, enquanto que o fruto do ventre de Maria é o esplendor da glória espiritual e eterna do Pai. A própria Virgem é bendita, porém, mais ainda é seu Filho, que traz aos homens a bênção e a salvação.
Assim fala Santo Tomás da plenitude de graça em Maria, em seu Comentário à Ave Maria; distingue acima de tudo a plenitude realizada no dia da Anunciação; mas isso se aplica primeiramente à plenitude inicial, em certa medida, como o que é dito do rio aplica-se à fonte de onde veio.
Comparação entre a graça inicial de Maria e a dos santos
Tem-se perguntado se a graça inicial de Maria foi maior que a graça final de cada um dos anjos e dos homens, e até mesmo se foi maior que a graça final de todos os anjos e de todos os santos juntos. E essa pergunta é geralmente entendida, não precisamente como a graça consumada no Céu, mas como a graça chamada final, enquanto precede imediatamente a entrada no Céu .
À primeira parte dessa questão, os teólogos respondem comumente de maneira afirmativa; esse é, particularmente, o pensar de São João Damasceno , Suárez , Justin de Miechow, O. P. , de C. Vega , de Contenson , de Santo Afonso e dos Pe. Terrien , Godts, Hugon, Merkelbach etc. Hoje, todas as obras de Mariologia são unânimes nesse ponto, e o expressa também Pio IX na Bula Ineffabilis Deus, na passagem que citamos anteriormente.
A razão principal é tomada da Maternidade Divina, motivo de todos os privilégios de Maria, e essa razão aparece sob dois aspectos, segundo se considere o fim ao qual a primeira graça foi ordenada nela ou o amor divino, que foi a causa.
A primeira graça, de fato, foi outorgada a Maria como uma digna preparação para a Maternidade Divina, ou para prepará-la para ser digna Mãe do Salvador, diz Santo Tomás . Ora, a própria graça consumada dos outros santos não é ainda a digna preparação para a Maternidade Divina, que pertence à ordem hipostática ou de união ao Verbo. A primeira graça em Maria já supera, pois, a graça consumada dos outros santos.
Também os piedosos autores exprimem essa verdade acomodando as palavras do Salmo LXXXVI: Fundamenta ejus in montibus sanctis, e o entendem assim: o que constitui nos santos o cume da perfeição não é ainda sequer o começo da santidade de Maria.
Essa mesma razão aparece sob outro aspecto, considerando o amor incriado de Deus para a Santíssima Virgem. Como a graça é o efeito do amor ativo de Deus que nos faz, desse modo, amáveis aos seus olhos, como filhos adotivos, uma pessoa receberá a graça tanto mais abundantemente quanto mais amada ela é por Deus. Maria, desde seu primeiro instante, em sua qualidade de Mãe de Deus, é mais amada por Ele que qualquer santo, mesmo que esse tenha atingido o término da sua vida, e mais que qualquer anjo. Ela recebeu, pois, desde o primeiro instante, uma graça superior. Hoje não há nenhuma dúvida sobre isso e nem sequer se discute essa questão.
A primeira graça em Maria foi superior à graça final de todos os santos e anjos juntos?
Alguns teólogos, entre os antigos e os modernos, têm negado que a primeira graça em Maria tenha sido superior à graça final de todos os santos e anjos juntos . É, no entanto, muito provável, se não certo, segundo pensa a maioria dos teólogos, e é necessário responder afirmativamente com Vega, Contenson, Santo Afonso, Godts, Monsabré, Tanquerey, Billot, Sinibaldi, Hugon, Janssens, Merkelbach etc.
Em primeiro lugar, existe uma prova de autoridade. Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, favorece muito claramente essa doutrina quando diz na passagem já citada: “Deus, desde o princípio..., escolheu e preparou para seu Filho unigênito, a Mãe...; amou-a mais que todas as criaturas, e com amor tal, que colocou nela, de modo especial, todas as suas complacências. E por isso cumulou-a tão maravilhosamente com os tesouros de sua divindade, mais que a todos os espíritos angélicos, mais que a todos os santos, com a abundância de todos os dons celestiais, e... apareceu com tal plenitude de inocência e de santidade que não se pode conceber maior, excetuando a de Deus, e que nenhum entendimento que não seja o do próprio Deus pode medir tamanha grandeza”. Segundo o sentido óbvio, todas essas expressões, especialmente “todos os santos”, significam que a graça em Maria, desde o primeiro instante do qual se fala aqui, superava a de todos os santos juntos; se Pio IX tivesse querido dizer que a graça em Maria superava a de algum santo, teria escrito “mais que qualquer anjo ou santo” e não “mais que a todos os espíritos angélicos, mais que a todos os santos”. Não teria dito que Deus amou Maria mais que a todas as criaturas, “prae cunctis creaturis”, nem que colocou nela todas as suas complacências, “ut in illa una sibi propensissima voluntate complacuerit”. Não se pode dizer que não se trata da graça no primeiro instante, pois Pio IX, na continuação da passagem citada, diz: “era conveniente que [Maria] brilhasse sempre adornada dos resplendores da perfeitíssima santidade”.
Um pouco mais adiante, na mesma bula, é dito que, segundo os Santos Padres, Maria é superior pela graça aos Querubins, aos Serafins e a todo o exército dos anjos, “omni exercitu angelorum”, quer dizer, a todos os anjos reunidos. Todos o consentem se se trata de Maria já no Céu, mas é necessário recordar que o grau da glória celeste é proporcionado ao grau de caridade do momento da morte, e que o grau de Maria estava também proporcionado à dignidade de Mãe de Deus, para a qual foi preparada a Santíssima Virgem desde o primeiro instante.
A esse argumento de autoridade tirado da bula Ineffabilis Deus, é preciso acrescentar duas razões teológicas, tomadas da Maternidade Divina, que tornam mais preciso o que expusemos anteriormente seja considerando o fim ao qual foi ordenada a primeira graça, ou o amor incriado que foi sua causa.
Para bem entender essas duas razões teológicas, deve-se observar em primeiro lugar que, embora a graça seja da ordem da qualidade e não da quantidade, pelo fato de que a plenitude inicial em Maria supera a graça consumada do maior dos santos, não é imediatamente evidente para todos que ela supere a graça de todos os santos juntos. A visão da águia, como qualidade ou poder, supera a do homem que tem melhores olhos, mas não lhe permite ver, no entanto, aquilo que vêem juntos todos os homens espalhados pela Terra. É verdade que se mescla aqui uma questão de quantidade ou de extensão e uma de distância, o que não acontece ao tratar-se de uma qualidade imaterial como a graça. Convém, não obstante, adicionar aqui uma nova precisão aos dois aspectos já mencionados.
1º ― A primeira graça em Maria, uma vez que a preparava para ser a digna Mãe de Deus, deveria ser já proporcionada, ao menos de uma forma remota, à Maternidade Divina. A graça final de todos os santos, mesmo tomados em conjunto, não é ainda proporcionada à dignidade da Mãe de Deus, que é de ordem hipostática, como vimos. A graça final, então, de todos os santos, tomados em conjunto, é inferior à primeira graça recebida por Maria.
Esse argumento parece certo em si mesmo, embora alguns teólogos não tenham compreendido todo seu alcance.
Objeta-se: a primeira graça em Maria não é ainda uma preparação próxima para a Maternidade Divina e a prova, portanto, não é concludente.
Muitos teólogos têm respondido: ainda que a primeira graça em Maria não seja uma preparação próxima para a Maternidade Divina, ela é, não obstante, uma preparação digna e proporcionada, segundo a expressão de Santo Tomás: “A primeira [perfeição da graça], e como dispositiva, tornava a Bem-aventurada Virgem idônea para ser Mãe de Cristo” . A graça consumada de todos os santos juntos não é ainda proporcionada à Maternidade Divina, que é da ordem hipostática; portanto, a prova conserva sua força.
2º ― A pessoa que é mais amada por Deus que todas as criaturas juntas recebe uma graça maior que todas essas criaturas reunidas, pois a graça é o efeito do amor incriado e proporcionada a ele. Como diz Santo Tomás: “Deus ama este mais que aquele, tanto que lhe deseja um bem superior, pois a vontade divina é a causa do bem que existe nas criaturas” . Ora, desde toda a eternidade, Deus ama a Virgem Maria mais que todas as criaturas juntas, porquanto deveria prepará-la desde o primeiro instante de sua concepção para ser a digna Mãe de Deus. Segundo a expressão de Bossuet: “Ele sempre amou Maria como Mãe, e a considerou como tal desde o primeiro instante em que foi concebida” .
Isso, ademais, não exclui em Maria o progresso da santidade ou o aumento da graça, pois sendo esta uma participação da natureza divina, pode sempre aumentar e sempre será finita; mesmo a plenitude final de graça em Maria é limitada, ainda que transborde sobre todas as almas.
A essas duas razões teológicas relativas à Maternidade Divina acrescenta-se uma confirmação importante que aparecerá pouco a pouco ao falar da mediação universal de Maria. Ela podia, de fato, desde a Terra e desde que pôde merecer e suplicar, obter mais por seus méritos e orações que todos os santos juntos, pois eles nada obtêm sem a mediação universal da Santíssima Virgem, que é como o aqueduto de todas as graças, ou como o pescoço do Corpo Místico, por meio do qual os membros são unidos à cabeça. Em suma: Maria, desde que pôde merecer e orar, podia sem os santos obter mais do que todos os santos juntos sem ela. Ora, o grau de mérito corresponde ao grau da caridade e da graça santificante; logo, Maria recebeu desde o início da sua vida um grau de graça superior ao grau que possuíam imediatamente antes da sua entrada no Céu todos os santos e todos os anjos reunidos.
Existem outras confirmações indiretas ou analógicas mais ou menos aproximadas: uma pedra preciosa como o diamante vale mais que uma quantidade de pedras preciosas reunidas. O mesmo se dá na ordem espiritual: um santo como o Cura d'Ars podia mais por suas orações e méritos que todos os seus paroquianos juntos. Um fundador de uma ordem como São Bento valia mais individualmente, pela graça divina que havia recebido, que todos os seus primeiros companheiros, pois todos eles reunidos não teriam conseguido fazer essa fundação sem ele, enquanto que São Bento poderia ter encontrado outros irmãos como os que o haviam seguido.
Foram propostas também outras analogias: a inteligência de um arcanjo supera a de todos os anjos inferiores a ele, tomados em conjunto. O valor intelectual de Santo Tomás sobrepuja o de todos os seus comentadores. O poder de um rei é superior não só ao de seu primeiro-ministro, mas também ao de todos os seus ministros juntos.
Se os antigos teólogos não trataram explicitamente essa questão, foi provavelmente porque a solução parecia-lhes evidente. Diziam, por exemplo, ao fim do tratado da caridade ou da graça, para demonstrar sua dignidade: enquanto que uma moeda de 10 francos não vale mais que dez moedas de um franco, uma graça ou uma caridade de dez talentos vale muito mais que dez caridades de um só talento ; e por isso o demônio busca manter na mediocridade as almas que, pela vocação religiosa ou sacerdotal, são chamadas a uma maior perfeição; quer impedir o pleno desenvolvimento da caridade, que faria muitíssimo mais bem que uma caridade multiplicada simplesmente em grau comum ou acompanhada de tibieza.
Deve-se ficar atento à categoria da pura qualidade imaterial que é a da graça santificante. Se a visão da águia não supera a de todos os homens reunidos, é porque aqui se mescla uma questão de quantidade ou de distância local, pelo fato de que os homens dispersos nas diferentes regiões da superfície da Terra podem ver o que a águia, colocada sobre um pico dos Alpes, não pode alcançar. É completamente diferente na ordem da pura qualidade.
Se isso é certo, não há a menor dúvida de que Maria, pela primeira graça que já a dispôs à Maternidade Divina, vale mais aos olhos de Deus que todos os Apóstolos, mártires, confessores e virgens reunidos, que existiram e existirão na Igreja; mais que todas as almas e que todos os anjos criados desde a origem do mundo.
Se a arte humana realiza maravilhas de precisão e beleza, o que não poderá fazer a arte divina na criatura de sua predileção, de quem se disse: “Elegit eam Deus et praelegit eam ― Deus elegeu-a e predestinou-a”, e que foi elevada, como diz a liturgia, acima de todos os coros dos anjos? A primeira graça recebida por Maria era já uma digna preparação para sua Maternidade Divina e para sua glória excepcional, imediatamente inferior à de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ademais, ela sofreu em proporção, como Ele, pois devia ser vítima com Ele, para triunfar também com Ele e por Ele.
Essas razões teológicas permitem-nos vislumbrar desde já toda a elevação e a riqueza da primeira graça em Maria.
Se as obras da literatura clássica grega, latina, francesa, espanhola ou de qualquer outro idioma encerram muitíssimo mais belezas que as que descobrimos na primeira leitura, ao lê-las aos quinze ou vinte anos; se só percebemos essas belezas ao voltarmos a ler essas obras em idade mais madura; se o mesmo acontece com os escritos de um Santo Agostinho ou de um Santo Tomás, o que pensar das belezas ocultas nas obras-primas do próprio Deus, nas compostas imediatamente por Ele, e sobretudo nessa obra-prima espiritual de natureza e de graça que é a alma santíssima de Maria, Mãe de Deus? Inclina-se alguém primeiro a afirmar a riqueza da plenitude inicial de graça nela em razão de sua beleza vislumbrada; acontece depois que nos perguntamos se não exageramos na nota, transformando uma probabilidade em certeza; e, finalmente, um estudo profundo leva-nos à primeira afirmação, mas com conhecimento de causa, não só porque é belo, mas porque é verdadeiro, e porque existem razões de conveniência não só teóricas, mas de conveniências que efetivamente motivaram a escolha divina e nas quais se comprouve o beneplácito de Deus.
O Concílio de Trento, na sessão VI, definiu que “o homem, uma vez justificado, não pode evitar continuamente, durante todo o curso de sua vida, todos os pecados veniais, sem um privilégio especial, como o reconhece a Igreja ter sido concedido à Santíssima Virgem”. O justo pode evitar cada um dos pecados veniais tomadas em particular, mas não pode evitar todos, tomados em conjunto, e preservar-se deles continuamente. Maria, pelo contrário, evitou de fato toda falta, mesmo as ligeiras. Santo Agostinho afirma que “pela honra de seu Filho, que deveria perdoar todos os pecados do mundo, não se pode incluí-la, ao tratar-se do pecado” . Os Padres e teólogos rejeitam até toda imperfeição voluntária na própria maneira de falar de Maria, porque, segundo eles, ela jamais esteve menos pronta a responder a uma inspiração divina comunicada em forma de conselho. Uma menor generosidade não é um mal, como o pecado venial; é somente um menor bem, uma imperfeição; e mesmo isso nunca existiu em Maria. Nunca houve na Virgem Maria o ato imperfeito (remissus) de caridade, inferior em intensidade ao grau em que essa virtude existia nela.
Santo Tomás dá a razão desse privilégio especial quando diz: “Aqueles a quem o próprio Deus escolhe para um fim determinado, Ele os prepara e dispõe de tal maneira que sejam capazes de realizar aquilo para o que foram eleitos” . Nisso Deus difere dos homens, que escolhem com freqüência homens incapazes ou medíocres para funções perfeitas e elevadas. “Assim ― continua Santo Tomás ― São Paulo diz dos Apóstolos: “Deus nos fez idôneos ministros do Novo Testamento; não pela letra (da lei), mas pelo Espírito” . Ora, a Beatíssima Virgem foi escolhida divinamente para ser a Mãe de Deus (quer dizer, ela foi predestinada desde toda a eternidade para a Maternidade Divina). E não se pode duvidar, pois, que Deus, por Sua graça, a tenha tornado apta para essa missão, segundo as palavras que lhe foram dirigidas pelo anjo : “Achaste graça diante de Deus; eis que conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus”. Maria, porém, não teria sido a digna Mãe de Deus se tivesse pecado alguma vez, pois a honra e a própria desonra dos pais se reflete em seus filhos, de acordo com as palavras dos Provérbios: “a glória dos filhos são os seus pais (virtuosos)” . Além disso, Maria tinha uma afinidade especialíssima com Cristo, que por ela se encarnou, e “que concórdia há entre Cristo e Belial?” Enfim, o Filho de Deus, que é a Divina Sabedoria, habitou em Maria de uma maneira muito especial, não só em sua alma, mas em seu seio; e é dito na Sabedoria: “Na alma maligna não entrará a sabedoria, nem habitará no corpo sujeito ao pecado” . Deve-se, pois, concluir pura e simplesmente que a Bem-aventurada Virgem Maria não cometeu nenhum pecado atual, nem mortal nem venial, de maneira que se verificaram plenamente nela as palavras do Cântico dos Cânticos: “Toda és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula” . Assim se expressou Santo Tomás.
Existe em Maria ainda a impecância (inerrância) ou ausência de pecado, e mesmo a impecabilidade, não no mesmo sentido que em Cristo, mas no sentido em que, por privilégio especial, foi preservada de todo pecado, mesmo venial .
Esse privilégio supõe, em primeiro lugar, um grau altíssimo de graça habitual e de caridade, que inclina fortemente a alma ao ato de amor a Deus, afastando-a do pecado. Supõe, também, a confirmação em graça, que habitualmente, nos santos, é formada pelo grande aumento da caridade, sobretudo de união transformante; um aumento acompanhado de graças atuais eficazes que de fato preservam do pecado e conduzem a atos livres e sempre meritórios, cada vez mais elevados. Havia também na Virgem uma proteção especial da Providência que, melhor ainda que no estado de inocência, preservava todas as suas faculdades dos desvios e que, mesmo nas circunstâncias mais dolorosas, conservavam sua alma na mais perfeita generosidade. Essa assistência preservadora foi um efeito da predestinação de Maria, tal como a confirmação em graça é um efeito da predestinação dos santos.
Essa preservação do pecado, longe de diminuir a liberdade ou o livre arbítrio de Maria, fazia que ela tivesse a plena liberdade em ordem ao bem, sem nenhum desvio para o mal, como sua inteligência nunca se inclinava para o erro. Assim, pois, sua liberdade, a exemplo da liberdade da santa alma de Jesus, era uma imagem puríssima da liberdade de Deus, que é ao mesmo tempo soberana e impecável.
Se as obras-primas da arte humana, na arquitetura, pintura ou música, se os instrumentos de precisão nos laboratórios alcançam a última perfeição, o que haveremos de pensar das obras-primas de Deus? Se suas obras na ordem natural são tão perfeitas, como o mostram as belezas do oceano ou das altas montanhas, ou em outra ordem diferente, a estrutura do olho e do ouvido, e ainda mais nossas faculdades superiores, sem falar das inteligências angélicas cada vez mais elevadas, o que dizer de suas obras-primas na ordem sobrenatural, como o foi a santa alma de Maria, adornada de todos os dons gratuitos desde o primeiro momento de sua existência?
NOTA
O problema da imperfeição distinta do pecado venial.
Esse problema , deslocado pelos casuístas, é proposto num plano superior, aquele a que chegam as almas interiores já avançadas, muito atentas em evitar todo pecado venial, mais ou menos deliberado, e foi transportado indevidamente a um plano muito inferior, e se teve então a incoerência e a injustiça de chamar imperfeição ao que, na realidade, é um pecado venial.
Outras vezes relacionou-se esse problema com outro: a vocação religiosa é obrigatória ou pode alguém afastar-se dela sem pecado, por simples imperfeição? Responde-se comum e acertadamente que a vocação religiosa não obriga por si mesma, mas, de fato, como influencia em toda a vida, e como os outros caminhos são menos seguros, quando alguém se afasta dela não é sem pecado, porque se afasta de fato, como o jovem rico de quem nos fala o Evangelho, por sua adesão imoderada às coisas da Terra (desejo imoderado proibido já por um preceito), e não somente por uma menor generosidade.
O problema da imperfeição distinta do pecado venial deve apresentar-se num plano superior onde vivem as almas muito generosas e que estão muito decididas a evitar todo o pecado venial mais ou menos deliberado, e mais ainda, apresenta-se a propósito da impecabilidade de Cristo e do privilégio especial pelo qual Maria foi preservada de todo pecado, por leve que fosse. Põe-se, portanto, a questão: Houve na vida de Cristo e da Santíssima Virgem alguma imperfeição voluntária? Compreende-se evidentemente que essa é uma questão sumamente delicada.
A esse último problema responde-se comumente: na vida de Cristo e de sua Santíssima Mãe nunca houve imperfeição mais ou menos voluntária, porque eles nunca estiveram menos prontos para seguir uma inspiração divina dada em forma de conselho.
Mas se tivesse existido neles, de tempos em tempos, essa menor tendência e prontidão, não teria sido, no entanto, uma desordem propriamente dita, como o apego imoderado aos bens terrestres: teria sido unicamente uma menor generosidade.
Para as almas interiores, desde que não tenham feito voto para fazer o mais perfeito, pode-se e deve-se dizer que não são obrigadas sob pena de pecado venial ao máximo de generosidade que seja moralmente possível para elas em todos os instantes . Convirá, no entanto, que, se não estão obrigadas pelo voto do mais perfeito sob pena de pecado venial, as almas mais perfeitas prometam à Santíssima Virgem fazer sempre o que lhes parecerá evidentemente melhor e mais perfeito para elas.
A plenitude inicial de graça em Maria se nos apresenta sob dois aspectos: o primeiro, de certo modo negativo, sobretudo em seu enunciado: a preservação do pecado original; o segundo, de modo positivo: a concepção absolutamente pura e santa, pela própria perfeição da graça santificante inicial, raiz de todas as virtudes infusas e dos sete dons do Espírito Santo.
A definição dogmática
A definição do dogma da Imaculada Conceição pelo Papa Pio IX, em 8 de dezembro de 1854, diz assim: “Nós declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que afirma que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua concepção, foi preservada, por singular privilégio de Deus e em virtude dos méritos de Jesus Cristo, de toda mancha de pecado original, é doutrina revelada por Deus e, portanto, deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis.
Essa definição contém, sobretudo, três pontos importantes:
1º ― Afirma-se que a Bem-aventurada Virgem Maria foi preservada de toda mancha de pecado original no primeiro instante de sua concepção, quer dizer, de sua concepção passiva e consumada, quando sua alma foi criada e unida ao corpo, porque somente então existe a pessoa humana, e a definição refere-se a esse privilégio outorgado à pessoa mesma de Maria. Diz-se que é um privilégio especial e uma graça particularíssima, efeito da onipotência divina.
O que devemos entender, conforme o pensamento da Igreja, pelo pecado original de que Maria foi preservada? A Igreja não definiu em quê consiste a natureza íntima do pecado original, mas nos deu a conhecer o que ele é por seus efeitos: inimizade ou maldição divina, mancha da alma, estado de injustiça ou de morte espiritual, escravidão sob o domínio do demônio, sujeição à lei da concupiscência, dos sofrimentos e da morte corporal, considerada como uma pena do pecado comum.
Deve-se dizer, portanto, que Maria só pôde ser preservada de toda mancha do pecado original por ter recebido a graça santificante desde o momento da sua concepção. Ela foi assim concebida naquele estado de justiça e santidade que é o efeito da amizade divina em oposição à maldição divina, e, por conseguinte, foi subtraída da escravidão sob o domínio do demônio, da sujeição à lei da concupiscência, e mesmo dos sofrimentos e da morte considerados como pena do pecado da natureza, ainda que em Maria, como em Nosso Senhor, o sofrimento e a morte tenham sido conseqüências de nossa natureza (in carne passibili) e que tenham sido oferecidos para nossa salvação.
2º ― Afirma-se nessa definição que Maria foi preservada do pecado original, em virtude dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, como já o havia declarado em 1661 Alexandre VII. Não se pode, pois, admitir, como o sustentavam alguns teólogos no século XIII, que Maria é imaculada no sentido de que não necessitou da redenção, e que sua primeira graça é independente dos méritos futuros de seu Filho.
Segundo a bula Ineffabilis Deus, Maria foi resgatada pelos méritos de seu Filho e do modo mais perfeito, por uma redenção não só libertadora do pecado original já contraído, mas por uma redenção preservadora. Mesmo na ordem humana, aquilo que nos preserva de um golpe mortal é nosso salvador, de forma mais ampla e melhor, que aquilo que somente nos cura das feridas causadas pelo golpe.
Relaciona-se com a idéia de redenção preservadora a de que Maria, filha de Adão, descendente dele por via de geração natural, deveria incorrer na mancha hereditária, e teria incorrido de fato nela, se Deus não tivesse decidido, desde toda a eternidade, outorgar-lhe esse privilégio singular da preservação em virtude dos méritos futuros de seu Filho.
Esse ponto de doutrina era já afirmado na oração própria da festa da Imaculada Conceição, aprovada pelo Papa Sixto IV (1476), na qual se diz: “Ex morte ejusdem Filii tui praevisa, eam (Mariam) ab omni labe praeservasti”. A Santíssima Virgem foi preservada do pecado original pela morte futura de seu Filho; quer dizer, pelos méritos de Cristo, morrendo por nós na cruz.
Vê-se naturalmente que essa preservação de Maria difere bastante daquela do Salvador, pois Jesus não foi absolutamente resgatado pelos méritos de outro, nem pelos seus; Ele foi preservado do pecado original e de todo pecado por duplo motivo: primeiro, pela união hipostática ou pessoal de sua humanidade ao Verbo, no mesmo instante em que sua santa alma foi criada, pois nenhum pecado, seja original, atual ou pessoal, pode ser atribuído ao Verbo feito carne; segundo, por sua concepção virginal, realizada por obra do Espírito Santo, Jesus não descende de Adão por meio de geração natural. Isso é próprio e privativo de Nosso Senhor.
3º ― A definição do dogma da Imaculada Conceição propõe essa doutrina como revelada e contida, portanto, ao menos implicitamente, no depósito da revelação, isto é, na Sagrada Escritura ou na Tradição, ou nas duas fontes.
O testemunho da Escritura
A bula Ineffabilis Deus cita dois textos da Escritura: Gênesis 3, 15 e Lucas 1, 28;42.
No Gênesis, esse privilégio é revelado implicitamente ou confusamente e como em germe nestas palavras de Deus dirigidas à serpente, a figura do demônio: “Porei inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar”. O vocábulo “Ela” quer dizer a posteridade da mulher, pois no texto hebraico o pronome é masculino e designa os descendentes da mulher, e o mesmo ocorre na Septuaginta e na versão siríaca. A Vulgata coloca ipsa, que se refere à mulher. O sentido, por certo, não é essencialmente diferente, pois a mulher será associada à vitória daquele que representará eminentemente a sua posteridade na luta contra o demônio no transcurso dos séculos.
Essas palavras por si só não são suficientes para provar com certeza que o privilégio da Imaculada Conceição é revelado, mas os Santos Padres, em sua comparação entre Eva e Maria, viram naquelas uma alusão a esse privilégio, e por isso Pio IX cita essa promessa.
Um exegeta naturalista não verá nessas palavras mais que uma expressão da repulsa instintiva que o homem experimenta à vista da serpente. Mas a tradição judaica e a cristã vêem nela muito mais. A tradição cristã tem visto nessa promessa, que tem sido chamada de o protoevangelho, o primeiro traço que serve para designar o Messias e seu triunfo sobre o espírito do mal. Jesus representa de fato, eminentemente, a posteridade da mulher, em luta com a descendência da serpente. Mas se Jesus é assim chamado, não é em razão do laço comum e distante que o une a Eva, pois esta só pôde transmitir aos seus descendentes uma natureza decadente, ferida, privada da vida divina; mas sim, em razão do laço que o une a Maria, em cujo seio Ele tomou uma humanidade sem mancha. Como diz o Pe. Le Bachelet: “Não se encontra na maternidade de Eva o princípio dessa inimizade que Deus colocará entre a raça da mulher e a descendência da serpente, porque Eva, da mesma forma que Adão, caiu vítima da serpente. O princípio dessa inimizade só é encontrado em Maria, mãe do Redentor. Nesse protoevangelho, a personalidade de Maria, ainda que velada, está presente, e a lição da Vulgata, ipsa, expressa uma conseqüência que se deduz realmente do texto sagrado, porque a vitória do Redentor é moralmente, mas realmente, a vitória de sua Mãe”.
A antigüidade cristã também não cessa de opor Eva, que participa do pecado de Adão ao seguir a sugestão da serpente, a Maria, que participa na obra redentora de Cristo ao dar crédito às palavras do anjo no dia da Anunciação.
Na promessa do Gênesis, está afirmada uma vitória completa sobre o demônio: ela esmagará tua cabeça; e, portanto, sobre o pecado que coloca a alma num estado de escravidão sobre o domínio do demônio. Evidentemente que, como diz Pio IX na Bula Ineffabilis Deus, essa vitória sobre o demônio não seria decisiva se Maria não tivesse sido preservada do pecado original pelos méritos de seu Filho: “Triunfando completamente [da serpente], [Maria] triturou sua cabeça com o pé imaculado”.
O anúncio desse privilégio está contido na promessa do Gênesis como o carvalho está contido no germe que se encontra numa bolota; se nunca tivéssemos visto um carvalho, não teríamos conhecido o valor desse germe, nem para quê precisamente ele estaria ordenado; mas uma vez que conhecemos o carvalho, vemos que esse germe estava ordenado a produzi-lo e não para que gerasse um olmo ou um álamo. Essa é a lei da evolução que se verifica também na ordem progressiva da revelação divina.
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A bula Ineffabilis Deus cita também as palavras de saudação do anjo a Maria: “Deus te salve, cheia de graça; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres”, e as mesmas palavras ditas por Santa Isabel sobre a revelação divina. Pio IX não disse que essas palavras eram suficientes por si só para provar que o privilégio da Imaculada Conceição tenha sido revelado; para que elas sejam eficazes, é preciso acrescentar-lhes a tradição exegética dos Santos Padres.
Essa tradição se torna explícita com Santo Efrém, o Sírio († 373), e nos Padres gregos dos tempos posteriores ao Concílio de Éfeso (431), em particular nos bispos adversários de Nestório: São Proclo, um dos sucessores de São João Crisóstomo na sede de Constantinopla (434-446) e Teodoto, bispo de Ancira (430-439), e depois São Sofrônio, Patriarca de Jerusalém (634-38), André de Creta († 740) e São João Damasceno, morto na metade do século VIII, cujos testemunhos são aduzidos longamente pelo Pe. Le Bachelet.
À luz dessa tradição exegética, as palavras do anjo à Maria: “Deus te salve, cheia de graça”, que querem dizer: “Deus te salve, tu que és plenamente agradável a Deus e amada por Ele”, não estão limitadas no tempo, de modo a excluir algum período inicial da vida de Maria; ao contrário, a Santíssima Virgem não teria recebido essa plenitude de graça se sua alma tivesse estado sequer um instante no estado de morte espiritual, como conseqüência do pecado original, se tivesse sido privada por um só momento da graça, afastada de Deus, filha da ira, num estado de servidão sob o poder do demônio. São Proclo disse que ela foi “formada de um barro puro”. Teodoto de Ancira disse que “o Filho do Altíssimo nasceu da Excelsa”. São João Damasceno escreveu que Maria é filha santíssima de Joaquim e Ana e que “escapou dos dardos inflamados do maligno”, que ela é um paraíso novo “onde a serpente não tem entrada furtiva”, que está isenta da dívida da morte, uma das conseqüências do pecado original ― e deveria estar isenta, portanto, da ruína comum.
Se Maria tivesse contraído o pecado original, a plenitude da graça teria sido restringida, no sentido de que não teria abarcado toda a sua vida. A Igreja, interpretando as palavras da saudação angélica à luz da Tradição e com a assistência do Espírito Santo, viu nelas o privilégio da Imaculada Conceição, implicitamente revelado, não como o efeito na causa que pode existir sem ele, mas como uma parte no todo; a parte está atualmente no todo ao menos implicitamente anunciada.
O testemunho da Tradição
A Tradição também afirma cada vez mais explicitamente essa verdade. São Justino, Santo Irineu, Tertuliano contrapõem Eva, a causa da morte, e Maria, a causa da vida e da salvação. Essa antítese é constantemente renovada pelos Santos Padres e encontra lugar nos documentos mais solenes do magistério supremo, em particular na bula Ineffabilis Deus. Essa antítese é dada como perfeita, sem restrição, e para que o seja, é necessário que Maria tenha sido sempre superior a Eva e, portanto, que não tenha sido inferior a ela desde o primeiro instante de sua vida. Os Santos Padres dizem freqüentemente de Maria que é imaculada, que é sempre abençoada por Deus para honra do seu Filho, que é intemerata, intacta, impolluta, intaminata, illibata, inteiramente sem mancha alguma.
Santo Efrém, ao comparar Eva e Maria, disse: “Ambas são, em sua origem, inocentes e puras, mas Eva logo se torna a causa da morte e Maria a causa da vida” . Dirigindo-se ao Senhor, disse também: “Vós, Senhor, e vossa santa Mãe sois os únicos perfeitamente belos em todos os aspectos. Em vós não há nenhuma falta, e em vossa Mãe, nenhuma mancha. Os demais filhos de Deus não se aproximam, nem de longe, dessa beleza” .
Santo Ambrósio disse igualmente de Maria que ela está isenta de toda mancha do pecado “per gratiam ab omni integra labe peccati” , e Santo Agostinho nos diz que “a honra de Cristo não permite nem mesmo levantar a questão do pecado em relação à Santíssima Virgem Maria” , enquanto que se for perguntado aos santos: “Estais sem pecado?”, todos nos responderão com o Apóstolo São João: “Se dissermos que não temos pecado, nós mesmos nos enganamos, e não há verdade em nós” . Dois outros textos parecem mostrar que a afirmação de Santo Agostinho sobre Maria isenta de todo pecado se estende à Imaculada Conceição . Encontrar-se-ão muitos outros textos e testemunhos dos Santos Padres nas obras de Passaglia , Palmieri e Le Bachelet .
Deve-se acrescentar que, a partir dos séculos VII e VIII, celebrava-se na Igreja, sobretudo na Igreja grega, a festa da Concepção da Bem-Aventurada Virgem Maria; na Sicília no século IX, na Irlanda no século X e, no século XII, em quase toda a Europa.
O Concílio de Latrão de 649 chama Maria de “imaculada”. Em 1476 e 1483, Sixto IV fala em favor do privilégio a propósito da festa da Concepção de Maria . O Concílio de Trento declara, ao falar do pecado original que alcança todos os homens, que não é sua intenção incluir nele a Bem-aventurada e Imaculada Virgem Maria. Em 1567, Baio é condenado por ter ensinado o contrário . Em 1661, Alexandre VII afirma esse privilégio ao dizer que quase todas as igrejas da cristandade o admitem, ainda que não tenha sido ainda definido . E finalmente, em 8 de dezembro de 1854, é promulgada a definição solene .
É necessário reconhecer que nos séculos XII e XIII grandes doutores como São Bernardo , Santo Anselmo , Pedro Lombardo , Hugo de São Victor , Santo Alberto Magno , São Boaventura e Santo Tomás pareceram pouco favoráveis ao privilégio, porque não tinham considerado o instante mesmo da animação ou da criação da alma de Maria, e não distinguiram com precisão, com a ajuda da idéia de redenção preservadora, que Maria, que deveria incorrer na mancha hereditária, não incorreu de fato. Não distinguiram entre “debebat contrahere” e “contraxit peccatum”. Veremos depois, no entanto, que existem na vida de Santo Tomás três períodos distintos sobre esse ponto, e que se no segundo período ele não afirma o privilégio e até parece negá-lo, no primeiro o afirma e também, assim parece, no último.
Razões teológicas do privilégio da Imaculada Conceição
A principal razão da conveniência desse privilégio é o desenvolvimento da explicação que Santo Tomás aduziu para demonstrar a conveniência da santificação de Maria no seio de sua mãe antes de seu nascimento : “Deve-se crer razoavelmente que aquela que deveria gerar o Filho único de Deus, cheio de graça e de verdade, tenha recebido, mais que qualquer outra pessoa, os maiores privilégios da graça. Se Jeremias e João Batista foram santificados antes de seu nascimento, deve-se crer razoavelmente que o mesmo aconteceu com Maria”. Santo Tomás disse ainda : “Quanto mais perto alguém está da fonte das graças, mais dela recebe, e Maria foi aquela que mais próxima esteve do princípio da graça, que é Cristo” .
Mas é necessário desenvolver essa razão de conveniência para chegar ao privilégio de que estamos falando.
Foi mérito de Duns Scot (e os tomistas devem tributar-lhe esta honra: reconhecer que seu adversário enxergou de forma clara nesse ponto) ter esclarecido a grande conveniência desse privilégio, respondendo a esta dificuldade formulada por muitíssimos teólogos e por Santo Tomás: Cristo é o Redentor universal de todos os homens, sem exceção . Ora, se Maria não contraiu o pecado original, ela não foi redimida por Cristo; não foi, então, resgatada por Ele.
Duns Scot responde a essa dificuldade com a idéia de uma redenção que não seria libertadora, mas preservadora. Ele mostra toda a conveniência dessa idéia e, pelo menos em certos lugares, não a associa à opinião particular que possui sobre o motivo da Encarnação, de maneira que essa alta razão de conveniência pode ser admitida independentemente dessa sua opinião.
A idéia é a seguinte: convém que o Redentor perfeito exerça uma redenção soberana, pelo menos a respeito da pessoa de sua Mãe, que deve lhe ser associada mais intimamente que ninguém na obra da redenção da humanidade. Ora, a redenção suprema não é a libertação do pecado já contraído, mas a preservação de toda mancha; da mesma maneira que aquele que livra alguém de um golpe mortal é ainda mais salvador do que se lhe curasse as feridas produzidas pelo golpe. É, portanto, conveniente em sumo grau que o Redentor perfeito tenha, por seus méritos, preservado a sua Mãe do pecado original e de toda falta atual. O argumento havia sido esboçado anteriormente por Eadmero e tem evidentemente raízes profundas na Tradição.
Essa razão de conveniência está, de certa maneira, indicada na bula Ineffabilis Deus, com algumas outras mais. A bula diz que a honra dos pais, bem como sua desonra, repercute nos filhos, e não convinha que o Redentor perfeito tivesse uma Mãe concebida no pecado.
Além disso, como o Verbo procede eternamente de um Pai santíssimo por excelência, convinha que ele nascesse na Terra de uma Mãe a quem jamais tivesse faltado o esplendor da santidade.
Enfim, para que Maria pudesse reparar a queda de Eva, vencer as artimanhas do demônio e dar-nos a todos, com Cristo, por Ele e n'Ele, a vida sobrenatural, convinha que ela própria não tivesse estado jamais na situação humilhante da escravidão do pecado e do demônio.
Se for objetado que somente Cristo é imaculado, é fácil responder: só Cristo é imaculado por si mesmo, e pelo duplo título da união hipostática e de sua concepção virginal; Maria o é pelos méritos de seu Filho.
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As conseqüências do privilégio da Imaculada Conceição foram desenvolvidas pelos grandes escritores místicos. Maria foi preservada das conseqüências desonrosas e desastrosas do pecado original, que são a concupiscência e a inclinação ao erro.
É preciso reconhecer, após a definição do dogma da Imaculada Conceição, que o foco da concupiscência não só esteve dominado em Maria desde o seio de sua mãe, como também jamais existiu nela. Nenhum movimento de sua sensibilidade poderia ser desordenado e escapar a seu julgamento e consentimento. Nela sempre existiu a subordinação perfeita da sensibilidade à inteligência e à vontade, e da vontade à Deus, como no estado de inocência. Por isso Maria é a Virgem das virgens, puríssima, inviolata, intemerata, torre de marfim, o espelho puríssimo de Deus.
Maria, igualmente, jamais esteve sujeita ao erro, à ilusão; seu julgamento foi sempre claro e reto. Se não tinha luz suficiente sobre alguma coisa, suspendia o julgamento e evitava a precipitação, que é a causa do erro. Ela é, como dizem as litanias, a Sede da Sabedoria, a Rainha dos doutores, a Virgem prudentíssima, a Mãe do Bom Conselho. Todos os teólogos reconhecem que a natureza falava-lhe do Criador mais profundamente que aos maiores poetas, e que ela teve, já neste mundo, um conhecimento eminente e naturalmente superior daquilo que dizem as Escrituras sobre o Messias, sobre a Encarnação e a Redenção. Esteve, pois, isenta completamente da concupiscência e do erro.
Mas por que o privilégio da Imaculada Conceição não afastou Maria da dor e da morte, que são as conseqüências do pecado original?
Na verdade, a dor e a morte de Maria, assim como em Jesus Cristo, não foram, como em nós, conseqüências do pecado original, que não os havia desgraçado ou manchado. Foram conseqüências da natureza humana, que em si mesma, como a natureza do animal, está sujeita às dores e à morte corporal. Somente por privilégio sobrenatural Adão inocente estava isento de toda dor e da necessidade de morrer, se tivesse conservado a inocência.
Jesus, para ser nosso Redentor com sua morte na cruz, foi virginalmente concebido de uma carne mortal, in carne passibili, e aceitou voluntariamente os sofrimentos e a morte para nossa salvação. Maria, por seu exemplo, aceitou voluntariamente a dor e a morte para unir-se ao sacrifício de seu Filho, para expiar com Ele em nosso lugar e nos resgatar.
E surpreendentemente, para admiração das almas contemplativas, o privilégio da Imaculada Conceição e a plenitude da graça, longe de afastar Maria da dor, aumentaram enormemente nela a capacidade de sofrer pelas conseqüências do maior dos males, o pecado. Precisamente porque era absolutamente pura, porque seu coração estava abrasado pela caridade divina, Maria sofreu excepcionalmente os maiores tormentos, dos quais nossa leviandade nos torna impassíveis. Sofremos com o que fere a nossa sensibilidade, nosso amor próprio, nosso orgulho. Maria sofreu pelo pecado, na mesma medida do seu amor por Deus, a quem o pecado ofende; na medida do seu amor por seu Filho, a quem o pecado crucificou; na medida do seu amor por nossas almas, as quais o pecado destrói e mata. O privilégio da Imaculada Conceição, longe de afastar Maria da dor, aumentou tanto seus sofrimentos e a dispôs tão bem para suportá-los, que ela não desperdiçou o menor deles e os ofereceu incessantemente com os sofrimentos de seu Filho para nossa salvação.
Pensamento de Santo Tomás sobre a Imaculada Conceição
Pode-se, segundo parece, e como têm apontado alguns comentadores, distinguir sobre esse ponto três períodos no pensamento de Santo Tomás.
No primeiro, ao princípio de sua carreira teológica (1253-1254), ele afirma o privilégio, provavelmente em virtude da tradição manifestada pela festa da Conceição celebrada em muitas Igrejas e pelo piedoso fervor de sua admiração pela santidade perfeita da Mãe de Deus. Escreveu então: “Puritas intenditur per recessum a contrario: et ideo potest aliquid creatum inveniri quod nihil purius esse potest in rebus creatis, si nulla contagione peccati inquinatum sit; et talis fuit puritas beatae Virginis, quae a peccato originali et actuali immunis fuit” . Segundo esse texto, a pureza da bem-aventurada Virgem era tal que ela permaneceu isenta do pecado original e de todo pecado atual.
No segundo período, Santo Tomás, vendo melhor as dificuldades do problema, hesita e não se pronuncia, pois os teólogos do seu tempo sustentam que Maria é imaculada independentemente dos méritos de Cristo. Ele recusa admitir essa posição por causa do dogma da redenção universal que, sem exceção, provém do Salvador . Apresenta, pois, a questão : a bem-aventurada Virgem foi santificada antes da animação, na concepção do seu corpo? Porque, segundo ele e muitos outros teólogos, a concepção (inicial) do corpo distingue-se da animação ou criação da alma, que será posterior em um mês aproximadamente, e que hoje se chama concepção passiva consumada.
O santo doutor dá, no início desse artigo, quatro argumentos em favor da concepção imaculada, mesmo anterior, cronologicamente, à animação. Em seguida, responde: “A santificação da bem-aventurada Virgem não pode se conceber antes da animação: lº, porque essa santificação deve purificá-la do pecado original, o qual não pode ser apagado a não ser pela graça, que tem por sujeito a própria alma; 2º, se a bem-aventurada Virgem Maria tivesse sido santificada antes da animação, jamais teria incorrido na mancha do pecado original e não teria tido necessidade de ser resgatada por Cristo... E isso é um inconveniente, porque Cristo é o Salvador de todos os homens” .
Mesmo após a definição dogmática de 1854 é verdadeiro afirmar que Maria não foi santificada antes da animação; mas Santo Tomás acrescenta, ao final do corpo do artigo: “Unde relinquitur, quod sanctificatio B. Virginis fuerit post ejus animationem”. Só resta, segundo ele, que tenha sido santificada depois da animação. Ele não distingue, como fez muitas vezes em outros lugares, a posteridade de natureza, que pode e deve ser admitida hoje, da posteridade de tempo, que é contrária ao privilégio da Imaculada Conceição. E, da mesma forma, no ad 2, Santo Tomás diz da bem-aventurada Virgem: “Contraiu o pecado original” .
Todo seu argumento tende a demonstrar que Maria, sendo descendente de Adão por geração natural, deveria incorrer na mancha do pecado original. Mas não distingue o suficiente esse debitum incurrendi do fato de incorrer nessa falta.
Quanto à questão de saber em que momento exato a Virgem Maria foi santificada no ventre de sua mãe, ele não se pronuncia. Declara que a santificação seguiu imediatamente à animação: cito post, disse ele nos Quodlibetos VI, a. 7; mas em qual momento, ignora-se, “quo tempore sanctificata fuerit, ignoratur” .
Na Summa, Santo Tomás não examina a questão: “Maria foi santificada no mesmo instante da animação?” São Boaventura também havia apresentado o problema e o havia respondido negativamente. Santo Tomás não se pronuncia claramente; inspira-se provavelmente na atitude reservada da Igreja Romana, que não celebrava a festa da Concepção, realizada em outras igrejas . Essa é, pelo menos, a interpretação do Pe. Norb. del Prado, O.P. , do Pe. Mandonnet, O.P. e do Pe. Hugon . Segundo esses autores, o pensamento do santo doutor, mesmo nesse segundo período de sua carreira professoral, seria a expressada muito tempo depois por Gregório XV em suas cartas datadas de 04 de julho de 1622: “Spiritus Sanctus nondum tanti mysterii arcanum Ecclesiae suae patefecit”.
Os princípios invocados por Santo Tomás não concluem totalmente contra o privilégio, e subsistem perfeitamente se a redenção preservadora for admitida.
Objeta-se, no entanto, um texto difícil : “Sed nec etiam in ipso instanti infusionis (animae), ut scil. per gratiam tunc sibi infusam conservaretur ne culpam originalem incurreret. Christus enim hoc singulariter in humano genere habet, ut redemptionem non egeat”. O Pe. del Prado e o Pe. Hugon respondem: “O sentido pode ser: a Santíssima Virgem não esteve preservada de tal maneira que não deveria incorrer na mancha original, pois não teria tido necessidade de redenção”. Desejaria-se, evidentemente, a distinção explícita entre o debitum incurrendi e o fato de incorrer na mancha original.
No último período de sua carreira, em 1272 ou 1273, Santo Tomás, ao escrever a Expositio super salutationem angelicam, certamente autêntica , diz: “Ipsa enim (beata Virgo) purissima fuit et quantum ad culpam, quia nec originale, nec mortale, nec veniale peccatum incurrit”.
Na edição crítica do Comentário da Ave Maria , demonstra-se, nas páginas 11 a 15, que a passagem relativa à Imaculada Conceição encontra-se em 16 dos 19 manuscritos consultados pelo editor, que conclui por sua autenticidade e coloca no apêndice as fotografias dos principais manuscritos .
Seria desejável que se fizesse para cada um dos principais opúsculos de Santo Tomás um estudo tão consciencioso .
Esse texto, apesar das objeções feitas pelo Pe. P. Synave , parece bem ser autêntico. Se assim fosse, Santo Tomás, no final de sua vida, depois de madura reflexão, teria voltado à afirmação do privilégio que tinha sustentado primeiramente em I Sent., dist. 44, q. 1, a. 3, ad 3, guiado, sem dúvida, pela sua piedade para com a Mãe de Deus. Podem-se também observar outros indícios desse retorno à sua primeira maneira de pensar .
Essa evolução, aliás, não é rara nos grandes teólogos, que afirmam, levados pela Tradição, primeiro um ponto de doutrina sem ver ainda todas as dificuldades; tornam-se depois mais reservados e, finalmente, a reflexão os conduz ao ponto de partida, ao perceberem que os dons de Deus são mais ricos que nos parecem, e que não podemos limitá-los sem justas razões. Como vimos, os argumentos invocados por Santo Tomás não concluem contra o privilégio e até conduzem-nos a ele, quando se tem a idéia explícita da redenção preservadora.
Em seu comentário à Suma Teológica, o Pe. J. M. Vosté, O. P. aceita a interpretação de J. F. Rossi e sustenta também que Santo Tomás, no final de sua vida, voltou, depois de refletir, à afirmação do privilégio que havia expressado no princípio de sua carreira teológica. Pelo menos, é seriamente provável que tenha sido assim.