Category: Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.
Dominicano, autor de livros de teologia, filosofia e espiritualidade, foi um dos grandes espirituais do século XX.
Nesta expressão, “cheia de graça”, trata-se, segundo o significado habitual da Escritura, que se torna cada vez mais explícito no Novo Testamento, da graça propriamente dita, que se distingue realmente da natureza, seja humana ou angélica, como um dom de Deus completamente gratuito, que supera as forças naturais e as exigências de toda natureza criada e mesmo criável. A graça habitual ou santificante faz-nos participar da natureza de Deus ou da sua vida íntima, segundo as palavras de São Pedro: “Jesus Cristo nos deu tão grandes e preciosas promessas, a fim de que por elas vos torneis participantes da natureza divina”. Pela graça, tornamo-nos filhos adotivos de Deus, seus herdeiros e co-herdeiros de Cristofn]Rom 8, 7.; por ela somos “nascidos de Deus”. Dispõe-nos a receber a vida eterna como herança e como recompensa dos méritos, de quem ela é o princípio. É o germe da vida eterna, semen gloriae, diz a Tradição, enquanto nos dispõe desde agora a ver a Deus imediatamente como Ele se vê e a amá-lo como Ele se ama.
Essa graça habitual ou santificante é recebida na essência mesma da nossa alma, como um enxerto sobrenatural que sobreleva a vida, deifica-a. Dela provém, em nossas faculdades, as virtudes infusas, teologais e morais, e também os sete dons do Espírito Santo, quer dizer, tudo o que constitui nosso organismo sobrenatural, que é para nós, em forma de virtudes adquiridas, como uma segunda natureza, de tal maneira que exercitamos conaturalmente os atos sobrenaturais e meritórios das virtudes infusas e dos sete dons. Decorre disso que, pela graça habitual, a Santíssima Trindade habita em nós como num templo, onde é conhecida e amada, onde é quase experimentalmente cognoscível, e conhecida com freqüência, quando por uma inspiração especial se deixa sentir em nós como vida da nossa vida, “mas recebemos o espírito de adoção de filhos, mercê do qual clamamos, dizendo, Abba (Pai)”. O Espírito Santo nos inspira, então, uma afeição filial por Ele e, nesse sentido, “dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus”.
Se desse modo a graça habitual nos faz filhos de Deus, a graça atual ou transitória nos faz agir, seja pelas virtudes infusas, seja pelos dons, ou simultaneamente por ambos, como verdadeiros filhos de Deus. Essa vida nova não é outra que a vida eterna começada, pois a graça habitual e a caridade devem permanecer eternamente.
Essa graça, também chamada vida divina, não é menos gratuita para os anjos que para nós. Como disse Santo Agostinho: “Deus eos creavit, simul in eis condens naturam et largiens gratiam”. Deus, ao criar sua natureza, deu-lhes gratuitamente a graça, à qual sua natureza puramente espiritual, por mais elevada que fosse, não tinha direito algum. Os anjos, assim como nós, poderiam ter sido criados num estado puramente natural, sem esse enxerto divino que origina uma nova vida.
A graça que é tratada nestas palavras do anjo: “Ave, gratia plena” é, portanto, superior às forças naturais e às exigências de todas as naturezas criadas ou criáveis; sendo uma participação da natureza divina, ou da vida íntima de Deus, ela nos faz entrar, propriamente falando, no reino de Deus, imensamente superior aos diversos reinos da natureza, que podem ser chamados mineral, vegetal, animal, humano e mesmo angélico. De tal modo que Santo Tomás pôde dizer: “Mas o bem da graça é, para o indivíduo, melhor que o da natureza, para todo o universo”. O mínimo grau de graça santificante contida na alma de um recém-nascido depois de seu batismo vale mais que todos os bens naturais do universo, e mais que todas as naturezas criadas, inclusive as angélicas. Pois há uma participação da vida íntima de Deus, que é superior também a todos os milagres e outros sinais exteriores da revelação divina ou da santidade dos servos de Deus.
É dessa graça, germe da glória, que se trata nas palavras dirigidas pelo anjo a Maria: “Deus te salve, cheia de graça”, e o anjo teve de ver estupefato que, embora ele possuísse a visão beatífica, a santa virgem que acabava de saudar tinha um grau de graça santificante e de caridade superior ao seu, o grau conveniente para que ela se tornasse, naquele mesmo instante, a digna mãe de Deus.
Maria recebeu, sem dúvida alguma, do Altíssimo, e em toda sua perfeição, os dons naturais da alma e do corpo. Se, mesmo do ponto de vista natural, a alma de Jesus, pessoalmente unida ao Verbo, reúne em si tudo o que há de mais nobre e belo na alma dos maiores artistas, poetas, pensadores e dos homens mais talentosos, a alma de Maria, guardando sempre as proporções, por sua própria natureza, pela perfeição natural de sua inteligência, de sua vontade e de sua sensibilidade, é uma obra-prima do Criador. Ela supera em muito todo o bem que tenhamos podido comprovar nas pessoas melhor dotadas, em sua penetração natural e firmeza de julgamento, força de vontade, equilíbrio e harmonia de suas faculdades superiores e inferiores. Em Maria, pelo fato de ter sido preservada do pecado original e de suas desastrosas conseqüências, da concupiscência e da inclinação ao erro, o corpo não entorpecia a alma, mas lhe era perfeitamente submisso. Se a Providência, ao formar o corpo de um santo, tem em vista a alma que o há de vivificar, ao formar o corpo de Maria, tinha em vista o corpo e a alma santa do Verbo feito carne. Santo Alberto Magno se compraz ao recordar que os Santos Padres diziam que a Virgem Maria, mesmo do ponto de vista natural, reuniu em si a graça de Rebeca, a beleza de Raquel e a doce majestade de Ester; e acrescentam que essa beleza puríssima não se reduzia apenas a ela, senão que elevava sempre as almas para Deus.
Quanto mais perfeitos são os dons naturais, mais mostram a sublimidade da vida invisível da graça que os supera imensamente.
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Ao falarmos da plenitude de graça, devemos notar, finalmente, que esta existe em três graus diferentes: em Cristo, em Maria e nos santos. Santo Tomás o explica em diferentes passagens.
Existe, em primeiro grau, a plenitude absoluta de graça que é própria de Cristo, Salvador da humanidade. Segundo o poder ordinário de Deus, não seria possível criar graça mais elevada e mais completa que a sua. É a fonte sublime e inesgotável de todas as graças que recebe a humanidade inteira depois da queda, e que receberá no transcurso dos tempos; é também a fonte da beatitude dos eleitos, porque Jesus Cristo nos mereceu todos os efeitos de nossa predestinação, como o demonstra muito bem Santo Tomás.
Existe, em segundo grau, a plenitude chamada de superabundância, privilégio especial de Maria, e que se chama assim porque é como um rio espiritual que, há cerca de dois mil anos, se derrama sobre todos os homens.
Existe finalmente a plenitude de suficiência, que é comum a todos os santos, tornando-os capazes de cumprir os atos meritórios, cada vez mais perfeitos, e que os levarão à salvação eterna.
Essas três plenitudes subordinadas têm sido justamente comparadas a uma fonte inesgotável, com o rio que dela emana, e aos canais alimentados por esse rio para irrigar e fertilizar os campos que atravessa, quer dizer, as distintas partes da Igreja Universal no tempo e no espaço.
Esse rio de graças provém de Deus por intermédio do Salvador, segundo a bela imagem bíblica: Rorate coeli desuper et nubes pluant justum. “Derramai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho, e as nuvens façam chover o justo; abra-se a terra, e brote o Salvador”. Depois esse rio de graça sobe para Deus, o oceano de paz, em forma de méritos, orações e sacrifícios.
Para seguir a mesma imagem, a plenitude da fonte não aumenta; a do rio que dela emana, ao contrário, não cessa de crescer na terra. E falando sem metáforas, a plenitude absoluta de graça nunca cresceu em Cristo Nosso Senhor, pois era completamente perfeita desde o primeiro instante de sua concepção, como conseqüência da união pessoal com o Verbo da qual se derivou, desde esse instante, a luz da glória e a visão beatífica, de modo que, como disse o II Concílio de Constantinopla, Cristo não se tornou melhor pelo progresso de seus atos meritórios: “Ex profectu operum non melioratus est”.
A plenitude de superabundância, ao contrário, própria de Maria, não cessou de crescer até sua morte. E por isso os teólogos consideram de ordinário nela: lº, a plenitude inicial; 2º, a plenitude da segunda santificação no instante da concepção do Salvador; 3º, a plenitude final (no momento de sua entrada na glória), sua extensão e superabundância.
Vimos que, pelo mesmo decreto da Encarnação ex Maria Virgine, a Santíssima Virgem Maria foi predestinada primeiro à Maternidade Divina e, como conseqüência, à glória e à graça. Mas há ainda outras razões que provam que a Maternidade Divina excede a plenitude da graça. Vamos expô-las.
Valor de uma dignidade de ordem hipostática
É necessário considerar o fim próprio para o qual a Maternidade Divina foi imediatamente ordenada, pois o valor de uma relação depende do fim para a qual tende e que a especifica, assim como a dignidade do conhecimento divino e do amor divino depende, nos eleitos, da sublimidade de seu objeto, da essência divina conhecida diretamente.
A Maternidade Divina é, por seu fim, de ordem hipostática, que supera a ordem da graça e da glória.
Maria, com efeito, por sua Maternidade Divina, tem uma relação real com o Verbo de Deus feito carne; essa relação se consuma na Pessoa incriada do Verbo encarnado, pois ela é a Mãe de Jesus, que é Deus; a Maternidade Divina não se consuma somente na humanidade de Jesus, mas no próprio Jesus em pessoa; Ele, e não sua humanidade, é o Filho de Maria. E então, como diz Caetano, a Maternidade Divina “alcança as fronteiras da Divindade” e é, por seu fim, de ordem hipostática, ordem da união pessoal da humanidade de Jesus com o Verbo incriado. Isso decorre da própria definição da Maternidade Divina, tal como foi definida no Concílio de Éfeso.
Ora, essa ordem da união hipostática supera imensamente a ordem da graça e a da glória, como esta última supera a ordem da natureza, da natureza humana e até a ordem das naturezas angélicas criadas e criáveis. Se as três ordens citadas por Pascal em seus Pensamentos, a dos corpos, a dos espíritos com suas faculdades naturais às vezes geniais e a da caridade sobrenatural, estão separadas por uma distância infinita, deve-se dizer o mesmo da ordem hipostática com respeito à ordem da graça e da glória, tal como se têm realizado nos maiores santos. “A Terra e seus impérios, o firmamento e suas estrelas não valem o que vale o mais ínfimo pensamento; todos os espíritos juntos (e suas faculdades naturais) não valem o menor pensamento; todos os espíritos juntos (e suas faculdades naturais) não valem o mais ínfimo ato de caridade, que é de uma ordem distinta, completamente sobrenatural”. Da mesma forma, todos os atos de caridade dos maiores santos, homens ou anjos e sua glória no Céu estão imensamente abaixo da união pessoal ou hipostática da humanidade de Jesus com o Verbo. A Maternidade Divina, que se consuma na Pessoa incriada do Verbo feito carne, supera, pois, pelo seu fim, de uma maneira infinita, a graça e a glória de todos os eleitos, e a plenitude de graça e de glória recebida pela própria Virgem Maria.
Santo Tomás diz: “A humanidade de Cristo, por estar unida a Deus, a bem-aventurança dos eleitos, que consiste na posse de Deus, a Virgem Maria, por ser a Mãe de Deus, têm certa dignidade infinita por sua relação com o próprio Deus, e, por esse lado, nada pode ser melhor que elas, pois não pode existir nada melhor que o próprio Deus”. São Boaventura diz também: “Deus pode fazer um mundo maior, mas não pode fazer uma mãe mais perfeita que a Mãe de Deus”.
Como nota o Pe. Hugon, O. P., “A Maternidade Divina é, por natureza, superior à filiação adotiva. Esta não estabelece mais que um parentesco espiritual e místico, mas a Maternidade Divina da Santíssima Virgem estabelece um parentesco de natureza, uma relação de consangüinidade com Jesus Cristo, e de afinidade com toda a Santíssima Trindade. A filiação adotiva não obriga tão estritamente Deus a nosso respeito; a Maternidade Divina impõe a Jesus os deveres de justiça que os filhos, por obrigação natural, têm para com seus pais, e confere a Maria domínio e poder sobre Jesus, pois não é mais que um direito natural intimamente unido à dignidade maternal”.
A Maternidade Divina, por conseguinte, supera todas as graças gratis datae ou carismas, como o são a profecia, o conhecimento dos segredos dos corações, o dom de milagres ou de línguas, porque esses dons, de certo modo externos, são inferiores à graça santificante. Notemos também que a Maternidade Divina não pode ser perdida, enquanto que a graça pode ser perdida aqui na Terra.
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O valor dessa eminente dignidade foi muito bem destacada por Bossuet, quando disse no Sermão sobre a concepção da Santíssima Virgem (próximo ao final do primeiro ponto): “De tal modo Deus amou o mundo ― disse nosso Salvador ― que lhe deu o seu Filho unigênito (Jo 3,16). (Mas) o amor inefável que tinha por vós, ó Maria, fê-lo conceber desígnios muito diferentes em vosso favor. Ordenou que estivesse em vós com a mesma qualidade que a Ele lhe pertence, e para estabelecer convosco uma sociedade eterna, quis que vós fôsseis a Mãe de seu Filho unigênito e ser Ele vosso Pai. Ó prodígio! Ó abismo de caridade! Que pensamento não se perderá na consideração dessas complacências incompreensíveis que Ele teve para convosco; desde que vós estais tão próxima a Ele por esse Filho comum, o nó inviolável de vossa santa aliança, a garantia de vossos afetos mútuos, que vos haveis dado amorosamente um ao outro. Ele, pleno de uma divindade impassível, e vós, para obedecer-lhe, o haveis envolto de uma carne mortal”.
Deus Pai comunicou a seu Filho unigênito a natureza divina; Maria deu-lhe a natureza humana, sujeita à dor e à morte, para nossa redenção; mas é o mesmo Filho único e isso constitui toda a grandeza da maternidade de Maria.
A razão de todas as graças concedidas a Maria
A eminente dignidade da Maternidade Divina manifesta-se ainda sob um novo aspecto, se considerarmos que ela é a razão pela qual a plenitude de graça foi concedida à Santíssima Virgem, e é a medida e o fim; é, portanto, superior a qualquer outra graça.
Se Maria, de fato, desde o primeiro instante, recebeu essa plenitude da graça, foi para que pudesse santamente conceber o Homem-Deus, dizendo com a mais perfeita conformidade seu fiat no dia da Anunciação, apesar de todas as penas e sofrimentos anunciados ao Messias; para que ela o conceba, permanecendo virgem; para que envolva o seu filho dos cuidados mais maternais e mais santos; para que se una a ele como só uma santa mãe pode fazê-lo, com uma perfeita conformidade de vontade, durante sua vida oculta, durante sua vida apostólica e durante sua vida dolorosa; para que diga heroicamente seu segundo fiat ao pé da Cruz, com Ele, por Ele e n'Ele.
Como diz o Pe. Hugon: “A Maternidade Divina exige uma íntima amizade com Deus. É uma lei natural e um mandamento que a mãe ame seu filho e que este ame sua mãe; é necessário, pois, que Maria e seu Filho amem-se mutuamente, e posto que essa maternidade é sobrenatural, requer uma amizade da mesma ordem, e certamente santificante, porque pelo fato de Deus amar uma alma, torna-a amável aos seus olhos e a santifica. Existe, por conseguinte, a mais perfeita conformidade entre a vontade de Maria e a oblação de seu Filho, que foi como a alma do sacrifício da Cruz.
É claro que tal é a razão ou o fim pelo qual lhe foi concedida a plenitude inicial de graça, e depois a plenitude de graça completa ou de glória. É ao mesmo tempo sua medida e, portanto, evidentemente superior. Não será sempre possível deduzir dessa eminente dignidade cada um dos privilégios recebidos por Maria, mas todos, não obstante, derivam-se dela. Se finalmente ela foi predestinada desde toda a eternidade ao mais alto grau de glória junto a Ele, é porque foi predestinada primeiro para ser sua digníssima Mãe, e para sê-lo por toda a eternidade, depois de tê-lo sido no tempo. Quando os santos contemplam no Céu o altíssimo grau de glória de Maria, muito superior ao de todos os anjos, compreendem que o motivo pelo qual foi predestinada é porque foi e continua sendo eternamente a excelsa e digna Mãe de Deus, Mater Creatoris, Mater Salvatoris, sancta Dei Genitrix.
Santo Alberto Magno o afirma em muitas passagens . Os poetas também têm cantado muitas vezes esse mistério; citaremos aqui um dos mais recentes .
O motivo do culto de hiperdulia
A doutrina que acabamos de expor confirma-se ainda por uma última consideração proposta por muitos teólogos.
É em razão da Maternidade Divina e não tanto por sua plenitude de graça que se deve a Maria um culto de hiperdulia, superior ao de todos os santos por eminente que seja seu grau de graça e de glória. Em outras palavras, se o culto de hiperdulia é tributado a Maria, não é porque tenha sido a maior santa, mas porque ela é a Mãe de Deus. Não lhe seria tributado, ainda que tivesse o mesmo grau de glória, sem ter sido predestinada à Maternidade Divina. Santo Tomás ensinou isso formalmente.
Nas litanias da Bem-aventurada Virgem, o primeiro título de glória que se predica é este: Sancta Dei Genitrix; todos os que seguem são típicos e convenientes à Mãe de Deus: Sancta Virgo Virginum, Mater divinae gratiae, Mater purissima, Mater castissima, Mater inviolata, Mater intemerata, Mater admirabilis, Mater boni consilii, etc.
Conseqüências que se deduzem dos princípios enunciados
Decorre do que acabamos de dizer que, pura e simplesmente, simpliciter loquendo, a Maternidade Divina, etiam nude spectata, quer dizer, mesmo tomada isoladamente, é superior à plenitude de graça, seja inicial ou consumada, pois é, por seu fim, de uma ordem superior, de ordem hipostática .
Assim, a alma racional, que é de ordem substancial, mesmo considerada isoladamente, é mais perfeita que suas faculdades superiores, a inteligência e a vontade, pois ela é a razão de ser dessas faculdades, que se derivam dela como meros acidentes e propriedades, para que a alma mesma possa conhecer e querer. A Maternidade Divina, analogamente, mesmo considerada de forma isolada, é a razão da plenitude de graça, e por isso mesmo, superior a ela.
Compreenderemos assim a força da razão pela qual Maria foi predestinada primeiramente para ser a Mãe de Deus antes de sê-lo para o mais alto grau de glória, depois de Cristo. A dignidade de uma relação se mede mais pelo fim ao qual se almeja que por seu fundamento; ora, a Maternidade Divina é relativa à Pessoa do Verbo feito carne, assim, na ordem natural, a mãe de um rei o tem mais próximo a si que o melhor de seus advogados.
Não obstante, desde um ponto de vista secundário, secundum quid, dizem os teólogos, a graça santificante e a visão beatífica são mais perfeitas que a Maternidade Divina, porque a graça habitual santifica formalmente, o que a Maternidade Divina não pode fazer, pois não é mais que uma relação com o Verbo feito carne; e a visão beatífica une imediatamente a inteligência criada dos eleitos à essência divina, sem a intermediação da humanidade de Cristo .
É evidente que, em Cristo, a união hipostática das duas naturezas supera simpliciter, pura e simplesmente, a visão beatífica, ainda que esta lhe acrescente uma nova perfeição na ordem do conhecimento, porque a união hipostática não santifica formalmente. Da mesma maneira, e guardando as proporções, a Maternidade Divina, sendo de ordem hipostática, supera simpliciter, pura e simplesmente, a plenitude de graça e de glória, ainda que estas sejam mais perfeitas secundum quid, de um ponto de vista secundário. A Maternidade Divina, não sendo mais que uma relação real com o Verbo feito carne, não foi suficiente para santificar Maria, mas exige ou postula a plenitude de graça que lhe foi outorgada para que estivesse e continuasse estando sempre à altura de sua excepcional missão. Ela não poderia ser predestinada a ser Mãe de Deus sem ser predestinada a ser sua digna Mãe. Tudo se apóia nessa verdade absolutamente certa e domina toda a Mariologia, da mesma maneira que toda a Cristologia é derivada desta verdade: Jesus é o Filho de Deus.
Pela finalidade de sua Maternidade Divina, que pertence à ordem hipostática, decorre que Maria é superior aos anjos e ao sacerdócio comunicado aos padres por Cristo. Sem dúvida, não tendo recebido o caráter sacerdotal, ela não poderia consagrar como o faz o sacerdote no altar, mas a dignidade eminente de Mãe de Deus é, não obstante, superior ao nosso sacerdócio e ao episcopado, pois é de ordem hipostática. Maria deu-nos a santa Vítima oferecida na Cruz e no altar; deu-nos também o Sumo Sacerdote do sacrifício da Missa, e esteve unida a Ele mais intimamente que ninguém, mais que os estigmatizados e os mártires, ao pé da Cruz.
Desde esse ponto de vista, a ordenação sacerdotal, se tivesse recebido (o que não convinha à sua missão), teria lhe conferido algo inferior ao que exprime o título de Mãe de Deus. E este é o momento de recordar as palavras de Santo Alberto Magno: “Beata Virgo non est assumpta in ministerium a Domino, sed in consortium et adjutorium juxta illud: Faciamus ei adjutorium simile sibi” . Maria não foi escolhida para ser ministro do Salvador, mas para lhe ser associada e para ajudá-lo na obra da Redenção.
Essa divina maternidade é, como se ensina comumente, o fundamento, a raiz e a fonte de todos os privilégios e graças de Maria, seja que eles a precedam como disposição, seja que a acompanhem ou sigam-na como conseqüência.
É em vista dessa Maternidade Divina que Maria é a Imaculada Conceição, preservada do pecado original pelos méritos futuros de seu Filho; ela foi resgatada por Ele da maneira mais perfeita possível: não apenas curada, mas preservada da mancha original antes de ter sido conspurcada nem por um instante. Por essa Maternidade Divina, recebeu a plenitude inicial de graça que não deveria cessar de crescer nela até sua perfeita plenitude. É em vista dessa divina maternidade que ela foi isenta de toda falta pessoal, mesmo venial, e de toda imperfeição, pois estava sempre pronta a seguir as inspirações divinas, mesmo dadas por meio de simples conselho.
A eminente dignidade de Mãe de Deus eleva-a, pois, acima de todos os santos reunidos. Pensemos que Maria teve a autoridade de uma mãe sobre o Verbo de Deus feito carne e contribuiu, desse modo, não para dar-lhe a visão beatífica, nem sua ciência infusa, mas para formar progressivamente sua ciência adquirida, que esclarecia a prudência adquirida com a qual Ele realizava os diversos atos proporcionados às fases de sua vida infantil e oculta. Nesse sentido, o Verbo feito carne esteve submetido à Maria com os mais profundos sentimentos de respeito e amor. Como não teremos nós esses sentimentos para com a Mãe de nosso Deus?
Num dos mais belos livros escritos sobre Maria, o Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, diz São Luís Maria Grignion de Montfort: “Deus, feito homem, encontrou sua liberdade em se ver aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou a sua força em se deixar levar por essa Virgem santa; achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo, para revelá-los somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo dessa Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até à morte, a que ela deveria assistir, para fazerem ambos o mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão à vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós... [E, finalmente,] é certo que Nosso Senhor continua a ser, no Céu, tão Filho de Maria como o foi na Terra”.
Tal é o primeiro motivo da devoção do culto de hiperdulia, que devemos a ela. E por isso, toda a Tradição, e muito particularmente os Concílios de Éfeso e de Constantinopla, preocuparam-se acima de tudo em proclamar, com respeito à Virgem Maria, que ela é a Mãe de Deus, uma nova afirmação, contra o Nestorianismo, da divindade de Jesus.
Observemos, antes de terminar este capítulo, que para muitas almas espirituais e interiores é tão evidente que a prerrogativa de Mãe de Deus é o primeiro título glorioso de Maria, o qual encerra, explica e requer todos os demais títulos, que não podem compreender que se dispute sobre coisas tão evidentes. Parece-lhes claro que, se tivéssemos podido formar a nossa mãe, de quais dons não a teríamos enriquecido, se esses dons tivessem estado à nossa disposição.
Santo Tomás contenta-se em dizer: “Maria, para ser a digna Mãe de Deus feito carne, teve de receber a plenitude da graça”. E Bossuet diz o mesmo, no Sermão sobre a Compaixão da Santíssima Virgem (1º Ponto, ao final): “Como a providência de Deus dispõe todas as coisas com precisão admirável, era necessário que imprimisse no coração da Santíssima Virgem uma afeição que excedesse todo o natural, e que chegasse até o último grau da graça, a fim de que tivesse, para com seu Filho, sentimentos dignos de uma mãe de Deus, e dignos de um homem Deus”.
Vejamos qual foi o objeto primeiro da predestinação da Santíssima Virgem e em que sentido foi absolutamente gratuita.
Maria foi predestinada à Maternidade Divina antes de sê-lo à plenitude de glória e de graça.
Esse ponto da doutrina pode parecer muito elevado para ser exposto no início desta obra, mas é relativamente fácil de compreender, está geralmente admitido, ao menos implicitamente, e ilumina desde o alto tudo o que diremos na seqüência.
Como efetivamente o disse S.S. o Papa Pio IX, em sua bula Ineffabilis Deus, ao proclamar o dogma da Imaculada Conceição, por um mesmo decreto eterno Deus predestinou Jesus à filiação divina natural, imensamente superior à filiação divina adotiva, e Maria para ser a Mãe de Deus; porque a predestinação eterna de Cristo influi não somente na Encarnação, mas também nas circunstâncias em que se deveria realizar, em tal tempo e em tal lugar, em particular sobre isto: “Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine”, como diz o símbolo Niceno-Constantinopolitano. Por um mesmo decreto eterno, Jesus foi predestinado para ser o Filho do Altíssimo e Maria para ser a Mãe de Deus.
Daqui decorre que, como Jesus foi predestinado à filiação divina natural antes (in signo priori) de sê-lo ao grau mais alto de glória, e depois à plenitude de graça, o germe da glória, da mesma maneira a Bem-aventurada Virgem Maria foi predestinada primeiro à Maternidade Divina e, como conseqüência, a um grau muito alto de glória celeste, e depois à plenitude da graça, para que fosse plenamente digna de sua missão de Mãe do Salvador, tanto que, como Mãe, deveria estar mais intimamente associada que ninguém à obra redentora de seu Filho, com a conformidade mais absoluta de vontade. Isso diz, em substância, S.S. o Papa Pio IX na Ineffabilis Deus .
E, pois, como em Jesus a dignidade de Filho de Deus, ou do Verbo feito carne, o eleva imensamente sobre a plenitude de graça criada, de caridade e da glória que recebeu sua santa alma como conseqüência da Encarnação ou da união hipostática das duas naturezas n’Ele, da mesma maneira em Maria, a dignidade de Mãe de Deus a eleva sobre a plenitude de graça, de caridade, e até sobre a plenitude de glória celeste que recebeu em virtude da sua predestinação excepcional a essa divina maternidade.
Segundo a doutrina admitida por Santo Tomás e muitos outros teólogos sobre o motivo da Encarnação (para a redenção da humanidade), a predestinação de Maria para ser Mãe de Deus depende da previsão e permissão do pecado de Adão. E essa falta foi permitida por Deus para o maior bem, como explica Santo Tomás, para que “ali onde abundou o pecado, superabundou a graça”, pela Encarnação redentora .
Como Deus quer o corpo do homem para a alma, e esta para vivificar o corpo, de maneira que não seria criada se o corpo não estivesse disposto para recebê-la, da mesma maneira Deus permitiu o pecado para repará-lo por esse grande bem que é a Encarnação redentora, e desejou-a para a regeneração das almas, de tal forma que, no plano atual da Providência, não teria tido lugar a Encarnação sem ter existido o pecado. Mas, nesse plano, tudo fica subordinado a Cristo e a sua santíssima Mãe, e é sempre muito certo dizer com São Paulo: “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus”.
A grandeza de Cristo e a de sua Mãe não ficam em nada diminuídas.
Maria foi, portanto, predestinada primeiro à Maternidade Divina. Essa dignidade aparece ainda maior se notarmos que a Santíssima Virgem, que pôde merecer a glória ou o Céu, não pôde merecer a Encarnação nem a Maternidade Divina, porque a Encarnação e essa divina maternidade superam a esfera do mérito dos justos, que está ordenada à visão beatífica como a seu fim último.
Resta ainda uma razão verdadeiramente apodítica: o princípio do mérito não pode ser merecido; ora, a Encarnação é, depois do pecado original, o princípio supremo de todas as graças e até mesmo de todos os méritos dos justos; não pode ser, portanto, merecida. Pela mesma razão, Maria não pôde merecer nem de condigno nem de congruo proprie sua divina maternidade, pois isso teria sido merecer a Encarnação.
Como diz muito exatamente Santo Tomás, o que Maria pôde merecer, pela plenitude inicial de graça que havia recebido gratuitamente pelos méritos futuros de seu Filho, foi o aumento da caridade e um grau superior de pureza e santidade que era conveniente para que fosse a digna Mãe de Deus . E, como diz Santo Tomás em outro lugar: “Maria não mereceu a Encarnação (nem a Maternidade Divina), mas o decreto da Encarnação estando pressuposto, ela o mereceu com mérito de conveniência que esta se fizesse por ela”, quer dizer, mereceu o grau de santidade que convinha à Mãe de Deus, grau que nenhuma outra virgem mereceu de fato e não poderá merecer, porque nenhuma outra recebeu nem receberá a plenitude inicial de graça e de caridade que foi o princípio de tal mérito.
Essa primeira razão da eminente dignidade da Mãe de Deus, derivada de sua predestinação a esse título, o mais elevado entre todos, é de uma clareza surpreendente. Contém três verdades que são como estrelas de primeira magnitude no Céu da teologia: 1ª, por um mesmo decreto, Deus predestinou Jesus à filiação divina natural e Maria à Maternidade Divina; 2ª, Maria foi predestinada a essa divina maternidade antes de sê-lo à glória e a um alto grau de glória e de graça, que Deus quis para ela, para que fosse a digna Mãe de Deus; 3ª, embora Maria tenha merecido de condigno, ou de maneira condigna, o Céu, não pôde merecer a Encarnação nem a Maternidade Divina, porque esta ultrapassa absolutamente a esfera e o fim último do mérito dos justos que somente está ordenado para a vida eterna dos eleitos.
Muitos teólogos consideram essa razão como concludente; contém virtual e ainda implicitamente as razões que exporemos no artigo seguinte e que não são mais que seu desenvolvimento, como a história de um predestinado é o desenvolvimento de sua eterna predestinação.
A gratuidade da predestinação de Maria
Algumas considerações sobre a eminente predestinação de Maria permitirão compreender melhor a gratuidade.
É preciso notar que Cristo é, entre todos os homens, o primeiro predestinado, pois sua predestinação é o exemplar e a causa da nossa; ele nos mereceu de fato todos os efeitos da nossa predestinação, como o demonstra Santo Tomás.
Ora, Cristo, enquanto homem, foi predestinado, acabamos de dizer, à filiação divina natural, imensamente superior à filiação adotiva, antes de ter sido à glória e à graça. Sua predestinação primeira não é outra, certamente, que o próprio decreto da Encarnação, e esse decreto eterno, como vimos, abarca não só a Encarnação abstratamente considerada, ou por assim dizer, a substância da Encarnação, mas também as circunstâncias da Encarnação que deveria realizar-se hic et nunc, aqui e agora, de modo que o Verbo deveria encarnar-se no seio da Virgem Maria, “desposada com um varão, que se chamava José, da casa de Davi”.
A predestinação de Jesus à filiação divina natural implica, pois, a de Maria à Maternidade Divina. Certamente, a predestinação de Maria a essa divina maternidade é manifestamente anterior a sua predestinação à glória, uma vez que Cristo é o primeiro dos predestinados. Com isso se confirma grandemente o que dizíamos nas páginas anteriores.
É evidente também que a predestinação de Maria, como a de Cristo, é gratuita. É claro, com efeito, que Jesus foi predestinado à filiação divina natural independentemente de seus méritos, porque seus méritos pressupõem sua Pessoa divina de Filho de Deus, e Jesus, como homem, foi precisamente predestinado a ser o Filho de Deus por natureza. Esse é o princípio de todos os seus méritos e esse princípio não pôde ser merecido; seria, ao mesmo tempo, causa e efeito, sob o mesmo aspecto, e se causaria a si mesmo.
Igualmente, a predestinação de Maria à Maternidade Divina é gratuita ou independente dos méritos da Santíssima Virgem, porque, como vimos, ela não pôde merecer essa divina maternidade, pois teria sido merecer a própria Encarnação, que é o princípio fundamental de todos os méritos dos homens após o pecado original. Por isso diz Maria no Magnificat: “Minha alma glorifica o Senhor... porque se dignou olhar a pequenez (ou humilde condição) de sua serva”.
Também a predestinação de Maria à glória e à graça é manifestamente gratuita, como conseqüência moralmente necessária de sua predestinação inteiramente gratuita à Maternidade Divina. E, não obstante, Maria mereceu o Céu, pois foi predestinada a obtê-lo por seus méritos.
Vê-se, pois, a ordem do plano divino: 1º, Deus quis manifestar sua bondade; 2º, Ele quis a Cristo e sua glória de Redentor, o que supõe a permissão simultânea do pecado original, para o maior bem; 3º, quis a Santíssima Virgem Maria como Mãe de Deus Redentor; 4º, quis, como conseqüência, a glória de Maria; 5º, quis a graça e os méritos pelos quais ela obteria essa glória; 6º, quis a glória e a graça dos outros eleitos.
A predestinação de Maria aparece, assim, em toda a sua elevação. E compreende-se porque a Igreja lhe aplica, por extensão, estas palavras do livro dos Provérbios: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma. Desde a eternidade fui constituída, e desde o princípio, antes que a Terra fosse criada. Ainda não havia os abismos, e eu estava já concebida; ainda as fontes das águas não tinham brotado; ainda se não tinham assentado os montes sobre a sua pesada massa; antes de haver outeiros, eu já tinha nascido. Ainda ele não tinha criado a Terra nem os rios, nem os eixos do mundo. Quando ele preparava os Céus, eu estava presente; quando, por uma lei inviolável, encerrava os abismos dentro dos seus limites; quando firmava lá no alto a região etérea, e quando equilibrava as fontes das águas; quando circunscrivia ao mar o seu termo, e punha lei às águas, para que não passassem os seus limites; quando assentava os fundamentos da Terra, eu estava com ele, regulando todas as coisas; e cada dia me deleitava, brincando continuamente diante dele, brincando sobre o globo da Terra, e achando as minhas delícias em estar com os filhos dos homens. Agora, pois, filhos, ouvi-me: Bem-aventurados os que guardam os meus caminhos. Ouvi as minhas instruções, e sede sábios, e não queirais rejeitá-las. Bem-aventurado o homem que me ouve, e que vela todos os dias à entrada da minha casa, e que se conserva à porta da minha casa. Aquele que me achar, achará a vida, e alcançará do Senhor a salvação”.
Maria foi misteriosamente anunciada como aquela que triunfará da serpente infernal, como a Virgem que gerará o Emanuel, e foi figurada pela Arca da Aliança, pela casa de ouro, pela torre de marfim. Todos esses testemunhos demonstram que foi predestinada primeiro a ser a Mãe de Deus, a Mãe do Redentor; e a razão pela qual a plenitude da glória e da graça lhe foi conferida, foi precisamente para que fosse a digna Mãe de Deus, “ut redderetur idonea ad hoc quod esset mater Christi”, como disse Santo Tomás.
Esse ponto da doutrina parecia-lhe muito certo, pois disse: “A Bem-aventurada Virgem Maria aproximou-se mais que ninguém da humanidade de Cristo, uma vez que ela recebeu sua natureza humana. E por isso Maria deveria receber de Cristo uma plenitude de graça que ultrapassa a dos demais santos”.
Pio IX fala da mesma maneira na bula Ineffabilis Deus: “Deus, desde o princípio e antes de todos os séculos, escolheu e preparou para seu Filho unigênito a Mãe pela qual haveria de nascer, ao encarnar-se na ditosa plenitude dos tempos; amou-a mais que todas as criaturas, prae creaturis universis, e com amor tal, que colocou nela, de modo especial, todas as suas complacências. E por isso cumulou-a tão maravilhosamente com os tesouros de sua divindade, mais que a todos os espíritos angélicos, mais que a todos os santos, com a abundância de todos os dons celestiais, e foi sempre isenta completamente de todo pecado e, bela e perfeita, apareceu com tal plenitude de inocência e de santidade que não se pode conceber maior, excetuando a de Deus, e nenhum entendimento que não seja o do próprio Deus, pode medir tamanha grandeza”.
Citamos esse texto antes em latim e mais longamente no cap. II, art. IV.
PRÓLOGO
Deus, humilium celsitudo...
Ó Deus, grandeza dos humildes, revelai-nos a humildade de Maria proporcionada à elevação de sua caridade.
Nosso propósito, neste livro, não é outro que expor as grandes doutrinas da Mariologia em sua relação com nossa vida interior. Ao escrevê-lo, comprovamos, em muitíssimas das mais belas teses, que freqüentemente o teólogo, num primeiro período de sua vida, inclina-se a elas por um sentimento de piedade e de admiração; num segundo período, ao dar-se conta de certas dificuldades e das dúvidas de alguns autores, é menos categórico. Num terceiro período, se tiver tempo e oportunidade de aprofundar-se nessas teses, sob seu duplo aspecto especulativo e positivo, volta ao seu primeiro ponto de vista, não só por um sentimento de piedade e de admiração, mas com conhecimento de causa, ao perceber, pelos testemunhos da Tradição e pela profundidade das razões teológicas geralmente aduzidas, que as coisas divinas e particularmente as graças de Maria são mais ricas do que se pensa, e então o teólogo as afirma, não só porque são belas e geralmente admitidas, mas porque são verdadeiras. Se as obras-primas do pensamento humano em literatura, pintura ou música encerram tesouros inesperados, o mesmo ocorre, com muito mais razão, com as obras-primas de Deus na ordem da natureza e muitíssimo mais na ordem da graça, sobretudo se estas últimas têm relação imediata com a ordem hipostática, formada pelo próprio mistério da Encarnação do Verbo.
Pareceu-nos que esses três períodos assaz freqüentes na evolução do pensamento dos teólogos podem ser apontados no progresso do pensamento de Santo Tomás com respeito à Imaculada Conceição.
Esses três períodos, ademais, não precisam de analogia com outros três, muito parecidos do ponto de vista afetivo. Tem-se freqüentemente assinalado que vem primeiramente o período da devoção sensível ao Sagrado Coração ou à Santíssima Virgem, por exemplo; depois, o da aridez da sensibilidade e, por fim, o da devoção espiritual perfeita, que tem suas raízes na sensibilidade; encontra-se então a devoção sensível, mas de uma maneira completamente diferente da primeira fase, na qual ela detinha-se demasiadamente, e onde a alma não estava desprendida completamente dos sentidos.
Que o Senhor se digne fazer compreender aos leitores deste livro o que deve ser esse progresso espiritual, pois nisso somente pretendo deixar entrever a grandeza da Mãe de Deus e de todos os homens.
Não expomos aqui opiniões particulares, mas procuramos destacar a doutrina mais comumente admitida entre os teólogos, principalmente tomistas, esclarecendo-a o mais possível, baseando-nos nos princípios formulados por Santo Tomás.
Colocaremos particular atenção na propriedade dos termos, evitando o mais possível a metáfora, freqüentemente demasiado empregada ao tratar da Santíssima Virgem. A bibliografia principal será citada à medida que se vão tratando as questões.
réginald garrigou-lagrange, o. p.
professor de dogma e de teologia mística no angelicum, roma
A
MÃE DO SALVADOR
E
NOSSA VIDA INTERIOR
Mariologia
Tradução
Ricardo José Bellei
fr. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P.
Em outro momento, disséramos porque devíamos nos confiar e abandonar à Providência: por causa de sua sabedoria e bondade, temos de sempre nos dirigir a ela, de corpo e alma, sob a condição do cumprimento do deveres cotidianos e da lembrança de que, se permanecermos fiéis nas pequenas coisas, obteremos a graça para o sermos nas grandes.
Vejamos agora como devemos nos confiar e abandonar à Providência, segundo a natureza dos acontecimentos que dependem ou não da vontade humana, do espírito desse abandono e das virtudes em que se deve inspirar.
DOS DIFERENTES MODOS DE SE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA
SEGUNDO A NATUREZA DOS ACONTECIMENTOS
Para entender esta doutrina da santa indiferença, convém notar, como amiúde o fazem os autores espirituais, que o abandono não se deve exercer do mesmo modo em face dos acontecimentos que não dependem da vontade humana, das injustiças dos homens e das faltas e suas conseqüências.
Caso sejam fatos que não dependam da vontade humana, como acidentes de impossível previsão, doenças incuráveis, o abandono nunca seria demais. Seria inútil a resistência, e só serviria para nos infelicitar; por sua vez, a aceitação em espírito de fé, confiança e amor conferirá grandes méritos a esses sofrimentos inevitáveis
. Em circunstâncias dolorosas, cada vez que se diga fiat, haverá novos méritos; a verdadeira provação tornar-se-á santificante. Mais ainda, no abandono lucraremos as provações possíveis, que talvez não se abatam sobre nós, como lucrou Abraão ao se preparar com perfeito abandono para a imolação do filho, a qual o Senhor depois não mais exigiu. A prática do abandono modifica as provações atuais ou futuras em meios de santificação, e tanto mais quanto for tal prática inspirada por um imenso amor a Deus.
Caso sejam sofrimentos provindos da injustiça dos homens, da malícia, dos maus atos, das calúnias, que fazer? Falando acerca das injúrias, das admoestações imerecidas e afrontas, das detrações que atingem nossa pessoa, diz São Tomás que é mister estar preparado para suportá-las com paciência, segundo as palavras de Nosso Senhor: “Se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt. 5, 39). Algumas vezes, acrescenta ele, convém responder, seja pelo bem de quem insulta, para reprimir sua audácia, seja para evitar o escândalo que poderia nascer das detrações ou calúnias. Se acreditamos no dever da resposta e assim no da resistência, façamo-lo recomendando-nos ao Senhor para a felicidade da empresa.
Em outras palavras, devemos lamentar e reprovar tais injustiças, não porque ferem o amor-próprio ou o orgulho, mas porque são ofensa a Deus e comprometem a salvação de culpados e escandalizados. No que respeita a nós, devemos vislumbrar na humana injustiça a justiça divina que nos deu ocasião de expiar outras faltas, reais, que ninguém nos reprova. Convém considerar nessa provação a misericórdia divina, que por isso quisera nos separar das criaturas, livrar das afeições desordenadas, do orgulho, da tibieza, defrontando-nos com a necessidade premente de recorrer à oração de súplica fervorosa. Por vezes, as injustiças são, no ponto de vista espiritual, como cortes de bisturi dolorosíssimos, mas libertadores. Os sofrimentos causados devem mostrar o preço da justiça verdadeira, para nos inclinar não apenas a praticá-la em face do próximo, mas engendrar a beatitude nos que tem sede e fome de justiça e serão saciados – como consta no Evangelho.
O desprezo dos homens, em lugar de produzir a perturbação ou amargura, pode ser grandemente salutar, e revelar a vaidade da glória humana, em contraste com a beleza da glória divina, como bem entenderam os santos. Esse é o caminho que leva à verdadeira humildade, e faz aceitar e amar o ser tratado como pessoa digna de desprezo.
Finalmente, caso sejam inconvenientes de outros gêneros, resultados não da alheia injustiça contra nós, mas de nossas próprias faltas, imprudências ou fraquezas, que fazer?
Dentre as faltas e suas conseqüências, há de se distinguir o que existe de desordenado, de culpável e de humilhação salutar. A despeito do que diga o amor-próprio, não saberíamos penitenciar o bastante o desregramento da alma como injúria feita contra Deus e contra a mesma alma, não raro com prejuízo da alma do próximo. Quanto à humilhação salutar que daí resulta, devemos aceitá-la com total abandono, como se diz no Salmo 118, 71-75: “Bonum mihi, quia humiliasti me, Domine, ut discam justificationes tuas... Cognovi, Domine, quia aequitas judicia tua, et in veritate tua humiliasti me... – Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos. Melhor é para mim a lei da tua boca do que milhares de outro ou prata. As tuas mãos me fizeram e me formaram; dá-me inteligência para entender os teus mandamentos. Os que te temem alegraram-se quando me viram, porque tenho esperado na tua palavra. Bem sei eu, ó Senhor, que os teus juízos são justos, e que segundo a tua fidelidade, me afligiste”.
A humilhação que resulta das faltas é o verdadeiro remédio contra a estima exagerada de nós mesmos, estima conservada malgrado o desapreço ou desprezo que outrem nos manifesta. Sob a humilhação que vem de fora, podemos endurecer por orgulho, queimar-nos o incenso que nos é recusado. É uma das formas mais sutis e perigosas do amor-próprio e do orgulho. Quer corrigir-nos a misericórdia divina, por meio da humilhação oriunda das próprias faltas; em sua bondade, ele as faz se disputarem contra si, de modo a avançarmos; deste modo, enquanto nos aplicamos, é forçoso aceitar as humilhações com abandono perfeito. Bonum mihi, quia humiliasti me, Domine... Esta é a via que conduz à prática da palavra profunda da Imitação, tão fecunda para quem realmente a compreende. Amare nesciri et pro nihilo reputari: Amar ser ignorado e reputado como nada. Há de se viver dessa doutrina, segundo a natureza dos acontecimentos, dependam eles ou não de nós.
COMO SE DEVE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA?
Como dizem os quietistas, seria este um espírito que amesquinha a esperança de salvação, sob pretexto de alta perfeição?
Muito ao contrário, deve este ser um grande espírito de fé, de confiança e de amor.
A vontade de Deus, traduzida em seus mandamentos, é de que esperemos nele, obrando com confiança a nossa salvação, quaisquer que sejam os obstáculos; essa vontade está no domínio da obediência, e não no do abandono. A vontade de abandono respeita ao bel prazer da vontade de Deus, com relação ao futuro incerto e aos fatos que acontecem diariamente no curso da vida, como a saúde, a doença, o sucesso e os infortúnios.
Sob o pretexto da perfeição, sacrificar a salvação, a beatitude eterna, seria algo absolutamente contrário à inclinação natural à felicidade, inclinação que, semelhante à nossa natureza, vem de Deus. Seria contrário à esperança cristã, não apenas àquela dos fiéis, mas a dos santos que, durante as maiores provações, heroicamente esperaram “contra toda esperança humana”, segundo aquilo de São Paulo, quando tudo parecia perdido. Enfim, tal sacrifício da beatitude eterna seria contrária a mesma caridade cristã, que nos faz amar a Deus por si mesmo, e desejá-lo possuir para glorificá-lo pela eternidade.
A inclinação natural, que vem de Deus e nos faz desejar a felicidade, não é desordenada, pois já ela impulsiona o amar a Deus, soberano bem, mais que a nós mesmos. Demonstrou-o São Tomás: Assim, disse ele, no organismo a mão está naturalmente inclinada para amar o todo acima de si, e caso seja necessário, para se sacrificar. Assim a galinha, por instinto, junta os pintinhos sob as asas, como disse Nosso Senhor, e caso seja necessário, se sacrifica para preservá-los do gavião; porque ama inconscientemente o bem da espécie, mais que a si mesma. Essa inclinação natural existe no homem, sob uma forma superior. Amando o bem do que é superior em si, o homem ama mais ainda o Criador; cessar de querer a perfeição e a salvação é desviar-se de Deus. Não há como sacrificar o desejo de salvação ou de beatitude eterna, sob o pretexto de alta perfeição, como pensaram os quietistas.
Longe disso, o abandono a Deus é exercício excelente das três virtudes teologais, da fé, da esperança e da caridade, por assim dizer mescladas uma nas outras.
É verdade afirmar que Deus purifica o desejo de salvação, o amor-próprio que nele se mescla, por meio das incertezas que ele permite nos acometam, obrigando-nos a amá-lo mais à puridade.
É preciso abandonar-se a Deus com espírito de fé, acreditando que, como diz São Paulo (Rm. 8, 28), tudo concorre para o bem na vida daqueles que amam a Deus e que perseveram no seu amor. Este ato de fé é o mesmo do santo homem Jó, que ao ficar privado dos bens e dos filhos, permaneceu submisso a Deus, ao declarar: O Senhor deu, o Senhor tirou, que seja louvado o nome do Senhor (Jó 1, 21).
Foi desta forma que Abraão preparou-se para obedecer a Deus, que lhe ordenava a imolação do filho; e foi com grande fé e boa vontade que abandonava o devir de sua raça à vontade divina. Recorda-o São Paulo, ao escrever na Epístola aos Hebreus 11, 17: “Pela fé ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado; sim, aquele que recebera as promessas ofereceu o seu unigênito. Sendo-lhe dito: Em Isaque será chamada a tua descendência, considerou que Deus era poderoso para até dentre os mortos o ressuscitar”.
Claro, nossas provações são bem menores, apesar de parecer às vezes pesadas, por causa da fraqueza.
Pelo menos, a exemplo dos santos, acreditamos que o Senhor em tudo obra o bem, seja enviando a humilhação e a secura, seja nos cumulando de honrarias e consolações. Como nota o pe. Piny, não há fé maior e mais viva do que acreditar que Deus dispõe tudo para o bem das almas, mesmo que pareça destruí-las, e lhes desfazer os melhores desejos; mesmo que permita a calúnia, a degradação irreversível da saúde ou coisas ainda mais dolorosas. Eis uma grande fé, pois é acreditar no que parece menos crível: que Deus eleva ao rebaixar; e não somente de modo abstrato e teórico, senão que de modo prático e vivido. É experimentar o que diz o Evangelho: “Quem se eleva (como o fariseu) será humilhado; quem se humilha (como o publicano) será elevado” (Lc. 18, 14). É viver a palavra do Magnificat: “Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles; esurientes implevit bonis, et divites dimisit inanes – O Senhor abateu os orgulhosos, e elevou os humildes; encheude bens os famintos, e os ricos despediu-os com as mãos vazias” (Lc. 1, 52). Devemos todos ser pequenos pela humildade, e famintos dum vivo desejo pela verdade divina, que é o verdadeiro pão da alma.
Cumprindo os deveres cotidianos, devemos nos abandonar ao Senhor com espírito varonil de fé. É mister fazê-lo com confiança filial em sua paternal bondade. A confiança (fiducia ou confidentia) é, afirma São Tomás, a firme ou forte esperança que vem da grande fé na bondade de Deus, autor da salvação. O motivo formal da esperança é a bondade de Deus, sempre caridosa, segundo as promessas, Deus auxilians.
“Bem-aventurado, cantam os salmos, os que confiam no Senhor” (Sl. 2, 12). “Os que confiam nele são como a montanha de Sião; ela não se abala, porque permanece sempre sobre sua base” (Sl. 124, 1). “Conserva-me, Senhor, porque espero em vós” (Sl. 15, 1). “Vós sois o meu refúgio, jamais serei confundido” (Sl. 30, 1).
Escrevendo sobre Abraão, que mau-grado a idade avançadíssima, acreditou na promessa divina, de que se tornaria pai de inumeráveis nações, diz São Paulo (Rm. 40 18): “Em esperança, creu contra toda esperança; ...não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo de que o que ele tinha prometido também era poderoso para fazer”.
De igual modo, cumprindo nosso dever cotidiano, devemos esperar de Nosso Senhor a realização de sua palavra: “As minhas ovelhas conhecem a minha voz, e eu conheço-as, e elas me seguem... ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo. 10, 28). Como nota o pe. Piny: depois de cumprir com siso o dever, o abandonar-se confiadamente nas mãos do Senhor é ser de fato ovelha. Aquiescer sempre com suas ordens; rezar com amor para que tenha piedade de nós; arrojar-se confiante nos braços da misericórdia com faltas e remorsos – não é a melhor forma de escutar a voz do Bom Pastor? Depor em seu seio todos os temores do passado e do futuro, num santo abandono que, longe de se opor à esperança, constitui-se em sacratíssima confiança filial, unida ao amor purificante.
Consiste o amor puríssimo no alimentar-se da vontade de Deus, a exemplo de Nosso Senhor, que disse: O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e de cumprir sua obra” (Jo. 4, 34). “Não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou” (Jo. 5, 30). “Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade” (Jo. 6, 38). Não existe modo mais nobre, mais perfeito, mais puro de amar a Deus, senão fazer da divina vontade a minha, cumprindo sua vontade positiva e abandonando-se em seguida a seu bel prazer. Para as almas que seguem esse caminho. Deus é tudo; no final, podem afirmar: Deus meus et omnia. Deus é o centro, e só nele estão em paz, ao submeter todas as aspirações a seu bel prazer, ao aceitar tranqüilamente tudo que ele faz. Nos momentos mais difíceis, Santa Catarina de Sena recordava-se desta palavra do Mestre: “Pensa em mim, que eu pensarei em ti”.
Raras são almas que chegam a tal perfeição. Mas é mister tentar. São Francisco de Sales escreve: “Nosso Senhor ama com amor delicadíssimo aqueles felizes que se abandonam à divina providência sem divagar em considerações acerca da natureza, aproveitável ou danosa, dos efeitos dessa providência; estão certos de que nada se enviaria do amantíssimo coração paternal, nem que tal seria permitido acontecer, de que não lucrassem o bem e a utilidade, uma vez que depositamos nele toda a confiança... Quando (no cumprimento do dever cotidiano) nos abandonamos de todo à providência divina, Nosso Senhor cuida de tudo e nos conduz... A alma está junto dele como um menino junto à mãe; quando ela o põe no chão para caminhar, ele o faz até que sua mãe o pegue novamente no colo; quando ela o quer carregar, ele se larga em seus braços: não diz nada nem pensa para onde vão, mas se deixa levar ou conduzir para onde praz à sua mãe. Igualmente para esta alma, que ama a vontade do bel prazer de Deus em tudo o que lhe acontece, e se deixa levar, e não obstante caminha, cumprindo denodadamente o que é da vontade de Deus positiva.” A exemplo de Nosso Senhor, pode dizer verdadeiramente: “O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai”; é aí que ela encontra a paz, aquela paz que já mora em nós, como vida eterna começada, “inchoatio vitae aeternae”.
La Vie Spirituelle Septembre 1931 n°143
Tradução: Permanência
Fonte: www.salve-regina.com
O índice bibliográfico que apresentamos abaixo, tirado da obra de R. Garrigou-Lagrange, O. P., « Les Trois Ages de la Vie Interieure », constitui um poderoso recurso ao estudante de teologia ascética e mística da nossa Igreja. Sua leitura, por si só, já é um programa de estudo feliz, por proporcionar um panorama da história e do progresso do pensamento católico na ciência da santidade, além da divisão dos nossos autores segundo as diversas famílias espirituais que, dentro da Igreja, formularam o mesmo saber e contaram a mesma experiência do « único necessário » segundo estilos diversos, mas compatíveis com a unidade de Deus e dos caminhos que a Ele conduzem.
MISTÉRIOS GOZOSOS
1. — A ANUNCIAÇÃO
"Ave, gratia plena" (Lc 1, 28). Desde o instante de sua concepção imaculada, Maria recebeu a graça com tamanha plenitude inicial, que excedeu a de todos os santos e anjos reunidos, como um único diamante vale mais do que um punhado de outras pedras preciosas; e como um fundador de Ordem é superior a seus filhos pela inspiração especial que recebeu. Esta plenitude de fé, de esperança, de caridade, que, em Maria, pelos seus méritos, não cessou de crescer, lhe foi dada em virtude de sua missão, única no mundo, de mãe de Deus; em virtude de sua maternidade divina, que ultrapassa a ordem da graça e atinge, de um certo modo, a ordem hipostática, constituída pela união pessoal da humanidade de Jesus ao Verbo de Deus. É este mistério da Encarnação aqui anunciado a Maria. Sob a luz de Deus ela diz seu Fiat com uma grande fé, uma grande paz e também com uma grande coragem, pois pressente para seu Filho os sofrimentos anunciados pelos profetas; e serão seus também os sofrimentos de seu Filho. Depois deste Fiat, no momento em que se realiza o mistério da Encarnação, a vinda do Verbo aumenta consideravelmente, em Maria, a plenitude inicial de caridade; assim, a Virgem participa, mais do que ninguém jamais participará, dos efeitos que produz na santa alma do Cristo a plenitude ainda superior, que ela recebe no momento mesmo da Encarnação. O Verbo se encarna para nos salvar, morrendo por nós na cruz; na sua santa alma e na alma de Maria a plenitude de graça produz então dois efeitos aparentemente contraditórios mas intimamente unidos, a mais profunda paz que deverá irradiar-se sobre nós, e um desejo da Cruz que se revelará mais e mais até a hora do Consummatum est.
O progresso espiritual é antes de tudo o progresso da caridade, que inspira e anima as outras virtudes – cujos atos se tornam meritórios –, de forma tal que as virtudes infusas, que são conexas da caridade, se desenvolvem na proporção daquele progresso, como na criança crescem ao mesmo tempo os dedos da mão.
Convém saber o porquê e o como do desenvolvimento constante da caridade em Maria e o ritmo dessa progressão. O método que seguimos nos obriga a insistir nos princípios que remetem à firmeza e à elevação da Mãe de Deus, de molde a em seguida aplicá-los com segurança à sua vida.