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Artigo 5: Principais mistérios por meio dos quais aumentou a plenitude de graça em Maria depois da Encarnação

Esses mistérios foram principalmente aqueles que o Rosário nos convida a meditar, depois do nascimento de Jesus.

 

O nascimento do Salvador

Maria cresceu na humildade, pobreza e mais ainda no amor de Deus ao dar a vida a seu Filho num estábulo. Por berço, não havia mais que uma manjedoura. Mas no mesmo instante, por divino contraste, os anjos cantaram: “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade1. Se essas palavras foram doces ao coração dos pastores e ao de São José, muito mais o foram ao coração de Maria. Esse é o começo do Glória que a Igreja não deixará de cantar na Missa até o fim do mundo, e que é o prelúdio do culto do Céu.

Diz-se de Maria: “guardava todas essas coisas, meditando-as em seu coração2. Quanta alegria deve ter sentido no nascimento de seu Filho, e, não obstante, guardou silêncio e só compartilhou essa alegria com Santa Isabel. As grandes maravilhas que Deus faz nas almas superam toda expressão. O que poderia dizer Maria que igualasse o que sentia em seu coração?

 

A apresentação de Jesus no Templo

No dia da Anunciação, a Santíssima Virgem pronunciou o seu Fiat na paz, numa santa alegria, e também na dor, ao pressentir os tormentos do Salvador anunciados pelo profeta Isaías. O mistério da Redenção fica muito claro no momento da apresentação de Jesus no Templo, quando o santo e longevo Simeão, inspirado pelo Espírito Santo, viu no menino Jesus “a luz para iluminar as nações e a glória de Israel, teu povo3. Maria ficou muda de admiração e de reconhecimento; em seguida, o santo ancião acrescentou: “Eis que este (menino) está posto para ruína e para ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição”. Vindo Jesus, de fato, para a salvação de todos, será uma ocasião de queda, uma pedra de tropeço4 para um grande número de israelitas que, não querendo reconhecer n’Ele o Messias, cairão na infidelidade e na ruína eterna, como o testemunha São Paulo 5. O próprio Jesus dirá: “Bem-aventurado aquele que não encontrar em mim motivo de escândalo6.

Bossuet observa a esse respeito: “Opera todo o excelso e o simples juntamente. Não se pode chegar à sua altura; se alguém desdenha sua simplicidade ou bem quer alcançá-la pelos próprios meios, não consegue, turba-se e precipita-se em seu orgulho. Mas os humildes de coração penetram nos abismos de Deus sem perturbar-se e, afastados do mundo e de seus pensamentos, encontram a vida na profundidade das obras de Deus”7.

 “Simeão é inspirado para falar claramente a Maria” e, de fato, o mistério de Jesus e da predestinação dos eleitos aparece cada vez mais nítido para ela.

O santo ancião lhe disse ainda: “Uma espada de dor transpassará a tua alma, a fim de se descobrirem os pensamentos escondidos nos corações de muitos”. Maria tomará parte nas contradições que experimentará o Salvador; os sofrimentos de Jesus serão os seus sofrimentos; ela terá o coração transpassado pela mais viva dor; se o Filho de Deus não tivesse vindo, não teríamos conhecido a profunda malícia do orgulho que se revolta contra a mais excelsa verdade. Os pensamentos ocultos de hipocrisia e de falso zelo serão revelados quando os fariseus pedirem a crucificação d’Aquele que é a santidade por essência.

A plenitude de graça em Nosso Senhor teve dois efeitos aparentemente contraditórios: a mais perfeita paz e a inclinação a oferecer-se em sacrifício dolorosíssimo como vítima redentora, para cumprir da melhor forma possível sua missão de Salvador. A plenitude de graça em Maria teve igualmente dois efeitos também aparentemente contraditórios: por um lado, a alegria mais pura nos dias da Anunciação e da Natividade e, por outro, o desejo de unir-se o mais generosamente possível aos padecimentos de Seu Filho para nossa salvação.

Assim, na apresentação no Templo, Maria já oferece o Seu Filho por nós; a alegria e o sofrimento unem-se muito intimamente no coração da Mãe de Deus, que é já a Mãe de todos os que acreditarão nas palavras de seu Filho.

 

A Fuga para o Egito

São Mateus8 narra que, após a adoração dos Reis Magos, um anjo do Senhor apareceu a São José em sonho e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar”. De fato, Herodes ordenou o massacre dos meninos menores de dois anos que houvesse em Belém e em seus arredores.

O menino Jesus é o terror desse rei, que teme onde não há nada a temer, e não teme os castigos de Deus aos quais deveria temer. Maria e José já participam das perseguições que se levantam contra Nosso Senhor. “Até agora viviam tranqüilos e ganhavam calmamente a vida com o trabalho das suas mãos; mas assim que Jesus lhes foi entregue, não houve momento de descanso para eles... É necessário tomar parte em sua Cruz”9. Com isso, cresceram muito no amor de Deus. Os Santos Inocentes participaram também da cruz de Cristo, pois sua morte nos indica que estavam predestinados desde toda a eternidade à glória do martírio. Depois de Herodes morrer, um anjo do Senhor anunciou em sonho a José que havia chegado a hora de ir para Nazaré, na Galiléia10

 

A vida oculta em Nazaré

Maria recebeu incessantemente um aumento de graça e de caridade ao carregar o menino em seus braços, ao alimentá-lo, ao receber suas carícias, ao escutar suas primeiras palavras, ao sustentá-lo em seus primeiros passos.

O menino crescia e se fortificava cheio de sabedoria: e a graça de Deus era com nele11. Quando completou doze anos, acompanhou Maria e José a Jerusalém para celebrar a Páscoa e, no momento do retorno, permaneceu na cidade sem que seus pais percebessem. Somente no final de três dias o encontraram no templo no meio dos doutores. E ele lhes disse: “Para que me buscáveis? Não sabíeis que devo ocupar-me nas coisas de meu Pai? E eles não entenderam o que Jesus lhes disse12

Maria aceita, na escuridão da fé, o que não podia ainda entender; o mistério da Redenção se revelará progressivamente a ela em toda a sua profundidade e extensão. Sentiu uma grande alegria ao encontrar Jesus, mas essa alegria permitia entrever desde já muitíssimos sofrimentos.

A propósito da vida oculta de Nazaré, que se prolongou até o ministério público de Jesus, Bossuet13 fez estas observações: “Aqueles que se sentem incomodados por Jesus Cristo e envergonham-se de que Ele tenha passado a vida em tão insólita obscuridade incomodam-se também pela Santíssima Virgem, e quiseram atribuir-lhe contínuos milagres. Mas ouçamos o santo Evangelho: ‘Maria guardava todas essas coisas em seu coração’ (Lc 2, 51)... Não é um encargo muito digno esse de conservar em seu coração tudo o que havia notado e visto de seu Filho querido? E se os mistérios da sua infância foram-lhe um doce colóquio, como ela não se alegraria em ocupar-se e meditar sobre todo o resto da vida de seu Filho? Maria meditava em Jesus... permanecia em perpétua contemplação, fundindo-se, desfazendo-se, por assim dizer, em amor e em desejo... Que diremos, pois, de todos aqueles que inventam tão belas lendas para a Santíssima Virgem? O que lhes diremos se a humilde e perfeita contemplação não lhes é suficiente? Mas se o foi para Maria e para o próprio Jesus durante trinta anos, não foi mais que suficiente para que a Virgem continuasse nesse santo exercício após esse período? O silêncio das Escrituras sobre essa divina Mãe é mais sublime e eloqüente que todos os discursos. Ó homem demasiado ativo e inquieto por tua própria atividade! Aprenda a contentar-te em ouvir Jesus em teu próprio interior, recordando-te d’Ele e meditando em Suas palavras... Orgulho humano, de que te queixas com tuas inquietudes, de não seres nada no mundo? Qual personagem foi Jesus nele? O que Maria representava? Eles eram a maravilha do mundo, o espetáculo de Deus e dos anjos. O que eles faziam? De que se ocupavam? Que fama tinham na Terra? E tu queres ter um nome e uma intervenção gloriosa? Não conheces Maria nem Jesus... E dizes: ‘Não tenho nada para fazer’; quando, em parte, a obra da salvação dos homens está em tuas mãos. Não há inimigos a reconciliar? diferenças a apaziguar? brigas a terminar, donde poderia dizer o Salvador: ‘Tereis salvado o vosso irmão’? (Mt 18, 15). Não existem miseráveis aos quais é preciso impedir que se entreguem à murmuração, à blasfêmia, ao desespero? E quando tudo isso estiver concluído, não te restará o negócio da tua salvação, a verdadeira obra de Deus para cada um de nós?”

Quando se medita na vida oculta de Nazaré, no silêncio e no progresso espiritual de Maria, e depois, ao contrário, naquilo que o mundo moderno chama com freqüência de progresso, chega-se a esta conclusão: nunca se falou tanto de progresso quanto depois que se esqueceu do mais importante de todos, o progresso espiritual. O que então aconteceu? Isso que tantas vezes observou Le Play: que o progresso inferior buscado por si mesmo está acompanhado ― ao facilitar o prazer, a ociosidade e o descanso ― de um imenso retrocesso moral ao materialismo, ao ateísmo e à barbárie, como o mostram claramente as últimas guerras mundiais.

Em Maria, ao contrário, encontramos a realização cada vez mais perfeita da palavra evangélica: “Amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu espírito, e ao próximo como a ti mesmo14.

Quanto mais ela avança, mais ama a Deus com todas as suas forças, ao ver, durante a vida pública de Jesus, a oposição se levantar contra Ele, até a consumação do mistério da Redenção.

 

A causa das dores de Maria no Calvário e a intensidade de seu amor a Deus, ao seu Filho e às almas.

Qual foi a causa profunda das dores de Maria no Calvário? Toda alma cristã, acostumada a fazer sua Via Sacra, responderá: a causa profunda desses sofrimentos, como das dores de Jesus, foi o pecado. Bem-aventurados os corações simples para os quais essa fórmula expressa uma verdade de vida, e que experimentam uma verdadeira dor de suas faltas, verdadeira pena que somente a graça pode produzir em nós.

Compreendemos pouco as dores de Maria, porque sofremos apenas quando nosso corpo é posto à prova e pelas feridas causadas ao nosso amor próprio, à nossa vaidade, ao nosso orgulho; sofremos também e naturalmente pela ingratidão dos homens, pelas injustiças que afligem nossa família e nossa pátria. Mas sofremos pouquíssimo pelo pecado, pelas nossas próprias faltas, enquanto são ofensas a Deus.

Teoricamente concebemos que o pecado é o maior dos males, pois fere a própria alma e todas as suas faculdades, como uma loucura, uma cegueira, uma infâmia e ingratidão, que nos priva das melhores energias e é também a causa de todas as desordens que deploramos nas famílias e na sociedade; é a causa evidente da luta às vezes tão violenta entre as classes sociais e entre os povos. Mas, apesar de vê-lo, não experimentamos grande dor pelas faltas pessoais com as quais cooperamos mais ou menos com a desordem geral. Nossa leviandade e nossa inconstância impedem-nos de tomar vivamente consciência do enorme mal que é o pecado; não compreendemos a profundidade de sua malícia, e precisamente porque ela é tão grave, passa despercebida aos espíritos superficiais. O pecado, que causa tantos estragos nas almas e na sociedade, assemelha-se àquelas doenças que atacam os órgãos vitais e que às vezes carregamos sem suspeitar, como o câncer; não sofremos ainda o mínimo, enquanto gritamos ao Céu por uma simples picadura sem gravidade.

Para sentir vivamente o bom sofrimento, que é a abominação do pecado, deveríamos ter um profundíssimo amor a Deus, a quem o pecado ofende, e um grande apreço pelas almas, as quais o pecado desvia de seu verdadeiro fim.

Os santos sofrem por causa do pecado na medida de seu amor a Deus e ao próximo. Santa Catarina de Sena reconhecia as almas que estavam em pecado mortal pelo odor insuportável que sentia em sua presença. Mas para compreender até onde pode chegar o tormento causado pelo pecado, é preciso perguntar esse segredo ao coração imaculado e doloroso de Maria.

A medida de sua dor foi a medida de seu amor a Deus ofendido, a seu Filho crucificado e às almas a serem salvas. 

Ora, esse amor de Maria superava a caridade mais ardente dos maiores santos, de São Pedro, de São Paulo, de São João. Nela, a plenitude inicial de caridade superava já a graça final de todos os santos reunidos, e desde então não cessou de aumentar; jamais a menor falta venial retardou o impulso de seu amor, e cada um de seus atos meritórios, mais fervoroso que o anterior, multiplicou a intensidade do seu amor segundo uma progressão que não poderíamos imaginar.

Se tal era a intensidade do amor de Deus na alma de Maria, quanto deve ter sofrido pelo pecado, o mais grave de todos os males, do qual nossa leviandade e inconstância impedem-nos de afligir-nos. Ela distinguia incomparavelmente melhor que nós o que causa a perda eterna de muitíssimas almas: a concupiscência da carne, a dos olhos e o orgulho da vida. Sofria na mesma medida de seu amor por Deus e por nós. Essa é a grande luz que se encontra nesse contraste.

A causa das suas dores foi o conjunto de todos os pecados reunidos, de todas as revoluções, de todas as cóleras sacrílegas, que chegaram num instante de paroxismo, até o pecado de deicídio, ao ódio encarniçado contra Nosso Senhor, que é a luz divina libertadora e o Autor da salvação.

A dor de Maria é tão profunda como seu intenso amor natural e sobrenatural por seu Filho, a quem ama com um coração de Virgem ― o mais puro e o mais terno ― como a seu unigênito milagrosamente concebido e como a seu Deus.

Para se formar uma idéia clara dos sofrimentos de Maria, seria preciso ter recebido, como os estigmatizados, a impressão das chagas do Salvador; seria preciso ter participado de todos os seus sofrimentos físicos e morais por meio das graças lacerantes que lhes fazem percorrer a Via Crucis revivendo as horas mais dolorosas da Paixão. Voltaremos a insistir nesse ponto mais tarde quando falarmos de Maria mediadora e corredentora, e da reparação que ofereceu com seu Filho, por Ele e n’Ele.

Notemos aqui somente que esses três grandes atos de amor meritórios para nós o eram também para Maria, e aumentaram consideravelmente sua caridade e todas as outras virtudes, como a fé, a confiança, a religião, a humildade, a fortaleza e a mansidão, pois praticou, então, essas virtudes no grau mais difícil e mais heróico, tornando-se assim a Rainha dos Mártires.

A graça e a caridade do Coração de Jesus fluíam no Calvário sobre o coração de sua Mãe Santíssima; era Ele quem a fortificava e ela, por sua vez, amparava espiritualmente São João. Jesus oferece o martírio de sua Mãe juntamente com o seu e Maria oferece-se com seu Filho, que lhe é mais amado que sua própria vida. Se o menor dos atos meritórios de Maria durante a vida oculta de Nazaré aumentava a grandeza de sua caridade, qual não deve ter sido o efeito de seus atos de amor ao pé da cruz?

 

Pentecostes

A ressurreição gloriosa do Salvador e suas diversas aparições marcaram certamente novos progressos na alma de sua santa Mãe, que viu realizadas muitas profecias do próprio Jesus e sua vitória sobre a morte, sinal do triunfo que alcançou na Sexta-Feira Santa sobre o demônio e o pecado.

O mistério da Ascensão elevou cada vez mais os pensamentos de Maria para o Céu. Na tarde daquele dia, recolhida com os Apóstolos no Cenáculo15, percebeu, como eles, que a Terra estava singularmente vazia depois da partida de Nosso Senhor, e entreviu todas as dificuldades da evangelização do mundo pagão que haviam de converter em meio às perseguições preditas. Diante dessa perspectiva, a presença da Santíssima Virgem deve ter sido um grande conforto para os Apóstolos. Em união com Nosso Senhor, mereceu-lhes com um mérito de conveniência as graças que receberiam naquele mesmo Cenáculo onde Jesus havia instituído a Eucaristia, onde os havia ordenado sacerdotes e onde havia aparecido após sua Ressurreição.

O dia de Pentecostes ― ao descer o Espírito Santo sobre ela e sobre os Apóstolos em forma de línguas de fogo ― veio iluminá-los definitivamente sobre os mistérios da salvação e fortalecê-los para a imensa e tão árdua obra que deveriam realizar16. Se os Apóstolos nesse dia são confirmados na graça, se São Pedro manifesta por meio da pregação que recebeu a plenitude da contemplação do mistério do Filho de Deus, do Salvador e do autor da vida ressuscitado, se os Apóstolos, longe de continuar temerosos, estão agora “alegres de poder sofrer por Cristo”, qual não deve ter sido o novo aumento de graça e de caridade recebido por Maria nesse dia, ela que deveria ser aqui na Terra como o coração da Igreja nascente?

Ninguém mais que ela participará no profundo amor de Jesus a seu Pai e às almas; ela deve também, com suas orações, sua contemplação e sua generosidade incessante, sustentar, de certo modo, a alma dos Doze, segui-los como uma Mãe em seus trabalhos e em todas as dificuldades de seu apostolado, que terminará pelo martírio. Eles são seus filhos. Ela será chamada pela Igreja Regina Apostolorum, e começou, desde aqui na Terra, a velar por eles com suas orações e a fecundar o seu apostolado pela oblação contínua de si mesma, unida ao sacrifício de seu Filho perpetuado no altar.

 

Maria, modelo de devoção eucarística

Convém particularmente insistir sobre o que deve ter sido para a Mãe de Deus o sacrifício da Missa e a Sagrada Comunhão que recebia das mãos de São João.

Por que no Calvário foi ela confiada por Nosso Senhor a São João de preferência às santas mulheres que estavam ao pé da Cruz? Porque São João era sacerdote e tinha um tesouro que poderia comunicar à Maria; um tesouro inestimável: o tesouro da Eucaristia.

Por que, entre todos os Apóstolos, São João foi escolhido antes que São Pedro? Porque São João foi o único dos Apóstolos que ficou ao pé da Cruz, para onde foi atraído por uma graça fortíssima e dulcíssima, e porque ele é, diz Santo Agostinho, o modelo da vida contemplativa, da vida íntima e oculta, que foi sempre a vida de Maria e continuará sendo até sua morte. A vida de Maria não terá o mesmo caráter da vida de São Pedro, o Príncipe dos Apóstolos, e não intervirá em nada no governo dos fiéis. Sua missão será a de contemplar e amar Nosso Senhor, presente na Eucaristia, e de obter por suas incessantes súplicas a difusão da fé e a salvação das almas. Ela será assim verdadeiramente, na Terra, como o coração da Igreja nascente, pois ninguém participará como ela da intimidade e do poder do amor de Cristo17.

Sigamo-la nessa vida oculta, sobretudo na hora em que São João celebrava diante dela o sacrifício da Missa. Não tendo Maria o caráter sacerdotal, não poderia exercer suas funções, mas recebeu, como diz M. Olier, “a plenitude do espírito do sacerdócio”, que é o espírito do Cristo Redentor, e também penetrava muito mais profundamente que São João no mistério dos nossos altares. Seu título de Mãe de Deus superava, ademais, o sacerdócio dos ministros do Salvador; ela nos deu o sacerdote e a vítima do sacrifício da Cruz e se ofereceu com ele.

A santa Missa era, para Maria, num grau impensável para nós, o memorial e a continuação do sacrifício da Cruz. No Calvário, a Virgem teve o coração transpassado pela espada da dor; a intensidade e a delicadeza do seu amor por seu Filho fizeram-lhe sofrer um verdadeiro martírio. O sofrimento foi tão profundo que a memória dele não poderia perder o mínimo de sua veemência, e era recordado por uma luz infusa.

Quando São João celebrava a Missa, Maria encontrava novamente sobre o altar a mesma vítima que na Cruz. É o mesmo Jesus que está ali realmente presente; não é somente uma imagem, é a realidade substancial do corpo do Salvador, com sua alma e sua divindade. É verdade que não havia imolação sangrenta, mas sim uma imolação sacramental, realizada pela consagração separada do corpo e do precioso sangue; o sangue de Cristo é sacramentalmente derramado sobre o altar. E essa figura da morte de Cristo era das mais expressivas para Maria, e que ela não podia esquecer, pois levava sempre no mais profundo da sua alma a imagem de seu tão querido Filho maltratado, coberto de feridas, ainda ressoando em seus ouvidos as injúrias e as blasfêmias contra Ele proferidas.

Essa Missa celebrada por São João, a qual Maria assiste, é a reprodução mais impressionante do sacrifício da cruz perpetuado substancialmente sobre o altar.

 

Maria via também no sacrifício da Missa o ponto de união entre o culto da Terra e o do Céu

Com efeito, é a mesma vítima que é oferecida na Missa e que, no Céu, apresenta por nós suas chagas gloriosas ao Pai celeste. O Corpo de Cristo permanece no Céu, não desce do Céu propriamente falando, mas, sem ser multiplicado, torna-se realmente presente sobre o altar pela transubstanciação da natureza do pão n’Ele.

É também no Céu e na Terra o mesmo Sumo Sacerdote, “vivendo sempre para interceder por nós18; o padre é, com efeito, apenas o ministro que fala em nome do Salvador. Ao dizer: Este é o meu corpo, é Jesus quem fala por ele.

É Jesus, em sua natureza divina, quem dá a essas palavras o poder transubstancial; é Jesus, em sua natureza humana, por um ato de Sua santa alma, quem transmite essa influência divina, e quem continua oferecendo-se assim por nós, como Sumo Sacerdote. Se o ministro distrair-se em algum detalhe do culto, o Sumo Sacerdote não se distrai, e Jesus, em sua natureza humana, ao continuar oferecendo-se assim sacramentalmente por nós, supre tudo o que não absorvemos e derrama todo o resplendor espiritual de cada Missa sobre todos os fiéis presentes ou ausentes e sobre as almas do Purgatório.

Ele age atualmente por seus ministros, mas é Ele quem continua oferecendo-se por essas palavras sacramentais; a alma do sacrifício de nossos altares é a oblação interior, que está sempre viva no coração de Cristo, e por ela continua aplicando-nos os méritos e a satisfação do Calvário no momento oportuno. Os santos, ao assistir a Missa, têm muitas vezes visto, no momento da consagração, que era Jesus quem oferecia o Santo Sacrifício no lugar do celebrante. Maria compreendeu mais que todos os santos e melhor que ninguém que a alma do sacrifício da Missa é a oblação sempre viva no coração de Seu Filho. Anteviu que, quando a última Missa tiver terminado, no fim do mundo, essa oblação interior perdurará eternamente no coração do Salvador, não mais como súplica, mas como adoração e ação de graças; será o culto da eternidade expressado já na Missa pelo Sanctus, em honra do Deus três vezes santo.

Como Maria unia-se a essa oblação de Jesus, Sumo Sacerdote? Unia-se, e o diremos mais adiante, como mediadora universal e corredentora. Ela continuava unindo-se como na cruz, em espírito de adoração reparadora, de súplica e de ação de graças. Modelo de almas vítimas, continuava oferecendo as dores tão lacerantes produzidas em sua alma pela negação que faziam da divindade de Jesus, em cuja refutação São João escreveu o quarto Evangelho. Dava graças pela instituição da sagrada Eucaristia e por todos os benefícios dela decorrentes. Suplicava para obter a conversão dos pecadores, pelo aperfeiçoamento das almas boas, para apoiar os Apóstolos em seus trabalhos e sofrimentos até o martírio. Em tudo isso Maria é nosso modelo, para que aprendamos a ser “adoradores em espírito e em verdade”.

O que dizer finalmente da comunhão da Santíssima Virgem? A condição principal de uma comunhão fervorosa é ter fome da Eucaristia; da mesma maneira, o pão comum não renova verdadeiramente nossas forças se não o comemos com apetite. Os santos tinham fome da Eucaristia; certa vez, a santa comunhão foi negada a Santa Catarina de Sena; mas seu desejo era tão forte que uma partícula da grande Hóstia se desprendeu, e sem o sacerdote saber, aquela partícula chegou milagrosamente à santa. A fome da Eucaristia era incomparavelmente maior, muito mais intensa, em Maria que nas almas mais santas. Pensemos na força de atração que arrasta Jesus à alma de sua Santa Mãe.

Toda alma é atraída por Deus, pois Ele é o soberano Bem para o qual fomos feitos. Mas as conseqüências do pecado original, o pecado atual e mil imperfeições mais diminuem a admirável conformidade entre Deus e a alma, debilitando em nós o desejo da união divina. A alma de Maria não sofreu as feridas do pecado original, nem do pecado atual; nenhuma infidelidade, nenhuma imperfeição diminuiu o fervor de sua caridade superior a de todos os santos juntos. Esquecendo-se de si mesma, Maria lançava-se para Deus com um impulso irresistível, que aumentava a cada dia juntamente com os seus méritos. Era o Espírito Santo, agindo livremente nela, que a conduzia inevitavelmente a entregar-se livremente a Deus e a recebê-lo; esse amor, como a sede ardente, era acompanhado de uma grande dor que cessaria somente quando morresse de amor e com a eterna união. Esse era o desejo de Eucaristia em Maria Santíssima.

Jesus, por sua vez, tinha grande desejo de santificar definitivamente Maria; pensava somente em comunicar os tesouros de graças que irrompiam do Seu coração. Se pudesse sofrer na glória, sofreria ao encontrar tantos obstáculos em nós que impedem essa divina comunicação. Em Maria, porém, não havia obstáculo algum. Essa comunicação era como a fusão mais intimamente possível aqui na Terra de duas almas espirituais, como um reflexo da comunhão da santa alma de Cristo com o Verbo, ao qual está pessoalmente unida, ou ainda, era como a imagem da comunhão das três Pessoas divinas na mesma verdade infinita e na mesma bondade sem limites.

Maria, no momento da comunhão, convertia-se no tabernáculo vivo e puríssimo de Nosso Senhor, tabernáculo dotado de conhecimento e de amor, mil vezes mais precioso que o cibório de ouro; era verdadeiramente a torre de marfim, a arca da aliança, a casa de ouro.

Quais eram os efeitos da comunhão em Maria? Superavam em muito o que nos disse Santa Teresa sobre a união transformadora na VII morada do Castelo Interior. Tem-se comparado essa união que, de certa maneira, transforma a alma em Deus pelo conhecimento e pelo amor, à união do ferro com o fogo, ou a do ar com a luz que o atravessa. Em Maria, os raios de luz e de calor sobrenaturais saídos da alma de Jesus iluminavam cada vez mais sua inteligência e inflamavam sua vontade. A humilde Virgem não podia relacionar de nenhuma maneira consigo mesma esses bens espirituais, essa sabedoria e essa bondade, mas tributava homenagem Àquele que é o princípio e fim de toda a sua vida: Qui manducat me et ipse vivet propter me: “O que me comer a mim, esse mesmo viverá também por mim (e da minha própria vida)19; quem come minha carne, vive por mim e para mim, como eu vivo por meu Pai e para Ele.

Cada comunhão de Maria era mais fervorosa que a anterior e, ao produzir nela um grande aumento de caridade, preparava-a para uma comunhão mais frutífera ainda. Se a pedra cai tanto mais rapidamente quanto mais se aproxima da terra que a atrai, a alma de Maria se comportava mais generosamente com Deus na medida em que se aproximava d’Ele e por Ele era mais atraída. Era como um espelho puríssimo que refletia de volta para Jesus a luz e o calor que recebia d’Ele e condensava ademais esse calor e essa luz para derramá-los sobre nossas almas.

Ela foi o mais perfeito modelo de devoção eucarística. Por isso, pode ensinar-nos sem meias palavras ― se nos dirigirmos a ela ― o que é o espírito de adoração reparadora ou de sacrifício na aceitação generosa das penas e trabalhos que se apresentam; qual deve ser o nosso desejo da Eucaristia, o fervor de nossas súplicas pelas grandes intenções da Igreja, e também a nossa ação de graças por tantos benefícios.

  1. 1. Lc 2, 14.
  2. 2. Lc 2, 19
  3. 3. Lc 2, 32.
  4. 4. Is 8, 14.
  5. 5. Rom 9, 32; 1Cor, 13.
  6. 6. Mt 11, 6.
  7. 7. Elévations, XVIII semana, XII elev.
  8. 8. Mt 2, 13.
  9. 9. BOSSUET, Elévations, XIX semana, III elev.
  10. 10. Mt 2, 20-23.
  11. 11. Lc 2, 40.
  12. 12. Lc 2, 49-50.
  13. 13. Elévations, XX semana, IX e X elev.
  14. 14. Lc 10, 27.
  15. 15. At 1, 14.
  16. 16. At 2.
  17. 17. Santo Tomás, IIIª, q. 8, a. 1, ad 3, diz sobre o Corpo Místico de Cristo: “A cabeça tem uma superioridade manifesta sobre todos os outros membros, enquanto que o coração tem uma influência oculta. Por isso, o Espírito Santo tem sido comparado com o coração, que vivifica invisivelmente a Igreja e a une, enquanto que Cristo tem sido comparado com a cabeça, de acordo com sua natureza visível”. De outro ponto de vista, diz-se que o Espírito Santo é como a alma da Igreja, porque a alma invisível está totalmente no todo, e totalmente em cada uma das partes, conquanto exerça suas funções superiores na cabeça. A influência de Maria foi justamente comparada com a do coração, porque é oculta e de ordem afetiva, como a influência de uma mãe.
  18. 18. Hb 7, 25.
  19. 19. Jo 6, 58.
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