Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute–se assim. – Parece que o martírio não é um ato da máxima perfeição.
1. – Pois, parece que o que constitui a perfeição é matéria de conselho e não de preceito, por não ser de necessidade para a salvação. Ora, o martírio parece necessário à salvação, conforme a Escritura: Com o coração se crê para alcançar a justiça; mas com a boca se faz a confissão para conseguir a salvação; e noutro lugar: Nós devemos dar a nossa vida pelos nossos irmãos. Logo, o martírio não é um ato de perfeição.
2. Demais. – Parece que constitui maior perfeição o dar alguém a alma por Deus, pela obediência, do que lhe dar, pelo martírio, o próprio corpo. Por isso, Gregório diz, que, por direito, a obediência é preferível às vítimas. Logo, o martírio não é ato da máxima perfeição
3. Demais. – Parece melhor sermos útil aos outros do que nos conservarmos a nós mesmo no bem; porque o bem geral é melhor que o bem de um só, segundo o Filósofo. Ora, quem sofre o martírio só a si é útil; ao contrário, quem ensina aproveita a muitos. Logo, o ato de ensinar e de dirigir os inferiores é mais perfeito que o ato do martírio.
Mas, em contrário, Agostinho prefere o martírio à virgindade, estado próprio da perfeição. Logo, parece que o martírio implica a perfeição máxima.
SOLUÇÃO. – De dois modos podemos considerar um ato de virtude. – Primeiro, na sua espécie, relativamente à virtude da qual é ilícito. Ora, neste sentido, o martírio, que consiste em sofrer a morte, quando necessário, não pode ser o mais perfeito dos atos de virtude. Porque sofrer a morte não é, em si mesmo, digno de louvor, mas só enquanto ordenado a um bem, por exemplo, o da fé ou o do amor de Deus, que são atos da virtude. Por onde, esse ato de virtude, sendo o fim, é melhor. – O outro aspecto por que podemos considerar o ato de virtude é o relativo ao seu motivo, primeiro, que é o amor de caridade. E por este lado, sobretudo, é que um ato contribui para a perfeição da vida, segundo o Apóstolo, quando diz que a caridade é o vínculo da perfeição. Ora, o martírio, dentre todos os atos virtuosos, é o que mais demonstra a perfeição da caridade. Pois, mostramos o nosso amor por uma coisa tanto mais quanto desprezamos, por ela, outra que muito amamos, ou aceitamos sofrer por ela um padecimento que fortemente nos repugna. Ora, é manifesto, que de todos os bens presentes o que mais amamos é a vida; e, ao contrário, o que mais odiamos é a morte, sobretudo quando acompanhada de dolorosos tormentos corporais, o medo dos quais faz até mesmo os brutos deixarem os maiores prazeres, como diz Agostinho. Por onde é claro que, dentre todos os atos humanos, o martírio é genericamente o mais perfeito, como prova máxima da caridade, segundo o Evangelho: Ninguém tem maior amor do que este, de dar um a própria vida por seus amigos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÃO. – Não há nenhum ato de perfeição, que seja de conselho, que não possa, eventualmente, vir a ser matéria de preceito, como de necessidade para a salvação. Assim, diz Agostinho, quando a necessidade nos obriga a observar a continência por ausência ou doença da esposa. Portanto, não é contra a perfeição do martírio se, num determinado caso, for de necessidade para a salvação. Há porém circunstâncias em que não é necessário, para salvar–se, sofrê–lo; tal o caso, que lemos muitas vezes, de certos mártires que, por zelo da fé e por fraterna caridade, espontaneamente se ofereceram ao martírio. Pois, os referidos preceitos devem ser entendidos no que concerne à preparação da alma.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O martírio supõe o que pode haver de mais elevado na obediência, que é obedecer até à morte, como diz, de Cristo, a Escritura: Feito obediente até à morte. Por onde, é claro que o martírio, em si mesmo, é mais perfeito que a obediência, absolutamente considerada.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção colhe relativamente ao martírio, como ato de uma determinada espécie, que não o torna mais excelente do que todos os atos virtuosos; assim como também a coragem não é a mais excelente de todas as virtudes.
O segundo discute–se assim – Parece que o martírio não é um ato de coragem.
1. – Pois, martyr em grego significa testemunha. Ora, o testemunho é dado à fé de Cristo, conforme a Escritura: E me sereis testemunhas em Jerusalém, etc. E Máximo (Taurin.) diz num sermão: A mãe do martírio é a fé católica, à qual subscreveram com o seu sangue ilustres atletas. Logo, o martírio é, antes, um ato de fé do que de coragem.
2. Demais. – Os méritos de um ato sobretudo pertencem à virtude que nos leva a praticá–lo, que o manifesta e sem a qual nada vale. Ora, é sobretudo a caridade que inclina ao martírio; por isso, diz Máximo num sermão: A caridade de Cristo vence nos seus mártires. E também a caridade se manifesta principalmente pelo ato do martírio, segundo o Evangelho: Ninguém tem maior amor do que este, de dar um à própria vida por seus amigos. Demais, o martírio nada vale sem a caridade, segundo o Apóstolo: Se entregar o meu corpo para ser queimado, se todavia não tiver caridade, nada disto me aproveita. Logo, o martírio é antes um ato de caridade do que de coragem.
3. Demais. – Agostinho diz: É fácil celebrar a honra de um mártir; mas, difícil. imitar lhe a fé e a paciência. Ora, em todo ato virtuoso louvamos, sobretudo a virtude a que o ato pertence. Logo, o martírio é, antes, um ato de paciência do que de virtude;
Mas, em contrário, diz Cipriano: ó felizes mártires, com que louvores vos celebrarei? Ó soldados fortíssimos, com que vozes cantarei a força do vosso peito? Ora, cada um merece louvores pela virtude cujos atos pratica. Logo, o martírio é ato de coragem.
SOLUÇÃO. – Como do sobredito resulta, é próprio da coragem conformar–nos no bem da virtude, sobretudo contra os perigos, principalmente contra os perigos de morte, máxime os da guerra. Ora, é manifesto que, no martírio, somos solidamente confirmados no bem de virtude, por não desertarmos da fé e da justiça, para fugir ao perigo iminente de morte; perigo de que também ameaçam o mártir os perseguidores, num combate particular. Por isso, Cipriano diz: A multidão dos presentes contemplava admirada o certame celeste, dos servos de Cristo, firmes no combate, livres no falar, incorruptos na alma, de virtude divina. Por onde, é manifesto que o martírio é um ato de coragem. Por isso, diz a Igreja, dos mártires: Fizeram–se fortes na guerra.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. – Dois elementos devemos considerar no ato de coragem. Um, o bem em que o forte é confirmado, e esse é o fim da coragem. Outro, a firmeza mesma que nos leva a não cedermos aos obstáculos que se nos opõem na consecução à esse bem; e nisto consiste a essência da coragem. Ora, assim como a coragem civil nos confirma a alma na justiça humana, para praticar a qual afrontamos os perigos da morte, assim também a coragem gratuita confirma–nos a alma no bem da justiça de Deus, infundida pela fé de Jesus Cristo, na frase do Apóstolo. E assim, o martírio está para a fé como para o fim em que sermos confirmados: e para a coragem, como para o hábito eficiente.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A caridade inclina por certo ao ato do martírio, como o motivo primeiro e principal, a modo de virtude imperante; mas, a coragem, como o motivo próprio, a modo de virtude eficiente. Donde vem que o martírio é um ato de caridade, como virtude imperante; da coragem, porém, como eficiente. Por isso também ela manifesta uma e outra virtude. Mas, o ser meritório, o martírio o tem da caridade, como qualquer ato de virtude. Logo sem caridade, não tem valor.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como dissemos, o ato principal da coragem é resistir ao ataque o que é próprio do martírio; ao qual porém, não é próprio o ato secundário da coragem, que é atacar. E como a paciência coopera com o ato principal da coragem, que é resistir ao ataque, daí vem que, concomitantemente, louvamos a paciência dos mártires.
O primeiro discute–se assim. – Parece que o martírio não é um ato de virtude.
1. – Pois, todo ato de virtude é voluntário. Ora, o martírio às vezes não o é, como no caso dos inocentes mortos por Cristo dos quais diz Hilário: Chegaram à eternidade pela glória do martírio. Logo, o martírio não é um ato de virtude.
2. Demais. – Nada de ilícito pode ser objeto de um ato de virtude. Ora, matar–se a si mesmo é ilícito, como se estabeleceu; e contudo por aí se consuma o martírio. Pois, diz Agostinho, que certas santas mulheres, no tempo das perseguições, para escaparem aos que pretendiam atentar–lhes contra a pudicícia, atiraramse ao rio e desse modo morreram; e o seu martírio é o objeto de uma grande veneração na Igreja Católica. Logo, o martírio não é um ato de virtude.
3. Demais. – É digno de louvor quem espontaneamente se propõe a prática de um ato de virtude. Ora, de louvor não é digno quem se entrega ao martírio; parece, antes, expor–se ao perigo presunçosamente. Logo, o martírio não é um ato de virtude.
Mas, em contrário, o prémio da felicidade não é devido senão ao ato de virtude. Ora, é devido ao martírio, conforme aquilo do Evangelho: Bem–aventurados os que padecem perseguição por amor da justiça porque a eles é o reino dos céus. Logo, o martírio é um ato de virtude.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a virtude é próprio fazer–nos conservar o bem da razão. Ora, o bem da razão tem na verdade o seu objeto próprio; e na justiça, o seu efeito próprio, como do sobredito resulta. Ora, é da essência mesma do martírio fazer–nos aderir firmemente à verdade e à justiça, quando nos assaltam os nossos perseguidores. Por onde, é claro que o martírio é um ato de virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Alguns disseram que aos Inocentes foi dado milagrosamente o uso precoce do livre arbítrio, para poderem sofrer o martírio voluntariamente. Mas, não sendo possível prová–lo com a autoridade da Sagrada Escritura, é melhor dizer que a glória do martírio, que outros mártires mereceram por vontade própria, essas crianças a alcançaram pela graça de Deus. Pois, a efusão do sangue por amor de Cristo supre o batismo. Por onde, como os méritos de Cristo fazem, pela graça baptismal, as crianças batizadas alcançarem a glória, assim, os méritos do martírio de Cristo fazem obterem a palma do martírio os que foram mortos por amor dele. Por isso diz Agostinho: Duvidará da vossa coroa, vendo–vos sofrer por Cristo, quem julga que mesmo o batismo de Cristo não aproveita aos inocentes. Não tínheis a idade suficiente para sofrerdes por Cristo; mas tínheis a carne capaz de sofrer a paixão que Cristo haveria de sofrer.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Agostinho diz, no mesmo lugar, que a autoridade divina da Igreja, baseada em testemunhos fidedignos, foi levada a honrar a memória dessas santas mulheres.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os preceitos da lei foram dados para regular os atos virtuosos. Pois, como dissemos, certos preceitos da lei divina foram estabelecidos para prepararem a alma para quando fosse oportuno praticar tal ato ou tal outro. E assim também há certos elementos, no ato virtuoso que tem por fim preparar–nos a alma para agirmos segundo a razão, quando se oferecer o momento. O que, sobretudo se dá no martírio, que consiste em se suportar os sofrimentos injustamente infligidos. Mas, embora não devamos dar a outrem a ocasião de proceder injustamente, contudo, devemos tolerá–lo moderadamente quando assim agir.
O duodécimo discute–se assim. – Parece que a coragem é a mais excelente das virtudes.
1. – Pois, diz Ambrósio: A coragem é por assim dizer, mais excelsa que as outras virtudes.
2. Demais. – A virtude tem por objeto um bem difícil. Ora, a coragem enfrenta o que é dificílimo. Logo, é a máxima das virtudes.
3. Demais. – A pessoa do homem vale mais que os seus bens. Ora, a coragem diz–lhe respeito à pessoa, que se expõe a um perigo de morte por causa do bem da virtude; ao passo que a justiça e as outras virtudes morais versam sobre certos bens externos. Logo, a coragem é a principal entre todas as virtudes morais.
Mas, em contrário, diz Túlio: Na justiça manifesta–se o esplendor máximo da virtude, que leva o homem a ser chamado bom.
Demais. – O Filósofo diz: As virtudes máximas são necessariamente as mais úteis aos outros. Ora, a liberalidade parece mais útil que a coragem. Logo é maior virtude.
SOLUÇÃO. – Como diz Agostinho, nas causas que não são grandes por grandeza física, a maior é a melhor. Por onde, uma virtude é tanto maior quanto melhor. Ora, o bem da razão é o bem do homem, segundo Dionísio. E esse é principalmente o bem da prudência, que é a perfeição da razão, realizado pela justiça, cujo fim é infundir em rodas as coisas humanas a ordem da razão. Ao passo que as outras virtudes o que fazem é conservar esse bem, moderando as paixões para não desviarem o homem dele. E, entre elas, a coragem tem o primeiro lugar, porque nenhum perigo é mais capaz de afastar o homem do bem da razão, do que o perigo da morte. Depois dela vem a temperança, porque os prazeres do corpo são, entre outros, os que mais impedem o bem da razão. Ora, o que constitui a essência tem prioridade sobre o que constitui um efeito; e isto por sua vez a tem sobre o que visa a conservação de um bem, pela remoção do impedimento. Por onde, entre as virtudes cardeais, é a primeira a prudência; a segunda, a justiça; a terceira, a coragem; a quarta, a temperança. Depois dessas vem as outras virtudes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Ambrósio põe a coragem acima das outras virtudes, fundado numa utilidade geral; por exemplo, pela utilidade que tem na guerra e na vida civil ou doméstica. Por isso, ele mesmo acrescenta: Agora tratemos da coragem, que, como superior às outras, se divide em coragem própria da guerra e da vida doméstica.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Por natureza, a virtude tem por objeto mais o bem do que o difícil. Por isso, a sua grandeza deve medir–se mais pelo critério do bem do que pela da dificuldade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O homem só expõe a sua pessoa ao perigo de morte para conservar a justiça. Por isso, o mérito da coragem depende de certo modo da justiça. Donde o dizer Ambrósio, que a coragem sem a justiça gera a iniquidade; pois, quanto mais forte alguém é tanto mais pronto é em oprimir os inferiores.
À QUARTA OBJEÇÃO CONCEDEMOS.
RESPOSTA À QUINTA. – A liberalidade é útil, relativamente a certos benefícios particulares. Ao passo que a coragem tem a utilidade geral de conservar toda a ordem da justiça. Por isso, diz o Filósofo, que os justos e os fortes são os mais amados por serem os mais úteis tanto na guerra como na paz.
O undécimo discute–se assim. – Parece que a coragem não é uma virtude cardeal.
1. – Pois, a ira tem a máxima afinidade com a coragem. Ora, a ira não é considerada uma paixão principal; nem mesmo a audácia, que tem relações com a coragem. Logo, também a coragem não deve ser considerada uma virtude cardeal.
2. Demais. – A virtude se ordena para o bem. Ora, a coragem não se ordena diretamente para o bem mas, antes, para o mal, isto é, a afrontar os perigos e os trabalhos, como diz Túlio. Logo, a coragem não é uma virtude cardeal.
3. Demais. – A virtude cardeal tem por objeto as coisas que o homem principalmente busca, na sua vida; ela é comparável aos gonzos (cardo) em que gira a porta. Ora, a coragem tem por objeto afrontar os perigos de morte, que raramente se apresentam na vida humana. Logo, a coragem não deve ser considerada virtude cardeal ou principal.
Mas, em contrário, Gregório e Agostinho enumeram a coragem entre as quatro virtudes cardeais ou principais.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, chamam–se virtudes cardeais ou principais as que se revestem dos caracteres que principalmente convêm às virtudes. Ora, entre as outras condições comuns à virtude, está a de obrar com firmeza, como claramente o diz Aristóteles. Mas, nenhuma virtude é mais digna de louvores, pela firmeza do que a coragem. Pois, tanto mais é louvado quem age com firmeza quanto mais afronta um obstáculo que pode levá–lo à derrota ou ao retrocesso. Ora, tanto o bem, que deleita, como o mal, que aflige, impele–nos a deixar a prática de um ato exigido pela razão; mas, a dor o faz mais gravemente que o prazer. Pois, diz Agostinho: Não há ninguém que não prefira, antes, fugir da dor que buscar o prazer; pois, às vezes, vemos os animais, mesmos os mais brutos, observarem–se dos maiores prazeres, por medo. E entre as dores da alma e os perigos são os mais temidos os que causam a morte. Ora, esses é que sobretudo afronta o corajoso. Logo a coragem é uma virtude cardeal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A audácia e a ira não ajudam o ato da coragem que é suportar o ataque; pelo que principalmente é digno de louvor o ato corajoso. Pois, por esse ato o corajoso vence o temor, que é uma paixão principal, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A virtude se ordena ao bem da razão, que devemos conservar, contra o ataque do mal. Ora, a coragem se ordena aos males do corpo, que lhes são contrários, e aos quais resiste; mas, ao bem da razão, como ao fim, que visa alcançar.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora os perigos de morte raramente nos ameacem, contudo frequentemente ocorrem as ocasiões desses perigos; a saber, quando a justiça e outras boas obras, que praticamos, suscitam–nos adversários mortais.
O décimo discute–se assim. – Parece que o corajoso não recorre à ira, nos seus atos.
1. – Pois, ninguém deve tomar como instrumento dos seus atos, aquilo de que não se pode servir ao seu talante. Ora, não pode o homem a seu talante empregar a sua ira, de modo a poder servir–se dela quando quiser e, quando quiser depô–Ia. Pois, como diz o Filósofo, a paixão corpórea, uma vez suscitada, não se acalma quando o quisermos. Logo, o corajoso não deve recorrer à ira, nos seus atos.
2. Demais. – Quem se basta a si mesmo para praticar um ato não deve recorrer ao auxílio do que é mais fraco e imperfeito. Ora, a razão por si mesma basta para praticarmos atos de coragem, para o que a ira é insuficiente. Donde o dizer Séneca: Não só para prevermos, mas também para agirmos a razão por si mesma nos basta. E haverá nada mais estulto do que, nessa matéria, pedirmos auxilio à ira? Do que querer apoiar o certo no incerto; o fiel, no infiel; o são, no doente? Logo, a coragem não deve recorrer à ira.
3. Demais. – Assim como certos, pela ira, praticam melhor atos corajosos, assim também, por tristeza ou concupiscência. Por isso, o Filósofo diz, que às feras, a tristeza ou a dor as excita a afrontar o perigo; e a concupiscência leva os adúlteros a agirem muitas vezes audaciosamente. Ora, a coragem, para o ser, não recorre nem à tristeza nem à concupiscência. Logo, pela mesma razão, não deve recorrer à ira.
Mas, em contrário, diz o Filósofo: O jurar ajuda os fortes.
SOLUÇÃO. – Da ira e das outras paixões da alma, como já dissemos, trataram de um modo os Peripatéticos e de outro, os Estóicos. Assim, os Estóicos excluíam da alma do sábio ou do virtuoso, todas as outras paixões. Ao contrário, os Peripatéticos, cujo chefe foi Aristóteles, atribuíam ao virtuoso a ira e as outras paixões, mas, moderadas pela razão. E talvez não diferissem entre si na realidade, mas só quanto ao modo de se exprimirem. Pois, os Peripatéticos, como dissemos, chamavam paixões da alma a todos os apetites sensitivos, de qualquer modo que se apresentassem. E como o apetite sensitivo se move pelo império da razão de modo a nos tornar mais pronta a ação, por isso diziam que os virtuosos deviam recorrer à ira e às outras paixões da alma, moderadas pelo império da razão. Ao passo que os Estóicos chamavam paixões da alma a certos afetos moderados do apetite sensitivo; e por isso as consideravam como estados mórbidos ou doenças; e portanto as separavam completamente da virtude. Assim, pois, o corajoso, ao agir, recorre à ira moderada e não, a imoderada.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A ira moderada pela razão submete–se ao império desta. Por onde e consequentemente, podemos usá–la ao nosso arbítrio; mas não se for imoderada.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A razão não recorre à ira, como auxílio para o seu ato; mas porque usa do apetite sensitivo como instrumento, como usa dos membros do corpo. Nem há inconveniente se o instrumento for mais imperfeito que o agente principal, como o martelo, que o ferreiro. E quanto a Séneca foi discípulo dos Estóicos e as suas palavras citadas vão diretamente contra Aristóteles.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Sendo dois os atos próprios da virtude, a saber, suportar e atacar, ela recorre à ira, não para o ato de suportar, porque esse a razão por si o produz; mas, para o de atacar. Para o qual recorre, antes, a ira que às outras paixões; porque, sendo próprio da ira, eliminar o obstáculo que nos contrista, ela coopera diretamente com a coragem quando ataca. A tristeza, pelo contrário, por natureza sucumbe ao mal; mas, por acidente, ajuda o ataque, ou por ser a causa da ira, como dissemos, ou porque, nos expomos ao perigo para evitar a tristeza. Do mesmo modo, a concupiscência, por natureza, tende para o bem deleitável, ao qual, em si mesmo, repugna enfrentar os perigos, mas, por acidente, às vezes ajuda a atacá–los, quando queremos, antes, cair no perigo do que nos privarmos do prazer. Por isso, diz o Filósofa, que entre os atos de coragem inspirados na paixão, o mais natural ao homem é o produzido pela ira, contanto que o seja com eleição e subordinado ao fim, sem o que não haveria verdadeira coragem.
O nono discute–se assim. – Parece que a coragem não consiste, sobretudo em vencer os obstáculos repentinos.
1. – Pois, repentino parece que é um acontecimento inopinado. Ora, Túlio diz, que a coragem consiste em afrontar os perigos e sofrer os trabalhos. Logo, a coragem não consiste sobretudo em vencer os obstáculos repentinos.
2. Demais. – Ambrósio diz: É próprio do homem forte não dissimular o perigo que o ameaça; mas, encará–lo face a face e examiná–lo do alto do seu pensamento como de um lugar elevado; tratar de prever e prevenir os acontecimentos futuros, para não ser obrigado a se dizer a si mesmo depois: caí neste perigo porque não o julgava possível. Ora, quando o perigo é repentino não pode ter sido previsto como futuro. Logo, os atos de coragem não versam sobre o que é repentino.
3. Demais. – O Filósofo diz que o corajoso é homem de confiante esperança. Ora, a esperança implica um acontecimento futuro, o que se opõe ao repentino. Logo, os atos de coragem não têm por objeto o repentino.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a coragem tem por objeto, sobretudo, afrontar os acontecimentos repentinos que causam a morte.
SOLUÇÃO. – Nos atos do corajoso, duas coisas havemos de considerar. Uma, relativa a sua eleição; e então, a coragem não tem por objeto os perigos repentinos. Pois, o corajoso escolhe premeditar nos perigos que podem ameaçá–lo para melhor resistir–Ihes ou suportá–los mais facilmente. Pois, como diz Gregório, os tiros previstos menos terem; e mais facilmente suportamos os males do mundo se nos munirmos contra eles do escudo da previdência. – A outra consideração a fazer é relativa aos atos de coragem como manifestações do hábito virtuoso. E então a coragem tem sobretudo por fim afrontar os perigos repentinos; porque, como diz o Filósofo; nos perigos repentinos é que principalmente se manifesta o hábito da coragem.
Pois, o hábito age como a natureza. Por onde, o praticar alguém atos virtuosos, sem premeditação, premido pela necessidade de arrostar um perigo iminente, isso manifesta que essa pessoa tem confirmada na alma a coragem habitual. Pois, é possível mesmo a quem carece do hábito da coragem preparar a sua alma, por uma longa premeditação, contra os perigos; preparação de que também o forte se socorre, quando tem tempo.
Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O oitavo discute–se assim. Parece que o corajoso se compraz no seu ato.
1. – Pois, – o prazer é uma atividade conatural ao hábito, a que não se opõe nenhum obstáculo como diz Aristóteles. Ora, os atos do corajoso procedem do hábito, que age como natureza. Logo, o corajoso se compraz no seu ato.
2. Demais. – Aquilo do Apóstolo – Mas o fruto do Espírito é a caridade, o gozo, a paz – diz Ambrósio, que as obras virtuosas se chamam frutos, porque refazem a alma do homem com um prazer santo e puro. Ora, o corajoso pratica obras virtuosas. Logo, ele se compraz no seu ato.
3. Demais. – O mais fraco é vencido pelo mais forte. Ora, o corajoso mais ama o bem da virtude que o próprio corpo, que expõe aos perigos da morte. Logo, o prazer resultante da bem da virtude elimina a dor corpórea. Portanto, o corajoso encontra muito prazer nos seus atos.
Mas, em contrário, o Filósofo diz, que o corajoso não acha nenhum prazer nos seus atos.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, quando tratamos das paixões, há um duplo prazer: o corporal, resultante do contato do corpo; e o espiritual, resultante da apreensão da alma, o qual propriamente vem das obras virtuosas, porque nelas levamos em conta o bem da razão. Ora, o principal ato da coragem é suportar certas apreensões tristes da alma, por exemplo, a de perder a vida do corpo, que o virtuoso ama, não somente como um bem natural, mas ainda como necessária para a prática da virtude e do que a esta concerne. E é ainda ato de coragem suportar certos contatos corpóreos dolorosos, como os ferimentos e os açoites. Por onde, o forte, de um lado, compraz–se no prazer espiritual, consistente no ato mesmo da virtude e do seu fim; e, de outro, sofre na sua alma, pensando na perda da própria vida, e no seu corpo. Por isso, lemos na Escritura que Eleazar disse: Sofro em meu corpo acerbas dores, mas, na alma sinto alegria em nas padecer pelo temor que te tenho.
Mas, a dor sensível do corpo impede–nos a alma de sentir o prazer da virtude; salvo talvez por uma superabundante graça de Deus que mais fortemente no–Ia eleva para as causas divinas, com que ela se deleita, mais fortemente do que é atingida pelas penas corpóreas. Assim, a S. Tibúrcio, andando descalço sobre brasas, parecia–lhe pisar em rosas. A virtude da coragem faz, pois, com que não se deixe a nossa razão absorver–se pelas dores corpóreas. E quanto à tristeza da alma, o prazer da virtude a supera, fazendo–nos preferir o bem da virtude à vida corpórea e tudo o que a esta pertence. Por isso diz o Filósofo que não é necessário ao corajoso o comprazer–se, quase sentindo o prazer, mas basta que não se entristeça.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A veemência do ato ou da paixão de uma potência impede o ato de outra potência. Por isso, a dor sensível impede o corajoso de comprazer–se na sua alma, com os seus atos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – As obras das virtudes são deleitáveis, sobretudo por causa do fim; mas podem por natureza ser tristes. O que, sobretudo se dá com à coragem. Por isso diz o Filósofo que não é possível praticar com prazer as obras de todas as virtudes, exceto enquanto atingem o fim.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O corajoso vence a tristeza da alma comprazendo–se com a virtude. Mas, sendo–nos a dor corporal mais sensível, e a apreensão sensitiva mais manifesta, resulta que a intensidade da dor corpórea faz quase desvanecer–se o prazer espiritual, relativo ao fim da virtude.
O sétimo discute–se assim. – Parece que o corajoso não age em vista do bem do seu próprio hábito.
1. – Pois, na ordem da ação, embora primeiro quanto à intenção, o fim é último, quanto à execução. Ora, a execução do ato de coragem é posterior ao hábito mesmo da coragem. Logo, não pode ser que o corajoso aja tendo em vista o bem do próprio hábito.
2. Demais. – Agostinho diz: As virtudes que amamos só tendo em vista a felicidade, certos, dizendo que elas são desejáveis por si mesmas, ousam nos persuadir que não amemos a felicidade. E se o conseguirem farão com que deixemos de amá–las a elas mesmas, por não amarmos aquela pela qual só as amamos. Ora, a coragem é uma virtude. Logo, o ato da coragem não deve ser referido à coragem mesma mas à felicidade.
3. Demais. – Agostinho diz que a coragem é o amor que tudo facilmente sofre por causa de Deus. Ora, Deus não é o ato mesmo da coragem mas, algo de melhor, pois que o fim deve ser melhor que os meios. Logo, o corajoso não age tendo em vista o bem do próprio hábito.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que para o corajoso a coragem é o bem, o que implica a ideia de fim.
SOLUÇÃO. – Há um duplo fim: o próximo e o último. O fim próximo de um agente é imprimir no paciente a semelhança da sua forma; assim, o fim do fogo, que aquece, é imprimir a semelhança do seu calor no paciente; e o fim do arquiteto é a imprimir a semelhança da sua arte na matéria. Ora, qualquer bem daí resultante, sendo intencionado, pode considerar–se como fim remoto do agente. E como, na ordem da produção, a matéria exterior recebe da arte a sua disposição assim, na ordem das ações, os atos humanos se dispõem pela prudência. Por onde, devemos concluir que o corajoso, tendo a intenção, como próximo fim, de exprimir, nos seus atos, a semelhança do seu hábito, tem também a de agir segundo a exigência desse hábito. E quanto ao seu fim remoto, é a felicidade ou Deus.
Donde se deduzem claras AS RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES. – Pois, a primeira objeção supõe que a essência mesma do hábito é o fim, e não a sua semelhança expressa pelo ato, como se disse. E as outras duas se fundam no último fim.
O sexto discute–se assim. – Parece que suportar o mal não é o ato principal da coragem.
1. – Pois, a virtude versa sobre o difícil e bom, como diz Aristóteles. Ora, é mais difícil atacar que suportar um ataque. Logo suportar o mal não é o ato principal coragem.
2. Demais. – Parece que exige maior potência o agir sobre outro do que não sofrer a ação alheia. Ora, atacar é agir sobre outro; ao passo que suportar o ataque é perseverar inalterado. Ora, a coragem, designando uma perfeição da alma, parece próprio dela, antes, ataca que suportar o ataque.
3. Demais. – Um contrário dista mais de outro, do que a sua simples negação. Ora quem suporta um ataque só se limita a não temer; aquele que ataca, porém, dirige–se contra o primeiro, porque o ataca. Logo, como a coragem é sobretudo a que nos livra a alma do temor, mais lhe pertence atacar que suportar o ataque.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que o suportar a tristeza é o que sobretudo nos grangeia o nome de corajosos.
SOLUÇÃO. – Como dissemos e o confirma o Filósofo, a coragem tem por fim, antes, reprimir o temor do que moderar a audácia. Pois é mais difícil reprimir o temor do que moderar a audácia; porque já o perigo mesmo, que é o objeto da audácia e do temor, se por si mesmo contribui para reprimir aquela, faz aumentar este. Ora, atacar é próprio da coragem, quando deve moderar a audácia; ao passo que suportar o ataque resulta da repressão do temor. E por isso o ato principal da coragem é suportar, isto é, persistir inalterado nos perigos, mais do que atacar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Suportar um ataque é mais difícil que atacar, por três razões. – Primeiro, porque quem o suporta está sob a ação do mais forte, que o ataca; e quem ataca o faz por ser o mais forte. Ora, é mais difícil lutar com o mais forte do que com o mais fraco. – Segundo, porque quem suporta o ataque já sente o perigo iminente; ao passo que quem ataca o vê ainda futuro. Ora, é mais difícil não se deixar levar pelo presente do que pelo futuro. – Terceiro, porque suportar implica tempo demorado; ao passo que podemos atacar subitamente. Ora, é mais difícil permanecer inalterável durante muito tempo do que deixarse levar por um movimento súbito a arrostar uma dificuldade. Por isso diz o Filósofo: Há certos que, desafiando os perigos, neles recuam; o contrário é o proceder do corajoso.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Suportar não implica nenhuma paixão corpórea mas, um ato da alma fortemente unida ao bem a qual, por isso, não cede à paixão corporal já iminente. Ora, a virtude depende mais da alma do que do corpo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem suporta não teme, estando já presente a causa do temor; a qual não vê presente quem ataca.