Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute–se assim. – Parece que a audácia não se opõe à coragem.
1. – Pois, parece que o excesso, na audácia, provém da presunção da alma, Ora, a presunção implica a soberba, oposta à humildade. Logo, a audácia mais se opõe à humildade, que à coragem,
2. – Demais. – Parece que a audácia só é repreensível quando causa dano ao audaz que se expõe sem razão ao perigo; ou a outrem, atacando–o com a sua audácia ou fazendo–o cair no perigo. Ora, isto constitui Injustiça. Logo, a audácia, enquanto pecado, não se opõe à coragem, mas à justiça.
3. – Demais. – A coragem versa sobre o temor e a audácia, como se disse, Ora, a timidez, opondo–se à coragem por implicar excesso de temor, implica um vício, que se lhe opõe por falta de temor. Logo, se a audácia se opõe à coragem, por excesso, pela mesma razão há de se lhe opor algum vício, por falta de audácia. Ora, tal não se dá. Logo, também a audácia não deve ser considerada vício oposto à coragem.
Mas, em contrário, o Filósofo considera a audácia como oposta à coragem.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, é função da virtude moral fazer–nos observar o modo prescrito pela razão, na matéria sobre a qual versa. Portanto, todo vício que introduz a imoderação na matéria de uma virtude moral, se opõe a essa virtude, como o imoderado, ao moderado. Ora, a audácia, enquanto vício implica um excesso de paixão, chamado audácia. Por onde é claro que se opõe à virtude da coragem, que versa sobre o temor e a audácia, como dissemos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A oposição entre o vício e a virtude não tem seu fundamento principal na causa do vício, mas, na espécie mesma dele. Por onde, não há de necessariamente a audácia se opor à mesma virtude a que se opõe a presunção, que é a causa da audácia.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como a oposição direta dos vícios entre si não se funda na causa deles, assim também não, no efeito dos mesmos. Ora, o dano proveniente da audácia é um efeito dela, Por isso, não é um fundamento de sua oposição.
RESPOSTA À TERCEIRA – A ação da audácia consiste em afrontarmos o que se nos opõe, e a isso nos inclina a natureza; salvo, quando essa inclinação fica neutralizada pelo medo de sofrer o dano daí resultante. Por onde, o vício contrário à audácia, por excesso, só pode ter como contrário a falta de timidez; pois, como diz o Filósofo, os audaciosos precipitam–se cheios de ardor nos perigos, mas; quando os veem de perto, retiram–se, isto é, de medo.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a audácia não é pecado.
1. – Pois, diz a Escritura, falando do cavalo, que significa o bom pregador, segundo Gregório: Salta com brio, corre ao encontro dos armados. Ora, nenhum vício é objeto de louvor, em ninguém. Logo, ser audaz não é pecado.
2. Demais. – O Filósofo diz, devemos ser tardos em deliberar, e realizar o deliberado rapidamente. Ora, a audácia ajuda a agir rapidamente. Logo, a audácia não é pecado, mas antes, é digna de louvor.
3. Demais. – A audácia é uma paixão causada pela esperança, como se estabeleceu, quando se tratou das paixões. Ora, a esperança não é considerada pecado mas, antes, virtude. Logo, também a audácia não deve ser considerada pecado.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Não te ponhas a caminho com o homem atrevido para que não suceda que ele faça cair sobre ti os seus males. Ora, não devemos fugir da sociedade de ninguém senão por causa do pecado. Logo, a audácia é pecado.
SOLUÇÃO. – A audácia, como dissemos, é uma paixão. Ora, a paixão é às vezes moderada pela razão; outras vezes, carece de o ser, por excesso ou por defeito e então, é uma paixão viciosa. Ora, às vezes, as paixões se denominam pelo que nelas é superabundante; assim, ira se chama, não qualquer, mas a excessiva, que é viciosa. E, deste modo, a audácia, considerada com um excesso, é enumerada entre os pecados.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. - A audácia no lugar aduzido é considerada como moderada pela razão; e, nesse sentido, pertence à virtude da coragem.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A ação rápida é louvável, quando precedida do conselho, que é um ato de razão. Mas, não seria digno de louvor e procederia, antes, mal, quem, sem conselho, quisesse agir imediatamente; pois, o seu ato seria precipitado e pecaria por oposto à prudência, como dissemos. Por onde, a audácia, que contribui para a rapidez dos nossos atos, é louvável na medida em que obedece à razão.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Certos vícios, como certas virtudes, não tem denominação própria, conforme vemos no Filósofo. Por isso é necessário aplicar a certas paixões o nome das virtudes e dos vícios. E, sobretudo para designar certos vícios, recorremos às paixões, cujo objeto é mau, como é o caso do ódio, do temor, da ira e também da audácia. Mas a esperança e o amor, tendo como objeto o bem, recorremos a essas paixões para designar os nomes das virtudes.
O segundo discute–se assim. – Parece que ser impávido não se opõe à coragem.
1. – Pois, julgamos dos hábitos pelos atos. Ora, nenhum ato de coragem impede ninguém de ser impávido, pois quando pomos de parte o temor, resistimos fortemente aos obstáculos e audazmente os atacamos. Logo, ser impávido não se opõe à coragem.
2. Demais. – Ser impávido é um vício, quer por falta do amor devido, quer por soberba, quer por estultice. Ora, a falta do amor devido se opõe à caridade; a soberba, à humildade; e a estultice, à prudência ou à sabedoria. Logo, o vício da impavidez não se opõe à coragem.
3. Demais. – A virtude se opõe os vícios, como os extremos, ao meio. Ora, cada meio só tem, de um lado, um extremo. Logo, como de um lado o temor se opõe à coragem e do outro se lhe opõe a audácia, conclui–se que a impavidez não se lhe opõe.
Mas, em contrário, o Filósofo considera a impavidez oposta à coragem.
SOLUÇÃO. – Como dissemos a fortaleza versa sobre o temor e a audácia. Ora, toda virtude moral estabelece a medida da razão na matéria sobre que se exerce. Por onde, é próprio o corajoso nutrir um temor moderado pela razão, que o faz temer o que deve temer e quando o deve, e assim por diante. Ora, essa moderação racional pode desaparecer tanto por excesso como por defeito. Portanto, assim como a timidez se opõe à coragem, por excesso de temor, fazendo–nos temer o que não deveríamos ou quando não o deveríamos, assim também a impavidez se lhe opõe por falta de temor, fazendo–nos não temer o que deveríamos temer.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. É ato de coragem suportar e buscar a morte, sem temor; não de qualquer modo, mas, racionalmente. O que não faz o impávido.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A impavidez, especificamente, destrói a mediedade da coragem; e portanto diretamente se lhe opõe. Mas, nas suas causas, não impede que se oponha às outras virtudes.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O vício da audácia se opõe à coragem pelo excesso da audácia; e a impavidez, por falta de temor. Ao passo que a coragem estabelece uma mediedade entre uma e outra paixão. Por onde, não há inconveniente que tenha extremos diversos, a luzes diversas.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a destemidez não é pecado.
1. – Pois, o que se elogia num varão justo não é pecado. Ora, elogiando o varão justo, diz a Escritura: O justo, como leão afouto, estará sem terror. Logo, ser impávido não é pecado.
2. Demais: – A morte é o mais terrível dos males, segundo o Filósofo. Ora, nem a morte devemos temê–la, segundo a Escritura: Não temais aos que matam o corpo, etc. Nem qualquer mal que nos possam fazer os outros: Quem és tu para teres medo de um homem mortal? Logo, ser impávido não é pecado.
3. Demais. – O medo nasce do amor, como se estabeleceu. Ora, é próprio à perfeição da virtude não amar nenhum bem do mundo; pois, como diz Agostinho, o amor de Deus até o desprezo de si é próprio dos cidadãos da cidade celeste. Logo, nada temer de humano parece não ser pecado.
Mas, em contrário, diz a Escritura, do juiz iníquo: Não temia a Deus nem respeitava os homens.
SOLUÇÃO. – Nascendo o medo, do amor, devemos julgá–los a ambos do esmo modo. Ora, o medo de que agora tratamos é o pelo qual tememos os males temporais, resultante do amor dos bens temporais. Ora, a cada um nos é natural amar, como convém, a própria vida e os bens que a ela se ordenam; isto é, não fazendo consistir nisso o nosso fim, mas, empregando–os para a consecução do fim último. Portanto, quem não ama a esses bens como o deveria, contraria a inclinação natural e, por consequência, peca. Mas, ninguém nunca se divorcia totalmente desse amor, porque o natural não pode ser totalmente perdido. Por isso, diz o Apóstolo: Ninguém aborreceu jamais a sua própria carne. Por onde, os que a si mesmos se matam, por amor da vida o fazem, querendo–a livrar dos sofrimentos presentes.
Portanto, pode acontecer que alguém tema, menos do que deve, a morte, e os outros males temporais, por amar, menos do que deve, a vida e os seus bens. Mas, não temer nenhum desses males, não pode ser por falta total de amor, senão por pensarmos que não nos podem acontecer os males opostos aos bens amados. O que às vezes se dá por soberba da alma mui presumida de si e que despreza os outros, segundo aquilo da Escritura: Foi feito para que não temesse a nenhum; todo o alto vê. Outras vezes tal se dá por falta de razão; assim, como diz o Filósofo, os Celtas, por estupidez, nada temem. Por onde é claro que ser impávido é um vício, quer provenha da falta de amor, quer da soberba da alma, quer da estupidez, o que escusa do pecado, se for invencível.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. – O justo é louvado, pelo temor, que não o afastado bem e não, por ser isento de temor; pois, diz a Escritura: Aquele que está sem temor não poderá ser justificado.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A morte, nem nenhum outro mal que nos pode fazer qualquer pessoa não os devemos temer por serem atos injustos. Mas, sim, porque nos podem impedir a prática de atos virtuosos, por nós mesmos ou pelo progresso com que fazemos se adiantarem os outros. Donde o dizer a Escritura: O sábio teme e desvia–se do mal.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Devemos desprezar os bens temporais quando nos impedem de amar e temer a Deus; e, por essa mesma razão, também não os devemos temer. Donde o dito da Escritura: Aquele que teme ao Senhor de nada tremerá. Mas, não devemos desprezar os bens temporais, enquanto instrumentos que nos ajudam a temer e amar a Deus.
O quarto discute–se assim. – Parece que o temor não escusa do pecado.
1. – Pois, o temor é um pecado, como se disse. Ora, o pecado não escusa do pecado, mas, ao contrário, agrava–o. Logo, o temor não escusa do pecado.
2. Demais. – Se algum temor escusasse do pecado, o temor da morte é que sobretudo o faria, temor que ataca mesmo quem tem firmeza. Ora, parece que esse temor não escusa, porque a morte, ameaçando necessariamente a todos, não deve ser temida. Logo, o temor não escusa do pecado.
3. Demais. – Todo temor o é de um mal temporal ou espiritual. Ora, o temor de um mal espiritual não pode escusar do pecado, porque longe de nos levar ao pecado, antes, nos afasta dele. Também não escusa do pecado o temor de um mal temporal; pois, como diz o Filósofo, não devemos temer a pobreza, nem a doença, nem o que quer que não proceda da nossa malícia. Logo, parece que de nenhum modo o temor escusa do pecado.
Mas, em contrário, diz uma Decretal: Quem sofreu violência e contra a vontade foi ordenado por heréticos, tem motivo para ser escusado.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, o temor é pecado na medida em que contraria a ordem da razão. Ora a razão julga que certos males devem ser evitados, mais que outros. Por onde, quem evita os males que a razão considera como devendo ser por excelência, evitados e não evita os que são menos para se evitarem, não incorre em pecado. Assim, devemos fugir, antes, à morte do corpo do que à perda dos bens temporais. Portanto, fica isento de pecado quem prometeu ou deu alguma cousa aos ladrões, por temor da morte; mas, incorreria em pecado se desse a pecadores, deixando de lado, sem causa legítima, os bons a quem, sobretudo devia dar. Mas, não poderia ficar de todo isento de pecado quem fugindo, por medo, de males que a razão não considera como se devendo, sobretudo evitar, viesse a cair em outros que ela considera como devendo ser, sobretudo evitados. Porque esse temor seria desordenado. Ora, mais que os males do corpo, devemos evitar os da alma; e os do corpo mais que o das coisas externas. Portanto, não fica totalmente isento de pecado quem cometa pecados, que são o mal da alma, para fugir aos males do corpo, como os açoites ou a morte, ou os males das coisas externas, como a perda de dinheiro, ou de sofrer os males do corpo para evitar perder dinheiro. Mas, de certo modo, esse pecado fica diminuído; porque o ato praticado por temor é menos voluntário porque nos impõe uma certa necessidade de pratica–lo pelo medo que ameaça. Por isso, o Filósofo considera os atos praticados por medo não absolutamente voluntários mas, mistos de voluntário e involuntário.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O temor não é escusado como pecado, mas, como involuntário.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Embora todos devamos necessariamente sofrer a morte, contudo, o fato mesmo de se nos acabar a vida do corpo é um mal e, portanto, temível.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Segundo os Estóicos, que não consideravam os bens temporais como bens do homem, resulta consequentemente que males humanos também não são os males temporais, nem por isso devem ser temidos. Mas, segundo Agostinho, esses bens temporais são os mínimos dos bens. O que também pensavam os Peripatéticos. Por isso; o que os contraria deve ser temido; não porém muito a ponto de, por amor deles, abandonarmos o bem da virtude.
O terceiro discute–se assim. – Parece que o temor não é pecado mortal.
1. – Pois, o temor, como se disse, pertence ao irascível, que faz parte da sensualidade. Ora, na sensualidade só há pecado venial, como se disse. Logo, o temor não é pecado mortal.
2. Demais. Todo pecado mortal nos afasta totalmente de Deus. Ora, tal não faz o temor; pois, àquilo da Escritura – Aquele que é medroso, etc., – diz a Glosa: Tímido é quem, ao primeiro aproximar–se do combate, treme; mas, não se deixando vencer totalmente do terror, pode ter mão em si e de novo animar–se. Logo, o temor não é pecado mortal.
3. Demais. – O pecado mortal nos faz abandonar não só a perfeição, mas também o preceito. Ora, o temor não nos faz abandonar o preceito, mas só a perfeição. Pois, aquilo da Escritura – Há algum medroso e de coração tímido, etc. – diz a Glosa: Ensina que não podemos entrar na vida contemplativa ou professar na milícia espiritual se tememos nos despojar das riquezas terrestres. Logo, o temor não é pecado mortal.
Mas, em contrário, só o pecado mortal merece a pena do inferno. E, contudo a merece o tímido, segundo a Escritura: Pelo que toca aos tímidos e aos incrédulos e aos execráveis etc., a sua parte será no tanque ardente de fogo e de enxofre, que é a segunda morte. Logo, a timidez é pecado mortal.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, o temor é pecado quando desordenado; isto é, quando nos faz fugir do que racionalmente não devíamos fugir. Ora, esta desordem do temor às vezes é só do apetite sensitivo, sem cooperação do apetite racional; e então não pode ser pecado mortal, mas é só venial. Mas, outras vezes, essa desordem atinge até o apetite racional, chamado vontade, pelo qual livremente fugimos do que racionalmente não devíamos fugir. E então é umas vezes pecado mortal e, outras, venial. Pois, quem, fugindo, por medo, ao perigo de morte, ou qualquer outro mal temporal, dispõe–se a praticar um ato proibido ou a omitir o que é preceituado pela lei divina, cede a um temor que é pecado mortal. Do contrário, é venial.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A objeção colhe relativamente ao temor limitado à sensualidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Também a Glosa citada pode ser entendida do temor nos limites da sensualidade. – Ou podemos dizer, melhor, que se deixa vencer totalmente do terror aquele cujo coração é dominado por ele irreparavelmente. Mas, pode acontecer que, mesmo sendo pecado mortal, o temor não nos domine tão obstinadamente que não possamos ceder a persuasão. Tal o caso de quem, pecando mortalmente por ceder à concupiscência, deixa–se persuadir a não consumar o ato que se propôs praticar.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A Glosa se refere ao temor que desvia o homem do bem que não é de necessidade de preceito, mas, da perfeição do conselho. Ora, esse temor não é pecado mortal mas às vezes, venial. E outras vezes nem é pecado venial; por exemplo, quando tememos por uma causa racional.
O segundo discute–se assim. – Parece que o pecado do temor não se opõe à coragem.
1. – Pois, a coragem enfrenta os perigos de morte, como se estabeleceu, Ora, o pecado do temor nem sempre se funda no perigo de morte; porque, aquilo da Escritura – Bem–aventurados todos os que temem ao Senhor – diz a Glosa: Temor humano é aquele pelo qual tememos perder a vida ou os bens temporais. E àquilo do Evangelho – Foi orar terceira vez, dizendo as mesmas palavras – comenta a Glosa: Há três maus temores, a saber, o da morte, da dor e da humilhação. Logo, o pecado do temor não se opõe à coragem.
2. Demais. – O que é sobretudo louvável, no ato de coragem, é o nos expormos ao perigo de morte. Ora, às vezes, certos, por temor da escravidão, ou da ignomínia, expõem–se ao perigo de morte; assim, narra Agostinho, que Catão, para não cair sob o poder de césar, deu–se a morte. Logo, o pecado do temor não se opõe à coragem, mas, ao contrário, tem semelhança com ela.
3. Demais. – Todo desespero procede de algum temor. Ora, o desespero não se opõe à coragem, mas antes, à esperança, como se estabeleceu. Logo, também o pecado do temor não se opõe à coragem.
Mas, em contrário, o Filósofo considera a timidez oposta à coragem.
SOLUÇÃO. – Como dissemos todo temor procede do amor, pois, não tememos senão o contrário do que amamos. Ora, o amor não é determinado a nenhum género de virtude ou de vício. Mas, o amor ordenado se inclui em qualquer virtude; pois, qualquer pessoa virtuosa ama o bem próprio da virtude. Ao contrário, o amor desordenado se inclui em qualquer pecado; pois, do amor desordenado procede a cobiça desordenada. Por onde e semelhantemente, o temor desordenado se inclui em qualquer pecado; assim, o avarento teme perder o dinheiro, o intemperante, o prazer e assim por diante. Ora, o principal de todos os perigos é o da morte, como o prova Aristóteles. Logo, a desordenação oriunda desse temor se opõe à coragem, que enfrenta os perigos da morte. Donde o dizer–se, por antonomásia, que a timidez se opõe à coragem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Os lugares citados se referem ao temor desordenado em sentido geral, que pode ser oposto a diversas virtudes.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os atos humanos sobretudo, se julgam pelo fim, como do sobredito se colhe. Ora, é próprio do homem forte expor–se ao perigo de morte, para a consecução de algum bem. Mas, quem se expõe aos perigos de morte para evitar a escravidão ou qualquer sofrimento, deixa–se vencer do temor, que é contrário à coragem. Por isso diz o filósofo, que morrer para fugir da pobreza ou de qualquer sofrimento não é próprio do corajoso, mas antes, do irmão; pois é fraqueza evitar a adversidade das paixões ou dos sofrimentos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Conforme dissemos, assim como a esperança é o princípio da audácia, assim à temor, do desespero. Por onde, assim como o forte, que é moderadamente audacioso, pressupõe a esperança, assim e ao contrário, o desespero procede de algum temor. Mas não é forçoso que qualquer desespero proceda de qualquer temor, senão do que lhe corresponde genericamente. Ora, o desespero oposto à esperança, concernindo a matéria divina, pertence a outro gênero que o do temor oposto à coragem, que concerne aos perigos de morte. Por isso, a objeção não colhe.
O primeiro discute–se assim. – Parece que o temor não é pecado.
1. – Pois, o temor é uma paixão, como se estabeleceu. Ora, as paixões não são causas de sermos louvados nem censurados, como está claro em Aristóteles. Logo, sendo todo pecado censurável, parece que o temor não é pecado.
2. Demais. – Nada do que a lei divina manda é pecado, porque a lei do Senhor é imaculada, no dizer da Escritura: Ora, o temor é ordenado pela lei de Deus, como diz o Apóstolo: Servos, obedecei a vossos senhores temporais com temor e tremor. Logo, o temor não é pecado.
3. Demais. – Nada do que é natural ao homem é pecado, porque o pecado é contrário à natureza, no dizer de Damasceno. Ora, temer é natural ao homem; e por isso ensina o Filósofo, que é louco, ou não tem o senso da dor, quem nada teme – nem terremotos nem inundações. Logo o temor não é pecado.
Mas, em contrário, diz o Senhor: Não temais aos que matam o corpo. E noutro lugar: Não tenhas medo deles nem temas as suas palavras.
SOLUÇÃO. – Constitui pecado, nos atos humanos, o que é desordenado; pois, o ato humano bom supõe uma certa ordem, como do sobredito resulta. Ora, nesta matéria, a ordem devida exige a submissão do apetite ao regime da razão. Ora, esta diz que devemos praticar certos atos e evitar outros; e dentre os que devemos evitar, uns devem sê–lo mais que outros. E semelhantemente, dos que devemos praticar, uns devem sê–Io mais que outros; e quanto maior for a obrigação de praticarmos um ato bom, tanto maior será a obrigação de evitarmos o seu contrário. Por isso, a razão nos dita que certos bens devemos pratica–los de preferência a evitarmos os males opostos. Portanto, quando o apetite foge do que a razão manda sofrer, para não abandonar um bem da natureza superior, o temor é desordenado e tem a natureza de pecado. Mas, quando o apetite foge, por temor, o que a razão exigiria que ele fugisse, então ele não é desordenado, nem há pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O temor em si mesmo considerado, leva–nos, por natureza, e geralmente, a fugir. Por onde, a esta luz, não implica naturalmente nem o bem nem o mal. E o mesmo devemos dizer, de qualquer outra paixão. Por isso, ensina o Filósofo, que as paixões não são em si mesmas nem louváveis nem censuráveis; assim, não são dignos de louvor nem de censura os que se encolerizam ou temem; mas os que cedem a essas paixões, ordenada ou desordenadamente.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O temor a que o Apóstolo concita é consentâneo com a razão; assim, leva o escravo a temer não deixe de prestar os serviços, que deve ao senhor.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os males a que não podemos resistir e cujo sofrimento nenhum bem nos traz a razão nos diz, que devemos evitá–los. Logo, temê–los não é pecado.
O quinto assim se procede. – Parece que só a fé é causa do martírio.
1. –Pois, diz a Escritura: Nenhum de vós padeça como homicida, ou ladrão, ou de modo semelhante; se, porém padece como Cristão não se envergonhe; mas glorifique a Deus neste nome. Ora, chama–se cristão quem professa a fé de Cristo. Logo, só a fé de Cristo dá aos que sofrem a glória do martírio.
2. Demais. – Mártir significa como que testemunha. Ora, o testemunho não se dá senão à verdade. Pois, mártir não se chama quem dá testemunho de qualquer verdade, mas, só, da verdade divina. Do contrário, quem morresse pela confissão de uma verdade geométrica ou de outra ciência especulativa, seria mártir; o que é ridículo. Logo, só a fé é causa do martírio.
3. Demais. – Parece que as mais excelentes obras virtuosas são as ordenadas ao bem comum, porque o bem do povo é preferível ao do indivíduo, segundo o Filósofo. Suposto, pois, que outro bem, que não a fé, fosse a causa do martírio, mártires por excelência seriam os que morressem pela defesa da república. Ora, isso não é de nenhum modo conforme à prática da Igreja. Assim, não se celebram martírios de soldados mortos numa guerra justa. Logo, só a fé é a causa do martírio.
Mas, em contrário, a Escritura: Bem–aventurados os que padecem perseguição por amor da justiça; o que constitui o martírio, como diz a Glosa a esse lugar. Ora, à justiça pertence não só a fé, mas também as outras virtudes. Logo, também as outras virtudes podem ser causa do martírio.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, os mártires são uns como testemunhos; pois, pelos sofrimentos mortais que padecem no corpo, dão testemunho da verdade, não de qualquer, mas da verdade religiosa, que Cristo nos ensinou; e por isso se chamam mártires de Cristo, ou uns como testemunhos dele. Ora, tal é a verdade da fé. Logo, a causa de todo martírio é a verdade da fé. – Ora, esta exige não só a crença interior do espírito mas ainda, a sua manifestação exterior. E esta se faz não só pelas palavras com que confessamos a fé, mas também pelos atos manfestativos da fé que professamos, segundo a Escritura: Eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. E por isso, de certos diz o Apóstolo:
Eles confessam que conhecem a Deus; mas negam–no com as obras. Por onde, todas as obras virtuosas, quando referidas a Deus, são manifestações da fé, pela qual sabemos que Deus as exige de nós e por elas nos há de remunerar. E a esta luz podem ser causa de martírio. Por isso, a Igreja celebra o martírio de S. João Baptista, que padeceu a morte, não para vindicar a fé negada, mas, para repreender o adultério.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Cristão se chama ao que é de Cristo. Ora, chama–se de Cristo não somente quem tem a fé de Cristo, mas também quem pratica obras virtuosas com o espírito de Cristo, conforme àquilo do Apóstolo: Se algum não tem o espírito de Cristo, este tal não é dele. E ainda quem, para imitar a Cristo, morre para o pecado, conforme à Escritura: Os que são de Cristo crucificaram a sua própria carne com os seus vícios e concupiscências. Por onde, sofre como Cristão, não só quem, por suas palavras, sofre, confessando a fé, mas também todo aquele que padece, praticando qualquer boa obra evitando qualquer pecado, por amor de Cristo. Pois, tudo isto são formas de se manifestar a fé.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A verdade das outras ciências não concerne ao culto da divindade; por isso não se chama verdade religiosa. Por onde o confessá–la não pode ser causa direta de martírio. Mas, como toda mentira é pecado, segundo dissemos, contar a mentira, seja esta contrária a qualquer verdade que for, enquanto mentira, é pecado contrário à lei divina e pode ser causa de martírio.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O bem da república é o primeiro dos bens humanos. Ora, o bem divino, que é a causa própria do martírio, é mais excelente que o bem humano. Mas, como o bem humano pode tornar–se divino, se se referir a Deus, por isso, qualquer bem humano pode ser causa de martírio, enquanto referido a Deus.
O quarto discute–se assim. – Parece que a morte não é da essência do martírio.
1. – Pois, escreve Jerónimo: Poderia com razão dizer que a virgem Mãe de Deus foi mártir, embora tivesse terminado a vida naturalmente. E Gregório: Embora não se no, ofereça nenhuma ocasião de perseguição, contudo, a nossa vida normal encerra o seu martírio; porque, apesar de não termos que sofrer, materialmente falando, o ferro do verdugo, por um como gládio espiritual espiritual do nosso coração os desejos carnais. Logo, pode haver martírio sem se sofrer a morte.
2. Demais. – Lemos que certas mulheres, para conservar a sua virgindade corpórea integra, foram louvadas por terem desprezado a vida; donde se conclui que a integridade corporal da castidade é preferível à vida do corpo. Ora, às vezes, por confissão da fé cristã, essa mesma integridade da carne é destruída ou ameaçada de o ser, como bem o mostram os casos de Inês e Lúcia. Logo, sofre mais propriamente o martírio, devemos dizê–lo, uma mulher perdendo, por amor de Cristo, a sua integridade virginal do que perdendo mesmo a vida do corpo. Por isso, foi dito de Lúcia: Se me fizeres violar, contra a minha vontade, terei, pela, minha castidade, dupla coroa.
3. Demais. – O martírio é um ato de coragem. Ora, é próprio da coragem não temer nem a morte nem qualquer outra adversidade, como diz Agostinho. Ora, há muitas outras adversidades, além da morte, que se podem sofrer pela fé de Cristo: o cárcere, o exílio, a espoliação dos bens, como diz S. Paulo. Por isso, é celebrado o martírio do papa S. Marcelo, que, contudo, morreu no cárcere. Logo, não há de necessariamente sofrer a pena de morte quem sofre o martírio.
4. Demais. – O martírio é um ato meritório, como dissemos. Ora, não pode haver ato meritório depois da morte. Logo, nem antes da morte. E, portanto a morte não é da essência do martírio.
Mas, em contrário, Máximo diz, que vence, morrendo pela fé, quem venceria vivendo sem fé.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, mártir significa como que testemunho da fé cristã, que nos manda desprezar o visível pelo invisível, como diz o Apóstolo. Ora, o martírio consiste em darmos testemunho da fé, mostrando, por obras, que desprezamos todos os bens presentes para alcançarmos os futuros e invisíveis. Mas, enquanto vivemos nesta vida ainda não mostramos, por obras, que desprezamos todas as coisas materiais. Por isso, costumam os homens desprezar os parentes e todos os bens que possuem, e mesmo sofrer as dores do corpo, para conservarem a vida. Donde o dizer Satã contra Job: O homem dará pele por pele e deixará tudo o que possui pela sua, vida, isto é, pela vida do corpo. Por onde, o martírio, na sua noção perfeita, exige que se sofra a morte por Cristo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. – Os lugares citados, e outros semelhantes, se referem ao martírio, por semelhança.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A mulher que perde a integridade do seu corpo ou é condenada a perdê–la, por ter proclamado a sua fé cristã, os homens não o sabem com segurança se ela sofreu essa perda por amor da fé cristã, ou se, antes, por desprezo da castidade. Por isso, esse fato não constitui, perante eles, testemunho suficiente. Por onde, não realiza a noção própria de martírio. Mas, perante Deus, que perscruta os corações, pode ser digno de prémio, como disse Lúcia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como dissemos, a coragem versa principalmente sobre o perigo de morte; sobre as outras adversidades, por via de consequência. Por onde, não basta para constituir martírio o só sofrimento da prisão, do exílio ou da espoliação dos bens, senão enquanto daí resulta a morte.
RESPOSTA À QUARTA. – O mérito do martírio não é para depois da morte, mas, está no ato mesmo de sofrê–la voluntariamente, isto é, em sofrermos voluntariamente que ela nos seja infligida. Mas, pode acontecer, às vezes, que alguém viva ainda bastante depois de ter recebido, por Cristo, ferimentos mortais, ou quaisquer outras tribulações continuadas até a morte, sofridas, dos perseguidores, por fé de Cristo. E nessas condições o ato do martírio é meritório e ainda durante o tempo mesmo em que tais padecimentos são sofridos.