Skip to content

Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 1 – Se os preceitos do decálogo são preceitos de justiça.

O primeiro discute–se assim. – Parece que os preceitos do decálogo não são preceitos de justiça.

1. – Pois, a intenção do legislador é fazer os cidadãos virtuosos em toda espécie de virtude, como diz Aristóteles; e por isso também diz que a lei ordena sobre todos os atos de todas as virtudes. Ora, os preceitos do decálogo são os primeiros princípios de toda a lei divina. Logo, os preceitos do decálogo não pertencem somente à justiça.

2. Demais. – Parece que à justiça pertencem principalmente os preceitos judiciais, que se dividem dos morais, por oposição, como se estabeleceu. Ora, os preceitos do decálogo são morais, segundo se disse. Logo, os preceitos do decálogo não são preceitos de justiça.

3. Demais. – A lei estabelece principalmente preceitos relativos aos atos de justiça, para o bem comum; como por exemplo, os concernentes às funções públicas e outros semelhantes. Ora, destes não fazem menção os preceitos do decálogo. Logo, parece que os preceitos do decálogo pertencem propriamente à justiça.

4. Demais. – Os preceitos do decálogo se dividem em duas taboas, conforme dizem respeito ao amor de Deus ou ao do próximo, que pertencem à virtude da caridade. Logo, os preceitos do decálogo mais pertencem à caridade que à justiça.

Mas, em contrário, a justiça é a única virtude que regula os nossos atos em relação a outrem, Ora, para regular essas relações, foram dados todos os preceitos do decálogo, como o verá quem percorrer cada um deles. Logo, todos os preceitos do decálogo pertencem à justiça.

SOLUÇÃO. – Os preceitos do decálogo são os primeiros preceitos da lei, aos quais a razão natural dá primeiramente o seu assentimento, como aos que mais manifestos são. Ora, muito manifestamente a ideia de dever, que todo preceito supõe, aparece na justiça, que regula as nossas relações com terceiros. Pois, nas nossas relações conosco mesmo, compreendemos desde logo que somos senhor dos nossos atos e podemos fazer o que nos apraz; mas, nas nossas relações com os outros, torna–se–nos desde logo claro que temos obrigação de lhes prestar o que lhes devemos. Portanto, os preceitos do decálogo teriam que ser da alçada da justiça. Por isso, os três primeiros regulam os atos, de religião, que é a parte mais importante da justiça; o quarto, os atos de piedade, segunda parte da justiça; os outros seis concernem à justiça em sentido geral, que se aplica nas relações entre iguais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇAO. – A lei visa fazer todos os homens virtuosos, mas numa certa ordem, de modo que lhes de primeiramente os preceitos em matéria onde é mais manifesta a ideia de dever, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os preceitos judiciais são umas certas determinações dos preceitos morais, enquanto ordenados ao próximo; assim como os cerimoniais são certas determinações dos preceitos morais enquanto ordenados a Deus. Por isso o decálogo não encerra nem uns nem outros. E contudo os preceitos do decálogo são determinações. Logo, pertencem à justiça.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O pertencente ao bem comum há de ser diversamente dispensado, conforme a diversidade dos homens. Por isso, os preceitos, nessa matéria, não deviam estar compreendidos no decálogo, mas nos preceitos judiciais.

RESPOSTA À QUARTA. – Os preceitos do decálogo têm como fim a caridade, segundo o Apóstolo: o fim do preceito é a caridade. Mas, pertencem à justiça, porque lhe regulam imediatamente os atos.

Art. 2 – Se ao dom da piedade corresponde a segunda bem aventurança, a saber: Bem aventurados os humildes.

O segundo discute–se assim. – Parece que ao dom da piedade não corresponde a segunda bem aventurança, a saber: Bem aventurados os humildes.

1. – Pois, a piedade é um dom correspondente à justiça, à qual mais pertence a quarta bem aventurança, a saber: Bem aventurados os que tem fome e sede da justiça. Ou ainda a quinta: Bem aventurados os misericordiosos, porque, como se disse, as obras de misericórdia pertencem à piedade. Logo, a segunda bem aventurança não corresponde ao dom da piedade.

2. Demais. – O dom da piedade é dirigido pelo da ciência, que a Escritura acrescenta, na enumeração dos dons. Ora, o dirigente e o, exsequente fazem a mesma causa. Por onde, correspondendo à ciência a terceira bem aventurança, isto é – Bem aventurados os que choram, parece que não corresponde à piedade a segunda bem aventurança.

3. Demais. – Os frutos correspondem às bem aventuranças e aos dons, como se demonstrou. Ora, entre os frutos, parece que a bondade e a benignidade convêm mais com a piedade, que a mansidão, que pertence à humildade. Logo, a segunda bem aventurança não corresponde ao dom de piedade.

Mas, em contrário, Agostinho diz: A piedade convém aos humildes.

SOLUÇÃO. – Na correspondência das bem aventuranças com os dons, podemos atender a uma dupla conveniência. Uma, conforme a noção de ordem, que parece ter seguido Agostinho. Por isso, atribui a primeira bern  aventurança ao dom ínfimo, que é o do temor; à segunda,  porém, a saber, Bem aventurados os humildes – ao da piedade, e assim por diante. – Outra conveniência é a que podemos considerar levando em conta a noção própria de dom e de bem aventurança. E, a esta luz, devemos fazer corresponder as bem aventuranças aos dons, relativamente aos objetos e aos atos, E assim, à piedade cor responder ia antes a quarta e a quinta bem aventurança, que a segunda. Mas, a segunda tem uma certa conveniência com a piedade, enquanto que a mansidão destrói os obstáculos aos atos de piedade.

Donde se deduz clara a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Conforme à propriedade das bem aventuranças e dos dons, uma mesma bem aventurança há de corresponder à ciência e à piedade. Mas, quanto à noção de ordem, diversas bem aventuranças lhe correspondem, observada, contudo, uma certa conveniência, como se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A bondade e a benignidade, dentre os frutos, podem atribuir–se diretamente à piedade; mas, a mansidão, indiretamente, enquanto destrói os impedimentos aos atos de piedade, como se disse.

Art. 1 – Se a piedade é um dom.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a piedade não é um dom.

1. – Pois, os dons diferem das virtudes, como já se estabeleceu. Ora, conforme se disse, a piedade é uma virtude. Logo, a piedade não é um dom.

2. Demais. – Os dons são mais excelentes que as virtudes, sobretudo as morais, como se demonstrou. Ora, das partes da justiça, a religião é mais importante que a piedade. Portanto, se alguma parte da justiça deve ser considerada um dom, parece que deveria ser antes, a religião, que a piedade.

3. Demais. – Os dons e os seus atos perduram na pátria, corno se demonstrou. Ora, um ato de piedade não pode perdurar nela; pois, como diz Gregório, a piedade do coração enche de obras as vísceras da misericórdia: e portanto não existirá na pátria, onde não há nenhuma miséria, Logo, a piedade não é um dom.

Mas, em contrário, Isaías a considera como um dom.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos os dons do Espírito Santo são certas disposições habituais da alma, que fazem com que ela se deixe facilmente mover por ele. Ora, entre outros motivos, o Espírito Santo nos move a fim de despertar em nós um afeto filial para com Deus, conforme às palavras do Apóstolo: Recebestes o espírito de adoção de filhos segundo o qual chamamos dizendo: Pai, Pai. E como à piedade propriamente pertence prestar reverência e culto aos pais, ela é, por consequência, um dom do Espírito Santo pelo qual prestamos culto e reverência a Deus, como Pai, por inspiração do Espírito Santo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A piedade pela qual prestamos reverência e culto aos pais carnais é uma virtude; mas a piedade, como dom, os presta a Deus, como Pai.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Prestar culto a Deus como Criador, o que faz a religião, é mais excelente do que prestá–la ao pai carnal, o que faz a piedade, que é uma virtude. Mas, prestar culto a Deus, como Pai, é ainda mais excelente do que prestar–lho como a Deus, Criador e Senhor. Por onde, a religião é superior à virtude da piedade; mas, a piedade, como dom, é superior à religião.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como pela piedade, enquanto virtude, prestamos reverência e culto, não só ao pai carnal, mas também a todos os próximos pelo sangue, enquanto chegados ao pai, assim também a piedade, enquanto dom, não só presta reverência e culto a Deus, mas ainda a todos os homens, enquanto filhos de Deus. E por isso, a ela pertence honrar os santos; não contradizer à Escritura, entendida ou não, somos diz Agostinho. E também ela, por consequência, socorre aos – caídos em miséria. E embora a prática desse ato não seja possível na pátria, sobretudo depois do dia de juízo, haverá porém lugar para a ato principal da' piedade, que é reverenciar a Deus com afeto filial, o que então sobretudo se fará, conforme o diz a Escritura: Ei–los aí como tem sido contados entre os filhos de Deus. Também os Santos hão se de honrar mutuamente, então. Ao passo que agora, antes do dia de juízo, os santos se compadecem também daqueles que vivem na miséria da vida presente.

Art. 2 – Se a epiquéia faz parte da justiça.

O segundo discute–se assim. – Parece que a epiquéia não faz parte da justiça.

1. – Pois, como do sobre dito resulta, há duas espécies de justiça – a particular e a legal. Ora, a epiquéia não faz parte da justiça particular, porque se aplica a todas as virtudes como também à justiça legal. Do mesmo modo, não faz parte da justiça legal, porque procede fora do que foi determinado por lei. Logo, parece que a epiquéia não faz parte da justiça.

2. Demais. – Uma virtude mais principal não pode ser considerada parte da menos principal ; assim, das virtudes cardiais, como principais, dependem as secundárias, como partes. Ora, a epiquéia parece virtude mais principal que a justiça, como o próprio nome o indica; pois, vem de epi, isto é, sobre, e dikaion, isto é, justo. Logo, a epiquéia não faz parte da justiça.

3. Demais – Parece que a epiquéia é o mesmo que a modéstia. Pois, quando o Apóstolo diz – A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens em grego lê–se epieikeia em lugar do latim – modéstia. Ora, segundo Túlio, a modéstia faz parte da temperança. Logo, a epiquéia não faz parte da justiça.

Mas, em contrário, diz o Filósofo: O que tem a epiquéia é uma espécie de justo.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, toda virtude tem três partes: a subjetiva, a integrante e a potencial. A parte subjetiva é à que essencialmente é atribuído o todo, e é menos do que ele. O que pode dar–se de dois modos. Assim, às vezes a vários sujeitos se faz uma atribuição, segundo uma mesma noção, como no caso de animal ser predicado do cavalo e do boi. Outras vezes, a predicação é feita primariamente de um, e secundariamente, de outro, como quando ente o é, da substância e do acidente. Por onde, a epiquéia faz parte da justiça geralmente considerada e é uma certa justiça, como diz o Filósofo. Portanto, é claro que a epiquéia é parte subjetiva da justiça. E a ela se atribui a justiça antes de se atribuir à justiça legal; pois, a justiça: legal é dirigida pela epiquéia. Por onde, a epiquéia é uma como regra superior dos atos humanos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A epiquéia corresponde propriamente à justiça legal, estando compreendida nela, de certo modo e, de certo outro, excedendo–a. Se considerarmos a justiça legal como a que nos faz obedecer à lei, quer à sua letra, quer à intenção do legislador, que lhe é superior, então a epiquéia é a parte mais importante da justiça legal. Se, porém considerarmos, como justiça legal só a que nos faz obedecer às palavras da lei, então à epiquéia não faz parte dessa justiça, mas, da justiça considerada em sentido geral, que se divide, por oposição, da justiça legal, como o que excede a esta.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Como diz o Filósofo, a epiquéia é melhor que uma certa justiça, a saber, a legal, que nos manda obedecer à letra da lei. Contudo, como é de certo modo justiça, não é melhor que qualquer justiça.

RESPOSTA À TERCEIRA. – É próprio da epiquéia introduzir moderação na obediência à letra da lei. Ao passo que a modéstia, considerada como parte da temperança, modera a vida exterior do homem, quanto ao andar, ao vestir e causas semelhantes, Pode, porém ter–se dado que os Gregos transferissem, por uma certa semelhança, o nome de epiquéia para significar toda espécie de moderação.

Art. 1 – Se a epiquéia é uma virtude.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a epiquéia não é uma virtude.

1. – Pois, nenhuma virtude destrói outra. Ora, a epiquéia destrói outra virtude, eliminando o justo legal, e parece opor–se à severidade. Logo, a epiquéia não é uma virtude.

2. Demais. – Agostinho diz: Embora os homens julguem das leis temporais, quando as instituem, contudo, uma vez instituídas e confirmadas, já não será lícito julgar delas, mas, julgar por elas. Ora, parece que a epiquéia julga a lei, quando estabelece que não deve ser observada num determinado caso. Logo, a epiquéia é antes vício que virtude.

3. Demais. – Parece próprio da epiquéia nos fazer atender à intenção do legislador, como diz o Filósofo. Ora, só ao chefe pertence interpretar a intenção do legislador. Por isso, diz o Imperador, mima constituição: Só a nós compete e é lícito examinar a interpretação interposta entre a equidade e o direito, Logo, o ato da epiquéia não é lícito, e portanto, a epiquéia não é uma virtude.

Mas, em contrário, o Filósofo a considera como virtude.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, quando tratamos das leis, os atos humanos, que as leis devem regular, são particulares e contingentes e podem variar ao infinito. Por isso, não é possível instituir nenhuma lei que abranja todos os casos; mas, os legisladores legislam tendo em vista o que sucede mais frequentemente. Contudo, é contra a igualdade da justiça e contra o bem comum, que a lei visa observá–la em certos casos determinados. Assim, a lei determina que os depósitos sejam restituídos, porque tal é justo na maioria dos casos; mas, pode acontecer que seja nocivo, num caso dado. Por exemplo, se um louco, que deu em depósito uma espada, a exija no acesso da loucura; ou se alguém exija o depósito para lutar contra a pátria. Nesses casos e em outros semelhantes é mau observar a lei estabelecida; ao contrário, é bom, pondo de parte as suas palavras, seguir o que pede a ideia da justiça e da utilidade comum. E a isso se ordena a epiquéia, a que nós chamados equidade. Por onde é claro que a epiquéia é uma virtude.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A epiquéia não se afasta do justo em si; mas do que é determinado por lei. Nem tão pouco se opõe à severidade, que segue a verdade a lei, no que é necessário; mas, no que não o é, seria vicioso segui–la. Por isso, diz o Código: Não há dúvida que procede contra a lei aquele que, obedecendo–lhe às palavras, vai contra a vontade do legislador.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Julga da lei quem diz que não foi bem feita. Mas, quem diz que a sua letra não deve ser observada num caso dado, dela não julga, mas, de um ato particular ocorrente.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A interpretação tem lugar nos casos duvidosos; nos quais não é ilícito, sem determinação do príncipe, afastar–se das palavras da lei. Ao contrário, nos casos manifestos é necessária não a interpretação, mas, a execução.

Art. 3 – Se a prodigalidade é mais grave pecado do que a avareza.

O terceiro discute–se assim. – Parece que a prodigalidade é mais grave pecado que a avareza.

1. – Pois, o avarento é nocivo ao próximo, com quem não reparte dos seus bens. Ora, o pródigo a si mesmo é nocivo; assim, como diz o Filósofo, malbaratar as riquezas, que nos tornam possível a vida constitui uma perda, do nosso próprio ser. Ora, peca mais gravemente quem a si mesmo se faz mal. segundo aquilo da Escritura: Para que outra pessoa será bom aquele que é mau para si? Logo, a prodigalidade é pecado mais grave que a avareza.

2. Demais. – É menos viciosa a desordem acompanhada de alguma circunstância louvável. Ora, a desordem da avareza é às vezes acompanhada de alguma circunstância louvável, como no caso dos que dispendem os seus bens, sem quererem tomar os alheios. Ao contrário, a desordem da prodigalidade é acompanhada de circunstâncias condenáveis: por isso, atribuímos a prodigalidade aos homens intemperantes, como diz o Filósofo. Logo, a prodigalidade é mais grave pecado que a avareza.

3. Demais. – A prudência é a principal entre as virtudes morais, como se estabeleceu. Ora, a prodigalidade mais se opõe à prudência que à avareza. Assim, diz a Escritura: Na casa do justo há um tesouro apetecível e há azeite; mas o homem imprudente dissipará tudo. E o Filósofo diz, que é próprio do insensato dar com superabundância, sem nada ganhar. Logo, a prodigalidade é mais grave pecado que a avareza.

Mas, em contrário, o Filósofo diz, que o pródigo é considerado muito melhor que o iliberal.

SOLUÇÃO. – A prodigalidade, em si mesma considerada, é menos pecado que a avareza. E isto por três razões. – Primeiro, porque a avareza mais difere da virtude oposta; assim, é mais próprio do liberal dar – no que o pródigo peca por excesso – do que receber ou reter – no que peca por excesso o avarento. – Segundo, porque, como diz Aristóteles, o pródigo é útil aos muitos, a quem da; ao contrário, o avarento não o é a ninguém e nem mesmo a si próprio. – Terceiro, porque a prodigalidade é facilmente sanável, tanto pelo declinar da idade para a velhice, que lhe é contrária, como porque o pródigo facilmente se empobrece, pelos muitos gastos inúteis que faz, e então, empobrecido, já não pode dar com superabundância; ou ainda, porque facilmente é levado a praticar a virtude, pela semelhança que tem o seu proceder com o da vida virtuosa. Ao contrário, o avarento não é susceptível de fácil cura pela razão já exposta.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A diferença entre o pródigo e o avarento não se funda na distinção do pecado contra nós mesmos e contra outrem. Pois, o pródigo peca contra si mesmo, malbaratando os bens de que deveria viver. Mas, também peca contra os outros, delapidando bens com os quais deveria socorrê–las. O que sobretudo se vê com os clérigos, dispensadores dos bens da igreja, que são dos pobres, aos quais defraudam, gastando prodigamente. Do mesmo modo, o avarento peca contra os outros, deixando de gastar o que devia; donde o dito da Escritura: Um homem a quem Deus deu riquezas, não lhe concedeu faculdade para comer daí. O pródigo porém superabunda, de um lado, por prejudicar a si e aos outros, mas, de outro, por ser útil a alguns. Ao passo que o avarento não é útil aos outros nem a si, porque não ousa empregar os seus bens nem mesmo para utilidade própria.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Quando tratamos dos vícios em gemi, nós Os julgamos segundo as naturezas próprias deles. Assim, atendemos a que é próprio da prodigalidade consumir superfluamente as riquezas; e da avareza, retê–las desse mesmo modo. Quanto aos que gastam superfluamente por intemperança, esses cometem ao mesmo tempo muitos outros pecados; e por isso são os piores pródigos, como diz Aristóteles. E quanto ao abster–se o iliberal ou avarento de tomar as coisas alheias, embora esse procedimento seja em si mesmo louvável, contudo é censurável, pela razão por que o faz que é não querer receber dos outros para não ser obrigados a dar–lhes.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Todos os vícios se opõem à prudência, assim como todas as virtudes são dirigidas por ela. Por onde, um vício, por isso mesmo que se opõe só à prudência, é reputado mais leve.

Art. 2 – Se a prodigalidade é pecado.

O segundo discute–se assim. – Parece que a prodigalidade não é pecado.

1. – Pois, diz o Apóstolo: A raiz de todos os males é a avareza. Ora, não é raiz à prodigalidade, que se lhe opõe. Logo, a prodigalidade não é pecado.

2. Demais. – O Apóstolo diz: Manda aos ricos deste mundo que deem que repartam francamente. Ora, é isto, sobretudo o que fazem os pródigos. Logo, a prodigalidade não é pecado.

3. Demais. – É próprio da prodigalidade dar com Superabundância e não ter solicitude com as riquezas. Ora, isto é principalmente próprio dos varões perfeitos, cumpridores do que disse o Senhor: Não andeis inquietos pelo dia de amanhã; e: Vende o que tens e dá–o aos pobres. Logo, a prodigalidade não é pecado.

Mas, em contrário, o filho pródigo foi censurado pela sua prodigalidade.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a prodigalidade se opõe à avareza pela oposição de excesso e defeito. Ora, a mediedade da virtude desaparece por essas duas causas. Pois, é vicioso e pecado o que corrompe o bem da virtude. Donde se conclui que a prodigabilidade é pecado,

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As palavras citadas do Apóstolo, alguns as entendem como referentes, não a cobiça atual, mas a uma concupiscência habitual, que é a concupiscência, como atrativo, da qual nascem todos os pecados. Outros, porém dizem, que elas se referem à cobiça em geral, relativamente a qualquer bem. E assim é manifesto, que também a prodigalidade nasce da cobiça; pois, o pródigo deseja conseguir algum bem temporal, desordenadamente, ou agradar aos outros, ou ao menos satisfazer à sua vontade, dando. – Mas, quem considerar com atenção verá que o Apóstolo se refere, nesse lugar, literalmente, à cobiça das riquezas; pois, antes, dissera: Os que querem se tornar ricos. etc. E assim, diz que a avareza é a raiz de todos os males, não que todos sempre nasçam ela, mas que não há nenhum que às vezes dela não nasça. Por onde, também a prodigalidade e às vezes nasce da avareza; tal, no e quem gasta muito, pradigamente, com a intenção de captar o favor de outros, para deles receber riquezas.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O Apóstolo adverte os ricos para que deem francamente e repartam o que é seu, como é necessário. O que não fazem os pródigos; pois, como diz o Filósofo, as dádivas deles não são boas, nem em vista do bem, nem o fazem como devem; mas, às teses dão muito aqueles que deveriam ser pobres, como os histriões e os aduladores, ao passo que não dão nada aos bons.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O sobre–excesso da prodigalidade não é relativo, principalmente, à quantidade do que é dado; mas, aquilo que era necessário fazer–se. Por onde, às vezes, o liberal dará mais que o pródigo, se for preciso. Assim, pois, devemos dizer que os que dão tudo, com a intenção de seguir a Cristo, e afastam para longe do seu coração a solicitude com os bens temporais, não são pródigos mas perfeitamente liberais.

Art. 1 – Se a prodigalidade se opõe à avareza.

O primeiro discute–se – assim. – Parece que a prodigalidade não se opõe à avareza.

1. – Pois, os contrários não podem coexistir num mesmo sujeito. Ora, certos são ao mesmo tempo pródigos e avarentos. Logo, a prodigalidade não se opõe à avareza.

2. Demais. – Os contrários se referem a um mesmo objeto. Ora, a avareza, enquanto oposta liberalidade, tem por objeto certas paixões que nos fazem afeiçoados ao dinheiro. Mas, parece que a prodigalidade não tem por objeto nenhuma das paixões da alma; assim, não faz ter amor ao dinheiro nem a nada de semelhante. Logo, a prodigalidade não se opõe à avareza.

3. Demais. – O pecado se especifica principalmente pelo fim como se estabeleceu. Ora, parece que a prodigalidade sempre se ordena a algum fim ilícito com o qual nos faz gastar os nossos bens, e sobretudo com os prazeres, e por isso diz o Evangelho: Dissipou toda a sua fazenda, vivendo dissolutamente. Logo, parece que a prodigalidade mais se opõe à temperança e à insensibilidade do que à avareza e à liberalidade.

Mas, em contrário, o Filósofo considera a prodigalidade oposta à iliberalidade, a qual aqui chamamos avareza.

SOLUÇÃO. – Na ordem moral consideramos a oposição dos vícios entre si e à virtude, conforme o excesso e o defeito. Ora, a avareza e a prodigalidade diferem por excesso e por defeito, de diversos modos. Assim, o avarento peca por excesso amando as riquezas mais do que devia; ao contrário, peca o pródigo por defeito cuidando delas com menor solicitude do que devia. Quanto aos bens externos, é próprio da prodigalidade exagerar os dons e pecar por defeito no adquirir e conservar; ao contrário, é próprio da avareza pecar por defeito ao dar, e por excesso, no adquirir e conservar. Por onde, é claro que a prodigalidade se opõe à avareza.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Nada impede os contrários terem o mesmo sujeito, mas em pontos de vista diversos. Pois, uma coisa recebe a sua denominação, sobretudo do que tem de principal. Ora, assim como o que tem de principal a liberalidade, a qual ocupa o meio termo, é o dar, a que se ordenam o adquirir e o conservar, assim também, na avareza e na prodigalidade o que sobretudo se leva em conta é o dar. Por isso, o que é excessivo em dar se chama pródigo; e o que peca por defeito ao fazê–lo, avarento. Mas, pode acontecer que um, às vezes, peque por defeito ao dar, sem, contudo ser excessivo em adquirir, como ensina o Filósofo. Do mesmo modo, também pode acontecer que dê excessivamente, sendo por isso pródigo, e ao mesmo tempo peque por excesso no adquirir. Quer levado de alguma necessidade, por lhe faltarem bens próprios, por causa do exagero com que dá, e ser assim obrigado a adquirir indebitamente – o que constitui a avareza; ou também por causa da desordem da alma, pois, não dando em vista do bem, não lhe importa, por um como desprezo da virtude, donde e de que modo adquira. Por isso, não é pródigo e avarento, pela mesma razão.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A prodigalidade diz respeito às paixões do dinheiro, não por excesso delas, mas, por defeito.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Os pródigos nem sempre são excessivos em dar, por prazer, o que é o objeto da intemperança; mas às vezes tem uma tal disposição que os leva a não se importarem com as riquezas; e outras vezes, por outros motivos. Mas, como frequentemente caem na intemperança, quer por não temerem, já que gostam superfluamente com outras cousas, gastar também com os prazeres, aos quais inclina sobretudo a concupiscência da carne; quer também porque, não achando o prazer no bem das virtudes, entregam–se aos prazeres do corpo. E por isso o Filósofo diz, que dos pródigos, muitos se tornam intemperantes.

Art. 8 – Se são filhos da avareza os vícios assim chamados: traição, fraude, falácia, perjúrio, inquietude, violência e coração obdurado.

O oitavo discute–se assim. – Parece não serem filhos da avareza os vícios assim chamados: traição, fraude, falácia, perjúrio, inquietude, violência e coração obdurado.

1. – Pois; a avareza se opõe à liberalidade, corno se disse. Ora, a traição; a fraude e a falácia se opõem à prudência; o perjúrio à religião; a inquietude, à esperança ou à caridade, que repousa no objeto amado; a violência se opõe à justiça; a duração, à misericórdia. Logo, tais vícios – pertencem à avareza.

2. Demais. – A traição, o dolo e a falácia parecem ter o mesmo fim, que é enganar o próximo. Logo, não devem ser contados como filhos diversos da avareza.

3. Demais. – Isidoro enumera os nove filhos da avareza: a mentira, a fraude, o furto, o perjúrio, o desejo do lucro desonesto, o falso testemunho, a violência, a desumanidade e a rapacidade. Logo. a primeira enumeração dos vícios oriundos da avareza é insuficiente.

4. Demais. – O Filósofo inclui muitos gêneros de vícios na avareza, a que chama iliberalidade. Tais são os dos parcos, dos tenazes, dos sórdidos, dos que agem iliberalmente, dos que vivem do meretrício, dos usurários, dos jogadores, dos que despojam os mortos e dos ladrões. Logo, parece insuficiente a enumeração referida acima.

5. Demais. – São, sobretudo os tiranos que violentam os seus inferiores. Pois, como diz o Filósofo, no mesmo lugar, não chamamos iliberais, isto é, avarentos, aos tiranos, que desolam as cidades e depredam os templos. Logo, a violência não deve ser considerada filha da avareza.

Mas, em contrário, Gregório assinala, como filhos da avareza, os pecados supra referidos.

SOLUÇÃO. – Chamam–se filhos da avareza os vícios que dela nascem, e principalmente no que concerne ao desejo do fim. Ora, a avareza, sendo o desejo exagerado de possuir riquezas, peca por excesso, de dois modos. Primeiro, retendo imoderadamente, e, por aí, ela gera a obduração, contrária à misericórdia, que nos torna de todo estranhos à brandura da compaixão e indiferentes a socorrer os miseráveis com as nossas riquezas. – Em segundo lugar, é próprio da avareza adquirir bens imoderadamente. E, a esta luz, ela pode ser considerada de dois modos. –­ Primeiro, relativamente à afeição. E então dela nasce a inquietude, que desperta em nós solicitude e cuidados supérfluos; pois, como diz a Escritura, o avarento nunca jamais se fartará de dinheiro. – Segundo, relativamente ao efeito. E, então, o avarento, para adquirir o alheio, às vezes emprega a força, o que constitui a violência; outras vezes recorre ao dolo. E este, se for verbal, chama–se falácia, que supõe simplesmente o emprego de palavras; se essas palavras forem confirmadas com juramento, tem lugar o perjúrio. Mas, se o dolo for cometido por obras, haverá fraude, e se tratar de uma causa; si se tratar de pessoas, terá lugar a traição, como bem o demonstra o caso de Judas, que por avareza traiu a Cristo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os pecados nascidos de um pecado capital não hão, necessariamente, de pertencer ao mesmo gênero que ele. Porque pecados de um gênero podem se ordenar ao fim de outro pecado, de gênero diferente. Pois, não devemos confundir os vícios engendrados por um pecado com as espécies que esse pecado compreende. 

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os três vícios citados se distinguem entre si, como se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Esses nove pecados enumerados se reduzem aos sete referidos. Pois, a mentira e o falso testemunho estão compreendidos na falácia; assim, o falso testemunho é uma espécie de mentira, como o furto o é da fraude, na qual está por isso compreendido. Quanto ao desejo do lucro desonesto, ele está incluído na inquietude, sendo desta uma espécie. E a desumanidade enfim é o mesmo que a obduração contrária à misericórdia.

RESPOSTA À QUARTA. – Esses vícios a que se refere Aristóteles são, antes, espécies que filhos da iliberalidade ou da avareza. Pois, pode ser chamado iliberal ou avarento quem é apoucado em dar. E se der pouco é denominado parco; se não der nada, tenaz; se com grande dificuldade, sórdido, como quem diz – vendedor de cuminho, porque tira das coisas insignificantes grandes proveitos. – Outras vezes, porém chama–se iliberal ou avarento quem se apossa do que não deve. E isto se dá de dois modos. – Ou porque ganha desonestamente, exercendo obras vis e servis, por meio de atos iliberais: ou porque aufere lucros da prática de certos atos viciosos, como do meretrício e de outros semelhantes; ou porque ganha com o que devia dar de graça, como os usurários; ou porque ganha pouco com grande trabalho. ­ De outro modo, porque lucra injustamente, quer atacando os outros pela força, como os ladrões; quer espoliando os mortos; ou ganhando dos amigos, como os jogadores.

RESPOSTA À QUINTA. – Como a liberalidade, também a iliberalidade diz respeito a pequenas somas de dinheiro. Por isso, os tiranos, que roubam muito com violência, não se chamam iliberais, mas, injustos;

Art. 7 – Se a avareza é um pecado capital.

O sétimo discute–se assim. – Parece que a avareza não é um pecado capital.

1. – Pois, a avareza se opõe à liberalidade, como ao meio termo; e à prodigalidade, como ao extremo. Ora, nem a liberalidade é uma virtude principal, nem a prodigalidade, um vício capital. Logo, também a avareza não deve ser considerada um vício capital.

2. Demais. – Como já se disse, chamam–se pecados capitais os que se ordenam a certos fins principais aos quais se ordenam os fins dos outros pecados. Ora, não se dá isso com a avareza, porque as riquezas não são, por natureza, fins, mas antes, meios, como diz Aristóteles. Logo, a avareza não é pecado capital.

3. Demais. – Gregório diz, que a avareza às vezes nasce do orgulho e, às vezes, do temor. Pois, deixam–se invadir a alma na avareza os que pensam vir a faltar o necessário que devem dispender, E outros, há que, querendo passar por mais poderosos, ardem na busca de bens alheios. Logo, a avareza nasce, antes, dos outros pecados e está longe de ser um pecado capital, em relação a eles.

Mas, em contrário, Gregório considera a avareza como um dos pecados capitais.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, chama–se pecado capital aquele de que nascem outros, em dependência da ideia de fim, o qual, exercendo grande influência sobre o nosso apetite, este nos leva a praticar muitos atos bons ou maus. Ora, o fim que mais desejamos é a beatitude ou felicidade, fim último da vida humana, como se estabeleceu. Por onde, quanto mais um fim participa da condição da felicidade, mais desejável é. Mas, uma das condições da felicidade é ser, em si mesma suficiente; pois, do contrário, não nos aquietaria o apetite, como fim último. Ora, essa suficiência, em si mesma, é o que sobretudo prometem as riquezas, segundo Boécio. E a razão é que, no dizer do Filósofo, nós usamos do dinheiro como uma garantia para possuirmos tudo o que quisermos. E a Escritura: Todas as coisas obedecem ao dinheiro. Logo, a avareza, que consiste no desejo do dinheiro, é um vício capital.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A virtude se aperfeiçoa, .na ordem da razão; mas o vício se desenvolve segundo a inclinação do apetite sensitivo. Ora, a razão e o apetite sensitivo não pertencem ao mesmo género. Logo, um vício principal não há de necessariamente se opor a uma virtude principal, porque não visa o bem principal da razão; contudo, a avareza é um vício capital, por ter por objeto o dinheiro, que tem uma certa principalidade entre os bens sensíveis pela razão já dita. A prodigalidade, porém, não se ordena a nenhum fim principalmente desejável, mas antes, procede da falta de razão. Por isso, o Filósofo diz que o pródigo é considerado, antes, vão, que mau.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Por certo que o dinheiro se ordena a outra causa como ao seu fim. Mas, enquanto útil para com ele adquirirmos todos os bens materiais, eles os contém de certo modo virtualmente a todos. Por isso, tem certa semelhança com a felicidade, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Nada impede um pecado capital nascer de certos outros pecados, como se disse; mas, para ser capital é preciso que, de ordinário, outros se originem dele.

AdaptiveThemes