O décimo discute–se assim. – Parece que o corajoso não recorre à ira, nos seus atos.
1. – Pois, ninguém deve tomar como instrumento dos seus atos, aquilo de que não se pode servir ao seu talante. Ora, não pode o homem a seu talante empregar a sua ira, de modo a poder servir–se dela quando quiser e, quando quiser depô–Ia. Pois, como diz o Filósofo, a paixão corpórea, uma vez suscitada, não se acalma quando o quisermos. Logo, o corajoso não deve recorrer à ira, nos seus atos.
2. Demais. – Quem se basta a si mesmo para praticar um ato não deve recorrer ao auxílio do que é mais fraco e imperfeito. Ora, a razão por si mesma basta para praticarmos atos de coragem, para o que a ira é insuficiente. Donde o dizer Séneca: Não só para prevermos, mas também para agirmos a razão por si mesma nos basta. E haverá nada mais estulto do que, nessa matéria, pedirmos auxilio à ira? Do que querer apoiar o certo no incerto; o fiel, no infiel; o são, no doente? Logo, a coragem não deve recorrer à ira.
3. Demais. – Assim como certos, pela ira, praticam melhor atos corajosos, assim também, por tristeza ou concupiscência. Por isso, o Filósofo diz, que às feras, a tristeza ou a dor as excita a afrontar o perigo; e a concupiscência leva os adúlteros a agirem muitas vezes audaciosamente. Ora, a coragem, para o ser, não recorre nem à tristeza nem à concupiscência. Logo, pela mesma razão, não deve recorrer à ira.
Mas, em contrário, diz o Filósofo: O jurar ajuda os fortes.
SOLUÇÃO. – Da ira e das outras paixões da alma, como já dissemos, trataram de um modo os Peripatéticos e de outro, os Estóicos. Assim, os Estóicos excluíam da alma do sábio ou do virtuoso, todas as outras paixões. Ao contrário, os Peripatéticos, cujo chefe foi Aristóteles, atribuíam ao virtuoso a ira e as outras paixões, mas, moderadas pela razão. E talvez não diferissem entre si na realidade, mas só quanto ao modo de se exprimirem. Pois, os Peripatéticos, como dissemos, chamavam paixões da alma a todos os apetites sensitivos, de qualquer modo que se apresentassem. E como o apetite sensitivo se move pelo império da razão de modo a nos tornar mais pronta a ação, por isso diziam que os virtuosos deviam recorrer à ira e às outras paixões da alma, moderadas pelo império da razão. Ao passo que os Estóicos chamavam paixões da alma a certos afetos moderados do apetite sensitivo; e por isso as consideravam como estados mórbidos ou doenças; e portanto as separavam completamente da virtude. Assim, pois, o corajoso, ao agir, recorre à ira moderada e não, a imoderada.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A ira moderada pela razão submete–se ao império desta. Por onde e consequentemente, podemos usá–la ao nosso arbítrio; mas não se for imoderada.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A razão não recorre à ira, como auxílio para o seu ato; mas porque usa do apetite sensitivo como instrumento, como usa dos membros do corpo. Nem há inconveniente se o instrumento for mais imperfeito que o agente principal, como o martelo, que o ferreiro. E quanto a Séneca foi discípulo dos Estóicos e as suas palavras citadas vão diretamente contra Aristóteles.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Sendo dois os atos próprios da virtude, a saber, suportar e atacar, ela recorre à ira, não para o ato de suportar, porque esse a razão por si o produz; mas, para o de atacar. Para o qual recorre, antes, a ira que às outras paixões; porque, sendo próprio da ira, eliminar o obstáculo que nos contrista, ela coopera diretamente com a coragem quando ataca. A tristeza, pelo contrário, por natureza sucumbe ao mal; mas, por acidente, ajuda o ataque, ou por ser a causa da ira, como dissemos, ou porque, nos expomos ao perigo para evitar a tristeza. Do mesmo modo, a concupiscência, por natureza, tende para o bem deleitável, ao qual, em si mesmo, repugna enfrentar os perigos, mas, por acidente, às vezes ajuda a atacá–los, quando queremos, antes, cair no perigo do que nos privarmos do prazer. Por isso, diz o Filósofa, que entre os atos de coragem inspirados na paixão, o mais natural ao homem é o produzido pela ira, contanto que o seja com eleição e subordinado ao fim, sem o que não haveria verdadeira coragem.