Category: Anônimo
Opinião dos Superiores Eclesiásticos
A superiora e directora duma alma tão privilegiada não podiam tomar só sobre si a responsabilidade deste caminho extraordinário... Consultaram os superiores eclesiásticos e em especial, o Rev.mo Cônego Mercier, Vigário Geral e Superior da Casa, sacerdote de grande prudência e de grande piedade; o Rev.o Pe. Ambroise, provincial dos Capuchinhos da Sabóia, homem de grande valor moral e doutrinal; o Rev.mo Cônego Boudier, apelidado “o Anjo dos Montes”, capelão da comunidade, cuja reputação de ciência e santidade passavam os limites da nossa província. O exame foi sério e completo. Os três examinadores foram unânimes em afirmar que o caminho, que a Irmã Maria Marta seguia, tinha o selo divino. Aconselharam que se escrevesse tudo, mas aliando a prudência às suas luzes, julgaram também que era preciso ocultar estes fatos até que aprouvesse “a Deus revelá-los diretamente”. Foi por isso que a Comunidade ignorou as graças insignes com que era favorecida, num dos seus membros - o menos apto para as receber, humanamente julgando. Foi por isso também que, considerando como sagrado o conselho dos superiores eclesiásticos, a Rev.ma Madre Teresa Eugênia Revel começou a relatar, diariamente, com escrupulosa exatidão, não omitindo mesmo certas faltas - frutos da ignorância ou de falta de memória - as narrações da humilde conversa, a quem Nosso Senhor dava ordem de nada ocultar à superiora. “Nós depomos aqui, na presença de Deus e dos nossos Santos Fundadores, por obediência e o mais exatamente possível, o que cremos ser-nos enviado do Céu por uma amorosa predileção do Divino Coração de Jesus, para felicidade da nossa Comunidade e bem das almas”.
“Deus parece ter escolhido, na nossa humilde família, a alma privilegiada que deve renovar, no nosso século, a devoção às Sagradas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a nossa humilde Irmã doméstica Soror Maria Marta Chambon, que o Salvador gratifica com a sua presença sensível. Ele mostra-lhe todos os dias as Divinas Chagas, para que ela aplique constantemente os seus méritos, pelas necessidades da Santa Igreja, pela conversão dos pecadores, pelas necessidades do nosso Instituto, - e sobretudo para o alívio das almas do Purgatório”.
“Jesus fez dela o seu brinquedo de amor e a vítima do seu beneplácito... - e nós, cheias de reconhecimento, sentimos, a cada instante, a eficácia das suas orações sobre o Coração de Deus.”
Tal é a declaração com que se abre a narração da Rev.ma Madre Teresa Revel, digna confidente dos favores do Altíssimo. -É' às suas notas que vamos buscar todas as citações que vão seguir-se.
Três dias de êxtase
No mês de Setembro de 1867, a Irmã Maria Marta caiu, como lho tinha anunciado o Divino Mestre, num estado incompreensível, que difìcilmente se pode definir: estava deitada no seu leito, imóvel, sem falar, sem ver, não tomando alimento algum; mas o pulso continuava muito regular e tinha o rosto levemente colorido. Isto durou três dias, 26, 27 e 28, em honra da SS.ma Trindade, e foram, para a triste vidente, três dias de graças excepcionais... Todo o esplendor dos Céus veio iluminar o humilde lugar onde desceu a Trindade Santíssima. Deus Pai, apresentando-lhe Jesus numa hóstia, disse-lhe: “Eu te dou Aquele que tu me ofereces tantas vezes”, e deu-lhe a Comunhão. Depois desvendou·lhe os mistérios de Belém e da Cruz, iluminando a sua alma com vivas luzes sobre a Encarnação e a Redenção. Tirando depois de Si mesmo o seu Espírito como um raio de fogo, deu-lho afirmando-lhe: “Ele contém a luz, o sofrimento e o amor!... O amor será para mim; a luz para descobrires a minha vontade; o sofrimento, enfim, para sofreres, de momento a momento, como Eu quero que sofras.”
No último dia, convidando-a a contemplar, num raio que descia do Céu sobre ela, a Cruz do Filho, o Pai Celeste “fez-lhe compreender melhor as Chagas de Jesus, para o seu bem pessoal”. Ao mesmo tempo, num outro raio que partia da terra para o Céu, viu ela claramente a sua missão e como devia fazer valer os méritos das Chagas de Jesus para o mundo inteiro.
Vigílias e penitências corporais
As Superioras, inclinando-se perante os sinais certos da vontade do Céu - sinais em que não podemos deter-nos para não avolumar este pequeno opúsculo – decidiram-se, pouco a pouco, apesar das apreensões, entregá-la às exigências de Jesus Crucificado.
A Irmã Maria Marta vê-se primeiro convidada a passar as noites estendida no soalho da cela. Depois recebe a ordem de trazer noite e dia um rude cilício. Em breve deve entrançar uma coroa de agudos espinhos que não lhe permite mais apoiar a cabeça, sem sentir dolorosos sofrimentos.
No fim de oito meses, em maio de 1867, não contente com as noites passadas no chão, com o cilício e a coroa de espinhos, Jesus exige à Irmã Maria Marta o sacrifício do próprio sono, pedindo-lhe que vele sozinha, junto do SS.mo Sacramento, enquanto tudo dorme no Mosteiro. Em tais exigências não encontra a natureza satisfação! Mas não é este o preço habitual dos favores divinos?... No silêncio das noites, Nosso Senhor comunicava-se à sua serva da maneira mais maravilhosa. Algumas vezes, é certo, Ele a deixava lutar penosamente, durante longas horas, com a fadiga e o sono, mas o mais freqüente era apoderar-se dela imediatamente e arrebatá-la a uma espécie de êxtase. Confiava-lhe as suas penas e os seus segredos de amor, enchia-a de carícias, tirava-lhe o coração para o meter dentro do seu. O seu trabalho nesta alma tão humilde, tão simples e dócil, aumentava todos os dias.
Primeiros anos de vida religiosa
Francisca Chambon tinha 18 anos quando entrou no Mosteiro da Visitação de Santa Maria de Chambéry. Dois anos mais tarde, na festa de Nossa Senhora dos Anjos - 2 de agosto de 1864 - pronunciou os santos votos, tomando lugar, definitivamente, entre as religiosas de véu branco (leigas), com o nome de Irmã Maria Marta. Nada, exteriormente, fazia prever coisa alguma em favor da nova esposa de Jesus. A beleza da filha do Rei era verdadeiramente toda interior... Deus que, indubitavelmente se reservava compensações, tinha, no que respeita aos dons naturais, tratado a Irmã Maria Marta com verdadeira parcimônia!... Maneiras e linguagem rústicas, inteligência quase medíocre, que nenhuma cultura, nem sequer sumária, viera desenvolver: a Irmã Maria Marta não sabia ler nem escrever; sentimentos que só se elevavam sob a influência divina; um temperamento vivo e um pouco tenaz; as suas Irmãs bem o dizem sorrindo: “Oh! era uma santa! mas uma santa que por vezes nos dava trabalho!...”
A “santa” bem o sabia! E com uma candura comovedora, queixava-se a Jesus por ter tantos defeitos: “As tuas imperfeições, respondia Ele, são a maior prova de que tudo o que se passa em ti vem de Deus. Eu nunca tas tirarei; elas são a cobertura que esconde os meus dons. Desejas muito ocultar-te? Eu ainda o desejo mais do que tu!...”
Ao lado deste retrato, gostaríamos de colocar outro, com traços mais atraentes. Sob estas aparências menos lisonjeiras, a observação mais atenta das superioras em breve adivinhou, e depois descobriu, uma fisionomia moral já muito bela, embelezando-se todos os dias sob a ação do Espírito de Jesus. Notam-se aqui traços marcados com esses sinais infaliveis que revelam o Artista Divino... e revelam-no tanto melhor quanto os senões da natureza não desapareceram: nesta inteligência tão apagada, quantas luzes, quantas vistas profundas! Neste coração sem cultura natural, que inocência, que fé, que piedade, que humildade, que sede de sacrifício! Bastará agora recordar o testemunho da superiora, a Rev.ma Madre Teresa Eugênia Revel: “A obediência é tudo para ela. A candura, a retidão, o espírito de caridade que a anima, a mortificação e, sobretudo, a humildade sincera e profunda, parecem-nos as garantias mais certas da ação de Deus sobre esta alma. Quanto mais recebe, mais entra num verdadeiro desprezo de si mesma, estando quase sempre esmagada pelo temor de estar na ilusão. Dócil aos conselhos que lhe dão, as palavras do sacerdote e da superiora têm um grande poder para lhe dar a paz... O que sobretudo nos tranqüiliza é o seu amor apaixonado à vida escondida, a imperiosa necessidade de fugir dos olhares humanos e o receio de que percebam o que nela se passa.”
* * *
Os dois primeiros anos de vida religiosa da nossa Irmã decorreram quase normalmente; a não ser um dom de oração pouco vulgar, um recolhimento perpétuo, uma fome e sêde de Deus contínuas, nada se lhe notava de verdadeiramente particular que fizesse prever coisas extraordinárias. Mas, em setembro de 1866, a jovem conversa começou a ser favorecida com freqüentes visitas de Nosso Senhor, da Santíssima Virgem, das almas do purgatório e dos Espíritos Bem-aventurados.
Jesus Crucificado - sobretudo - oferece, quase todos os dias, à sua contemplação, as Divinas Chagas, ora resplandecentes e gloriosas, ora lívidas ou ensangüentadas, pedindo-lhe que se associe às dores da sua Sagrada Paixão.
Pe. Sarda y Salvany
Dirá alguém: “É certo que assim se passa com as doutrinas abstratas. Mas será conveniente combater o erro, por maior que seja, ao se fixar e encarniçar contra a personalidade de quem o sustenta?” Eis a nossa resposta: Sim, muitíssimas vezes é conveniente, e não só conveniente, mas até indispensável e meritório diante de Deus e da sociedade. E ainda que se possa deduzir essa afirmação do que anteriormente foi exposto, queremos todavia tratá-la aqui ex professo, pois é grande a sua importância.
Com efeito, não é pouco frequente a acusação que se faz aos apologistas católicos de preocupar-se sempre com pessoas, e quando se lança essa acusação a um dos nossos, parece aos liberais e aos contaminados de liberalismo que já não há mais que dizer para condená-lo. E contudo não têm razão; não, não a têm. As idéias más devem ser combatidas e desacreditadas, e é preciso torná-las odiosas, desprezíveis e detestaveis à multidão, a quem elas tentam enganar e seduzir.
Assim como as idéias não se sustentam em nenhum caso por si mesmas, elas não se difundem nem se propagam sozinhas; não poderiam, por si mesmas, produzir todo o mal de que sofre a sociedade. São como as flechas ou balas, que a ninguém iriam ferir, se não houvesse quem as disparasse com o arco ou o fuzil.
Ao arqueiro e ao fuzileiro devem se dirigir, pois, os tiros de quem pretenda destruir a sua mortal pontaria. E qualquer outro modo de fazer guerra será tão liberal como queiram, mas não terá senso comum.
Os autores e propagandistas de doutrinas heréticas são soldados com armas de envenenados projéteis; suas armas são o livro, o jornal, o discurso público, a influência pessoal. Não basta, pois, desviar-se para evitar o tiro. Não, a primeira coisa a se fazer, a mais eficaz, é inabilitar o atirador.
Assim, convém desautorizar e desacreditar o livro, o jornal e o discurso do inimigo; e não só isto, mas também, em certos casos, desautorizar e desacreditar a sua pessoa. Sim, a sua pessoa, pois este é o elemento principal do combate, como o artilheiro é o elemento principal da artilharia, e não a bomba, a pólvora ou o canhão. Pode-se, pois, em certos casos revelar em público suas infâmias, ridicularizar seus costumes, cobrir de ignomínia seu nome e sobrenome. Sim, leitor, e pode-se fazer em prosa ou em verso, a sério ou de piada, em caricaturas e por todos os meios e procedimentos que no futuro se possa inventar. É importante apenas não pôr a mentira a serviço da justiça. Isso não; não se pode sob pretexto algum faltar com a verdade, nem um iota. Porém, sem sair dos estritos limites desta verdade, lembremo-nos daquele dito de Crétineau-Joly: A verdade é a única caridade permitida à história; poderíamos acrescentar: e à defesa religiosa e social.
Os mesmos Santos Padres, que já citamos, provam esta tese. Os próprios títulos de suas obras dizem claramente que, ao combater as heresias, o primeiro tiro procuravam dirigi-lo contra os heresiarcas. Quase todos os títulos das obras de Santo Agostinho se dirigem ao nome do autor da heresia: Contra Fortunatum manichoeum, Adversus Adamanctum; Contra Felicem; Contra Secundinum; Quis fuerit Petilianus; De gestis Pelagii; Quis fuerit Julianus etc. De modo que quase toda a polêmica do grande Agostinho foi pessoal, agressiva, biográfica, por assim dizer, tanto como doutrinal; lutando corpo a corpo com o herege, como também contra a heresia. E o que dizemos de Santo Agostinho poderíamos dizer de todos os Santos Padres.
De onde o liberalismo tirou, pois, a novidade de que ao combater os erros se deve prescindir das pessoas e até mesmo as lisonjear e agradar? Firmem-se no que ensina sobre isto a tradição cristã, e deixem-nos a nós, os ultramontanos, defender a fé como se defendeu sempre na Igreja de Deus.
Que penetre, pois, a espada do polemista católico; que fira e vá direto ao coração! É a única maneira real e eficaz de combater.
Sua infância e juventude
Francisca Chambon nasceu duma família de agricultores, modesta mas cristã, na aldeia de Croix-Rouge, perto de Chambéry, no dia 6 de Março de 1841. No mesmo dia recebeu o santo batismo, na Igreja paroquial de S. Pedro de Lemenc. Aprouve a Nosso Senhor revelar-se muito cedo a esta alma inocente. Quando Francisca tinha nove anos, levando-a uma sua tia à adoração da cruz, numa sexta-feira santa, viu Jesus Cristo lacerado, ensanguentado, como no Calvário. “Oh! em que estado o vi!”... dirá ela mais tarde. Foi esta a primeira revelação da Paixão do Salvador, que devia ocupar tanto lugar na sua existência. Mas nos seus tenros anos, foi sobretudo favorecida pelas visitas do Menino Jesus. No dia da sua Primeira Comunhão, veio a ela visìvelmente; e desde então, em todas as comunhões, até à morte, será sempre Jesus Menino que ela verá na Santa Hóstia. Jesus tornou-se o companheiro inseparável da sua juventude, seguia-a ao trabalho, nos campos, conversava com ela pelos caminhos e acompanhava-a à casa paterna. “Estávamos sempre juntos... oh! como eu era feliz! tinha o Paraíso no coração!...” dizia ela recordando, no fim da vida, estas longínquas e dulcíssimas lembranças. Na época destes precoces favores, Francisca nem pensava em contar a sua vida de familiaridade com Jesus: contentava-se em gozá-la, julgando ingenuamente que toda a gente possuía o mesmo privilégio. Contudo, a pureza e o fervor desta menina não podiam passar despercebidos ao digno pároco da freguesia: e por isso dava-lhe freqüentemente a Sagrada Comunhão. Foi também ele que nela descobriu a vocaçao religiosa e a foi apresentar ao Mosteiro da Visitação.
“Este é meu Filho bem-amado, escutai-O”
Paramentos roxos
A estação de hoje reunia-se na Igreja de Santa Maria, chamada In Dominica, pelo fato de os cristãos aí se congregarem no Domingo. Era tradição ter sido nela que São Lourenço distribuía os bens da Igreja aos pobres. Era no século V paróquia de Roma.
Como nos três Domingos da Septuagésima, Sexagésima e Quinquagésima, são nos 2°, 3° e 4° da Quaresma os textos do Antigo Testamento que formam a trama da composição das missas, de sorte que os séculos passados continuam a preparar-nos para os mistérios da Páscoa. No 2° Domingo da Quaresma, lemos em Matinas a história da benção solene do velho Isaac dada no leito da agonia ao seu filho Jacó. Todos conhecem esta bela página da Escritura. A Abraão e Isaac sucede Jacó, de preferência ao primogênito Esaú, para se tornar o herdeiro e transmissor das promessas e bênçãos divinas. “Sê o senhor dos seus irmãos e que as nações se prostrem diante de ti. Todos os povos serão abençoados em ti e no que nascer de ti” (Gênesis). Os Santos Padres veem no Patriarca Jacó que suplanta o irmão para ser, em vez dele, o objeto dos favores divinos, uma figura de Cristo, o segundo Adão que se torna, em vez do primeiro, o chefe duma humanidade regenerada e abençoada por Deus, aquele em quem o Pai pôs todas as complacências e os povos serão abençoados. Comparando os dois textos, o do Gênesis e o do Evangelho da Missa, facilmente poderemos ver como concordam e se completam no pormenor mais insignificante. Deus abençoou o seu filho revestido da nossa carne, como Isaac abençoou Jacó revestido das vestes do irmão. Santo Agostinho, que olha as peles de cabrito como um símbolo do pecado, diz que Jacó, cobrindo com elas as mãos e o pescoço, é a imagem de Cristo, que, sendo sem pecado, tomou sobre Si os pecados dos outros.
Isto deixa-nos ver como a história de Jacó é figura de Cristo e da Igreja. E lembremo-nos que Jesus Cristo, o Filho de Deus, que o Evangelho de hoje nos apresenta a transfiguração no Monte Tabor como sendo o objeto das complacências do Pai, solidarizou-se conosco, ao ponto de se vestir “com a carne” e de se deixar morrer por nós para nos tornar coerdeiros da sua glória e filhos queridos do Pai dos Céus. Em Jesus fomos abençoados por Deus — n’Ele que é o mais velho, o primogênito de muitos irmãos.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
Irmã Maria-Marta Chambon Da Visitação de Santa Maria de Chambéry e as Sagradas Chagas de N. S. Jesus Cristo
V. + J.
Irmã Maria-Marta Chambon
Da Visitação de Santa Maria de Chambéry
AS SAGRADAS CHAGAS DE N. S. J. CRISTO
5ª Edição
1926
ADAPTADO DA VERSÃO PORTUGUESA POR PERMANÊNCIA
“E vieram os anjos e serviram-no”
Paramentos roxos
Neste domingo que era outrora o primeiro dia da Quaresma, reunia-se a estação na basílica de S. Salvador .
Toda a liturgia respira um pensamento de fortificante confiança, desde o Intróito, Gradual e Ofertório até a Comunhão, compostos todos com versículos do Salmo 90 que vem quase por inteiro no Tracto e se repete durante a Quaresma para ser, por assim dizer, o diapasão da vida nova, de bom combate, que devemos levar nestes dias. E não são acaso as lutas do Salvador, que se vão desenrolando diante de nós, para nos encorajar na batalha? A Igreja, pelo menos, assim nos dá a entender, propondo à nossa meditação o Evangelho que refere à tentação de Cristo. Era a missão que empreendera de esmagar Satã que começava, e referi-la a Igreja neste princípio da Quaresma parece querer indicar o verdadeiro motivo de confiarmos na vitória. O Senhor triunfou e a Igreja diz-nos que podemos triunfar com Ele, porque afinal a verdade é que a tentação e o combate que se desenrola em nós e à nossa volta, são a tentação e o combate e também a vitória de Cristo. O nosso esforço é d’Ele, as nossas forças são d’Ele e o nosso triunfo na Páscoa é d’Ele também. Empreendamos, pois, generosamente o bom combate cuja estratégia o Apóstolo em grandes linhas nos traça na Epístola da Missa. Encorajemo-nos com este pensamento de que o progresso espiritual nas almas é a vitória de Cristo que se prolonga e que o combate necessário para a garantir já foi dado. Estes dias da Quaresma são tempo de salvação, são o tempo favorável que nos permite marcar posições definitivas no combate incessante do espírito contra a carne. E a Igreja convida-nos com maternal solicitude a terçar armas neste combate glorioso, para celebrarmos purificados na alma e no corpo o mistério sublime da Paixão do Senhor.
É verdade, diz S. Leão em Matinas, que deveríamos viver sempre diante de Deus com as mesmas disposições requeridas para a condigna celebração dos mistérios pascais. Mas, porque isto é virtude e apanágio de poucos e porque a fragilidade humana tende sempre para o relaxamento, aproveitemo-nos ao menos da Quaresma para recuperarmos o tempo perdido e reparemos, pela penitência e boas obras, as faltas e negligências do outro tempo.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952
“Jesus disse-lhe: Vê; a tua fé te salvou.” (Evangelho)
Paramentos roxos
A Igreja estuda com particular diligência, nas três semanas da Septuagésima, as grandes figuras de Adão, Noé e Abraão, que respectivamente apelida: pai do gênero humano; pai de numerosa descendência; e pai dos crentes. Já estudamos nos domingos da Septuagésima e da Sexagésima os dois primeiros. Vamos estudar hoje Abraão. Na liturgia ambrosiana o Domingo da Paixão era chamado Domingo de Abraão e liam-se no ofício os responsórios de Abraão. Na liturgia romana o Evangelho desse Domingo é consagrado ainda ao grande patriarca. Mas depois, quando se juntou à Quaresma o Tempo da Septuagésima, reservou-se o Domingo da Quinquagésima para o Patriarca.
Querendo Deus criar um povo para Si e preservá-lo do contágio da idolatria, deu-lhe um chefe que o governasse, a quem chamou Abraão, que quer dizer pai de muitos povos. Retirou-o de Ur, cidade da Caldeia, e conduziu-o para a terra que lhe prometera e guardou-o em todos os seus caminhos. Foi pela fé, diz a Epístola aos Hebreus, que Abraão obedeceu ao apelo divino e partiu para o país que devia receber em herança. Partiu cheio de fé sem saber para onde ia. Foi pela sua fé que chegou a Canaã onde viveu 25 anos como estrangeiro. Foi pela sua fé que já na velhice se tornou pai de Isaac e que não duvidou, à voz de Deus, sacrificá-lo, não obstante, ser o filho único em quem tinha posta a esperança de ver realizar-se a promessa divina duma posteridade numerosa. Bem sabia o Patriarca que Deus era assaz poderoso para ressuscitar lhe o filho de entre os mortos. E por este motivo o recuperou, e isto em figura. De fato, Isaac, escolhido para ser gloriosa vítima de seu pai, foi uma figura de Jesus Cristo. Como Ele, levou às costas o instrumento do sacrifício e foi arrancado miraculosamente às garras da morte. Foi assim que Abraão, com a sua fé, acreditando sem hesitar na palavra de Deus, contemplou de longe o triunfo do Senhor na Cruz e alegrou-se. E foi então que Deus lhe confirmou a promessa: “Porque não recusaste sacrificar-Me o teu filho único, abençoar-te-ei e dar-te-ei uma descendência numerosa como as estrelas do Céu e como as areias das praias”. Estas promessas realizou-as Jesus Cristo com a sua Paixão. Jesus Cristo resgatou-nos, diz São Paulo, e deixou-se morrer na Cruz, a fim de que a benção de Abraão fosse comunicada por Ele aos gentios e recebêssemos pela fé a promessa do Espírito, quer dizer, do Espírito de adoção que nos fora prometido. E é por isso que a oração da 5ª leitura do Sábado Santo nos diz que Deus “Pai soberano dos crentes, derramando abundantemente sobre a Terra a graça da adoção, multiplica os filhos da promessa pelo mistério pascal constitui Abraão, seu servo, pai de todos os povos. É com efeito pelo Batismo (que outrora se ministrava na Páscoa e no Pentecostes) que nos tornamos filhos de Abraão e entramos na herança que Deus prometeu a nossos pais e que é a Igreja, simbolizada pela terra prometida”.
A fé em Jesus Cristo, que mereceu a Abraão a prerrogativa de pai dos crentes e nos dá a faculdade de nos tornarmos seus filhos, constitui o tema do Evangelho de hoje. Jesus Cristo anuncia a sua Paixão e triunfo e cura um cego dizendo-lhe: a tua fé te salvou. Este cego recobrou a vista, diz S. Gregório, na presença dos Apóstolos. E isto foi para confirmar a fé dos que não podiam ainda suportar toda a luz da revelação dum mistério celeste. Porque era necessário que, vendo-O mais tarde morrer pelo modo que lhes predissera, não duvidassem de que havia de ressuscitar também. A Epístola por seu lado põe em plena evidência a fé de Abraão. E não é como filhos carnais de Abraão que nos havemos de salvar, mas como filhos duma fé semelhante à de Abraão. Em Jesus Cristo, diz S. Paulo, nem a circuncisão (os Judeus), nem a não circuncisão (os Gentios) valem nada, mas a fé que opera na caridade. “Andai no amor, continua o Apóstolo, naquele amor de que nos amou Cristo”.
Neste domingo e nos dois dias seguintes costuma fazer-se uma adoração solene do SS. Sacramento, denominada, Adoração das 40 horas, pelos excessos cometidos nestes dias. Foi instituída por S. Antonio Maria Zacaria († 1539) e enriquecida com numerosas indulgências por Clemente XIII.
Do Evangelho: Este cego de que nos fala o Evangelho representa sem dúvida o gênero humano. Depois que foi expulso do Paraíso na pessoa do primeiro homem, ignora as claridades da luz sobrenatural e sofre as consequências do seu erro, mergulhado nas trevas do exílio.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.