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Category: Dom Lourenço Fleichman, OSBConteúdo sindicalizado

Não deixe o sal perder a sua força (Editorial)

EDITORIAL Nº 266

Uma das características mais importantes de uma instituição é sua fidelidade à idéia mestra que definiu sua fundação e sua linha de pensamento. Se os reponsáveis por uma empresa, por um projeto qualquer, ou por uma ordem religiosa, variassem a cada passo na finalidade que determinou aquela reunião de homens, ela jamais poderia perdurar no tempo, pois seus membros não saberiam em que direção estariam caminhando.

É nesse contexto que devemos entender aquela palavra que atribui à santidade dos fundadores das grandes ordens religiosas a perseverança delas ao longo dos séculos. Comparem a existência da Ordem de São Bento, dos Franciscanos ou dos Dominicanos, com qualquer empresa moderna. Enquanto aquelas gloriam-se por permanecerem idênticas na sua essência, ao longo de quinze séculos (S. Bento) ou setecentos outros (S. Francisco e S. Domingos), basta uma empresa qualquer alcançar vinte e cinco ou cinqüenta anos para se considerar tradicional e cheia de experiência. E de fato assim é, se considerarmos o mundo sempre cambiante e ondulante em que vivemos.

A Permanência não é uma ordem religiosa, mas tampouco é uma empresa comercial. Apesar de termos como objetivo a difusão da doutrina católica tradicional e, a partir dela, a resistência aos erros do último Concílio do Vaticano, algo mais do que a doutrina nos une. Em torno de Gustavo Corção criou-se na Permanência uma família que se caracteriza por um espírito sobrenatural que vai muito além da sã doutrina. Algo de difícil definição e delineamento, mas real e pessoal.

Esse espírito nasceu das aulas e escritos de Gustavo Corção. Ali era transmitido, como de pai para filhos, certo posicionamento diante das coisas de Deus e da sua Igreja que poucas vezes se encontra pelo mundo. Alguns dos nossos jovens tiveram a oportunidade de ver como os franceses da Tradição, nos anos 1980, chegavam nos mosteiros ou no seminário conhecendo latim, grego e Sto Tomás de Aquino. Mas bastava um acontecimento mais grave e polêmico surgir no âmbito da crise da Igreja ou da política internacional, para se perceber que aqueles rapazes não tinham recebido em sua formação o sensus fidei necessário para um julgamento sobrenatural reto e certeiro.

Quanto tempo se perde a ler e estudar coisas irrelevantes que mais se aproximam da curiosidade do que da formação católica! Quantas vezes ouvimos, nas aulas de Gustavo Corção, o mestre simplesmente ignorar algum assunto proposto por um de seus alunos, mostrando em duas palavras o porquê de não podermos perder tempo com aquilo. Ao mesmo tempo, nas situações mais difíceis e delicadas, com que genial simplicidade ele mostrava a solução teológica mais exata, sempre voltada para a salvação das almas e com um aspecto constante: de fácil compreensão, pois Corção era, realmente, um animal-professor, como ele próprio gostava de dizer.

Um dos pontos em que esse espírito sobrenatural aparece de modo impressionante é na compreensão a que ele chegou sobre a natureza da crise que submerge a Igreja Católica no cataclisma atual. Desde cedo ele entendeu que estava em jogo muito mais do que os aspectos diversificados e pontuais comentados pela maioria dos defensores da Tradição. Via a importância de se defender a missa contra a revolução protestante emanada de Vaticano II, ou de se criticar as edições absurdas das Biblias modernistas, ou ainda os catecismos heretizantes produzidos pelas Conferências Episcopais com o aval da Roma modernista. Porém seu espírito aguçado exigia de si mesmo e dos seus alunos a compreensão exata sobre a natureza da crise: é a essência do catolicismo que está ameaçada. Porque “se o sal perder a sua força, para que servirá?” 1

Parece-nos importante levar ainda mais adiante a nossa lembrança dos princípios do nosso fundador quanto à crise da Igreja e, para tanto, transcrevemos aqui o artigo “A Descoberta da Outra”, de 1977, na íntegra. Pedimos especial atenção dos nossos leitores aos termos precisos usados por Corção para definir a crise pelo que ela tem de esssencial e que aparecem logo nos primeiros parágrafos. São eles que nos servem ainda hoje para a posição da Permanência diante da crise que perdura:

Um leitor que se diz assíduo, numa longa conversa telefônica, estranhou o pós-conciliar. O leitor entende o termo como se significasse a mesma Igreja Católica, na era pós-conciliar. Bem sei que nesse período conturbado continua a existir, na terra, a Igreja Católica dita militante. Ora, minha sofrida e firme convicção, tantas vezes sustentada aqui, ali e acolá é que existe, entre a Religião Católica professada em todo o mundo católico até poucos anos atrás e a religião ostensivamente  apresentada como "nova", "progressista", "evoluída", uma diferença de espécie ou diferença por alteridade. São portanto duas as Igrejas atualmente governadas e servidas pela mesma hierarquia: a Igreja Católica de sempre, e a Outra. E note bem, leitor: quando acaso der a essa outra o nome de Igreja pós-conciliar não quero de modo algum insinuar a infeliz idéia de que, após o Concílio, a Igreja de Cristo se teria transformado a ponto de tornar-se irreconhecível, devendo os fiéis de bem forma­da doutrina católica acreditar nessa nova forma visível da Igreja, por pura disciplina, ainda que a maioria das pregações e dos novos ensinamentos sejam ostensivamente diversos e as vezes opostos à doutrina católica. Não! A Igreja Católica e Apostólica continua a existir na era pós-conciliar, submetida a duras provações, mas sempre permanente e fiel guardiã do depósito sagrado.

Se o leitor me perguntasse agora quais são as essenciais diferenças que separam as duas religiões, eu responde­ria: diferença de espírito, diferença de doutrina, diferença de culto e diferença moral. Como terei chegado a tão assustadora convicção? Com muito sofrimento e muito trabalho, são milhares os católicos que chegaram à mesma convicção.

Começamos por confrontar os novos textos, as novas alocuções, as novas publicações pastorais com a doutrina ensinada até anteontem. A começar pelos textos emanados dos mais altos escalões, citemos alguns daqueles que mais dolorosamente e mais irresistivelmente nos levaram à conclusão de que se inspiram em outro espírito e se firmam em outra doutrina. Entre os textos conciliares, citamos os seguintes: Constituição Pastoral sobre a Igreja e o Mundo Atual (Gaudium et Spes); Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio); Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae); Discurso de Encerramento do Concílio, 7 de Dezembro de 1965; Institutio Generalis do Novus Ordo Missae: Ponto 7 (na primeira redação, de 1967, e principalmente a segunda redação de 1970). Além desses documentos dos mais altos escalões, poderíamos encher as páginas deste jornal com obras e pronunciamentos de cardeais, arcebispos, bispos e padres que eram bisonhos, retraídos e discretos quando tinham vaga consciência de suas deficiências filosóficas e teológicas e que subitamente descobrem que na "nova Igreja" podem dizer tudo o que lhes vem à boca que fala ou à mão que escreve. O que menos se conhece é a Teologia, mas o que mais abunda na Nova Igreja são os "teólogos da libertação".

Devemos dar especial atenção aos pronunciamentos das Conferências Episcopais que rarissimamente dizem coisa parecida com a Santa Religião ensinada por Jesus Cristo. Basta prestar atenção, ler, e comparar toda a prodigiosa logorréia dos reformadores com o que já lemos dos santos doutores, dos santos Papas, e de toda a Tradição católica. Eles não falam a mesma língua de nossa Mãe Igreja, não usam o mesmo léxico, não seguem o mesmo espírito. Evidencia-se com brutalidade dolorosa o fato de ter sido a Igreja invadida, ou de ter se deixado seduzir pelos mesmos inimigos que combatia. Uma das notas mais características do novo espírito é a da tolerância erigida em máxima virtude, e o correlato horror por qualquer espécie de luta ou combate. Os novos levitas corrompem a juventude, destroem as famílias, mas quando alguém ergue a voz pedindo punição severíssima para os seqüestradores e para os traficantes de drogas, logo começam a esganiçar gritinhos: Violência, não! Violência, não!

E aqui encerro a concisa resposta que dou ao leitor escandalizado: foi a atenta observação desses fatos, foi a paciente leitura de himalaias de mediocridade e foi a comparação gritante entre o que ensinam e o que ensinaram os santos, e creio que foi principalmente a graça de Deus certa­mente pedida cada dia, cada hora, nessa especial e gravíssima intenção, que nos levaram a essas conclusões. Se é preciso usar o recurso dos gritos que tanto usam hoje, gritarei eu também, e não esconderei a reação que tive em 1965 após a primeira leitura da Constituição sobre a Sagrada Liturgia: corri ao telefone do amigo mais próximo já chorando, já engasgado de soluços que me sacudiam o corpo todo. E gritei: eles estão loucos! Eles estão loucos! E mais não digo.

Vejo em seguida nos meios católicos um dilúvio de calamidades pavorosas. Nas melhores famílias católicas, tradicionalmente católicas, os jovens, pervertidos pelos professores de colégios católicos, se transformam em anormais, comunistas, criminosos seqüestradores, ou em inutilizados toxicômanos. Meu Deus! Como pode? Como pode? Como Pode? O mistério da permissão divina nos traz vertigens quando pensamos em tantos bons pais tão terrivelmente atingidos.

Mas quando pensamos que a crise de costumes que dissolve todos os valores morais de uma civilização é principalmente gerada pela impiedade e pelo orgulho dos homens, que reivindicam todas as liberdades e todos os direitos; e principalmente quando pensamos que é exatamente nessa hora sombria que os homens de Igreja julgam ter feito uma descoberta muito inteligente, e muito oportuna – a de se abrir para o mundo e até a de nele procurar inspirações para o novo humanismo que apregoam – então, com temor e terror, pensamos que a misteriosa permissão divina, já nos foi profeticamente revelada na Sagrada Escritura, e durará até o dia em que os homens descobrirem apavorados que desprezaram Deus, que contrariaram Deus, que se riram de Deus. E, nesse dia de espantosa desolação descobrirão "que não passam de homens" e que só Deus é o Senhor.

Neste ponto da entrevista, o leitor me faz uma pergunta muito séria e de importância capital:

— Qual é, na sua convicção, o traço principal, o conteúdo essencial dessa Outra religião que o senhor vê nos re­cintos da Igreja Católica?

— Mais uma vez insistido neste ponto: a desordem que se observa nos meios eclesiásticos e que produz tais malefícios, não pode  ser apenas uma pura desordem. A desfiguração da Igreja do Verbo Encarnado, isto é, da religião do Deus que se fez homem, tem uma figura: a da religião do homem que se faz Deus. Essa é a figura da desfiguração.

— Não foi o próprio Papa Paulo VI quem disse no discurso de encerramento do Concílio que "a Igreja de Deus que se fez homem encontrou-se no Concílio com a religião do homem que se faz Deus"?

— Exatamente. E se o amigo continuar a atenta leitura desse documento, se convencerá de que não exagero nem me perco em fantasias se lhe disser que a figura essencial da Outra é a de um humanismo que se torna uma nova religião que difere do cristianismo por seu desolado naturalismo, isto é, pela ausência da mais bela de todas as obras de Deus – a ordem da graça e da salvação.

Eles tentam disfarçar a chatice e a tristeza sinistra e feia, com retalhos de cristianismo sem vida  mas a anemia profunda do corpo sem sangue está na visibilidade da Outra que só serve para eclipsar a Santa Visibilidade da Igreja de Cristo.

— E como poderá a Igreja Católica desembaraçar-se desses equívocos e voltar a ser  visível, dourada, um pouco mais hoje, um pouco menos amanhã, mas sempre anunciando aos homens, aprisionados no efêmero, um Reino que não é deste mundo?

— O senhor espera ainda ver neste mundo a Igreja Militante em todo o seu esplendor?

— Não. A desordem é profunda demais e chegou aos vasos capilares dos membros da Igreja. Se ela não fosse obra sobrenatural de Deus eu diria, em termos usados pelos físicos, que a desordem é sempre prodigiosamente irreversível.

E, no caso, a improbabilidade de tal recuperação seria ex­pressa por números espantosos como dez elevado a menos mil (10-1000) que, na verdade, não exprimem nada. Não são números concretos nem entes de razão; quando muito diríamos que só são entes de giz no quadro negro. Emile Borel dizia francamente que, diante de tais improbabilidades, é melhor dizer simplesmente que são impossíveis. Mas nós aqui estamos  falando da mais maravilhosa das obras de Deus:

"Deus qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti, et mirabilius reformasti"

E o que a nós parece impossível, é possível para Deus. Mas nossa esperança teologal não nos obriga a esperar acontecimentos neste mundo. No ponto da vida em que me acho, só posso esperar, pela misericórdia de Deus e pelo Sangue de Cristo, a felicidade de ver brevemente a Igreja do Céu em toda a sua beleza eterna e fora do alcance dos flagelos humanos.

E é a alegria dessa esperança teologal que, nestes dias de transição desejo aos meus leitores e companheiros de trabalho.

A Permanência aprendeu de seu fundador a manter-se sempre igual, pacifica e fiel, profundamente ligada à vontade de Deus segundo critérios de fé sobrenatural, ou seja, da adesão devida ao Mistério de Deus, verdade primeira, e que se declara e manifesta pela profissão de fé católica, mesmo nos momentos mais confusos e nebulosos que nos foi dado viver. Devemos permanecer nesses princípios se pretendemos continuar sendo a Permanência de Gustavo Corção, de Julio Fleichman e dos demais mestres que nos precederam.

*

Por outro lado, o fundador da Permanência deu à nossa instituição um exemplo de constante aplicação dos princípios da Lei Natural, iluminados pela fé, à coisa política da nossa Pátria. Porque também no governo dos povos a verdade precisa estar em primeiro lugar.

Por causa dessa verdade, Gustavo Corção viu no movimento militar de 1964 a reação espontânea do povo brasileiro contra a implantação forçada do regime comunista em nossas vidas. Foram as mulheres católicas, com panelas vazias em uma das mãos e o Terço na outra, que forçaram nossos militares a cumprirem seu dever cívico de defesa da Pátria. Por um milagre da Virgem padroeira do Brasil, nossos soldados expulsaram os inimigos do povo sem um único tiro, sem massacres ou guerra civil. Protegeram a população contra a guerrilha urbana dos esquerdistas, que matavam civis inocentes sem piedade, e até mesmo seus próprios companheiros de milícia, quando isso lhes interessava. Raramente o povo brasileiro passou por momentos de perigo no combate à luta armada comunista. E isso, graças aos cuidados extremos dos nossos generais. Quem viveu nessa época sabe que a população vivia em paz; quem tinha a temer eram os terroristas ou os ideólogos de carteirinha.

Porém hoje, após oito anos do governo Lula, com seu romantismo quase beato em favor de um comunismo adocicado, os antigos guerrilheiros assumiram o controle do nosso país, gente perversa, que está dando passos seguros no caminho de uma vingança pessoal contra aqueles que os derrotaram de modo tão brilhante e total.

Hoje o Brasil parece entregue a uma decadência certa, pois assistimos a elaboração de leis e à formação dessas “comissões” que nada mais são do que instrumentos paralelos para estabelecer uma máquina comunista no Brasil. Como sempre, pelo voto.

Política Econômica: O governo só enxerga a curto prazo e, nesse caso, está completamente desconectado da realidade: busca fazer o país crescer estimulando artificialmente o consumo. Ora, isso não tem como dar certo: todo chefe de família sabe que, se em sua casa começarem a gastar demais, logo toda a família estará atolada em dívidas e terá de apertar os cintos. Hoje as estatísticas demonstram que é recorde o endividamento dos brasileiros: em média, 20% do que ganham vai para o pagamento de dívidas. Imagine o que ocorrerá quando todo o país tiver de apertar os cintos!

Código Florestal: Verdadeira paródia de um conto para crianças, aqui também há vilões, heróis e uma linda mocinha em perigo. A mocinha é a natureza. Os anti-heróis são os estudantes, celebridades e jornalistas. Os vilões, na visão deles, são os homens do campo. É um enredo curioso porque no caso, os "homens de cidade" seriam os amantes e defensores da natureza; os "homens do campo", os que se dedicam e cultivam a terra, seriam os seus inimigos. O objetivo dos “heróis”, portanto, é impedir a ação dos “maus”: por trás da campanha "Veta Dilma" está a concepção ambientalista, que subverte o objetivo do negócio rural: ao invés de ser a produção racional, passa a ser a preservação das matas. Essa história não tem final feliz, porque paralisa o país, impedindo o desenvolvimento da produção agrícola.

Comissão da Verdade: A ironia dessa comissão é ter sido criada por uma presidente que, ela própria, dissimula sua participação em crimes do período militar (como guerrilheira). Nenhum membro escolhido busca a verdade nos fatos, mas apenas na ideologia. Apesar da Lei de Anistia, os esquerdistas não descansam enquanto não conseguirem sua vingança pré-programada; martelam nessa mesma tecla até que as amarras jurídicas caiam e a vingança possa ser executada.

Além desses pontos, a política atual está minando toda a integridade que ainda restava no povo brasileiro. Vão forçando e insistindo até que conseguem seu intento. Por isso preparam-se para novas tentativas de desarmamento, para novas leis favoráveis ao aborto, para liberar o porte de drogas e de destruição da família brasileira. Os espantalhos vão sendo espalhados pelo Brasil de modo a assustar a todos, tirando do povo simples e dos mais bem formados, qualquer poder de reação.

Hoje já não há mais o Exército Brasileiro capaz de combater esses vingadores derrotados de outrora. Por outro lado, não há mais a Igreja Católica capaz de conduzir a sociedade aos atos morais necessários para que se mantenha a paz e a harmonia entre os homens. Nem mesmo políticos há, que se oponham de modo verdadeiro ao lixo de uma esquerda retrógrada.

Pela Igreja e pela Pátria, peçamos a Nossa Senhora Aparecida que nos proteja dos nossos inimigos, enquanto nós tratamos de seguir os passos firmes de Gustavo Corção.

(Revista Permanência, 266)

  1. 1. S. Mateus, 5, 13.

A Permanência no centenário de Fátima

Dom Lourenço Fleichman, OSB

Em 1987, ao se completarem os 70 anos das aparições de Nossa Senhora em Fátima, Portugal, Dom Marcel Lefebvre reuniu a sua Fraternidade Sacerdotal São Pio X no local das aparições, numa peregrinação internacional de padres, seminaristas e religiosos, juntamente com alguns poucos milhares de fiéis, sobretudo da França e Alemanha.

Nessa ocasião o bispo de Ecône fez uma solene consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, sem querer, de modo algum, usurpar um papel de chefia que não era o seu, mas desejando, por outro lado, cumprir a ordem dada pela Mãe de Deus, quando da aparição a irmã Lúcia, em Tuy, na Espanha, em 1929.

Se os papas se recusaram a consagrá-la, ou se o fizeram sempre de modo parcial, eu pelo menos – pensava o santo bispo – cumprirei a minha parte. Eis o trecho da consagração relativo à Rússia, feita por Dom Marcel Lefebvre, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, na Cova da Iria:

... na intenção de frear os castigos que anunciastes, vos tornastes a mensageira do Altíssimo, para pedir ao Vigário de Jesus Cristo, unido a todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao vosso Imaculado Coração. É com pesar que vemos que ainda não deram resposta a vossos pedidos.

Por esta razão, a fim de antecipar o feliz dia em que o Soberano Pontífice realizará os pedidos de vosso divino Filho, sem nos atribuir uma autoridade que não nos pertence, mas por uma humilde súplica dirigida ao vosso Coração Imaculado, em nossa condição de bispo católico, penetrados de solicitude pela sorte da Igreja universal, e unidos a todos os bispos, padres e fiéis católicos, Nós resolvemos responder, por Nossa parte, aos pedidos do Céu. (...)

E Dom Lefebvre continua com mais detalhes:

Em segundo lugar, damos, entregamos e consagramos, na medida em que isso está em nosso poder, a Rússia, ao vosso Imaculado Coração: nós vos suplicamos, na vossa maternal misericórdia, de tomar esta nação sob vossa poderosa proteção, de fazer dela vosso domínio onde reinais como Rainha, de fazer dessa terra de perseguições uma terra de eleição e de bênção. 

Nós vos conjuramos a submeter tão inteiramente essa nação a vós, que, convertida de sua impiedade legal, torne-se um novo reino para Nosso Senhor Jesus Cristo, nova herança para vosso doce cetro. Do mesmo modo, tendo abandonado seu antigo cisma, que ela retorne à unidade do único rebanho do Pastor eterno, e que, submetida assim ao Vigário de vosso divino Filho, ela torne-se um ardente apóstolo do Reino social de Nosso Senhor Jesus Cristo em todas as nações da Terra.

Como fica claro no texto dessa bela consagração, a Rússia jazia ainda sob a escravidão da União Soviética. Quem poderá dizer qual a influência desse ato nos acontecimentos que viriam? Quantas mudanças após o fim da Cortina de ferro e as vicissitudes sofridas pelo povo russo após 70 anos de comunismo.

Em duas ocasiões a consagração realizada por Dom Marcel Lefebvre foi renovada pelos bispos da Fraternidade São Pio X: 1997 e 2005. E agora, no último dia 19 e 20 de agosto do ano corrente de 2017, realizou-se a terceira renovação dessa mesma consagração. O contexto não poderia ser mais grandioso: reuniu-se em Fátima uma multidão de cerca de nove mil fiéis, 200 religiosas, entre irmãs da Fraternidade, dominicanas, hospitalares e outas. Entre os seminaristas, sacerdotes e religiosos eram mais de 300. Todo esse mundo rezando em torno dos três bispos da Fraternidade São Pio X num evento de grande porte.

A peregrinação organizada pela Permanência e nossas Capelas atravessou o mar salgado com fiéis da Capela São Miguel (Rio de Janeiro), da Capela Nossa Senhora da Conceição (Niterói), da Capela N. Sra da Assunção (Fortaleza), de Florianópolis e de São Paulo. Os 33 peregrinos se juntavam a cerca de 50 outros do Priorado de S. Paulo, além de alguns que foram por conta própria. Ao todo os brasileiros beiravam uma centena. Bela representação se pensarmos na distância e na situação de grave crise por que passa nosso país.

O dia 19 de agosto marcava o centenário da 4ª aparição de Nossa Senhora. De fato, no dia 13 desse mês, em 1917, as três crianças estavam na prisão e não puderam comparecer ao encontro marcado pela Mãe do Céu. Foram surpreendidas pela aparição da Virgem Maria quando, já libertadas da prisão, se dirigiam à Cova da Iria, no local chamado Valinhos, poucas centenas de metros após se deixar Aljustrel, o vilarejo onde moravam. Hoje há um oratório com uma bela imagem de Nossa Senhora.

A Fé sobrenatural é um dom de Deus que se aloja na nossa inteligência e esclarece nossa razão, realizando em nós o ato de crer, e dando-nos motivos e forças para agirmos segundo a vontade de Deus, na Caridade. Essencialmente, a Fé não necessita de apoio sensível e é capaz de agir sobre nós, mesmo em condições adversas, como no meio de uma guerra, ou num leito de hospital. No entanto, a prática da Igreja e o exemplo dos santos mostram uma relação muito íntima entre a realização sobrenatural e interior da Fé e as coisas físicas que sempre acompanham a vida sensível dos homens. É assim que estar de joelhos no meio das pedras, diante do lugar em que o corpo glorioso da Virgem Maria encostou nessa terra; estar ali rezando o Rosário no dia mesmo em que se completam 100 anos dessa aparição, é algo que move os céus, que espalha de modo mais abundante as graças de conversão, de santificação, de adoração e louvor.

Não se trata de “sentir” alguma coisa, uma emoção, ou banhar-se em lágrimas para, por assim dizer, confirmar a graça invisível. Ao contrário, é como se a graça invisível nos levasse pela mão, nos conduzisse à sublime presença do Céu tocando a Terra, sem abandonar o que em nós há de humano, dual, corpo e alma, espírito e sensibilidade. 

Foi assim que no sábado 19, após a missa cantada às 15:00 de uma tarde quente e ensolarada, com os milhares de fiéis tentando se esconder do sol de 38º sob as poucas árvores do parque em que se montaram as tendas do altar, seguimos em procissão rezando o Terço, pelas trilhas do campo, entre as oliveiras e carvalhos. A multidão de padres e fiéis compactou-se em torno da imagem de Nossa Senhora nos 100 anos dessa aparição, quando Nossa Senhora insistiu muito sobre o aspecto sobrenatural da oração constante.

Essa multidão já mudara o ambiente da pequena cidade. Por toda parte encontrávamos padres e religiosas da Tradição. Os franceses dominavam a cidade, tendo vindo aos milhares. Ouvia-se igualmente por toda parte o inglês de muitos americanos e o alemão. 

Os grupos iam e vinham, entre os túmulos de Francisco e Jacinta, dentro da Basílica, a Capelinha das aparições, construída no local mesmo em que Nossa Senhora tocou a Terra, o parque onde foram celebradas as missas do sábado e do domingo, e o vilarejo de Aljustrel, hoje transformado por um turismo religioso intenso, mas que preservou, restaurou e iluminou o lugar onde os três pastorinhos viveram a maior aventura ocorrida nos últimos cem anos. 

O mundo se transformou, a Revolução tomou conta das sociedades e expulsou a fé da vida dos homens; passamos por duas guerras mundiais, o Concílio Vaticano II destruiu o obstáculo ao reino do Anticristo, o homem pisou na Lua, dominou os semi-condutores e aplicou-lhes os algoritmos da programação mais avançada. Mudaram-se os costumes sociais, os costumes religiosos, a política dos povos. E nada disso chega perto da grandeza e da importância de Fátima.

Se pensarmos no conjunto de graças recebidas pelas três crianças, desde a intensa preparação feita pelo Anjo de Portugal, em 1916, passando pela maternal presença da Virgem Maria nas seis aparições de 1917, na heróica comunhão das crianças com o sofrimento das almas dos pecadores, nos atos de reparação, nas orações pelo papa, na gravíssima responsabilidade que a Mãe do Céu punha em seus tão pequeninos ombros mostrando-lhes o Inferno, e exigindo delas a mais filial e plena união reparadora ao Imaculado Coração; se imaginarmos a alma de três crianças sabendo que o castigo terrível da guerra iria se abater sobre a humanidade e que cabia a elas anunciarem ao mundo o remédio oferecido por Nosso Senhor, de recorrer à Mãe de Deus no amor puríssimo do seu Imaculado Coração; enfim, se pensarmos em tantos outros detalhes que não podemos aqui enumerar, decididamente estamos diante do maior evento acontecido sobre a Terra nesses tempos de apostasia e de calamidade. 

Por isso tudo era importante atender ao chamado de Dom Bernard Fellay e termos uma representação aos pés do trono da graça, como cantamos no introito da missa do Imaculado Coração, celebrada no domingo, ali pertinho do lugar em que esse mesmo Coração foi mostrado aos homens pela primeira vez, na palma da mão de Nossa Senhora:

Adeamus cum fidúcia ad thronum gratiae” – avancemos com confiança ao trono da graça, ao trono do amor maternal, ao trono do socorro nos dias de tribulação, em que só o coração da Mãe pode vir em auxílio aos seus filhos aflitos e famintos.

Assim foi a missa do domingo 20 de agosto, em Fátima. Para que se tenha uma idéia da grandeza da reunião, cerca de 25 sacerdotes distribuíram a Comunhão aos nove mil peregrinos reunidos. Mesmo assim ultrapassou os 20 minutos o tempo necessário para que todos comungassem. 

No final da missa os três bispos reunidos renovaram a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Ao citar esta questão no sermão da missa, Dom Bernard Fellay lembrou que a conversão da imensa nação eslava não significa apenas o fim do comunismo. Após tantos séculos de cisma, de uma ruptura que se iniciou pela recusa da autoridade do papa como sucessor de Pedro e chefe da Igreja universal e que levou o povo russo também à heresia, ao recusar todos os dogmas solene e infalivelmente pronunciados pela Igreja ao longo dos últimos séculos, não faz sentido imaginarmos que a Rússia possa ser agraciada por um milagre que a livrasse da escravidão soviética sem que a levasse à única Fé, à única verdade proclamada e ensinada com toda a autoridade de Cristo pela Igreja Católica Romana.

E falamos de Igreja Romana! Logo surge outra questão aflitiva: como imaginar uma conversão da Rússia à fé da Igreja Romana sem pensar na conversão das autoridades da Igreja, o papa e os bispos do mundo inteiro, à verdadeira fé ensinada ao longo de dois mil anos e rechaçada pelo Concílio Vaticano II. Este é o drama que vivemos. Ele só faz aumentar nossas obrigações espirituais, nossa necessidade de praticar oração e penitência, o terço diário e o estudo do verdadeiro catecismo.

O fato é que, malgrado os 70 anos de regime ateu e perseguidor da fé, a Rússia parece ser o único país capaz de manter certas exigências morais já desaparecidas do Ocidente. Qualquer coisa de religioso se conserva mesmo na estrutura governamental e apesar dos seus governantes, o que significa que no dia em que o papa resolver obedecer à ordem do Céu e consagrar a Rússia, junto com todos os bispos do mundo, ao Imaculado Coração de Maria, mesmo sendo tarde, algo de portentoso, de espetacular poderia suceder, e nós veríamos uma reviravolta na situação atual, em que o liberalismo tomou conta de todo o mundo ocidental, que só fala e só raciocina em termos de total liberdade para tudo e para todos os que não são católicos. 

Na Espanha, mais uma vez os homens responderam aos ataques islâmicos no coração da Europa proclamando as liberdades e a democracia. Foi assim em Paris, em Nice, na Alemanha. Enquanto a cegueira tomar conta dos governantes, políticos, artistas, jornalistas etc. os inimigos da Fé católica, os inimigos da Civilização Cristã crescerão e nos ameaçarão dentro de nossas casas, em nossas cidades. A Europa já caiu diante dos milhões e milhões de islâmicos que a invadiram encontrando os portões abertos. Muitos sofrimentos foram preditos pela Virgem Maria em Fátima, e todos se realizaram ou estão se realizando: o fim da 1ª Grande Guerra, o início da 2ª Guerra ainda no pontificado de Pio XI, a Rússia espalhando seus erros pelo mundo, o desaparecimento de muitas nações etc.

Muito antes do Concílio Vaticano II abrir as portas da Igreja ao mundo liberal já se constatava uma política equivocada diante das nações. Conhecemos alguns desastres provocados pela política e pela diplomacia do Papa Pio XI, tais como o massacre dos Cristeros, no México, ou a condenação da Action Française, de Charles Maurras. Ora, as aparições de Fátima, e em particular o pedido de consagração da Rússia, contrariavam os desejos da política do Vaticano na época de Pio XI. Apesar de ter mostrado até certo ponto crer na veracidade das aparições, este papa preferiu não realizar a consagração. 

Por isso, Nosso Senhor se lamentou com a irmã Lúcia, numa comunicação espiritual que esta teve em Rianjo, na Espanha, e sobre a qual ela escreve:

“Numa ocasião em que eu pedia a Deus a conversão da Rússia, da Espanha e de Portugal, pareceu-me que Sua Divina Majestade me dizia: “Me consolas muito pedindo a conversão dessas pobres nações. Pede-a também à minha Mãe dizendo-lhe sempre: “Doce Coração de Maria, sede a salvação da Rússia, da Espanha e de Portugal, da Europa e do mundo todo”. (...) E em outra ocasião: “Avise aos meus ministros que, como eles seguem o exemplo do rei da França, retardando a execução do meu pedido, eles o seguirão nas dores. Jamais será tarde demais para recorrer a Jesus e a Maria”.

E ao Pe. Gonçalves, seu confessor: “... Nosso Senhor me disse se lamentando: “Não quiseram ouvir meu pedido. Como o rei de França, eles se arrependerão e o farão, mas será tarde. A Rússia terá espalhado seus erros pelo mundo, provocando guerras e perseguições contra a Igreja. O Santo Padre terá muito a sofrer”.

Diante desse contexto, a reunião de cerca de dez mil pessoas em Fátima, no ano do centenário, as missas, os terços rezados, as penitências realizadas pela multidão e, sobretudo, a renovação da Consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria fortalecem a nossa Fé católica, nos anima no combate, nos exige atitudes verdadeiras e fortes dentro de nossas famílias, em nossas Capelas, suplicando à Virgem Maria que sopre em nossos corações o seu espírito de fé sobrenatural, de sabedoria, de amor pelos pobres pecadores e pela conversão do papa e dos bispos, para que, enfim, assumam o seu papel de confessores da Fé diante de um mundo apóstata.

(Revista Permanência 287)

Breve introdução aos salmos

breve introdução aos salmos

 

NOME — Em hebraico o salterio tem o nome de sefer tehillim — livro dos louvores (liber hymnorum, traduz São Jerônimo).

Salmo é um nome grego (psalmos) que traduz a palavra “mizmor” que encabeça muitos salmos “psalleim” — tocar um instrumento de corda ; ou cantar acompanhado de instrumento de corda.”

Saltério — conjunto de salmos.

INSPIRACAO — O Conc. de Trento confirma a Tradição antiga ao enumerar entre os Livros canônicos o “Psalterium davidicum 150 psalmorum”. É catalogado entre os livros poéticos e sapienciais.

NUMERO — 150; cifra canônica. Fora disso é apócrifo.

LINGUA — Foram todos escritos em hebraico.

AUTORES — O título do Conc. de Trento não quer afirmar que Davi é o único autor.

Davi é o autor de 88 salmos: O texto hebraico lhe atribui 73, outros 15 lhe atribui a Vulgata e LXX e 2 pela S.E. em outros Livros, mas 2 desses não são certamente de Davi ( sl42 & 136 )

Outros Autores:

— Salomão— atribuem— lhe o ps. 71 e 126.

— Moisés— sl89.

— Hemán ( do Templo )— sl87.

— Ethán ( do Templo )— sl88.

— Asaf ( mestre de coro do Templo no reinado de Davi. )— sl49; 72— 82 (12 salmos).

— Filhos de Coré (descendentes do levita revolucionário castigado por Moises no deserto) — ps. 41— 48; 83,84,86,87 (12 salmos ).

 

TEXTO dos SALMOS

Apesar de que o texto hebreu e o texto dos LXX (Vulg.) concordem com o número dos salmos, existe uma diferença de numeração entre eles. Os salmos eram de uso litúrgico, por isso os hebreus devido a circunstancias uniram alguns salmos e separaram outros o que acarretou diferenças:

    

 

              

DIVISÃO do SALTERIO

O saltério dos 150 salmos é o resultado da união progressiva, conduzida pela Providência , de diversas coleções de salmos mais ou menos compenetrados entre sí. Na Bíblia hebréa os 150 salmos são divididos em cinco livros e no último salmo de cada livro se encontra uma doxologia terminada por “...Fiat,Fiat.”. (com exceção do ps. 150 que é ele mesmo uma doxologia de todo o saltério).

Essa divisão nos dá uma cronologia aproximativa, que pode não ser exata por possível reacomodacão temática dos salmos para uso litúrgico.

Fillion fixa o período de composição dos salmos (excetuado o de Moisés) do ano 1050 ao 450 a.C. ( + — 600 anos)

 

1o LIVRO  — ps.1 a 41.

“Saltério Yahvista” porque Deus é designado pelo nome de Yahveh.

Autor — Davi

São salmos “pessoais”— tema freqüente: confiança em Deus nas dificuldades (perseguição de Saúl e revolta de Absalon)

 

2o LIVRO — ps.41 — 71.

“Saltério Elohista”— Elohim substitui o nome de Yahveh para que o santo nome de Deus não seja repetido (reverencia).

Autores — Davi, Filhos de Coré, Asaf e Salomão:

— saltério de Coré ps. 41 a 48 — De grande beleza e rica doutrina ; amor apaixonado pelo Templo e por Jerusalém.

—  ps. 49 de Asaf — é um poema nacional.

—  2o saltério davídico — ps. 50 a 71  (65, 60 e 70 são anônimos e o 71 é atribuido a Salomão).Aqui não se trata mais da epopéia davídica mas de uma oracão de  um exilio de coracão, um apelo todo cheio de confianca.

 

3o LIVRO  ps. 72 a 88    Elohísta.

— Saltério de Asaf — ps.72 a 82 . Conjunto de poemas nacionais que anima uma fé intensa na proteção de Deus sobre seu povo. Esse saltério foi muito cantado no exílio de Babylónia.

— sl83 a 88 — salmos isolados, reagrupados após o exílio. sl85— Davi,  sl87— Hemán,  sl88— Ethán.

 

4o LIVRO sl89 a 105  Yahvista.

— salmos isolados :sl89 — Moisés;

sl90,91,93,94,103 parecem pré— exilianos;

sl101 post— exiliano.

— salmos reais : realeza de Yahveh sobre indivíduos e nações : sl92, 95— 99.

— salmos davídicos — sl100 e 102.

— salmos históricos 104, 105: benefícios de Yahveh e infidelidade dos judeus.

 

5o LIVRO os 106 a 150   Yahvista.

— salmos diversos: sl106 — histórico.

sl107 a 109; 137 a 144 — Davi

sl110 e 111— sapienciais.

sl118 e 136— triunfo da Lei.

sl126— Salomão

— salmos do “Hallel “( do hebreu halle — Yah.) usado nas cerimonias mosáicas.

Hallel ordinário sl112 a 117

Grande Hallel   sl134 e 135

Pequeno Hallel sl145 a 150.

— salmos graduais: São 15 salmos ( sl119 a 133 ) post exilianos em sua maioria compostos para sustentar e exaltar a fé dos israelitas durante as peregrinações à Jerusalém.

LANÇAMENTO DO BOLETIM PERMANÊNCIA

O dia 6 de janeiro, festa da Epifania de Nosso Senhor, seria também aniversário de Julio Fleichman, meu pai, que participou junto a Gustavo Corção e outros alunos e amigos, da fundação da Permanência, em 1968. 
Dr. Júlio, como era conhecido, presidiu o movimento e dirigiu a Revista Permanência entre 1969 e 2003. Dois anos depois de ceder o cargo, veio a falecer, vítima de um câncer no cérebro.
Levados pelo alto nível intelectual e religioso de Gustavo Corção, os amigos da Permanência sempre pautaram o trabalho na formação profunda e séria da doutrina católica, em seus diversos pontos. (Continue a ler)

Anexo 4: Peregrinação Internacional a Roma da Fraternidade Sacerdotal São Pio X

JUBILEU  2000

Peregrinação Internacional a Roma da Fraternidade Sacerdotal São Pio X 

Nos dias  8, 9 e 10 de agosto aconteceu em Roma a peregrinação internacional do Ano Santo, organizada pela Fraternidade São Pio X. 

No dia 8, às 9:30, os Bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e os fiéis se reuniram na praça vizinha à Basílica de São Paulo fuori le mura; dali, depois de terem cantado o Veni Creator Spiritus, se dirigiram em procissão entoando os cânticos Benedictus qui venit e  Laetatus sum. No interior da Basílica, rezaram diante da Porta Santa e aos pés do Altar da Confissão. Depois de terem cantado o Credo e recitado e cantado o Pater, Ave e o Gloria, prestaram homenagem à Santíssima Virgem e a São Paulo com os cânticos Tota pulchra e Egregie doctor Paule. Sempre em procissão, acompanhados do canto Lauda Sion Salvatorem, retornaram à praça, marcando novo encontro às 15:00 na via della Conciliazione. 

Às 15:00 desenvolveu-se a procissão ao longo da via della Conciliazione, até a Basílica de São Pedro, ao som do canto da Litaniae Sanctorum. Também ali os peregrinos rezaram na Porta Santa e aos pés do Altar da Confissão. Depois de terem cantado o Credo e o S. Rosário, prestaram homenagem à Santíssima Virgem com o canto Salve Regina, rezaram pelo Sumo Pontífice com o canto Tu es Petrus, e prestaram homenagem a São Pedro com o canto  Decora lux aeternitatis. Enquanto os fiéis, religiosos e religiosas permaneciam no interior da Basílica em atitude de oração e de respeito, os Bispos e sacerdotes rezavam diante do túmulo de São Pio X, cantando, acompanhados de todos os demais peregrinos, o hino  Sancte Pie Decime. Tendo a cruz como estandarte, o clero saiu da Basílica ao som dos cânticos  Christus vincit e  Lauda Ierusalem.

No dia 9, às 9:30, os peregrinos reuniram-se na praça diante da  Basílica del SS. Salvatore (São João de Latrão) e com o canto Veni Creator Spiritus prepararam-se para o ingresso na Basílica onde entraram em procissão, rezando em seguida na Porta Santa e aos pés do Altar da Confissão . Também ali cantaram e recitaram o Credo,  Pater, Ave e o Gloria e prestaram homenagem a São João Batista com o canto Ut queant laxis e a São João Evangelista com o canto Hic est discipulus ille. Logo em seguida todos saíram em procissão ao som do canto Christus vincit, Exaudi Christe. 

Mantendo-se ordenadamente em procissão, com a cruz como estandarte, seguida pelos Bispos, pelo clero, religiosos e religiosas, os peregrinos percorreram a via Merulana até a Basílica de Santa Maria della Neve (S. Maria Maior), entoando o Christus Vincit, o Lauda Sion e outros hinos sacros.  

Depois de terem entrado em procissão na Basílica, rezaram na Porta Santa e aos pés do Altar da Confissão. Cantaram o Credo e o SS. Rosário com a Ladainha de Nossa Senhora e prestaram homenagem a São Pio V com o canto Dum esset summus Pontifex.

A saída da Basílica teve que ser organizada de modo menos ordenado já que os peregrinos que haviam se espremido dentro da Basílica tinham que dar lugar aos outros que haviam ficado de fora por falta de espaço. Apenas os Bispos, o clero e os religiosos permaneceram no altar, os quais, juntamente com o outro grupo de peregrinos, repetiram as orações e os cânticos.  

Todos os peregrinos dirigiram-se depois ao vizinho parque da Colle Oppio, onde um altar havia sido preparado para a celebração da S. Missa Pontifical em honra de Cristo Rei, a qual ocorreu às 16 horas depois de dezenas de sacerdotes terem administrado aos fiéis o Sacramento da Confissão.  
A Santa Missa foi oficializada por Mgr. Bernard Fellay, Superior Geral da Fraternidade São Pio X, assistido por sacerdotes e seminaristas, enquanto milhares de fiéis de joelhos, assistiam à Santa Missa com uma participação e decoro que a  Roma nobilis orbis et Domina já não via há um bom tempo. Depois do Ite missa est, in gratiarum actione, foi cantado o  Te Deum.

Calcula-se que o número de peregrinos estava entre 6000 a 7000, provenientes de todas as partes do mundo: Europa, América, África, Ásia e Austrália. Milhares de jovens, casais com filhos de todas as idades. Acompanhando os quatro Bispos da Fraternidade, estavam cerca de 300 sacerdotes e seminaristas, além de um grande grupo de religiosos e centenas de religiosas: todos em sua maioria bem moços.  
Sem falar no hábito talar para os sacerdotes e seminaristas, o hábito tradicional das respectivas ordens para os religiosos e religiosas, o que realmente surpreendeu muitas das pessoas que se encontravam em Roma naqueles dias foi sobretudo o vestuário decoroso dos leigos e o uso do véu sobre a cabeça da maioria das mulheres, até mesmo das mais jovens. A ordem espontânea, a compostura, a uniformidade nos cânticos, deixaram perplexos muitos dos peregrinos que se encontravam em Roma sem nem sequer imaginarem o que estava acontecendo. 
A surpresa e o espanto maior veio da parte dos homens da Igreja que não esperavam jamais verem os prelados, sacerdotes, religiosos e fiéis tradicionalistas cruzarem os portais das Basílicas jubilares: tão numerosos, tão jovens, tão organizados, tão participativos, tão familiarizados com o latim da Igreja desde a mais tenra idade. 
Depois das orações e cânticos, antes de saírem em procissão de cada Basílica, todos permaneciam atentos às palavras dos Bispos: nem um grito, nenhum aplauso, nenhum vozerio inoportuno. 
As naves das basílicas estavam lotadas: para os mais idosos eram usadas as cadeiras recostadas às pilastras das naves, mas ao saírem da Basílica todas as cadeiras voltavam à mesma posição em que se encontravam anteriormente.  

10 agosto, dia destinado à peregrinação pelas sete basílicas, foi recomendado aos peregrinos que se evitasse a participação dos mais velhos e das crianças devido ao forte calor que certamente lhes dificultaria fazer um percurso de 23 km à pé.  
Os participantes dividiram-se em grupos e assistidos pelos sacerdotes fizeram o percurso pelas sete basílicas, invadindo de fato a cidade para o espanto de muitos romanos e a emoção de muitos outros que assim se manifestaram abertamente.  
  
Algumas curiosidades. 

As Basílicas de Roma, longe de desprezarem os tradicionalistas, os acolheram com todas as luzes acesas, as velas também acesas sobre os altares, os sistemas de alto-falantes e microfones prontos para o uso e em perfeito funcionamento. Nenhum distúrbio.
Na Basílica de São Pedro, até a Guarda Suíça ajoelhou-se para rezar junto aos peregrinos da Tradição Católica.
Alguns dizem, não sabemos se é verdade, que todos os sacerdotes da Fraternidade celebraram a Missa Tradicional nos lugares de culto em que se encontravam, inclusive nas igrejas e Basílicas visitadas. 
Um Diário local (Il Messaggero), notoriamente favorável ao clero progressista, publicou no dia 9 de agosto um relato impreciso que misturava surpresa e indignação. No dia seguinte, 10 de agosto, tentou corrigir-se, diante da inegável manifestação de compostura e devoção oferecida pelos peregrinos tradicionalistas.
Um seminarista italiano que antes havia estado num seminário diocesano do sul, nos relatava porque havia decidido entrar para um seminário da Fraternidade São Pio X: pelo espanto que  havia experimentado diante da total falta de senso religioso até mesmo da parte do Bispo, quando ele viu com os próprios olhos que se chegava ao ponto de jogar no pátio a água benta para a aspersão, decidiu voltar-se para aqueles que permaneceram fiéis à milenar tradição da Santa Igreja. 

(9/2000)

Novas negociações com a Fraternidade São Pio X

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos

4ª Parte

Novas Negociações com a Fraternidade São Pio X - O Vaticano vai à Caça

 

"La corruption de la sainte messe continue à corrompre le sacerdoce catholique – A corrupção da Santa Missa continua a corromper o sacerdócio católico" (Mgr. Marcel Lefebvre)

"Je ne suis qu'un évêque catholique qui ai transmis la foi, et sur mon tombeau sera gravée cette parole : J'ai transmis ce que j'avais reçu – Nada mais sou do que um bispo católico que transmitiu a fé, e no meu túmulo será gravada esta palavra: 'Transmiti o que recebi'." (Mgr. Marcel Lefebvre)

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Quando comecei este trabalho, tinha a intenção de apresentar aos leitores os acontecimentos no seio da Fraternidade São Pedro. Como sabia que a maioria das pessoas, aqui no Brasil, ignorava o que era essa Fraternidade, achei por bem descrever as circunstâncias da sua fundação, o que foi feito nas duas primeiras partes. Só na terceira parte é que tratei da intervenção do Vaticano na Fraternidade São Pedro. Considerava completo o trabalho e atingido seu objetivo.

Qual não foi minha surpresa ao ver um novo capítulo surgir como por encanto, devido à iniciativa do Papa João Paulo II de chamar a Fraternidade São Pio X para novas negociações.

Primeiros contatos

O fato deveu-se, aparentemente, ao grande sucesso que foi a peregrinação do Ano Santo, realizada pela Fraternidade São Pio X em Roma, em agosto de 2000, quando sete mil fiéis da Tradição, vindos do mundo inteiro, reuniram-se naquela cidade para rezar pelo Papa. As fotos mostrando os mais de setecentos padres, religiosos e religiosas, junto a tantos fiéis, impressionam. Da parte do Vaticano a surpresa foi grande: «Uma das peregrinações mais edificantes que vi neste Ano Santo», dirá Mons. Tavanti, responsável pela liturgia da Basílica Santa Maria Maior. Ouviram-se também, nos corredores do Vaticano, os comentários elogiosos a estes curiosos "cismáticos" que vinham rezar pelo Papa. Nunca se tinha visto nada parecido. Outro fato inusitado foi que as autoridades organizadoras do Ano Santo receberam instrução para abrir as basílicas aos peregrinos da Tradição. Foi assim que assistiu-se a muitos prelados do Vaticano, de joelhos, pedir a bênção a Dom Bernard Fellay, superior geral da Fraternidade São Pio X, e aos demais bispos presentes. E dentro das basílicas estes bispos e padres puderam pregar e rezar, durante três dias, num clima de muita piedade, oração e caridade fraterna. Não houve missas dentro das basílicas, mas já foi um grande passo. Leia aqui uma descrição detalhada da Peregrinação.

Na verdade, o Cardeal Castrillón Hoyos, presidente da Comissão Ecclesia Dei, já havia demonstrado interesse em se encontrar com o superior da Fraternidade São Pio X. É Mons. Williamson, um dos quatro bispos da Fraternidade, quem nos conta o primeiro encontro.

"... Aproveitando a oportunidade da nossa passagem por Roma, ele nos convidou para almoçarmos juntos.
Três de nós aceitaram o convite. Ele foi muito cortês e hospitaleiro, deu-nos as boas-vindas e, depois de duas horas de almoço, abraçou-nos na despedida, dizendo: 'Voltem e visitem-me mais vezes'. E pensar que esse mesmo Cardeal, poucas semanas antes, havia tomado uma firme posição no sentido de podar a Tradição dentro da Fraternidade São Pedro, ao substituir quatro de seus líderes (eleitos pela própria Fraternidade) por outros, escolhidos diretamente por Roma! Ele esmaga os que convida, e convida os que esmaga. 'Durma-se com um barulho desses', dizem os americanos! "

Nesse primeiro encontro, o Cardeal Hoyos já havia recebido a missão do Papa de tentar negociar com a Fraternidade São Pio X um acordo. É significativo o fato de esse cardeal não ter recebido essa missão como Presidente da Ecclesia Dei, mas sim como Prefeito da Congregação do Clero. Os bispos da Fraternidade São Pio X são recebidos como membros do clero.

Depois desse encontro, correu a notícia do início das negociações. Houve, entre os fiéis e os padres ligados à Fraternidade São Pio X, como é natural numa situação como essa, sentimentos diversos: enquanto alguns viam com otimismo as negociações, outros confessavam seus temores. Mas todos concordaram que tanto o Papa quanto os Cardeais continuavam a ensinar uma doutrina e uma vida contrárias à Tradição Católica, como viria a ser confirmado em viagens posteriores do Papa, por exemplo, nas viagens à Grécia e à Síria. Por outro lado, o próprio Papa pedira essas negociações, e a inclinação do coração católico é a de atender a um chamado do Papa. Mgr. Williamson continua seu comentário: 

Haveria falta de sinceridade? Humanamente julgando, não creio. Acho apenas que ele pertence à nova religião. 'Nós temos a mesma Santíssima Trindade, a mesma Encarnação, a mesma Eucaristia', disse ele, e certamente acredita na Presença Real, porque ele mesmo declarou que, quando os 'especialistas' começam uma disputa a esse respeito, ele rapidamente fecha a questão. 'Eu sou nice [educado], e vocês também são nice people [pessoas educadas]' — é o que ele parecia querer dizer-nos — 'então, onde é que está o problema? Por que não nos unimos numa espécie de religião do tipo e todos foram felizes para sempre?' No que diz respeito à Fraternidade São Pedro, ele admitiu que, por ora, agira contra a sua vontade, mas apenas para evitar que no futuro ele fosse obrigado a agir ainda mais 'contra a sua vontade'. Em outras palavras, a Fraternidade São Pedro tinha de ser paralisada em sua tentativa de escapar do esquema 'felizes para sempre', enquanto nós deveríamos ser atraídos por uma nova política — a de serem o mais simpáticos possível conosco. O que nos impede de voltar à doce e inocente religião de 'milhões' de jovens inocentes de mãos dadas cantando pelas ruas? E, já que essa é a religião do Santo Padre (a quem o Cardeal venera e freqüentemente visita) e da 'mesma' Santa Eucaristia, então o que mais pode haver na Tradição para que esses 'tradicionalistas' continuem fazendo todo esse barulho? Eu creio que realmente o Cardeal não consegue enxergar o problema.

Por esse motivo eu, humanamente, estou certo de que o Cardeal Castrillón Hoyos não é um dos verdadeiros vilões de Roma, ou seja, dos que realmente podem ver e sabem exatamente o que estão fazendo: demolindo a Igreja Católica para substituí-la pela satânica 'Única Religião Mundial'. Na verdade, não é necessário que haja muitos vilões como tais, mas homens valorosos que ainda acreditam na Presença Real e que se deixam manipular como meros instrumentos em suas mãos. Se o Cardeal realmente é nice, um dia terá de ser nasty [grosseiro]... com aqueles que o manipulam ou conosco. Guerra é guerra."

O critério de avaliação de uma situação tão delicada, no entanto, já havia sido formulado por Mons. Marcel Lefebvre, como já ficou dito na 1ª Parte deste trabalho: "Conferir-vos-ei essa graça, confiando em que, sem tardar, a Sé de Pedro será ocupada por um Sucessor de Pedro perfeitamente católico, em cujas mãos podereis entregar a graça do vosso episcopado para que ele a confirme".

Os bispos da Fraternidade São Pio X, zelosos da herança que receberam de Mons. Lefebvre, sabiam estar lidando com autoridades que continuam destruindo a Igreja. Leiam a admirável carta de Mons. Williamson no boletim do Seminário de Winona (EUA) de fevereiro de 2001.

Como fica claro no texto do boletim, não podemos cair no erro do sentimentalismo e deixar de considerar toda essa questão do ponto de vida doutrinário. O que está em jogo é nossa fé, e, por mais que desejemos ser reconhecidos pelas autoridades do Vaticano, não podemos aproximar-nos deles se não houver sinais evidentes de retorno à Tradição bimilenar da Igreja.

As Condições Preliminares

Apesar dessas graves apreensões, os superiores da Fraternidade São Pio X prontamente se apresentaram ao enviado do Papa, o Cardeal Castrillón Hoyos, como já vimos. Mons. Fellay encontrou-se com o Cardeal no dia 29 de dezembro de 2000, em Roma, e no dia seguinte esteve alguns minutos com o próprio Papa, que o abençoou.

Após terem examinado a questão, juntamente com o representante de Dom Licínio Rangel, bispo superior dos Padres de Campos (RJ), os bispos da Fraternidade São Pio X apresentaram às autoridades romanas duas condições preliminares para o início das negociações:

– suspender as censuras canônicas impostas injustamente aos bispos da Tradição;
– dar a todos os padres do mundo o direito de celebrar a missa de São Pio V sem constrangimentos.

Sobre estas duas condições, gostaria de tecer alguns comentários. Uma primeira objeção poderia ser levantada: Por que a Fraternidade São Pio X apresenta condições preliminares? Não deveria ela ficar agradecida por esse gesto de bondade do Papa, de querer regularizar a situação? A resposta a essa objeção já foi dada no boletim de Mons. Williamson citado acima. Como estamos diante de uma crise da fé, que dura já quarenta anos, com o escândalo de Papas e bispos ensinando uma doutrina contrária ao que a Igreja sempre ensinou, cabe a essas autoridades o ônus da prova de que realmente compreenderam o problema e querem restabelecer em Roma a doutrina tradicional da Igreja. Apesar de inferior hierarquicamente, a Fraternidade tem o dever de velar por sua liberdade de defender a fé.

Em relação à primeira condição, cabe lembrar que, canonicamente, a excomunhão de 1988 é nula, pois alega um ato cismático que não houve, como ficou provado na 2ª Parte deste trabalho. Além disso, esta condição se justifica pela existência de propaganda enganosa feita pelos bispos do mundo inteiro, que insistem em dizer que Mons. Lefebvre procedeu a um cisma.

Quanto à segunda condição, ocorre algo semelhante, pois os bispos insinuam que a Missa Tridentina está proibida, e a maioria dos fiéis acredita nisso. Mas as autoridades sabem que não é assim, que a Bula Quo Primum Tempore, do Papa São Pio V, outorga a todos os padres o direito perpétuo de celebrar a missa por este missal restaurado por ele. No curto texto dessa Bula, expressões como "... e isso para sempre" ocorrem onze vezes. O próprio Cardeal Stickler declarou que uma comissão de Cardeais chegou a esta conclusão: a Missa Tridentina não está proibida e não pode ser proibida.

Esta segunda condição não resolve todos os problemas. Longe disso. Mas, caso fosse aceita, marcaria uma reviravolta prática nas atitudes do Vaticano, e não somente uma mudança nas palavras e na simpatia. É claro que o quadro de destruição do mundo católico abrange todos os segmentos da vida: doutrina, liturgia, moral, catecismo, hierarquia etc. Mas aquele primeiro passo permitiria uma conversa em bases mais concretas.

O Bi-ritualismo

Na verdade, os cardeais não esperavam esta condição. As diversas declarações que foram aparecendo na imprensa mostram com suficiente clareza que a base do pensamento do Vaticano é a questão do birritualismo. Trata-se de considerar possível a convivência das duas missas, dentro da Igreja latina. Vimos como a Fraternidade São Pedro sucumbiu sob o peso de uma intervenção do Vaticano, por causa desta questão. O Vaticano considera, hoje, que é mais interessante ter padres tradicionalistas que celebram a missa de São Pio V e aceitam celebrar a de Paulo VI do que forçar esses padres a nunca celebrar a missa tradicional e vê-los passar por cima dessa determinação graças à Bula de S. Pio V. Nesse ponto, sim, podemos dizer que houve uma mudança na atitude das autoridades romanas. Mas essa mudança é política e não doutrinária.

O Cardeal Ratzinger declarou numa entrevista ao jornal italiano Il Giornale de 3 de abril de 2001 que isto é o que Roma espera da Fraternidade São Pio X:

"Il Giornale: — Que atitude devem ter os lefebvristas para se aproximar da Santa Sé?
Ratzinguer: — Reconhecer que a liturgia renovada do Concílio é a mesma liturgia da Igreja, que ela não é outra coisa. Reconhecer que a Igreja renovada do Concílio não é outra Igreja, mas é a mesma Igreja que vive e se desenvolve.

Il Giornale: — Que podemos fazer para ir ao encontro deles?
Ratzinguer: — Devemos reconhecer que, pela liturgia tradicional de São Pio V, eles estão na tradição eclesial comum. Devemos ser generosos para permitir que a tradição cristã comum se exprima em formas rituais diferentes. É um caminho de reconciliação difícil, como acontece em conflitos familiares. Devemos tomar a iniciativa no processo de reconciliação.

No dia 9 de março de 2001, o jornal francês Present publicou uma entrevista com o Cardeal Medina, Prefeito para a Congregação do Culto Divino. Também este cardeal considera o combate dos fiéis da Tradição uma questão de "sensibilidade", como se se tratasse de mera nostalgia das coisas antigas; ele mantém firme a tese do birritualismo: 

"O Papa concedeu o uso do antigo rito a alguns institutos. Mas os padres que pertencem a essas comunidades, se são chamados a substituir um padre numa paróquia de rito novo, devem celebrar pelo rito novo, para não criar confusão [...]. Penso que devemos ser otimistas, desde que se reze bastante. Os problemas mais difíceis de resolver são os de sensibilidade."

Já a rede de informações Catholic World News adianta, em 28 de março de 2001, que dois cardeais se opuseram aos acordos com a Fraternidade São Pio X: o Cardeal Walter Kasper, recentemente nomeado pelo Papa Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade Cristã, e o Cardeal Mario Francesco Pompedda, Prefeito do Tribunal da SignaturaApostólica. Esses dois cardeais acompanham a opinião de alguns bispos franceses que se opuseram veementemente aos acordos. O resultado não tardou. O Cardeal Hoyos fez saber aos superiores da Fraternidade São Pio X que não seria possível aceitar a condição de liberar a Missa de São Pio V para todos os padres do mundo, pois isso significaria uma ruptura com o pensamento de Vaticano II.

Nós não podemos deixar de lembrar que os argumentos levantados pelos bispos franceses são de hipocrisia impressionante. Eles alegam que liberar a Missa de São Pio V, hoje, seria uma afronta ao nome de Paulo VI e ao Concílio Vaticano II. Ora, por que razão Paulo VI, quando estabeleceu a nova missa, não levou em consideração esse mesmo critério? Por que razão passou ele por cima de 1.500 anos de uso do antigo missal? Por que não respeitou a fé de milhões de fiéis do mundo inteiro, que sempre souberam que a Missa a que assistiam todo domingo transmitia um ensinamento verdadeiro e seguro sobre a teologia da Missa, sacrifício incruento de Cristo para a nossa salvação? Agora querem acusar-nos de causar confusão, como diz o Cardeal Medina, por não celebrarmos a missa nova. E a confusão que eles causaram, nos anos 70, quando invadiram todas as igrejas com esta missa que é mais um culto protestante, impondo-a sem piedade, derrubando todo o conjunto de ritos sagrados, de objetos sagrados, de linguagem sagrada, impingindo a banalidade e o mundano dentro das igrejas?

É muito difícil acreditar que pessoas com esse tipo de argumento tenham intenções santas, guiadas pelo amor de Deus e da Igreja. E não pensem que isto é juízo só meu. Os próprios padres franceses começam a compreender que seus bispos agem mais como políticos do que como pastores de almas. Eis o que escreve um padre que não quis reunir-se com um cardeal romano de passagem pela França. Notem que este padre, inserido dentro do mundo oficial, prega o birritualismo, do que discordamos, como estou mostrando. Porém, a boa fé, a reta intenção, o sofrimento  mesmo deste padre, que deseja a Tradição, fazem de sua carta um belo testemunho contra os que pregam o mesmo birritualismo só para destruir a resistência dos tradicionalistas. O contraste é significativo. Carta do Pe. X 

Fato é, porém, que essa questão do birritualismo, que está no centro das intenções das autoridades romanas, está muito longe do pensamento católico. Qualquer pessoa que queira estudar os deslizes na doutrina da missa nova encontrará nesta página alguns textos que examinam a fundo essa questão, textos esses escritos por eminentes teólogos, como o Cardeal Ottaviani, que era na época o Prefeito do Santo Ofício, órgão que tinha por missão preservar a doutrina contra os erros e heresias.

Um livro entregue ao Papa

A Fraternidade São Pio X, por sua vez, não tem a menor intenção de aceitar o birritualismo, pois conhece os erros doutrinários presentes na nova missa. Por isso entregou ao Cardeal Hoyos, junto com uma carta ao Papa, um livro escrito por alguns padres da Fraternidade que examina profundamente a Missa de Paulo VI. Este livro se chama O Problema da Reforma Litúrgica e está sendo traduzido ao português, para ser editado em breve entre nós. O trabalho consiste em analisar de modo claro e objetivo os diversos aspectos doutrinários, canônicos e litúrgicos do novo missal que se afastam da doutrina católica da Missa. Pode parecer sem muito interesse este livro entregue ao Papa, mas não é, muito pelo contrário. Os padres e movimentos fiéis à Tradição são acusados injustamente de não aceitar a missa nova sem dar, no entanto, suas razões. Isso não é verdade, pois os trabalhos editados desde 1969 foram muito numerosos e profundos. E o fato é que o livro O Problema da Reforma Litúrgica caiu como uma bomba nos corredores do Vaticano. Os cardeais não sabem muito bem que fazer com ele, como responder à altura. É preciso explicar que uma resposta de Roma deve necessariamente manter o nível da argumentação. Não adianta, diante de um trabalho teológico, aplicar o lavado argumento de autoridade, sempre usado contra os padres da Tradição: "obedeçam, obedeçam". Diante de um livro, só duas reações são possíveis: ou se argumenta respondendo à altura às críticas do livro, ou se ignora o livro, o que seria declaração de derrota.

No dia 2 de maio de 2001, o cardeal Hoyos recebeu o Pe. Simoulin, da Fraternidade São Pio X, e o Pe. Fernando Rifan, de Campos (RJ). Nessa conversa cordial o Cardeal leu para os padres o conteúdo do correio oficial que estaria mandando à Fraternidade alguns dias mais tarde:

"Quanto à primeira condição [liberar a missa], certo número de cardeais, bispos e fiéis acham que não se deve conceder essa permissão: não que o rito sagrado precedente não mereça todo o respeito, ou que se despreze sua sólida teologia, sua beleza e sua força de santificação ao longo de séculos em toda a Igreja, mas porque essa permissão poderia causar uma confusão na mente de muitas pessoas, que a compreenderiam como uma depreciação do valor da Santa Missa que celebra a Igreja hoje. É claro que nos estatutos de vosso retorno oferecemos todas as garantias para que os membros da Fraternidade e todos os que têm um atrativo especial por essa nobre tradição litúrgica a possam celebrar livremente em suas igrejas e lugares de culto. Pode-se também celebrá-la em outras igrejas com a permissão dos Ordinários diocesanos.
Quanto à segunda condição [suspensão das censuras], o Santo Padre tem a clara intenção de a conceder quando for formalizado o retorno."

Ou seja, os mesmos argumentos dos bispos franceses já comentados acima. O agravante é que agora trata-se de resposta oficial de Roma. 

A primeira reação de Mons. Fellay diante desse posicionamento foi considerar que Roma depois de ter tomado a iniciativa de buscar uma solução para a Tradição, por motivos políticos, como vimos, recuou diante das condições doutrinárias e prudentes da Fraternidade. Mgr. Fellay expõe seu pensamento no Boletim Carta aos Amigos e Benfeitores, de 5 de maio 2001. Dois dias depois, Mgr. Fellay recebeu a carta do Cardeal Hoyos comunicando que não poderia liberar a missa de São Pio V para todos os padres do mundo, como citamos acima. Diante dessa situação, o superior da Fraternidade São Pio X escreveu uma resposta mostrando porque não seria possível continuar a negociar com o Vaticano. Veja em anexo esta carta.

Para completar nossa documentação, cabe ainda publicar o sermão pronunciado em Ecône, por Dom Alfonso de Galarreta, um dos bispos da Fraternidade, no dia 3 de junho de 2001. De todos os textos publicados nestes meses de negociações, parece-me ser este o que mais se aproxima do pensamento ou, ao menos, do estilo, de Mgr. Lefebvre: firmeza, clareza, mansidão.

No fundo tudo isso é muito estranho! É claro que há elementos graves e sérios que nos levam a desconfiar. Há trinta anos nos marginalizam, há trinta anos exigem que celebremos a missa de Paulo VI, há seis meses amordaçaram e amarraram a Fraternidade São Pedro... Evidentemente, as autoridades da Fraternidade São Pio X não podem achar isso tudo lindo e confiar plenamente nas intenções do Vaticano. É neste ponto que se encontram hoje, fins de maio de 2001, as negociações para um reconhecimento, por parte do Vaticano, dos direitos da Tradição. Poderão os superiores da Fraternidade aceitar as garantias dadas por Roma? É bem verdade que, pela primeira vez, eles não exigem a aceitação do Concílio e declarações doutrinárias. Mas também não aceitaram liberar a missa de São Pio V a todos os padres que quisessem.  E depois? Será que darão, realmente, liberdade aos bispos da Fraternidade para governar e dirigir as capelas tradicionais que hoje celebram a Missa Tridentina? E quando os bispos diocesanos perseguirem os padres da Tradição, o Cardeal Ratzinguer vai continuar afirmando que não pode se opor a eles? Não foi isso que ele disse ao Padre Louis Dermonex, expulso de sua paróquia na Itália porque queria celebrar a missa de São Pio V? (ver cartas)

Porém existe uma conclusão lógica que precisa ser tirada disso tudo: o Vaticano sabe que não há cisma! O Vaticano sabe que a excomunhão é nula! E é por isso que eles insistem tanto em nos ver "unidos" novamente. Seria a maneira mais discreta de consertarem o erro absurdo que cometeram ao excomungar Mgr. Lefebvre. E como eles não querem abrir mão da nova teologia protestante que reina em Vaticano II e no Vaticano de hoje, eles simplesmente não querem falar no assunto. Espertos eles são, também mestres na diplomacia.... mas a fé que eles professam, ainda é a fé católica?

A Fraternidade São Pedro engolida pelo Vaticano

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos

3ª Parte

A Fraternidade São Pedro engolida pelo Vaticano

 

Para preparar esta terceira parte, pus-me a reler o dossiê sobre as  Sagrações de 1988. E fui como que revendo "em filme" todos os dolorosos acontecimentos que rasgaram ao meio a milagrosa obra de sobrevivência da Tradição dentro da Igreja. Não é nosso objetivo falar sobre todas as pessoas que me escreveram, todos os testemunhos da dor, da confusão, causada por pessoas como Dom Gérard Calvet, Prior do Monastère Sainte Madeleine, que já citei acima. Quantas famílias dilaceradas, com filhos permanecendo fiéis ao combate de Mgr. Lefebvre e filhos aderindo ao acordo com o Vaticano. Quantas almas boas e simples se sentiram traídas por estes padres que mudaram o seu discurso e traíram a confiança de seus fiéis. Um dia,  talvez, eu lhes faça esta homenagem, de publicar alguma coisa desses documentos marcados pelo sangue de um martírio gota a gota.

Digo isso para introduzir esta terceira parte, que pretende apresentar a Fraternidade S. Pedro, sua origem e sua destruição que ora se opera.

Os chamados católicos "Ecclesia Dei", ou seja, aqueles que celebram ou assistem a Santa Missa nas associações regidas pelo Motu Próprio de mesmo nome, de 2 de julho de 1988, têm na Fraternidade São Pedro seu representante de maior peso.  Esta Fraternidade foi formada em 30 de junho de 1988, no dia mesmo da Sagração Episcopal de Ecône, e durante as Sagrações, visto que Dom Gérard Calvet teve de deixar a cerimônia de Ecône na metade, para ir se encontrar com os padres traidores, na abadia de Hautrive.

O que marca esta fundação, assim como o acordo firmado com o mosteiro do Barroux, é a ilusão dos signatários de que não havia e não haveria contrapartida doutrinária. Ou seja, eles continuariam a celebrar a Missa de São Pio V, eles não teriam obrigação de celebrar a Missa de Paulo VI, eles poderiam pregar contra os erros de Vaticano II. Enfim, tudo como antes... Quando eu ainda estava no mosteiro do Barroux, Dom Gérard me passou um bilhete onde dizia: "Não se preocupe, Dom Lourenço, com a malícia de nossos adversários, pois a  finis operis  aniquilará a detestável finis operantis dos prelados conciliares". A finalidade do acordo (finis operis) aniquilaria a má intenção (finis operantis) dos prelados do Vaticano que assinavam o acordo. Uma verdadeira brincadeira com a Fé. Uma experiência em laboratório com o que há de mais precioso para nossa salvação. E foi assim que o Prior do Barroux aconselhou e ajudou aos padres da Fraternidade São Pio X a abandonarem a Mgr. Lefebvre. Não foi preciso muito tempo para Dom Gérard dizer que os prelados de Roma eram paternais e bem intencionados. Pouco depois ele concelebrava com o Papa numa Missa de Paulo VI.

Rapidamente as convicções doutrinárias desses padres mudaram de eixo. Antes de mostrar como isso aconteceu, gostaria de trazer alguns exemplos anteriores, onde seminários e associações oficiais e conservadoras foram pouco a pouco obrigadas a abraçar Vaticano II e a Missa Nova.

- Os Beneditinos de Dom Augustin, em Flavigny, França. Mgr. Lefebvre ordenou sacerdote seus 24 padres. Todos os anos nós os víamos em Ecône. Um dia, creio que em 1985 ou 1986, Dom Augustin fez um acordo com Roma. Prometeram a ele a manutenção de tudo. E ele afastou-se de Mgr. Lefebvre. Em pouco tempo Roma exigiu que a missa conventual (missa assistida por todos os monges) fosse a de Paulo VI. Alguns padres abandonaram, então, o mosteiro.

- Os Beneditinos de Fontgombault, França. Fundação da famosa Abadia de Solesmes, Fontgombault sempre teve uma posição de simpatia pela Tradição. Apesar de seu abade ter afirmado a Dom Gérard que nunca abandonaria a Missa de S. Pio V, não agüentou as pressões de Roma e aderiu à Missa de Paulo VI. Em 1984, João Paulo II concedeu um "indulto". Todos os que aceitavam a Missa Nova, podiam pedir para celebrar a Missa Tradicional (S. Pio V). O abade assim fez. Mas o arcebispo de Bourges não aceitou que a missa conventual fosse de S.  Pio V. O abade de Fontgombault tentou reagir, foi a Roma. O Cardeal Mayer não pode fazer nada, enviou-o ao Papa. Este se esquivou, disse que fizesse um esforço... devolveu-o ao Cardeal Mayer, que o devolveu ao bispo de Bourges.... e eles continuaram a celebrar a Missa Nova. 

Essa atitude das autoridades continua em voga no Vaticano, como mostra a resposta do Cardeal Ratzinguer ao Pe. Louis Demornex, que deixou de celebrar a Missa de Paulo VI e voltou à Missa de S. Pio V. (cf. Cartas)

"Tudo o que você diz sobre a secularização dos padres, sobre a anarquia
litúrgica e sobre as muitas profanações da Eucaristia, infelizmente é
verdade. Você confiou ao seu Bispo todo o seu profundo desconforto: ele não
compreendeu e convidou-o a deixar sua paróquia. Do ponto de vista formal e
jurídico é o direito dele
. Você sabe bem- conclui o Cardeal- que eu não
posso aconselhar-lhe a se rebelar...Esteja certo de que o Senhor nunca impõe
o peso da cruz sem ajudar-lhe a carregá-la. Eu prometo que me lembrarei de
sua dor em minhas orações diante do Senhor". 
(Fonte: Il Giornale, 18/01/2001)

Eis em que consiste a moral do Prefeito para a Doutrina da Fé. O erro tem direitos!

- O Seminário Mater Ecclesiae. Mgr. Lefebvre viveu de perto esta experiência realizada pelo Vaticano com nove seminaristas  saídos de Ecône. Ele conta numa entrevista coletiva, de 15 de Junho de 1988:

"Ouviram falar, sem dúvida – e publicaram alguns artigos nos jornais, há dois anos – do caso dos saídos de Ecône. Tinham partido daqui, de Ecône, nove seminaristas. Aquele que era, de certo modo, o cabeça dessa pequena rebelião, o P. ..., escondia bem o seu jogo e conseguiu que outros oito seminaristas deixassem Ecône. Entrou em contato com o P. Grégoire Billot, que vive aqui na Suiça, em Baden. Esse P. Billot fez, por sua vez, contato com o Cardeal Ratzinger. Ele fala alemão. Telefonou ao Cardeal: “Há em Ecône nove seminaristas que estão prontos para partir. O que é que lhes ofereceis? O que é que se pode fazer com eles?”

Formidável! Uma oportunidade única! Se lhes prometerem maravilhas, haverá outros que os seguirão... Ele disse-o explicitamente. O Cardeal Ratzinger disse: “Estou feliz por alguns terem deixado Ecône e espero bem que haja outros que sigam os primeiros.”

Como bem sabeis, fizeram o famoso seminário “Mater Ecclesiae”, dirigido por um cardeal, o Cardeal Innocenti, com o Cardeal Garrone e um terceiro cardeal, o Cardeal Ratzinger, aprovado oficialmente pelo Papa no “Osservatore Romano”. Um acontecimento mundial! Todos os jornais do mundo falaram desse seminário tradicional feito com os noves fugidos de Ecône e que também iria reunir outros seminaristas que tivessem a mesma “sensibilidade”.

Eles partiram e, ao todo, lá se encontraram cerca de vinte seminaristas.

Garanto que vale a pena ler a carta que acaba de nos enviar o P. ..., que foi o instigador da saída daqueles seminaristas. Ele escreveu: “LAMENTO”, em letras garrafais na sua carta. “LAMENTO, perdemos tudo, não cumpriram nenhuma das promessas. Somos uns miseráveis; já nem mesmo sabemos onde ir”

Mas a documentação sobre esta enganação não fica nisso. O Cardeal Silvio Oddi, em entrevista à revista Valeurs Actuelles, de agosto de 1988, declara ao jornalista Michel de Jaeghere:

"Segui de perto a primeira tentativa, há cerca de doze anos, pois os estudantes estavam instalados na Via Pompeo Magno, no colégio onde moro. 
“Devo dizer que ela fracassou, porque não respeitaram os compromissos que tinham assumido para com os seminaristas. Tinham prometido à dezena de saídos de Ecône, que aí foram acolhidos, que poderiam prosseguir em Roma, no espírito da Tradição, a sua formação sacerdotal. 
“Na realidade propuseram-se apenas “desintoxicá-los”, antes de lhes dizerem que, se quisessem continuar os seus estudos, deviam encontrar eles próprios um bispo que os aceitasse no seu seminário... "

- O Instituto Cristo-Rei. Dirigido pelo Pe. Wach,  este instituto possui um seminário em Gricigliano, perto de Florença, sendo considerado refúgio de seminaristas de tendência tradicional. Na verdade, o espírito de Vaticano II é o fundamento desta obra, como aparece nos seus estatutos, que declaram que a formação dos seminaristas segue a doutrina de Lumen Gentium. O Pe. Wach também já concelebrou com o papa no rito novo.

- Instituto do Verbo Encarnado (Argentina). Um padre da Argentina acaba de me informar que este instituto, com mais de cem seminaristas, foi fechado por Roma, mandando os seminaristas de volta para casa.

A Fraternidade São Pedro foi então fundada mediante um acordo enganador. Eles prometem toda a liberdade  para se viver na Tradição, mas suas intenções são muito claras: eles não pensam em outra coisa senão trazer os fiéis de "sensibilidade" tradicional, a aceitar o Concílio, seu ecumenismo, sua missa. 

"Eu espero dos tradicionalistas recuperados que eles façam um esforço de leitura e compreensão do concílio  a fim de que eles possam também assimilá-lo. Que eles trabalhem particularmente a questão da liberdade religiosa ou do diálogo com as outras religiões... Gostaria que os padres da Fraternidade São Pedro tenham a autorização de celebrar nos dois ritos... e que os seminaristas sejam preparados para celebrar no rito de Paulo VI." (Mgr. Decourtray, arcebispo de Lyon, França, para a revista France Catholique, 25 de junho 1993)

"Eu só poderia aceitar que se  celebre no rito de Pio V nas condições pedidas no Motu Proprio, a saber, que os que a pedem abracem profundamente o Concílio Vaticano II. (Mgr. de Garnier, bispo de Luçon, conferência em 18 de agosto de 1992)

O próprio Papa João Paulo II fez a mesma colocação, no discurso feito aos membros da Fraternidade São Pedro, vindos a Roma em 26 de outubro de 1998, celebrar o décimo aniversário de sua fundação:

"Sem deixar de confirmar a razão de ser da reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II e posta em execução pelo Papa Paulo VI, a Igreja dá também um sinal de compreensão às pessoas "ligadas a certas formas litúrgicas e disciplinares anteriores". É nessa perspectiva que se deve ler e aplicar o Motu Proprio Ecclesia Dei; eu desejo que tudo seja vivido no espírito do Concílio Vaticano II, na plena harmonia com a Tradição, buscando a unidade na caridade, e a fidelidade à verdade."

Se o  espírito do Vaticano II é diferente do espírito do Concílio de Trento, no dizer de tantos bispos atuais, então, para o papa João Paulo II, a Tradição e a verdade são evolutivas. Não é esse o ensinamento da Igreja. Além disso, aparece claramente a afirmação de que a reforma litúrgica foi boa, o que sabemos não ser verdade, pois que introduziu uma liturgia centralizada no homem e para o homem. Os padres da Fraternidade São Pedro deverão seguir este espírito novo e não deixarão de declarar isso com todas as letras. 

Abraçaram tão profundamente o novo espírito conciliar que ensinam, contra a razão e contra Paulo VI, que o  Concílio declarou novos dogmas. Os superiores da Fraternidade São Pedro passam também a apoiar o escândalo de Assis, quando João Paulo II reuniu representantes de todas as religiões para rezar pela paz, permitindo até mesmo que uma imagem de Buda fosse colocada sobre um sacrário! E o Pe. Baumann declara não ver nada de mais em Assis! Como se as falsas religiões, sem Revelação e sem a vida da graça pudessem fazer oração no sentido sobrenatural do termo. Existe uma encíclica solene, do Papa Pio XI, que condena e proíbe toda reunião de católicos com outras religiões. Esse inconveniente maior, essa desobediência a um papa anterior, é descartada cinicamente pela afirmação de que esta encíclica, Mortalium Animos, não continha princípios intangíveis. Releiam esse texto de Pio XI, carregado de um zelo e de um amor pelas almas e pela Igreja e respondam, leitores, se ela só servia para as pessoas daquela época, como pretende o Pe. Baumann. E para que estes padres sejam honestos, eles deveriam medir o valor das encíclicas de João Paulo II com os mesmos critérios das antigas. Poderíamos então dizer que os documentos do Concílio, ou as encíclicas dos papas mais recentes, também só valiam para a época em que foram escritas. Se em 1962 uma  encíclica de 1931 deveria ser descartada, então hoje, em 2001, os documentos de 1962 também já caducaram. Mas aí vem o coro: não toquem no Concílio! O Concílio é intangível! 

Para mim isso se chama desonestidade.

Apesar desse abandono do combate contra os erros de Vaticano II, a Fraternidade  São Pedro ficará à mercê dos bispos diocesanos, como afirma o papa João Paulo II e como vimos acima na reação dos bispos e  até do Cardeal Ratzinguer.  Essa dependência da aprovação do bispo diocesano vai deixar o apostolado desses padres "conservadores" amarrado e amordaçado. O Monastère Sainte Madeleine, por exemplo, tentou duas vezes fazer uma fundação, sendo rechaçados pelos bispos locais. 

Apesar de tudo, durante os dez primeiros anos de  existência, a Fraternidade São Pedro manteve mais ou menos as intenções iniciais, de celebração da missa de São Pio V, e de exclusão da missa de Paulo VI. O Pe. Bisig, superior Geral escolhido na fundação, conseguia manter as aparências de apego à Tradição, apesar dos ensinamentos a favor de Vaticano II que citamos acima. Mas o Vaticano considerou que a coisa estava demorando demais. E resolveu atacar.

A Fraternidade São Pedro fez este  acordo com o Vaticano, como nós vimos, achando que teria para sempre o direito de celebrar a Missa  de S. Pio V e de nunca precisar celebrar a nova Missa. Evidentemente o Vaticano ficou quieto, na época, sem afirmar que as intenções eram de trazer estes padres a celebração da missa nova.  Com o passar dos anos, alguns padres da Fraternidade São Pedro, começaram a pretender celebrar a missa de Paulo VI. Os superiores não queriam permitir. Houve, então, em fevereiro de 2000, uma reunião dos padres da Fraternidade, onde ficou decidido que os estatutos da Fraternidade davam aos padres o direito de recusar a celebração no rito de Paulo VI, apesar de reconhecer que este rito é o rito oficial vigente na Igreja latina. Essa decisão foi mal recebida por vários padres mais liberais que queriam poder celebrar a nova missa. Dessa situação controversa nascerá a morte da Fraternidade S. Pedro.

A destruição da Fraternidade São Pedro iniciou-se antes do Capítulo Geral, quando um dos padres dessa Fraternidade escreveu a um bispo, em Roma, reclamando do espírito conservador demais da Fraternidade (segundo sua opinião) e propondo ao Vaticano intervir e decapitar o superior geral. Essa atitude de revolta contra os seus superiores, evidentemente, é vista como ato heróico de virtude, e nessa hora a tal "obediência" fica de lado. Esse escândalo e essa traição foram recebidas em Roma com toda atenção, a tal ponto que o Vaticano seguirá todos os conselhos desse padre, como veremos adiante. 

Eis os conselhos que o Pe. Le Pivain escreve em sua carta:

- "Explicar ao Pe. Bisig (o superior), que seria bom que ele se retirasse voluntariamente, após dois mandatos de seis anos... um outro  governo daria à nossa Fraternidade um novo começo.
- Prevenir as  decisões do próximo Capítulo, que não terá a serenidade necessária para tomar as decisões justas.  (ele  propõe uma intervenção)
- Reformar o seminário.
- Entre os superiores, o Pe. Devillers me  parece a pessoa mais apropriada. Europeu, ele desenvolveu a  Fraternidade S. Pedro nos EUA, tendo, por isso, conhecimento completo da nossa sociedade. (...)
Assim vos pedimos humildemente de agir com urgência junto à Comissão Ecclesia Dei. Estamos todos precisando, inclusive os fiéis, de que decisões sejam tomadas."

Essa carta foi acompanhada de uma carta do bispo de Versalhes, Mgr. Jean Charles Thomas, ao núncio de Paris, Mgr. Baldelli, datada de 27  de junho de 2000. Nesta  carta Mgr. Thomas dá seu total apoio às declarações do Pe. Le Pivain e afirma que, se as decisões não forem tomadas, ele não aceitará mais os padres da Fraternidade S. Pedro em sua diocese.

Em 29 de junho de 2000, o Cardeal Hoyos, presidente da Comissão Ecclesia Dei, intervém dentro da Fraternidade São Pedro, por uma carta enviada à reunião do Capítulo Geral, que votara a reeleição do Pe. Bisig como superior geral. Cito alguns extratos dessa carta decisiva:

"Esta reunião (de fevereiro), os senhores sabem, elaborou um compromisso que tentava conciliar as exigências do direito comum da Igreja com o caráter particular do vosso Instituto, evitando assim as divisões.  [trata-se do compromisso dos padres de não aceitar celebrar a missa nova]. Esse compromisso, infelizmente, foi objeto de novas controvérsias, entre os que o aceitam e os que o rejeitam. Apesar disso, os superiores pediram à Comissão papal que aprovasse este compromisso, fazendo dele uma regra excepcional. Após amadurecida reflexão e consulta aos peritos, declaro que isto não é possível. A causa é a clara posição do aspecto jurídico, nessas circunstâncias: um padre que goza do  privilégio de celebrar a Missa segundo o antigo missal de 1962 não perde o direito de utilizar o missal de 1970, que é oficialmente em vigor na Igreja latina."

Mais uma vez eles desviam o debate do aspecto doutrinário para o aspecto jurídico, como vimos fazer, acima, o Cardeal Ratzinguer, contra o Pe. Louis Demornex. É curioso que uma bula de valor tão forte, juridicamente falando, Quo Primo Tempore, assinada por São Pio V e nunca revogada, não tenha recebido das autoridades, o mesmo tratamento. Ao impor a Missa Nova e tentar fazer crer que a Missa de São Pio V estava proibida,  as autoridades passaram por cima das determinações solenes e jurídicas do Concílio de Trento. Dois pesos e duas  medidas.

A carta do Cardeal Hoyos continua  determinando que, doravante, os superiores da Fraternidade só poderão exercer esta função em dois mandatos de seis anos. Agradece ao Pe. Bisig e se despede dele.
Em seguida determina, sem voto do Capítulo,  ou seja, enquanto interventor, que o novo superior geral será o Pe......Devillers, como propusera na sua carta, o Pe. Le Pivain. Do mesmo modo destitui os superiores dos dois seminários e pede que o novo superior geral escolha outros.

Em seguida o Cardeal Presidente da Comissão Ecclesia Dei  lembra a todos que o rito oficial da Igreja é o rito de Paulo VI, que o rito de S. Pio V é uma concessão, um privilégio desse instituto, mas que todos os padres podem celebrar quando quiserem a Nova Missa.  Hora nenhuma este Cardeal ou qualquer outro bispo da hierarquia aceita analisar teologicamente o rito da Missa. É sempre o aspecto jurídico que eles levantam. É assim que sua carta termina clamando os membros da Fraternidade São Pedro a não se prenderem a uma questão de rito, pois, diz ele, o que importa "é a unidade na verdadeira fé e a disciplina comum sob a hierarquia apostólica".  Ora, a quem o Cardeal quer enganar? Falar de unidade na fé e obediência à disciplina só caberia se ele provasse que o rito de Paulo VI exprime essa fé verdadeira. Isso ele não aceita fazer. Ele foge do mérito da questão, ele tem medo da verdade e quer nos fazer engolir Vaticano II e sua nova Igreja evolutiva, na base da ameaça jurídica. 

E conclui: "Vosso papel não é de modificar esta situação, ou de falar desse rito como se fosse de menor valor, mas de ajudar aos fiéis que têm um apego ao antigo rito a melhor se encontrar dentro da Igreja... Os senhores não devem dar prioridade à  forma litúrgica na qual têm  o privilégio de celebrar.

Eis, então, que Mgr. Lefebvre tinha toda razão, quando retirou sua  assinatura do protocolo de 5 de maio de 1988. Ele viu, ele sentiu, que as autoridades estavam muito longe de querer compreender a situação e favorecer a Tradição. O que eles queriam era isso, que hoje eles exigem desses padres. Estes queriam preservar a Tradição na obediência, queriam só celebrar a Missa de S. Pio V, na obediência, queriam criticar Vaticano II, na obediência. As autoridades foram fechando o cerco e deram o bote. E foram engolidos pelo Vaticano dessa nova igreja conciliar, protestantizada. Devorados pela fera, sem piedade nem dó. O exemplo da Fraternidade São Pedro está aí. O cadáver ainda quente nos  deixa perplexos diante de tanta maldade, de tanta malícia. A cada um de nós de aprender com estes fatos. Não são invenções, não são interpretações malévolas e radicais. São os fatos, na sua mais clara e límpida objetividade. 

Ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliare digneris, Te rogamus audi nos
Que vos digneis humilhar os inimigos da Santa Igreja - Vos rogamos, ouvi-nos.

O protocolo de 1988

De vez em quando alguém me pergunta o que acho da Fraternidade São Pedro, da Comissão Ecclesia Dei, e dos chamados tradicionalistas ligados à Roma. Se eles têm a missa de São Pio V e estão na obediência ao Papa, porque razão nós nos mantemos afastados de Roma? É possível manter a Tradição na Igreja oficial? Porque nós somos marginalizados pelo Vaticano e eles não?

Para responder a esta pergunta de modo adequado é preciso explicar, antes de tudo, como nasceu essa Fraternidade São Pedro, que é uma dissidência da Fraternidade São Pio X e que fez os acordos com Roma, em 1988. E para se compreender o que é a Fraternidade São Pedro, é preciso conhecer a história do famoso protocolo de acordo, assinado por Mgr. Lefebvre e pelo Cardeal Ratzinguer, em 5 de maio de 1988, e depois denunciado por Mgr. Lefebvre, no dia 6 de maio. A crise que assola hoje essa organização que traiu a confiança de Mgr. Lefebvre fora prevista pelo bispo de Ecône. O Vaticano começa a devorar sua presa.

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos  

1ª Parte

O Protocolo de 1988 

A história começa em 1987. Como todos os anos, a data de 29 de junho é aguardada com ansiedade por todos os fiéis da Tradição; é também aguardada por Roma, onde as autoridades do Vaticano se escondem atrás de uma pose de segurança, e que na verdade esconde um receio: eles sabem que Mgr. Lefebvre não fez nada de errado, que sua posição não é cismática, que ele é um bispo zeloso pela doutrina e pela salvação das almas. Não é à toa que em Roma, muitos bispos dizem ao pé do ouvido: Mgr. Lefebvre tem razão, é um santo bispo.

Nesse dia 29 de junho de 1987, na cerimônia das ordenações sacerdotais, realizada como todos os anos, sob a vasta tenda plástica que abriga 4.000 fiéis, deixando outros 6000 sob o forte sol de verão, Mgr. Lefebvre anuncia no sermão que não poderá mais esperar um  sinal positivo de Roma, diante de seus inúmeros pedidos para sagrar bispos que o sucedam no árduo trabalho à frente da Fraternidade São Pio X. Roma não lhe dá ouvidos e Mgr. Lefebvre marca a Sagração Episcopal de quatro novos bispos para a Fraternidade São Pio X, para o dia 30 de junho do ano seguinte, 1988.

Qual o espírito dessa declaração? Haveria no prelado a intenção de se separar de Roma, de fundar uma outra Igreja, uma Igreja paralela? Um cisma? Não! Nada disso passa pela cabeça do ancião, do sábio bispo que tantos serviços já havia prestado à Igreja. E para provar, nada melhor do que ir aos documentos. Dois importantes documentos explicitam as intenções de Mgr. Lefebvre. Eles serão usados nas Sagrações do dia 30 de junho de 1988. Mas já então tinham sido redigidos, pois a necessidade das Sagrações já era antiga. Ei-los:

Declaração de Mgr. Lefebvre por ocasião das Sagrações de Ecône, 30/06/1988

"Lê-se, no capítulo XX do Êxodo, que Deus, depois de ter proibido o seu povo de adorar deuses estrangeiros, acrescentou as seguintes palavras: “Eu sou o Senhor teu Deus, o Deus forte e ciumento, que persegue nos filhos a iniquidade dos pais até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.” E, no capítulo XXXIV, diz assim: “Não adores deus estrangeiro. Deus ciumento, eis o nome do Senhor.”

     É justo e salutar que Deus seja ciumento do que lhe pertence em próprio e desde os séculos dos séculos; ciumento do seu ser infinito, eterno, todo-poderoso; ciumento da sua Glória, da sua Verdade, da sua Caridade; ciumento de ser o único Criador e Redentor e, portanto, o fim de todas as coisas, a única via da salvação e da felicidade de todos os anjos e de todos os homens; ciumento de ser o “alfa” e o “ômega”.

      A Igreja Católica, por Ele fundada e à qual entregou todos os seus tesouros de salvação é, também ela, ciumenta dos privilégios do seu único Mestre e Senhor e ensina a todos os homens que para Ela se devem voltar e por Ela devem ser batizados, se quiserem ser salvos e participar na Glória de Deus na Eternidade bem-aventurada. A Igreja é, pois, essencialmente missionária. Ela é essencialmente Una, Santa, Católica, Apostólica e Romana.

     Ela não pode admitir que fora dela haja uma outra religião verdadeira; não pode admitir que se possa encontrar uma via de salvação fora dela, pois ela identifica-se com o seu Senhor e Deus que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.”

     Ela tem, pois, horror a qualquer comunhão ou união com falsas religiões, com as heresias que afastam as almas do seu Deus que é o único Deus.

     Ela não conhece unidade senão no seu próprio seio, como no seu Deus. Para isso dá o sangue dos seus mártires, a vida dos seus missionários, dos seus padres, o sacrifício dos seus religiosos e religiosas; ela oferece o sacrifício quotidiano de propiciação.

     Ora, com o Vaticano II sopra na Igreja um espírito adúltero, espírito que admite, pela Declaração sobre a Liberdade Religiosa, o princípio da liberdade de consciência para os atos internos e externos, fora do alcance de qualquer autoridade.

     É o princípio da Declaração dos Direitos do Homem, da Revolução Francesa, contra os direitos de Deus. Ora, as autoridades da Igreja, do Estado e da família participam da autoridade de Deus e têm, portanto, o dever de contribuir para a difusão da Verdade e para a aplicação do Decálogo, bem como o de proteger os seus súditos do erro e da imoralidade.

     Esta Declaração levou à secularização dos Estados católicos, o que é um insulto a Deus e à Igreja, reduzindo a Igreja ao direito comum, juntamente com as falsas religiões. É o mesmo espírito adúltero tantas vezes censurado por Deus e pelos profetas ao povo de Israel (veja, na Nota 1, a Declaração de Paulo VI publicada no “Osservatore Romano” de 24 de abril de 1969).

     Esse espírito adúltero também se manifesta no ecumenismo instituído pelo Secretariado para a Unidade dos Cristãos. Esse ecumenismo aberrante valeu-nos todas as reformas litúrgicas, bíblicas, canônicas, com o regime colegial destruidor da autoridade pessoal do Sumo Pontífice, do Bispo e do Pároco (veja Nota 2).

     Esse espírito não é católico. É fruto do modernismo condenado por São Pio X. Está a devastar todas as instituições da Igreja e, especialmente, os seminários e o clero, de tal modo que podemos perguntar quem é ainda integralmente católico entre os clérigos submetidos ao espírito adúltero do Concílio.

     Nada é, pois, mais urgente na Igreja do que formar um clero que repudie esse espírito adúltero e modernista e salve a glória da Igreja e do seu Divino Fundador, conservando a Fé integral e os meios estabelecidos por Nosso Senhor e pela Tradição da Igreja para manter essa Fé e transmitir a vida da graça e os frutos da Redenção.

     Desde há quase vinte anos que nos esforçamos com paciência e firmeza por fazer compreender às autoridades Romanas essa necessidade do regresso à sã doutrina e à Tradição, para a renovação da Igreja, para a salvação das almas e para a glória de Deus.

     Porém, ficam surdos às nossas súplicas e, pior ainda, pedem-nos que reconheçamos a justeza de todo o Concílio e das reformas que arruinam a Igreja. Não querem ter em conta a experiência que fazemos, com a graça de Deus, da manutenção da Tradição, experiência que produz frutos verdadeiros de santidade e atrai numerosas vocações.

     Para salvaguardar o sacerdócio católico e continuar a Igreja Católica – e não uma Igreja adúltera – precisamos de bispos católicos.

     Vemos-nos, pois, obrigados, devido à invasão do espírito modernista no clero atual, e até às mais altas esferas no seio da Igreja, a consagrar bispos.

     Tendo o princípio dessa consagração sido admitido pelo Papa na carta de 30 de maio ao Cardeal Ratzinger, estas consagrações serão, não apenas válidas, como também, dadas as circunstâncias históricas, certamente lícitas. Porém, lícitas ou não, é por vezes necessário abandonar a legalidade para permanecer no direito.

     O Papa não pode deixar de desejar a continuação do sacerdócio católico. Não é, pois, de maneira nenhuma num espírito de ruptura ou de cisma que realizamos essas consagrações episcopais, mas para vir em socorro da Igreja que, sem dúvida, se encontra na mais dolorosa situação da sua história.

     Se estivéssemos no tempo de São Francisco de Assis, o Papa estaria de acordo conosco. Nesses felizes tempos, a Maçonaria não ocupava lugar no Vaticano.

     Afirmamos, pois, o nosso apego e a nossa submissão à Santa Sé e ao Papa. Ao realizar este ato temos consciência de continuar a servir a Igreja a ao Papado, como nos temos esforçado por fazer desde o primeiro dia do nosso sacerdócio.

     No dia em que o Vaticano estiver liberto dessa ocupação modernista e reencontrar o caminho seguido pela Igreja até o Vaticano II, os nossos bispos estarão inteiramente nas mãos do Sumo Pontífice, incluindo a eventualidade de deixaram de exercer as suas funções episcopais. (grifo nosso)

     Enfim, dirigimo-nos à Virgem Maria, também Ela ciumenta dos privilégios do seu Divino Filho, ciumenta da sua Glória, do seu reino sobre a terra como no Céu.

     Quantas vezes interveio em defesa, mesmo armada, da Cristandade, contra os inimigos do Reinado de Nosso Senhor! Suplicamo-lhe que intervenha hoje para afastar os inimigos do interior que tentam destruir a Igreja mais radicalmente do que os inimigos do exterior.

     Que Ela se digne conservar na integridade da fé, no amor da Igreja, na devoção do sucessor de Pedro, todos os membros da Fraternidade São Pio X e todos os padres e fiéis que trabalham com os mesmos sentimentos, para que Ela nos guarde e nos preserve tanto do cisma como da heresia.

     Que São Miguel Arcanjo nos comunique o seu zelo pela Glória de Deus e a sua força para combater os demônios.

     Que São Pio X nos transmita sua sabedoria, a sua ciência e a sua santidade para, nestes tempos de confusão e de mentira, distinguirmos o verdadeiro do falso e o bem do mal.

 

     + Marcel Lefebvre

 

Arcebispo da única Igreja de Jesus Cristo,

Santa, Católica, Apostólica e Romana,

pela graça de Deus e por eleição de

Sua Santidade o Papa Pio XII.

 

Nota 1: Declaração de Paulo VI, publicada no “Osservatore Romano” de 24 de agosto de 1969:

     “É já bem conhecida de todos a nova posição adotada pela Igreja em relação às realidades terrenas. Eis o novo princípio, muito importante na prática (...). A Igreja aceita reconhecer o mundo como “auto-suficiente” e não procura fazer dele um instrumento para os seus fins religiosos...“

     Protestei, em carta dirigida ao ex-Santo Ofício, contra essa declaração, contrária a Fé católica. A resposta foi, da parte da Secretaria de Estado, quer dizer do Cardeal Villot, que fizesse o favor de sair de Roma imediatamente! Ao que respondi que mandassem um pelotão de guardas suíços para a isso me obrigarem. Foi o silêncio.

     Eis no que se tornou – e ainda é – o Vaticano para com os defensores da Fé católica. Ora, todos os Papas, nas suas encíclicas, afirmaram o contrário. Não só a Fé, mas também a sã filosofia protestam contra essa declaração que levou à laicização de todos os Estados católicos.

 

Nota 2: O Secretariado para a Unidade dos Cristãos no Concílio.

     Convém lembrar o importante lugar que ocuparam no Concílio os membros do Secretariado para a Unidade dos Cristãos. O Cardeal Bea, seu responsável, estabeleceu relações oficiais com a loja maçônica judia dos B’nai B’rith, de Nova York. Foi ele o redator dos projetos de esquemas sobre a liberdade religiosa, sobre os judeus, sobre as religiões não cristãs, sobre o ecumenismo, em colaboração com o então Mons. Willebrands (depois cardeal), secretário do Secretariado, e Mons. de Smedt, vice-presidente do Secretariado e relator no Concílio da Declaração sobre a liberdade religiosa.

     O Cardeal Willebrands faz parte da Comissão Vaticana para as relações entre judeus e cristãos, da Comissão que mantém relações com o Conselho Ecumênico das Igrejas, em Genebra, e da Comissão que trata das relações com Moscou por meio da Igreja Ortodoxa de Moscou.

     A eles juntavam-se Mons. Etchegaray, Mons. Maller, os padres dominicanos de Contenson, Bernard Dupuy e muitos outros.

     Também não se deve esquecer a influência dos protestantes de Taizé, que, no Vaticano, têm entrada franca por todo lado.

            Não esqueçamos a participação de seis pastores protestantes na Comissão de Liturgia que produziu a missa dita “de Paulo VI”. A nocividade de todas essas comissões é considerável. As comissões paralisam toda a atividade normal da Cúria Romana. A Roma das comissões é a Roma de hoje, modernista e maçônica. Os Papas Paulo VI e João Paulo II quiseram-nas e tornaram-se seus escravos, como também são prisioneiros dos Sínodos romanos, fruto da colegialidade reconhecida pelo novo Direito Canônico

 

2- Carta de Mgr. Lefebvre aos futuros bispos

+

Adveniat regnum tuum

Aos Senhores Padres Williamson, Tíssier de Mallerais,

Fellay e De Galarreta

Caríssimos amigos,

 

Estando a Cadeira de Pedro e os postos de autoridade de Roma ocupados por anticristos, a destruição do Reino de Nosso Senhor alastra rapidamente no seio de seu Corpo Místico nesta terra, especialmente pela corrupção da Santa Missa, expressão magnífica do triunfo de Nosso Senhor pela Cruz – “Regnavit a ligno Deus” – e fonte de extensão do seu Reinado nas almas e nas sociedades.

[Nota de D. Lourenço: A expressão é forte, mas deve ser entendida sem preconceitos: Mgr. Lefebvre não diz que tal ou tal pessoa é o Anti-Cristo, e sim que os postos do Vaticano estão ocupados por anti-cristos, ou seja, autoridades que trabalham  para a destruição da Igreja, e não para sua edificação. Nesse sentido lemos na 1ª Ep. de São João: "todo o espírito que divide Jesus não é de Deus; mas este é um Anticristo."]

Surge, assim, com toda a evidência, a necessidade absoluta da permanência e da continuação do adorável Sacrifício de Nosso Senhor, para que “venha nós o seu reino”.

A corrupção da Santa Missa levou à corrupção do Sacerdócio e à decadência universal da fé na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Deus suscitou a Fraternidade São Pio X para conservação e perpetuação na Igreja do seu Sacrifício glorioso e expiatório. Escolheu verdadeiros padres, instruídos e convencidos desses mistérios divinos. Deus concedeu-me a graça de preparar esses levitas e de lhes conferir a graça sacerdotal para permanência do verdadeiro Sacrifício, segundo a definição do Concílio de Trento.

Isso valeu-nos a perseguição da Roma anticristo. Essa Roma modernista e liberal, prosseguindo a sua obra de destruição do Reinado de Nosso Senhor, como o provam Assis e a confirmação das teses liberais de Vaticano II sobre a liberdade religiosa, vejo-me forçado pela Providência Divina a transmitir a graça do episcopado católico que recebi, para que a Igreja e o sacerdócio católico continuem a subsistir para glória de Deus e salvação das almas.

É por isso que, convencido de apenas realizar a Vontade de Nosso Senhor, venho por esta carta pedir-vos que aceiteis receber a graça do episcopado católico, como já conferi a outros padres noutras circunstâncias.

Conferir-vos-ei essa graça, confiando que, sem tardar, a Sé de Pedro será ocupada por um Sucessor de Pedro perfeitamente católico, em cujas mãos podereis entregar a graça do vosso episcopado para que ele a confirme. [grifo nosso]

O fim principal dessa transmissão é conferir a graça da ordem sacerdotal para continuação do verdadeiro Sacrifício da Missa, e conferir a graça do sacramento da confirmação às crianças e aos fiéis que vo-la pedirem.

Suplico-vos que permaneçais unidos à Sé de Pedro, à Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as Igreja, na Fé católica integral, expressa nos símbolos da Fé, no catecismo do Concílio de Trento, em conformidade com o que vos foi ensinado no seminário. Permanecei fiéis na transmissão dessa Fé para que venha o Reino de Nosso Senhor.

Peço-vos, enfim, que permaneçais unidos à Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que permaneçais profundamente unidos entre vós, submetidos ao Superior-Geral, na Fé católica de sempre, recordando as palavras de São Paulo aos Gálatas (I,8-9):

Mas ainda que alguém – nós mesmos ou um anjo do Céu – vos anuncie outro evangelho, além do que vos tenho anunciado, esse seja anátema. Repito mais uma vez o que já disse: se alguém vos anunciar outro evangelho, além do que já recebestes, esse seja anátema.”

Caríssimos amigos, sede o meu consolo em Jesus Cristo: permanecei fortes na Fé, fiéis ao verdadeiro Sacrifício da Missa, ao verdadeiro e santo Sacerdócio de Nosso Senhor, para triunfo e glória de Jesus no Céu e sobre a Terra, para salvação das almas, para salvação da minha alma.

Nos corações de Jesus e de Maria, abraço-vos e abençôo-vos.

Vosso Pai em Jesus Cristo

         + Marcel Lefebvre

na festa de Santo Agostinho, 29 de agosto de 1987

 

De um modo geral, dentro dos círculos ligados ao combate pela Tradição Católica, todos estavam acostumados em ver Mgr. Lefebvre tomar as atitudes necessárias nos momentos oportunos. O que teria sido da Igreja se, em 1976, Mgr. Lefebvre tivesse aceitado o apelo do Papa Paulo VI para não realizar as ordenações sacerdotais de Ecône? Diante de grande insistência do Papa e de muitos prelados, o bispo ficou firme e fez aquilo que sempre fizera: ordenou sacerdotes para celebrar o santo sacrifício da Missa.

Dentro do Monastère Sainte Madeleine Dom Gerard Calvet não media palavras para elogiar a atitude de Mgr. Lefebvre. Chegou a fazer um famoso sermão em que alinhavara cinco razões para não temer as  Sagrações.

O fato é que esta declaração feita em 29 de junho de 1987 provocou grande alvoroço em Roma. Mgr. Lefebvre, apesar do que disse no sermão, faz mais uma tentativa e escreve uma carta ao Cardeal Ratzinguer, datada de 8 de julho de 1987 e entregue pessoalmente ao Cardeal, no dia 11  seguinte. Além de conter uma análise sobre a desastrosa Declaração Dignitatis Humanae, sobre a Liberdade Religiosa, esta carta termina assim:

"A fim de travar a autodemolição da Igreja, suplicamos ao Santo Padre, por vosso intermédio, que conceda o livre exercício à Tradição, concedendo-lhe os meios para viver e se desenvolver para a salvação da Igreja Católica e salvação das almas; que sejam reconhecidas as obras da Tradição, em particular os seminários, e que Mons. de Castro Mayer e eu próprio possamos dotar-nos de auxiliares da nossa escolha para conservar à Igreja as graças da Tradição, única fonte de renovação da Igreja.

     Eminência, depois de quase vinte anos de instantes pedidos para que seja encorajada e abençoada a experiência da Tradição, pedidos que ficaram sempre sem resposta, é sem dúvida o último apelo, perante Deus e perante a história da Igreja. O Santo Padre e vós próprio teríeis a responsabilidade de uma ruptura definitiva com o passado da Igreja e com o seu Magistério.

     O Magistério de hoje da Igreja não se basta a si próprio, para se poder dizer católico, se ele não for a transmissão do depósito da Fé, quer dizer, da Tradição. Um Magistério novo, sem raízes no passado e, além do mais, contrário ao Magistério de sempre, só pode ser cismático, ou mesmo herético.

     Uma vontade permanente de enfraquecimento da Tradição é uma vontade suicida, que autoriza, pelo próprio fato, os católicos verdadeiros e fiéis a tomarem todas as medidas necessárias à sobrevivência da Igreja e à salvação das almas.

     Nossa Senhora de Fátima, tenho a certeza, abençoa este último apelo, no 70º aniversário das suas aparições e das suas mensagens. Praza a Deus que não fiqueis uma segunda vez surdos ao seu apelo. 

     Dignai-vos aceitar, Eminência, etc.

 

                                        + Marcel Lefebvre

Salta aos olhos as santas intenções do bispo de Ecône. Em nenhum momento é posto em causa algum aspecto pessoal, ligado a alguma opinião própria do bispo. Só o que lhe interessa é a Doutrina bi-milenar da Igreja.

Essa carta provocou uma resposta do Cardeal Ratzinguer que abriu uma pequena possibilidade de Mgr. Lefebvre continuar sua obra e sagrar os bispos para prosseguir as ordenações. Damos à seguir esta carta, onde acrescentamos alguns comentários:

CARTA DO CARDEAL RATZINGER A Mgr. LEFEBVRE

           Citta del Vaticano, 28.7.1987

 

Excelência,

     Agradeço sinceramente a vossa carta de 8 de julho, assim como a vossa recente obra com uma dedicatória; não deixarei de a ler com interesse. O dossier que me enviastes sobre a resposta da Congregação às “dubias” sobre a liberdade religiosa será estudado com toda a atenção necessária e o resultado ser-vos-á comunicado oportunamente.

     O vosso grande desejo de salvarguardar a tradição, dando-lhe “os meios para viver e se desenvolver” testemunha o vosso apego à fé de sempre, mas só pode realizar-se na comunhão com o Vigário de Cristo, a quem estão confiados o depósito dessa fé e o governo da Igreja.

[nota de D. Lourenço: Mgr. Lefebvre nunca pregou a desunião ao Vigário de Cristo. cf. Carta aos novos bispos, acima. Ele apenas combateu os erros doutrinários que contrariam esse Depósito da Fé]

     O Santo Padre compreende a vossa preocupação e partilha-a. Por isso, em seu nome, transmito-vos uma nova proposta, desejando dar-vos assim uma última possibilidade de acordo sobre os problemas que vos afligem: a situação canônica da Fraternidade S. Pio X e o futuro dos vossos seminários. Eis o seu conteúdo:

1.   A Santa Sé não pode conceder auxiliares à Fraternidade S. Pio X sem que ela seja dotada de uma estrutura jurídica adequada, e sem que as relações com essa mesma Sé Apostólica estejam previamente resolvidas.

2.   A Santa Sé está disposta a nomear sem demora e sem condição prévia um Cardeal-Visitador, com vista a encontrar para a Fraternidade uma forma jurídica conforme às normas do Direito Canônico atualmente em vigor.

3.  Em virtude da instituição divina da Igreja, tal situação jurídica implica necessariamente reverência e obediência, por parte dos superiores e membros da Fraternidade, em relação ao Sucessor de Pedro, o Vigário de Cristo (cf. as normas indicadas em “Lumen Gentium”, 25). Dentro dos limites dessa obediência e no quadro das normas canônicas, a Santa Sé está disposta a conceder à Fraternidade a sua justa autonomia e a garantir-lhe:

a)  a continuidade da liturgia segundo os livros litúrgicos em vigor na Igreja em 1962;

b)  o direito de formar seminaristas nos seus seminários, segundo o carisma particular da Fraternidade;

c)  a ordenação sacerdotal dos candidatos ao sacerdócio, cuja responsabilidade, até nova decisão, assumirá o Cardeal-Visitador.

4.  Enquanto se espera a aprovação da estrutura jurídica definitiva da Fraternidade, o Cardeal-Visitador será o garante da ortodoxia do ensino nos vossos seminários, do espírito eclesial e da unidade com a Santa Sé. Durante esse período, o Cardeal-Visitador decidirá igualmente sobre a admissão dos seminaristas ao sacerdócio, tendo em conta o parecer dos Superiores competentes;

5.  A estrutura jurídica a encontrar precisará, entre outras, as modalidades de uma relação positiva e conveniente da Fraternidade com as diferentes dioceses, segundo as normas previstas no Direito para casos análogos.

Peço-vos, Excelência, que considereis atentamente esta proposta, para que possa ser encontrada solução positiva, eqüitativa, que assegure a continuidade da vossa obra na submissão à autoridade da Igreja.

Se, apesar dos reiterados esforços da Santa Sé com vista a uma conciliação, persistirdes no vosso projeto de vos dotardes de um ou vários auxiliares sem o acordo do Papa e contra ele, ficará claro para todos que a “ruptura definitiva” de que fazeis menção na vossa carta, não poderá ser, de forma alguma, atribuída à Igreja e que ela dependerá exclusivamente da vossa iniciativa pessoal. 

[nota de D. Lourenço: esse parágrafo merece um reparo: os "reiterados esforços da Santa Sé" sempre se resumiram em obrigar a todos os padres e bispos a celebrar a Nova Missa. Ainda hoje, muitos bispos aqui no Brasil agem dessa forma; só sabem repetir: "obedeçam, obedeçam! sem querer analisar o mérito da questão]

  As consequências seriam graves para essa Igreja, que dizeis tanto amar, para vós próprio e para a vossa obra.

     De Instituição divina, a Igreja tem a promessa da assistência de Cristo até o fim dos tempos. A ruptura da sua unidade, por um ato de grave desobediência da vossa parte causar-lhe-ia danos incalculáveis e destruiria o futuro de vossa própria obra, pois que, fora da união com Pedro, não haveria futuro, mas tão só a ruína de tudo o que haveis desejado e empreendido. A história foi muitas vezes testemunha da inutilidade de uma apostolado realizado fora da submissão à Igreja e ao seu Chefe.

     Dando uma interpretação pessoal aos textos do Magistério, daríeis paradoxalmente prova desse liberalismo que tão fortemente combateis e agiríeis contra o fim que tendes em vista. Foi, com efeito, a Pedro que o Senhor confiou o governo da sua Igreja; é, pois, o Papa o principal obreiro da sua unidade. Sustentado pelas promessas de Cristo, ele nunca poderá por em oposição na Igreja o seu Magistério autêntico e a Santa Tradição. 

[nota de D. Lourenço: o Papa pode recusar a assistência do Divino Espírito Santo e afastar-se da Tradição. E assim o fez: basta ler algumas de suas encíclicas e as encíclicas dos seus antecessores. Por exemplo, comparem Mortalium Animae, de Pio XI, contra o Ecumenismo, e Ut Unum Sint, de João Paulo II, a  favor do Ecumenismo. São uma o oposto da outra, qualquer que seja a interpretação pessoal que se tenha.]

     Excelência, talvez acheis severas as minhas afirmações. Eu teria gostado, decerto, de me exprimir de outra maneira, mas a gravidade do problema em causa não me deixava escolha. De resto, tenho a certeza que reconhecereis a generosidade da proposta que vos é feita em nome do Santo Padre e que constitui o meio real de salvaguardar a vossa obra, na unidade e na catolicidade da Igreja.

     No início deste Ano Mariano, é à Virgem “Mater Ecclesiae” que confio a resolução deste longo diferendo que nos opõe, certo que a sua poderosa intercessão obterá as graças e as luzes necessárias para esse efeito.

     Assegurando-os de minha oração, aceitai, Excelência, etc.

 

                                            Joseph Card. Ratzinger

 

Apesar dos reparos que assinalamos e outros que poderíamos ter assinalado, Mgr. Lefebvre viu nesta carta uma possibilidade de acordo. Eis o que ele próprio comenta numa conferência à Imprensa, em 15 de junho de 1988:

"Eu tinha, efetivamente, pedido uma visita canônica, para que nos conhecessem, pois não nos conheciam, não vinham ver-nos. Houve, pois, uma abertura de Roma nessa ocasião. Confesso que hesitei bastante. Devia aceitar essa abertura ou recusá-la? Tinha vontade de a recusar, porque não tenho confiança nenhuma nessas autoridades romanas – devo dizê-lo – pois que as suas idéias são totalmente opostas às nossas. Não estamos, em absoluto, no mesmo comprimento de onda. Não tinha, portanto, qualquer confiança.

Tínhamos sido sempre perseguidos. Era ainda a época de Port-Marly [em que uma igreja onde sempre se celebrou a Missa tradicional, foi brutalmente invadida pela polícia de choque, a mando do bispo de Versailles], da perseguição ao Pe. Lecareux [pelo arcebispo de Bourges], pelas suas paróquias, perseguição aprovada por Roma, pois os bispos eram aprovados por Roma. Tudo isso não nos inspirava confiança, para nos pormos nas mãos de Roma, de uma Roma que combatia a Tradição.

     Quisemos, no entanto, fazer um esforço: vamos tentar..., vamos sondar quais as disposições de Roma a nosso respeito. Foi nesse espírito que fui a Roma e que, depois, recebemos a visita do Cardeal Gagnon. Parece que essa visita foi favorável. Confesso que dela nada sei, pois não recebi uma única palavra sobre o resultado dessa visita que teve lugar há sete meses."

Mgr. Lefebvre escreve, então, novamente ao Cardeal Ratzinguer esta carta que dará origem à famosa visita canônica, realizada tanto na Fraternidade São Pio X quanto em todas as demais obras tradicionais de vários países da Europa, pelo Cardeal Edouard Gagnon.

Posso testemunhar que o Cardeal só fazia exclamar sua admiração e surpresa com o que via, em todas as instituições que visitou: piedade, seriedade, alegria, muitas vocações, todos recebendo-o como um enviado do Papa. Algumas pessoas ouviram-no dizer: "Vocês estão salvando a Igreja!". Compreende-se porque seu relatório desapareceu como por encanto.

Eis a carta de Mgr. Lefebvre ao Cardeal Ratzinguer:

+ Écone, 1 de outubro de 1987

Eminência,

Será a vossa carta de 28 de julho o prenúncio de uma solução?

Alguns indícios permitem-me esperá-lo:

 

-  a ausência de uma declaração faz-nos pensar que somos finalmente reconhecidos como perfeitamente católicos;

-  o contato prolongado com um Cardeal que nos visitaria responde aos nossos anseios tantas vezes expresso;

-  a continuidade da Liturgia segundo os livros litúrgicos em vigor na Igreja em 1962 causa-nos uma profunda satisfação;

-  o direito de prosseguir a formação dos seminaristas como atualmente fazemos, segundo as normas da S. Congregação dos Seminários, também é para nós uma garantia de perenidade de nossa Obra.

 

     Para avançar na via de uma solução, parece-nos indispensável encontrar o Visitador, podendo ele vir a Ecône ou a Rickenbach, na Suiça, ou encontrando-o nós em Albano, para podermos estudar os meios concretos possíveis dessa solução definitiva.

     Não podemos pôr em causa a nossa autoridade em relação aos seminaristas. Seria contrário ao direito que tencionais conceder-nos.

     Devo estar em Albano de 16 a 20 de outubro. Ouso esperar que o desejo que acabo de exprimir já se possa realizar nessa data, para aclarar já o caminho.

     É o P. Du Chalard quem vos levará esta carta. Poderia também comunicar-me a vossa resposta.

     Agradeço-vos antecipadamente e peço-vos, Eminência, etc.

 

                                        + Marcel Lefebvre

 

P. S. Desejamos muito que o Cardeal-Visitador seja o Cardeal Gagnon.

*

Podemos dizer que assim termina a primeira fase de toda essa história. Esse conjunto de documentos prova cabalmente que Mgr. Lefebvre nunca teve qualquer intenção de cisma dentro da Igreja. Releia, caro leitor, esta última carta. O bispo de Ecône em hora nenhuma fala de alguma dúvida sobre a legitimidade do Papa, sobre uma possível falta de autoridade em João Paulo II. Não existe esse problema para ele. O que o afeta e o obriga a defender a Fé, são os constantes ataques contra a verdadeira doutrina Católica, contra a Missa Católica, contra o Sacerdócio Católico. Esse é o seu combate, e o Cardeal Gagnon não deixará de notá-lo.

A seqüência de documentos do dossier trata da realização da primeira reunião em vistas a elaborar um protocolo de acordo. Esta primeira reunião foi realizada em Roma, em 13, 14 e 15 de Abril de 1988, contando com um moderador (Pe. Duroux) e um teólogo e um canonista de cada lado. Após quarenta e oito horas de debates foi elaborado um primeiro texto, mais doutrinário do que disciplinar, o que surpreendeu um pouco à Mgr. Lefebvre. Mas havia no texto elementos suficientes para que tentassem ir adiante; afinal de contas, pela primeira vez o Vaticano falava em permitir  sem concessões a Missa de São Pio V, e mesmo aceitava que se criticasse Vaticano II.

Mgr. Lefebvre e o próprio Cardeal Ratzinguer participam, então, junto com os demais, de um novo encontro, nos dias 3 e 4 de Maio, onde fica elaborado o texto do protocolo de acordo. No dia 5 de Maio de 1988, Mgr. Lefebvre assina o protocolo. Eis o texto:

PROTOCOLO DE ACORDO

            TEXTO DA DECLARAÇÃO DOUTRINAL

            Eu, Marcel Lefebvre, Arcebispo-Bispo emérito de Tulle, assim como os Membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X por mim fundada:

1)      Prometemos ser sempre fiéis à Igreja Católica e ao Romano Pontífice, seu Sumo Pastor, Vigário de Cristo, Sucessor do Bem-Aventurado Pedro no seu primado e Chefe do Corpo dos Bispos.

2)      Declaramos aceitar a doutrina contida no número 25 da Constituição dogmática “Lumen Gentium” do Concílio Vaticano II sobre o Magistério eclesiástico e a adesão que lhe é devida.

3)      A propósito de certos pontos ensinados pelo Concílio Vaticano II ou respeitantes às reformas posteriores da Liturgia e do Direito e que nos parecem dificilmente conciliáveis com a Tradição, comprometemo-nos a ter uma atitude positiva de estudo e de comunicação com a Sé Apostólica, evitando toda a polêmica.

4)      Declaramos, por outro lado, reconhecer a validade do Sacrifício da Missa e dos Sacramentos celebrados com a intenção de fazer o que faz a Igreja e segundo os ritos indicados nas edições típicas do Missal Romano e dos Rituais dos Sacramentos promulgados pelo Papa Paulo VI e João Paulo II.

5)      Por fim, prometemos respeitar a disciplina comum da Igreja e as leis eclesiásticas, especialmente as contidas no Código de Direito Canônico promulgado pelo Papa João Paulo II, ressalvando-se a disciplina especial concedida à Fraternidade por uma lei particular.

I - QUESTÕES JURÍDICAS

Tendo em conta o fato de a Fraternidade São Pio X ter sido concebida há 18 anos, como uma sociedade de vida comum, e a partir do estudo das propostas formulados por S. Exa. Mons. Marcel Lefebvre e das conclusões da Visita Apostólica efetuada por S. E. o Cardeal Gagnon, a figura canônica melhor adaptada é a de uma sociedade de vida apostólica.

  1 - Sociedade de vida apostólica

  É uma solução canonicamente possível, com a vantagem de, eventualmente, também inserir, na sociedade clerical de vida apostólica, leigos (por exemplo, irmãos coadjutores).

Segundo o Código de Direito Canônico promulgado em 1983, cân. 731-746, essa sociedade goza de plena autonomia, pode formar os seus membros, pode incardinar os clérigos e assegura a vida comum dos seus membros.

Nos Estatutos próprios, com flexibilidade e possibilidade inventiva em relação aos modelos conhecidos dessas sociedades de vida apostólica, prevê-se uma certa isenção em relação aos bispos diocesanos (cf. cân. 591) no que diz respeito ao culto público, à “cura animarum” e às outras atividades apostólicas, tendo em consideração os cân. 679-683. Quanto à jurisdição relativamente aos fiéis que se dirigem aos padres da Fraternidade, ela ser-lhes-á conferida quer pelos Ordinários dos lugares, quer pela Sé Apostólica.

2 - Comissão Romana

 Uma comissão para coordenar as relações com os diversos Dicastérios e com os bispos diocesanos, assim como para resolver os eventuais problemas e contenciosos, será constituída por diligência da Santa Sé, e dotada das faculdades necessárias para tratar das questões acima indicadas (por exemplo, a implantação, a pedido dos fiéis, de um local de culto onde não houver casa da Fraternidade, “ad mentem” cân. 383,2).

Essa comissão será composta por um presidente, um vice-presidente e cinco membros, dois dos quais da Fraternidade.

Terá também a função de vigilância e apoio para consolidar a obra da reconciliação e resolver as questões relativas às comunidades religiosas que tenham uma ligação jurídica ou moral com a Fraternidade.

3 - Condição das pessoas ligadas à Fraternidade

Os membros da Sociedade clerical de vida apostólica (padres e irmãos coadjutores leigos): serão regidos pelos Estatutos da Sociedade de direito pontificial.

Os Oblatos e Oblatas, com ou sem votos privados, e os membros da ordem terceira ligados à Fraternidade: pertencem a uma Associação de fiéis ligada à Fraternidade nos termos do cân. 303, e colaboram com ela.

As Irmãs (isto é, a Congregação fundada por Mons. Lefebvre) que fazem votos públicos: constituição de um verdadeiro instituto de vida consagrada, com a sua estrutura e autonomia própria, embora se possa prever uma certa forma de ligação, no que diz respeito à unidade da espiritualidade, com o Superior da Fraternidade. Essa Congregação, pelo menos no princípio, dependerá da comissão romana, em vez da Congregação para os Religiosos.

Os membros das comunidades que vivem segundo a regra de diversos Institutos religiosos (Carmelitas, Beneditinos, Dominicanos, etc.) e que estão moralmente ligados à Fraternidade: é conveniente conceder-lhes, caso a caso, um Estatuto particular regulamentando as suas relações com as Ordens respectivas.

Os padres, que a título individual, estão moralmente ligados à Fraternidade, receberão um estatuto pessoal que tenha em conta as suas aspirações e, ao mesmo tempo, as obrigações decorrente de sua incardinação. Os outros casos particulares do mesmo gênero serão examinados e resolvidos pela comissão romana.

            Nota: Há a considerar a complexidade particular:

1)      da questão da recepção por leigos dos sacramentos de batismo, confirmação e casamento nas comunidades da Fraternidade;

2)      da questão das comunidades que praticam, sem a eles pertencerem, a regra de determinados Institutos religiosos.

4 - Ordenações

            No que diz respeito às ordenações, é preciso distinguir duas fases:

1) - De imediato

Para as ordenações previstas a curto prazo, Mons. Lefebvre seria autorizado a conferi-las ou, se não o pudesse fazer, outro bispo que ele aceite.

2) - Uma vez erigida a Sociedade de vida apostólica:

Tanto quanto possível, e a juízo do Superior-Geral, seguir a via normal: entregar as cartas dimissórias a um bispo que aceite ordenar os membros da Fraternidade.

Devido à situação particular da Fraternidade (cf. infra), a ordenação de um bispo membro da Fraternidade que, entre outras tarefas, teria também a de proceder às ordenações.

5 - Problema do Bispo

Ao nível doutrinal (eclesiológico), a garantia de estabilidade e de conservação da vida e da atividade da Fraternidade é assegurada pelo seu estabelecimento como Sociedade de vida apostólica de direito pontifical e pela aprovação dos Estatutos pelo Santo Padre.

Mas, por razões práticas e psicológicas, parece útil a consagração de um bispo membro da Fraternidade. E, por isso, no quadro da solução doutrinal e canônica da reconciliação, sugerimos ao Santo Padre que nomeie um bispo escolhido na Fraternidade, sob proposta do Mons. Lefebvre. Tendo em conta o princípio acima indicado (5.1), esse bispo não é normalmente Superior-Geral da Fraternidade. Mas julga-se oportuno que seja membro da comissão romana.

6 - Problemas particulares (a resolver por decreto ou declaração)

- Revogação da “suspensio a divinis” de Mons. Lefebvre e dispensa das irregularidades devidas às ordenações.

- Previsão de uma “anistia” e de um acordo para as casas e lugares de culto da Fraternidade erigidos, ou utilizados, até agora sem autorização dos bispos.  

Joseph Card. Ratzinger            + Marcel Lefebvre

Eis, assim, realizado um passo importante na história recente da Igreja,  na crise de identidade que a assola desde Vaticano II. A Igreja é uma só, e é Revelada. Essa Revelação manifesta-se na Tradição divina, ou seja, as verdades ensinadas diretamente por Deus e que não foram escritas na Bíblia, e a própria Bíblia, que é a Revelação escrita. Esses dois elementos formam a fonte de nossa Fé. E é por causa do abandono dessa Tradição divina que Mgr. Lefebvre, assim como Dom Antônio de Castro Mayer, em Campos (R.J.)  e muitos padres espalhados pelo mundo, passaram a adotar uma posição crítica em relação ao que vinha do Vaticano. 

Essa posição crítica foi aumentando na medida em que as autoridades romanas foram, inexplicavelmente, perseguindo todos aqueles que queriam manter-se fiéis à Tradição imutável da Igreja. Como pode, uma autoridade da Igreja não querer o que a Igreja sempre quis? Proibir o que a Igreja decretou como santo? Destruir todo o patrimônio espiritual da Igreja, legado dos Apóstolos e dos santos doutores? E além disso, aqueles mesmos que  assim agiam, diziam querer repelir a Igreja do Concílio de Trento, criticavam a Igreja da Rocha, falavam na Igreja moderna e evolutiva; rechaçavam a Igreja que eles diziam ser fechada e sem caridade e pregavam uma nova Igreja, aberta ao mundo. E isso tudo não era apenas dito com palavras, eram idéias postas em prática em todas as paróquias do mundo católico. Um padre, um bispo que quisesse continuar católico, só podia opor-se a todo esse conjunto de erros e de atitudes destruidoras da Tradição da Igreja. A influência do Protestantismo tornava-se cada dia maior, e os dogmas foram sendo, um a um, derrubados, como se fossem passíveis de mudanças. As imagens  arrancadas das igrejas; estas rapidamente transformaram-se em templos protestantes, sem nenhuma sacralidade. Nossa Senhora tratada como uma mulher qualquer; a Santa Missa já não exprimindo o Santo Sacrifício da Cruz, mas sendo definida e vivida como uma refeição presidida pelo  padre, mas oficiada pela assembléia de fiéis; do batismo retirou-se o sal bento e os exorcismos, mudaram as formas da Crisma, da Extrema-Unção, da Ordem; a presença Real de Nosso Senhor na Sagrada Hóstia foi diminuída até tornar-se uma presença simbólica, bem ao estilo protestante. Mudaram o Catecismo, mudaram os sacramentos, mudaram a Missa, mudaram a Bíblia, mudaram a linguagem, mudaram as vestes sacerdotais, mudaram a língua litúrgica. Seria o caso de se perguntar: O que ficou de pé, depois da avalanche de Vaticano II? E a resposta é: nada!  Os progressistas iam ao encontro das almas tradicionais sempre com duas pedras na mão: assim foram os dois legados do Papa, dois bispos belgas, que foram fazer uma visita canônica ao Seminário de Ecône, em 1974: espírito modernista, vingativos, negativos, rindo-se de tudo o que era católico em nome da Nova Igreja Conciliar.

Estou dizendo isso tudo para explicar porque Mgr. Lefebvre diz, na entrevista à imprensa que já citei acima, que ele aproximou-se das autoridades romanas mas sem deixar de desconfiar delas. Já tinha muitas experiências desagradáveis em relação a elas (cf. conferência de Mgr. Lefebvre sobre a mudança da Missa). Esta situação da vida da Igreja na época joga uma luz esclarecedora sobre a seqüência dos acontecimentos que narraremos a seguir.

*

Uma vez assinado o protocolo de acordo abriram-se as portas para uma solução rápida da situação da Fraternidade S. Pio X. Normalmente a boa vontade do Papa e do Cardeal Ratzinguer os levaria a deixar as coisas seguirem seu rumo. Mas não foi isso que aconteceu. Ouçamos Mgr. Lefebvre narrar, na Entrevista Coletiva já citada, de 15 de junho de 1988:

"O protocolo estava, pois, assinado. A imprensa anunciou: Acordo entre Mgr. Lefebvre e o Vaticano; parece que as coisas se arranjam, que tudo vai se arranjar.

     Pessoalmente, como já vos disse, tinha pouca confiança. Sempre tive um sentimento de desconfiança e devo confessar que sempre pensei que tudo quanto eles faziam era para nos levar a submetermo-nos, a aceitarmos o Concílio e as reformas pós-conciliares. Não podem admitir – e, aliás, o Cardeal Ratzinguer disse-o recentemente, numa entrevista a um jornal alemão: “Não podemos aceitar que haja grupos, depois do Concílio, que não admitem o Concílio e as reformas que foram feitas depois do Concílio. Não podemos admitir isso.” O Cardeal Ratzinguer repetiu várias vezes: “Monsenhor, há uma só Igreja; não pode haver Igreja paralela.” Eu disse-lhe: “Eminência, não somos nós que fazemos uma Igreja paralela, porque nós continuamos com a Igreja de sempre. Os senhores é que fazem uma Igreja paralela ao inventar a Igreja do Concílio, essa que o Cardeal Benelli chamou a Igreja Conciliar. Os senhores fizeram novos catecismos, novos sacramentos, uma nova missa, uma nova liturgia, não somos nós. Nós continuamos o que anteriormente se fazia. Não somos nós que fazemos uma nova Igreja!”

     Sempre sentimos, portanto, ao longo desses colóquios, um desejo, uma vontade deles nos submeterem ao Concílio.

     Bem. Apesar de tudo, tentei mostrar boa vontade, mas, no dia em que decidimos assinar, perguntei ao Cardeal Ratzinguer, a propósito do bispo: “Agora que vamos assinar o protocolo, já podem indicar a data da consagração do bispo (estávamos a 4 de maio). Tem tempo até 30 de junho para me dar o mandato para o bispo. Eu próprio participei na apresentação de bispos quando era Delegado Apostólico – de trinta e sete bispos: sei como isso se faz...”

     Já tinha apresentado os nomes, já estavam no Vaticano, três nomes, a chamada “terna”. É um termo clássico em Roma para designar os três nomes dos bispos que são propostos; e a Santa Sé escolhe entre esses três nomes. Dei, pois, três nomes. “Daqui até 30 de junho o senhor tem tempo de preparar, de fazer um inquérito e de me dar o mandato.”

     “Ah! Não, não, é impossível! Para 30 de junho é impossível! – Então quando? Em 15 de agosto? No fim do Ano Mariano? – Ah! Não, não, Monsenhor! O senhor sabe que em 15 de agosto, em Roma, não há ninguém! De 15 de julho a 15 de setembro são as férias. Não se pode pensar em 15 de agosto, é impossível! – Digamos então o 1º de novembro, dia de Todos os Santos? – Ah! Não sei, não posso dizer. – Para o Natal? – Não posso dizer.”

     Eu disse: já percebi... Estão brincando conosco... Pois bem, acabou-se! Já não tenho confiança. Eu tinha toda a razão em não ter confiança. Estão brincando conosco. Perdi completamente a confiança...

     E no dia 6 de maio, escrevi uma carta ao Papa e uma ao Cardeal Ratzinguer, dizendo: “Tinha esperado chegar a um resultado, mas creio que já não é possível. Vê-se muito bem: há uma vontade, por parte da Santa Sé, de nos submeter às suas vontades e às suas orientações. Não vale a pena continuar. Estamos em completa oposição.”

Grande alvoroço em Roma, nessa altura, por causa da carta que escrevi. "

*

Quando este fato foi  comunicado aos fiéis que acompanhavam, rezando, os colóquios com Roma, houve, sem dúvida, inquietação. É claro que havia em todos grande confiança na sabedoria de Mgr. Lefebvre, como também todos desejavam ardentemente que enfim, fosse aceita a Tradição, pelo menos como "opção" legítima.  Não fora ainda dessa vez, mas passos importantes haviam sido dados.

No mosteiro do Barroux, ao contrário do que muitos pensam, Dom Gerard Calvet fez declarações à comunidade, assim como aos fiéis, de grande vigor de pensamento, elogiando a atitude de Mgr. Lefebvre. Lembro-me com perfeição de um momento crucial na vida daquele mosteiro, ocorrido no domingo 19 de junho de 1988. Dom Gérard celebrou a missa conventual, das 10:00 da manhã. Pedira-me que fosse ao parlatório assim que terminasse a missa, receber um jornalista famoso que mantinha um programa dominical numa rádio francesa, muito ouvido porque volta e meia tomava a defesa de Mgr. Lefebvre, apesar de não freqüentar a Missa Tradicional. Seu nome era François, mas não me recordo mais o sobrenome. Ao chegar ao parlatório, a esposa do jornalista mostrou-se muito aflita com a atitude de Mgr. Lefebvre, e eu, jovem sacerdote, meio sem graça, dizia que devíamos rezar, que a Providência mostraria o caminho a Mgr. Lefebvre, e coisas desse teor. Foi quando chegou Dom Gérard, tendo terminado sua "ação de graças". Ao entrar no parlatório fiz as apresentações e disse que eles estavam muito apreensivos. Dom Gérard num élan que chegava a ser bonito e tocante fez então a apologia da atitude de Mgr. Lefebvre. Vivendo há oito anos no contato direto com aquele monge, posso dizer com certeza que aquilo era sincero: "De jeito nenhum! madame, Mgr. Lefebvre está salvando a Igreja. Não tenham medo, vocês verão adiante" etc. 

Foi quando, no meio da conversa, Dom Gérard foi chamado ao telefone.....Do outro lado da linha, Mgr. Perl, o secretário do Cardeal Mayer...... e então tudo desmoronou! O Cardeal Mayer, presidente da recém-fundada Comissão Ecclesia Dei, para tratar dos assuntos referentes aos fiéis da Tradição, queria vir ao Mosteiro propor o acordo que Mgr. Lefebvre havia recusado

No dia 20, segunda-feira, Dom Gérard reuniu na Sala Capitular, dez padres do mosteiro, para expor a situação e perguntar o que devia ser feito. Eu fui o único a dizer que devíamos gentilmente mandá-lo de volta a Roma!

Dia 21 de junho de 1988 as portas do Monastère Sainte Madeleine foram largamente abertas para a entrada triunfal do cardeal, que vinha em pele de cordeiro propor a destruição de uma comunidade formada em torno da obra de combate pela Tradição e que depunha as armas. A reunião com o Cardeal foi lamentável, começando com o Cardeal chorando. Repito: o Cardeal chorou lágrimas de crocodilo diante de onze monges atônitos e de um prelado sinistro chamado Camille Perl. Em seguida ele ofereceu o bolo envenenado: tudo o que queríamos do ponto de vista litúrgico e doutrinário, com uma única condição: romper com Mgr. Lefebvre. 

Ora, em 1984 Dom Gérard recebera do Presidente da Federação Beneditina esta mesma proposta. Ele a recusara dizendo: "o senhor me  pede para trair. Eu não sou um traidor!"

Hoje, quatro anos depois, Dom Gérard aceita trair a confiança e a amizade de um bispo que tudo fez para apoiá-lo, graças a quem a pequena comunidade de Bédoin subsistiu e cresceu, tornando-se uma das referências do combate pela Tradição católica na França.

Daí para a frente foi só a morte rápida da comunidade onde fiz meus votos monásticos para viver minha vida dentro de um catolicismo autêntico. Os padres da Fraternidade São Pio X mais escrupulosos e fracos passaram a freqüentar os corredores do Barroux, armando sua jogada triunfal: fundar uma nova sociedade de padres traidores do seu bispo. Cegos, ouvindo um canto de sereia enganador. Dom Gérard os aconselhava, e ia escondido armando sua jogada: fazer com que sua comunidade recebesse gota a gota as doses homeopáticas da virada, para que não houvesse reações contrárias. Nessa época, muitos irmãos e padres não queriam, de modo algum, afastarem-se de Mgr. Lefebvre. Mas a habilidade de Dom Gerard e a malícia do sub-Prior, certamente infiltrado dentro da comunidade para alcançar esse fim, foi virando as cabeças. Fui acompanhando enquanto pude, até que, em 26 de agosto fiz minhas malas e voltei ao Brasil, para ajudar Dom Tomás em Friburgo, a manter o Mosteiro da Santa Cruz.

Narro esses acontecimentos para mostrar o trabalho do demônio numa hora crucial como essa. Essa virada da cabeça do Prior do Barroux, na hora do telefonema do Cardeal Mayer, é muito significativa. 

Em 30 de junho de 1988, na hora das Sagrações, os padres traidores se reuniam na Abadia de Hautrive, na Suíça, para fundar a Fraternidade São Pedro. Pretendiam eles manter a Tradição, porém na obediência à Roma. Pretendiam eles manter a missa de São Pio V e nunca celebrar a missa nova. Pretendiam eles poder criticar à vontade Vaticano II e seus erros. Pretendiam eles ter as  portas abertas em todas as dioceses para se instalar à vontade. Pretendiam eles conseguir o que o "pobre coitado" do Mgr. Lefebvre, velhinho esclerosado, nunca conseguira, viver a Tradição de dentro da Roma modernista...

Coitados, quanta pretensão. A seqüência dessa história mostrará o que aconteceu com eles e como a Fraternidade São Pedro e todos os institutos que fizeram os acordos foram engolidos pela Roma modernista. Vamos ver como aconteceu.

Nem cismático nem excomungado

De Mgr. Lefebvre ao Cardeal Hoyos  

2ª Parte

Nem Cismático nem Excomungado  

 

Quando Mgr. Lefebvre percebeu que o Vaticano tentava ganhar tempo e não lhe dava o mandato prometido para a sagração dos bispos, recuou e retirou sua assinatura do Protocolo de acordo, como vimos na 1ª parte. Diante dessa situação, escreveu ao Cardeal Ratzinguer mais uma vez, pedindo um posicionamento claro sobre as questões que o inquietavam:

 

CARTA DO MONS. LEFEBVRE AO CARDEAL RATZINGER

+ Albano, 26 de maio de 1988

Eminência, 
Parece-me necessário precisar o que vos escrevi em 6 de maio último.
Depois de bem refletir, afigura-se-nos claramente que o objetivo dos colóquios e da reconciliação é reintegrar-nos na Igreja Conciliar, única Igreja à qual fazíeis alusão nesses colóquios.
Pensávamos que nos daríeis os meios de continuar e desenvolver as obras da Tradição, especialmente dando-nos alguns coadjutores, pelo menos três, e dando também, na Comissão Romana, uma maioria à Tradição.
Ora, nesses dois pontos, que nos parecem necessários para manter as nossas obras livres de qualquer influência progressista e conciliar, não obtivemos satisfação.
É por isso que, com grande pena, nos vemos obrigados a pedir-vos que, antes do dia 1 de junho, nos indiqueis claramente quais são as intenções da Santa Sé sobre esses dois pontos: consagração dos três Bispos postulados para 30 de junho, e maioria dos membros da Tradição na Comissão Romana.
Se não tiver resposta a estes pedidos, procederei à publicação dos nomes dos candidatos ao Episcopado, que consagrarei a 30 de junho com a colaboração de S. Exa. Mons. de Castro Mayer.
A minha saúde, as necessidades apostólicas para o crescimento de nossas obras, já não permitem atrasos suplementares.

+ Marcel Lefebvre

RESPOSTA DO CARDEAL RATZINGUER A MGR. LEFEBVRE

  Citta del Vaticano, 30 de maio de 1988  

Excelência,

Depois de ter sido recebido em audiência pelo Santo Padre, sexta-feira 27 de maio, como vos tinha indicado no nosso colóquio de 24, estou em condições de responder à carta que me haveis entregue nesse mesmo dia a respeito dos problemas da maioria dos membros da Fraternidade na Comissão Romana e da sagração dos bispos.
A respeito do primeiro ponto, o Santo Padre considera que convém manter os princípios definidos no ponto II/2 do protocolo que haveis aceitado. Essa Comissão é um órgão da Santa Sé a serviço da Fraternidade e das diversas instâncias com as quais será preciso tratar para estabelecer e consolidar a obra da reconciliação. Para mais, não é ela, mas o Santo Padre, quem, em última instância, tomará as decisões: portanto, a questão da uma minoria não se levanta; os interesses da Fraternidade são garantidos pela sua representação no seio da Comissão, e os receios que exprimistes em relação aos outros membros não têm razão de existir, uma vez que a escolha desses membros será efetuada pelo próprio Santo Padre.
No que diz respeito as segundo ponto, o Santo Padre confirma o que já vos indiquei da sua parte, a saber que ele está disposto a nomear um bispo membro da Fraternidade (em conformidade com o ponto II/5.2 do protocolo), e a fazer acelerar o processo habitual de nomeação, de forma que a consagração possa ter lugar no encerramento do Ano Mariano, em 15 de agosto próximo.

[Como se sabe, todos os candidatos apresentados por Mons. Lefebvre haviam sido recusados (N. da R.).]

Isso requer, de um ponto de vista prático, que apresenteis sem tardar a Sua Santidade um número mais elevado de dossiês de candidatura, para lhe permitir escolher livremente um candidato que corresponda ao perfil desejado e, ao mesmo tempo, aos critérios gerais de aptidão que a Igreja determina para a nomeação dos bispos.
Sabeis enfim que o Santo Padre espera de vós uma carta contendo, no essencial, os pontos de que tratamos, e particularmente os tratados durante o nosso colóquio de 24 de maio. Mas, como ainda recentemente anunciastes a vossa intenção de ordenar três bispos em 30 de junho próximo, com ou sem a anuência de Roma, é necessário que, nessa carta (cf. 4º parágrafo do projeto), digais claramente que a isso renunciais, e que vos submeteis em plena obediência à decisão do Santo Padre.
Com essa última diligência, realizada com a menos demora possível, o processo de reconciliação chegará ao seu termo, e a notícia poderá ser dada publicamente.
Excelência, no momento de concluir, apenas posso dizer-vos, como na última terça-feira, e ainda com maior gravidade se isso é possível: quando se considera o conteúdo positivo do acordo ao qual a benevolência do Papa João Paulo II permitiu que se chegasse, não há comparação entre as últimas dificuldades que haveis exprimido e o prejuízo que constituiria agora um fracasso, uma ruptura da vossa parte com a Sé Apostólica, e somente por esses motivos. Deveis confiar no Santo Padre, cuja bondade e compreensão recentemente manifestadas em relação a vós e em relação à Fraternidade constituem também a melhor garantia para o futuro. Deveis enfim – e devemos todos – confiar no Senhor, que permitiu que a via da reconciliação fosse aberta, como o está  hoje, e que a meta pareça agora tão próxima.
Dignai-vos aceitar, Excelência, etc.

Jospeh Card. Ratzinger

A primeira impressão que se tem, ao ler esta resposta, é que poderia ter havido uma precipitação de Mgr. Lefebvre, visto que o Papa concedia um bispo para 15 de agosto, um mês e meio depois da data limite. Mas devemos considerar duas coisas: Mgr. Lefebvre já tinha entregue mais de uma lista ao Vaticano, com os nomes dos candidatos, porém todos sempre foram vetados. O próprio Cardeal fala na escolha de um candidato "que corresponda ao perfil desejado". Certamente o perfil desejado pelo Vaticano não coincidia muito com o perfil desejado por Mgr. Lefebvre. Além disso, o Vaticano se apresenta sempre como um pai bondoso recebendo de volta um filho pródigo! Como se Mgr. Lefebvre fosse, de fato, um rebelde, vindo em busca de perdão! Não é nada disso. Mgr. Lefebvre nunca foi rebelde, nunca fez nada pela Igreja de que tivesse que pedir perdão, sempre cumpriu fielmente a doutrina da Igreja e sua moral. Ele vinha como defensor da Fé esperançoso de encontrar em Roma um ambiente favorável ao restabelecimento da Tradição. Mas o que ele encontrou foi enganação e duplicidade.

Texto integral do comunicado de D. Lefebvre

Dificilmente se compreende a interrupção das conversações se estas não estão colocadas em seu contexto histórico.

Apesar de nunca termos querido romper com a Roma Conciliar; mesmo depois da primeira visita a Roma, em 11 de novembro de 1974, que foi seguida de medidas sectárias e nulas - o fechamento da obra em 6 de maio de 1975 e a «suspensão», em julho de 1976, estas relações só podiam transcorrer em um clima de desconfiança. Louis Veuillot diz que não há ninguém mais sectário do que um liberal; com efeito, comprometido com o erro e a Revolução, o liberal se sente condenado por aqueles que permanecem na Verdade e é por isso que, se possui o poder, persegue a estes encarniçadamente. É o nosso caso e de todos aqueles que se opõem aos textos liberais e às Reformas liberais do Concílio.

Querem por tudo que tenhamos um complexo de culpa em relação a eles quando são eles que são culpados de duplicidade.

Foi pois, em um clima de tensão, se bem que polido, que as relações transcorreram com o Cardeal Seper e o Cardeal Ratzinger entre os anos de 76 e de 87, mas também com alguma esperança de que, a auto-demolição da Igreja se acelerando, acabassem por nos olhar com benevolência.

Até então, para Roma, a finalidade dessas relações era de nos fazer aceitar o Concílio e as Reformas e de nos fazer reconhecer nosso erro. A lógica dos acontecimentos devia me levar a pedir um sucessor ou mesmo dois ou três para assegurar as ordenações e confirmações. Diante da recusa persistente de Roma, a 29 de junho de 1987 anunciei minha decisão de sagrar Bispos.

A 28 de julho, o Cardeal Ratzinger abriu novos horizontes que podiam legitimamente dar a impressão de que, enfim, Roma nos olhava com um olhar mais favorável. Não pediam mais que assinasse um documento doutrinal, nem pedido de perdão, porém um visitador era enfim anunciado, a sociedade poderia ser reconhecida, a Liturgia seria a de antes do Concílio, os seminaristas permaneceriam com o mesmo espírito...

Aceitamos então encetar este novo diálogo, mas com a condição de que nossa identidade fosse bem protegida contra as influências liberais, por Bispos formados na Tradição e por uma maioria de membros na Comissão Romana para a Tradição. Ora depois da visita do Cardeal Gagnon, da qual nunca soubemos nada, as decepções se acumularam.

As conversações que se seguiram, de abril a maio, nos decepcionaram bastante. Puseram-nos diante de um texto doutrinal: acrescentaram o novo Código de Direito Canônico; Roma reserva para si 5 dos 7 membros da Comissão Romana, inclusive o presidente (que seria o Cardeal Ratzinger) e o Vice-Presidente.

A questão do Bispo foi solucionada com dificuldade: insistiam em nos mostrar que não tínhamos necessidade dele.

O Cardeal nos notificou que era preciso deixar celebrar uma missa nova em S. Nicolas-du-Chardonet. Insistia sobre a única Igreja, a Igreja do Vaticano II.

Apesar das decepções assinei o protocolo de 5 de maio, Mas a data da consagração episcopal já era um problema. Depois um projeto de pedido de perdão ao Papa me foi posto entre as mãos.

Fui obrigado a escrever uma carta ameaçando fazer as sagrações episcopais para chegar a ter a data de 15 de agosto para ela.

O clima não era mais o de uma colaboração fraterna e um puro e simples reconhecimento da Fraternidade. Para Roma, a finalidade das conversações era a reconciliação, como disse o Cardeal Gagnon, numa entrevista dada ao jornal italiano «L'Avvennire, quer dizer, a volta da ovelha desgarrada para o aprisco. É isto que exprimo na carta ao Papa de 2 de junho: a finalidade das conversações não é o mesmo para vós e para nós.

E quando pensamos na história das relações de Roma com os tradicionalistas, de 1965 a nossos dias, somos obrigados a constatar que é uma perseguição sem descanso e cruel, para nos obrigar à submissão ao Concílio. - O último exemplo em data é o do Seminário «Mater Ecclesiae» dos saídos de Ecône, que em menos de dois anos foram enquadrados na Revolução conciliar, contrariamente a todas as promessas!

[nota de D. Lourenço: E assim continua: a própria Fraternidade São Pedro, dissidente de Ecône, está nesse momento sendo dilacerada e engolida pelo Vaticano modernista. Veja na Terceira Parte deste trabalho]

A Roma atual, conciliar e modernista, não poderá jamais tolerar a existência de um vigoroso ramo da Igreja católica que a condena por sua vitalidade.

É preciso esperar ainda alguns anos, sem dúvida, para que Roma reencontre sua Tradição bi-milenar. Nós continuaremos a provar, com a graça de Deus, que esta Tradição é a única fonte de santificação e de salvação para as almas, e a única possibilidade de renovação para a Igreja.

Ecône, 19 de junho de 1988. 

Marcel Lefebvre

Poucos dias depois de receber a carta do Cardeal Ratzinguer, Mgr. Lefebvre escreveu ao Papa uma carta importante, que traça rapidamente os erros doutrinários que  o afastam da Roma modernista e estabelece o critério do mandato que será usado em Ecône, no dia das sagrações: se o Vaticano aceitou a sagração em 15 de Agosto, é que existe uma vontade formal em permiti-la. O que nos impede de esperar esta data é a malicia e a duplicidade daqueles que permitem a sagração para melhor nos empurrar ao progressismo. Não é por espírito cismático que não esperamos até agosto. Logo esta vontade explicitada pelo Vaticano é suficiente para a realização das sagrações.

CARTA DE Mgr. LEFEBVRE AO SANTO PADRE

 + Ecône, 2 de junho de 1988

Beatíssimo Padre,

Os colóquios e encontros com o Cardeal Ratzinguer e com os seus colaboradores, embora tenham decorrido numa atmosfera de cortesia e de caridade, convenceram-nos de que o momento de uma colaboração franca e eficaz ainda não tinha chegado.
Com efeito, se qualquer cristão está autorizado a pedir às autoridades competentes da Igreja que seja conservada a fé do seu batismo, que dizer em relação aos sacerdotes, religiosos e religiosas?
Foi para manter intacta a fé do nosso batismo que tivemos de nos opor ao espírito do Vaticano II e às reformas que ele inspirou.
O falso ecumenismo, que está na origem de todas as inovações do Concílio, na liturgia, nas novas relações da Igreja e do mundo, na concepção da própria Igreja, conduziu a Igreja à sua ruína e os católicos à apostasia.
Radicalmente opostos a esta destruição da nossa fé, e decididos a mantermo-nos na doutrina e na disciplina tradicional da Igreja, especialmente no que diz respeito à formação sacerdotal e à vida religiosa, sentimos necessidade absoluta de ter autoridades eclesiásticas que partilhem as nossas preocupações e nos ajudem a premunir-nos contra o espírito do Vaticano II e contra o espírito de Assis.
Foi por isso que pedimos vários bispos, escolhidos na Tradição, e, na Comissão Romana, a maioria dos membros, para nos protegermos da possibilidade de comprometerem os acordos.
Tendo em conta a recusa em considerar os nossos pedidos, e sendo evidente que o objetivo desta reconciliação não é em absoluto o mesmo para a Santa Sé e para nós, julgamos preferível esperar tempos mais propícios ao regresso de Roma à Tradição.
É por isso que nos dotaremos dos meios para prosseguir a Obra que a Providência nos confiou, certos, pela carta de S. E. o Cardeal Ratzinguer de 30 de maio, de que a consagração episcopal não é contrária à vontade da Santa Sé, uma vez que é concedida para 15 de agosto.
Continuaremos a rezar para que a Roma moderna, infestada de modernismo, torne a ser a Roma católica e reencontre a sua Tradição bi-milenar. 
Então o problema da reconciliação deixará de ter a razão de ser, e a Igreja encontrará uma nova juventude.Dignai-vos aceitar, Beatíssimo Padre, a expressão dos meus sentimentos muito respeitosos e filialmente devotos em Jesus e Maria.

+ Marcel Lefebvre
Arcebispo-Bispo emérito de Tulle
Fundador da Fraternidade São Pio X

 

CARTA DO SANTO PADRE A Mgr. LEFEBVRE

A Sua Excelência 
Monsenhor Marcel Lefebvre 
Arcebispo-Bispo emérito de Tulle

É com viva e profunda aflição que tomei conhecimento da vossa carta de 2 de junho.
Guiado unicamente pela solicitude da unidade da Igreja e na fidelidade à Verdade revelada – dever imperioso imposto ao Sucessor do Apóstolo Pedro – tinha disposto o ano passado uma Visita Apostólica à Fraternidade São Pio X e às suas obras, que foi realizada pelo Cardeal Édouard Gagnon. Seguiram-se colóquios, primeiro com peritos da Congregação para Doutrina da Fé, depois entre vós próprio e o Cardeal Joseph Ratzinguer. Durante esses encontros, foram elaboradas soluções, aceites e assinadas por vós a 5 de maio de 1988: elas permitiam à Fraternidade São Pio X existir e trabalhar na Igreja em plena comunhão com o Sumo Pontífice, guardião da unidade na Verdade. Por seu lado, a Sé Apostólica não visava senão um objetivo nessas conversações convosco: favorecer e salvaguardar essa unidade na obediência à Revelação divina, traduzida e interpretada pelo Magistério da Igreja, nomeadamente nos vinte e um Concílios ecumênicos, desde o de Nicéia até o Vaticano II.
Na carta que me dirigistes, pareceis rejeitar tudo o que foi obtido nos precedentes colóquios, dado que manifestastes claramente a vossa intenção de “vos dotardes de meios para continuar a vossa Obra”, nomeadamente ao proceder em breve e sem mandato apostólico a uma ou várias ordenações episcopais, em flagrante contradição, não só com as prescrições do Direito Canônico, mas também com o protocolo assinado a 5 de maio e com as indicações relativas a este problema contidas na carta que o Cardeal Ratzinguer vos escreveu, a meu pedido, a 30 de maio.
Com coração paternal, mas com toda a gravidade que requerem as circunstâncias presentes, exorto-vos, Venerável Irmão, a renunciar ao vosso projeto que, se for realizado, não poderá parecer senão um ato cismático, cujas inevitáveis conseqüências teológicas e canônicas são por vós conhecidas. Convido-vos ardentemente ao retorno, na humildade, à plena obediência ao Vigário de Cristo.
Não só vos convido a isso, mas peço-o pelas chagas de Cristo nosso Redentor, no nome de Cristo que, na vigília de sua Paixão, orou pelos seus discípulos, “para que todos sejam um só” (Jo. 17,20).
A este pedido e a este convite, junto a minha oração quotidiana a Maria, Mãe de Cristo.
Caro Irmão, não permitais que o ano dedicado, de um modo particular, à Mão de Deus traga uma nova ferida ao seu Coração de Mãe!

 Do Vaticano, a 9 de junho de 1988

Joannes Paulus PP. II

Nessa hora, o Papa evoca a obediência à Revelação Divina e aos 21 Concílios Ecumênicos, de Nicéia a Vaticano II. Por que razão, nos documentos emitidos tanto pelo Papa quanto  pelas Congregações Romanas, só Vaticano II é que tem voz? Por que razão Cardeais se levantaram diversas vezes para dizer que Vaticano II é o anti-Syllabus, ou que a Igreja não segue mais os ensinamentos do Concílio de Trento? Como deve agir um católico que ouve tais ensinamentos, contrários a tudo o que a Igreja ensinou em dois mil anos de Magistério infalível? Fugiria dos limites desse trabalho apresentar a visão que o Papa tem da sua autoridade, seu modo democrático de governar, contrário à constituição monárquica da Igreja. Ele chama Mgr. Lefebvre para a unidade, mas para essa unidade do número, que congrega todos os bispos em torno de Vaticano II. Os textos do Vaticano estão aí para os que quiserem analisá-los.

A partir dessa carta, os documentos do Vaticano insistirão em que a atitude de Mgr. Lefebvre de sagrar os bispos em 30 de  junho seria um ato cismático. Esse é, doravante, o  nó da questão e  já citamos na 1ª Parte dois importantes documentos onde Mgr. Lefebvre diz claramente que sua atitude não é cismática. O bispo de Ecône receberá uma advertência pública do Cardeal Gantin, prefeito da Congregação dos Bispos, datada de 17 de junho de 1988, ameaçando-o de excomunhão, caso proceda às sagrações "sem ter pedido o mandato ao Sumo Pontífice". Nós vimos que o que ele mais fez foi pedir o mandato, o qual foi sempre adiado sem motivos. No dia das Sagrações, 30 de junho de 1988, Mgr. Lefebvre leu o seguinte mandato:

[No início da cerimônia da sagração episcopal, é pedido ao bispo que consagra que apresente o mandato, ou delegação da Santa Sé (cân. 953, CIC 1917), para proceder ao ato. Eis o mandato lido por Mons. Lefebvre em 30 de junho.]

- Tendes um mandato apostólico?

- Temos.

- Leiam-no.

“Esse mandato, temo-lo da Igreja Romana, sempre fiel à Santa Tradição que recebeu dos Apóstolos. Essa Santa Tradição é o depósito da Fé, que a Igreja nos manda transmitir fielmente a todos os homens, para a salvação das almas.
“Desde o Concílio Vaticano II até hoje, as autoridades da Igreja Romana estão animadas do espírito do modernismo; agiram contrariamente à Santa Tradição: “Já não suportarão a sã doutrina (...). Hão de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os a fábulas”, como diz S. Paulo na segunda epístola a Timóteo (IV, 3-5). É por isso que consideramos sem nenhum valor todas as sanções e todas as censuras dessas autoridades.
“Quanto a mim, quando “já me ofereci em sacrifício e já chegou o momento da minha partida”, ouço o apelo dessas almas que pedem que lhes seja dado o Pão de Vida que é Jesus Cristo. Tenho pena dessa multidão. Constitui, pois, para mim uma grave obrigação transmitir a graça do meu episcopado aos caros padres que aqui estão, para que possam, por sua vez, conferir a graça sacerdotal a outros clérigos, numerosos e santos, instruídos segundo as santas tradições da Igreja Católica.
“É em virtude desse mandato da Santa Igreja Romana, sempre fiel, que escolhemos para o Episcopado na Santa Igreja Romana os padres aqui presentes, como auxiliares da Fraternidade Sacerdotal São Pio X:

“P. Bernard Tissier de Mallerais,
“P. Richard Williamson,
“P. Alfonso de Galarreta, 
“P. Bernard Fellay.”           

 Não é possível ler este curto texto sem sentir uma emoção diante da grandeza, da paz, da serena afirmação de um homem que tem uma grave responsabilidade diante de si e que a cumpre, malgrado a perseguição que isso lhe acarreta. Um pai, que se preocupa antes com a salvação dos seus filhos do que com as mensagens enganadoras que querem perverter a essência da família católica. E fica cada vez mais incompreensível a insensatez e a frieza desses dirigentes do Vaticano que ouvem palavras como essas e não param, não se perguntam onde foi que podem ter errado, para que um santo bispo lhes admoeste desse modo, com tanto fundamento e doutrina.

Ao contrário: da Roma modernista virá o tiro, o ataque iníquo, a tentativa de matar espiritualmente o bispo que lhes toca na ferida. Veremos adiante as razões da nulidade da excomunhão de Mgr. Lefebvre e de Dom Antônio de Castro Mayer. Cabe-nos, antes, publicar o texto da excomunhão:

DECRETO DE EXCOMUNHÃO DE Mgr. MARCEL LEFEBVRE,

DE DOM ANTÔNIO DE CASTRO MAYER

E DOS QUATRO BISPOS POR ELES SAGRADOS

Sagrada Congregação para os Bispos

Monsenhor Marcel Lefebvre, Arcebispo-Bispo emérito de Tulle, tendo – apesar da advertência canônica formal de 17 de junho último e das repetidas interpelações pedindo-lhe que renunciasse ao seu propósito – realizado um ato de natureza cismática ao proceder à consagração episcopal de quatro bispos sem mandato pontifício, e contra a vontade do Sumo Pontífice, incorreu na pena prevista pelo cânone 1364, par. 1, e pelo cânone 1382 do Código de Direito Canônico.

Declaro que os efeitos jurídicos são os seguintes: o sobredito Monsenhor Marcel Lefebvre, Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta incorreram ipso facto na excomunhão latae sentenciae reservada à Sé Apostólica.

Declaro ainda que Mons. Antônio de Castro Mayer, Bispo emérito de Campos, tendo participado diretamente na celebração litúrgica como co-consagrante e tendo publicamente aderido ao ato cismático, incorreu na excomunhão latae sentenciae, prevista pelo cânone 1364, par. 1.

Exortamos os padres e os fiéis a não aderirem ao cisma de Monsenhor Lefebvre, pois incorreriam ipso facto na mesma pena de excomunhão.

Da Congregação para os Bispos, dia 1 de julho do ano de 1988.

Bernadin Cardeal Gantin 
Congregação para os Bispos , Prefeito

*

Assinalamos em negrito a razão de ser dessa excomunhão, no pensamento do Vaticano: um ato cismático. Vamos mostrar agora que este decreto é nulo pelo Direito Canônico do Papa João Paulo II, de 1983. Esse mesmo Direito que é evocado no decreto do Cardeal Gantin mostra claramente que o decreto não tem nenhuma validade.

Comecemos pela noção de cisma. O que é um cisma?

"Cisma é a separação voluntária e pertinaz do batizado da unidade da Igreja" (M.C. CoronataTomo II, col. 2298)

"Não basta uma desobediência, por mais obstinada que seja, para constituir um cisma; é necessário, além disso, uma revolta contra a função do Papa e da Igreja" (Cardeal Charles Journet, teólogo suiço, amigo de Paulo VI, L'Eglise du Verbe Incarné)

"Quando se desobedece ao superior em determinado caso, julgando-se, por exemplo, que ele se engana ou que age ilegitimamente; em outras palavras, quando se recusa a obedecer à pessoa, respeitando-se, no entanto, a função, não se configura o cisma, mas a desobediência. O cisma se verifica quando a recusa de obedecer atinge, na ordem recebida ou na decisão promulgada, a própria autoridade, reconhecida como real e competente" (Cajetano, citado em Dictionaire de Théologie Catholique (DTC), col. 1204)

"Os teólogos medievais, pelo menos os dos séculos XIV, XV e XVI,  tiveram o cuidado de notar que o cisma é uma separação ilegítima da unidade da Igreja, pois, dizem eles, poderia haver uma separação legítima, como, por exemplo, se alguém recusasse a obediência ao Papa que ordenasse uma coisa má ou indevida" (Torquemada, Summa De Ecclesia, citado em DTC, col.1302)

Se tomarmos estas definições tiradas do ensinamento constante dos teólogos e aplicarmos a elas o que já sabemos sobre as intenções de Mgr. Marcel Lefebvre ao sagrar os quatro bispos, concluiremos que, de fato, não houve cisma. Porém, poderiam objetar que estou tirando esta conclusão por mim mesmo, sem levar em consideração o que dizem as autoridades da Igreja. Assim sendo, vamos ouvi-las:

"O ato de consagrar um bispo, sem autorização do Papa, não é, de si, um ato cismático" (logo não pode ser punido com excomunhão) (Cardeal Castillo Lara, presidente da Pontifícia Comissão para a Autêntica Interpretação do Código. In La Republica, 7/10/1988)

O Caso de Honolulu: uma capela da Fraternidade São Pio X recebeu do bispo de Honolulu a pena de excomunhão, por um decreto de 1º de maio de  1991. Cinco pessoas dessa capela recorreram a Roma. Em 28 de junho de 1993 o Cardeal Joseph Ratzinguer ordenou à Nunciatura Apostólica dos Estados Unidos que respondesse aos interessados.
"Depois de haver examinado o caso, com base no Direito Canônico, comunico que os atos referidos no decreto acima mencionado  não são atos cismáticos formais, nos sentido estrito, e também não constituem pecado de cisma, e por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé afirma que o decreto de 1/5/1991  carece de fundamento e validade"

"...A situação dos membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X é uma questão interna  da Igreja Católica. A Fraternidade não é uma outra Igreja ou uma outra comunidade eclesial, no sentido usado pelo Diretório. Seguramente a Missa e os Sacramentos administrados pelos padres da Fraternidade são válidos. Os bispos são ilicitamente, mas validamente sagrados." (Cardeal Edwar Cassidy, presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos: 3 de maio de 1994, resposta a uma carta)

"Mgr. Lefebvre não fez absolutamente nenhum cisma com as suas sagrações  episcopais". (Professor Geringer, perito em Direito Canônico da Universidade de Munique)

A Tese do Padre Gerald Murray: 
Em julho de 1995, a Universidade Gregoriana, de Roma, aprovou com nota máxima, a tese de doutorado em Direito Canônico do padre americano Gerald Murray. Título da tese: O Estatuto Canônico dos fiéis do Arcebispo Marcel Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal São Pio X: estão eles excomungados como cismáticos?
O padre conclui: "cheguei à conclusão de que, canonicamente falando, Mgr. Marcel Lefebvre não é culpável de nenhum ato cismático... O exame das circunstâncias nas quais o arcebispo Lefebvre procedeu a sagrações episcopais à luz dos cânones 1321, 1323, 1324, suscita pelo menos uma dúvida significativa, senão uma certeza razoável contra a validade da declaração de excomunhão pronunciada pela Congregação dos Bispos. A declaração administrativa da Santa Sé parece ter deixado de levar em consideração o direito penal revisado do Código de Direito Canônico, especialmente no que diz respeito à mitigação ou isenção das penas latae sententiae. A malícia do arcebispo Lefebvre foi pressuposta. Suas convicções subjetivas sobre o estado de necessidade alegado foram pura e simplesmente omitidas por um comunicado não assinado, quando o Direito Canônico estipula que o fato de ter uma tal convicção e agir em conseqüência, mesmo estando enganado, preserva a pessoa de incorrer na pena latae sententiae.

Eis, então, as autoridades romanas, do Vaticano, afirmando diversas vezes que não houve cisma e não há excomunhão. Para aqueles que desejam aprofundar mais esta questão, publicamos um artigo do Professor Rudolf Kaschewsky, da revista alemã, Una Voce-Korrespondenz, de março-abril de 1988:

A Sagração Episcopal sem Mandato do Papa 

Carta do Canonista Pe. de Graviers, enviada aos Cardeais de Paris e Lyon

Nessa altura das nossas reflexões, depois de termos visto que a atitude de Mgr. Lefebvre não foi cismática e que não houve excomunhão, e que o direito da Igreja distingue entre ato cismático  e desobediência, podemos ir mais adiante e mostrar porque razão Mgr. Lefebvre estava em condições de não seguir as orientações do Papa, ou seja, de desobedecer. 

Cabe lembrar que essa matéria é revestida hoje de uma característica própria: as pessoas ignoram tudo sobre a infalibilidade papal e ficam repetindo pelos cantos, com ares de heróis da fé, um raciocínio falso mas que agrada, principalmente porque resolve dois problemas ao mesmo tempo: dá ao ignorante a impressão de ser muito católico e, por outro lado, evita ter de aprofundar o debate. Pois se o Papa é infalível, para quê discutir; obedeçam e não chateiem.
É preciso, portanto, abandonar a superficialidade criada pelos inimigos da fé e analisar com a frieza necessária a  doutrina católica sobre o poder do Papa, sobre nosso dever de obediência e sobre a necessidade extrema de se defender a verdadeira doutrina, mesmo contra a opinião de um papa.

O que a Santa Igreja nos ensina e declarou como dogma de Fé é que o Papa é infalível, sim, nas condições estabelecidas pelo Concílio Vaticano I, de 1870. [veja em breve o link para o decreto sobre a Infalibilidade Papal]

Mgr.  Lefebvre nos deixou um texto, anterior às negociações de abril-maio 1988, onde explica com toda a mansidão e simplicidade a doutrina do "estado de necessidade", em que nos encontramos hoje.

Pode a obediência a Deus obrigar-nos a desobedecer ao Papa?

O Estado de Necessidade é uma realidade jurídica expressa no Código de Direito Canônico. Assim explica o Prof. Georg May, presidente do Seminário de Direito Canônico da Universidade de Mayence:

O Estado de Necessidade na Igreja

Desobedecer materialmente ao Papa não significa, portanto, de forma alguma, querer impor uma opinião própria, querer rebelar-se contra uma autoridade agindo dentro dos seus limites. A Fé vale mais do que a obediência cega, logo podemos estar, e estamos de fato, em condição de agir assim para guardar a fé, nosso mais importante dever. 
Que a atitude de Mgr. Lefebvre, assim como a de Dom Antônio de Castro Mayer, em Campos, Rio de Janeiro, sirvam para nós como exemplo de zelo pela doutrina infalível da Igreja. Que nós possamos compreender que, ao desobedecer ao Papa, Mgr. Lefebvre fazia a única coisa eficaz para proteger este mesmo papa. Protege-lo do erro, protege-lo dos inimigos da Santa Igreja que ainda hoje querem destruí-la transformando-a num "clube" de filantropia e pesquisas religiosas.

Na próxima parte vamos analisar a atitude e a atualidade dos dissidentes, dos que trairam Mgr. Lefebvre e que hoje encontram-se cercados de todos os lados: ou aceitam a missa nova e continuam "de acordo" com o Vaticano, ou recusam a missa nova e são expulsos da agremiação vaticana.

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