Santidade,
Há já mais de trinta anos, sob seu predecessor o Papa Paulo VI, uma importante reforma remodelava o rito latino da liturgia católica, especialmente o Ordo Missae.
Esta reforma suscitou imediatamente perturbações e controvérsias no mundo inteiro. Estudos bem fundamentados, em particular o Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missaeque os cardeais Ottavani e Bacchi entregaram ao Papa Paulo VI, assinalaram as deficiências e ambigüidades inquietantes que afetam esta reforma.
Muitos fiéis e sacerdotes se acharam então “na trágica necessidade de escolher”. Para muitos católicos foi um drama espiritual sem precedentes.
Alguns disseram, porém, que o tempo manifestaria a oportunidade de semelhante reforma por seus frutos (Mt 7, 15-20, e Lc 6, 43-44). Esse tempo já transcorreu, e as controvérsias, em vez de diminuir, não fazem senão crescer cada dia. Fiéis, sacerdotes, bispos e cardeais, cada vez em maior número, expressam sua perplexidade ante a situação atual da liturgia, e seu desejo de ver reviver mais amplamente a liturgia anterior à reforma.
A liturgia evoluiu no transcurso da história, é claro, como o demonstram as reformas realizadas no século passado por São Pio X, Pio XII ou João XXIII. Mas a reforma litúrgica pós-conciliar, por sua amplitude e brutalidade, representa uma alteração inaudita, como uma ruptura radical com a tradição litúrgica romana. Sobretudo, esta reforma contém elementos inquietantes, ambíguos e perigosos para a fé.
Ante este perigo espiritual, a verdadeira obediência à Sede de Pedro, e a verdadeira submissão à Igreja, Mãe e Mestra, obriga-nos a, junto a muitíssimos outros católicos em todo o mundo, permanecer fiéis, custe o custar, a esta venerável liturgia que celebra a Igreja romana desde há muitos séculos, liturgia que Vossa Santidade mesma celebrou em outro tempo.
Esta é a herança sagrada que nos legou o fundador de nossa Fraternidade Sacerdotal São Pio X, Monsenhor Marcel Lefebvre: “Está claro que todo o drama entre Ecône e Roma se desenrola em torno do problema da Missa. [...] Temos a convicção de que o novo rito da missa expressa uma nova fé, uma fé que não é a nossa, uma fé que não é a fé católica, [...] que este novo rito, se assim se pode dizer, supõe outra concepção da fé católica. [...] Por isso estamos aferrados a esta tradição que se expressa de modo admirável, e de modo definitivo, como tão bem o disse o Papa São Pio V, no sacrifício da Missa” (29 de junho de 1976).
Após termos refletido e rezado, sentimos o dever diante de Deus de nos dirigir outra vez a Vossa Santidade em razão deste problema da liturgia. Pedimos a pastores de almas qualificados do ponto de vista teológico, litúrgico e canônico que redigissem uma síntese de algumas dificuldades, entre as mais importantes, que suscita à fé dos católicos a liturgia surgida da reforma pós-conciliar.
Este trabalho tentou elevar-se até as causas propriamente doutrinais da crise atual, revelando os princípios que estão na origem da reforma litúrgica, e confrontando-os com a doutrina católica.
A leitura deste documento manifesta claramente, assim o cremos, que a “teologia do mistério pascal”, para a qual se abriram as portas por ocasião do Concílio Vaticano II, é a alma da reforma litúrgica. Ao reduzir o mistério da Redenção, ao considerar o sacramento unicamente em sua relação com o “mistério”, e ao alterar a dimensão sacrifical da missa pelo conceito que se faz do “memorial”, essa “teologia do mistério pascal” afasta perigosamente a liturgia pós-conciliar da doutrina católica, à qual, todavia, a consciência cristã segue vinculada para sempre.
Santidade,
A fé católica obriga-nos gravemente a não calar as perguntas que nos assaltam o espírito.
Não se encontra nas deficiências desta teologia e da liturgia que dela provém uma das principais causas da crise que afeta a Igreja já faz mais de trinta anos? Semelhante situação não pede esclarecimentos doutrinais e litúrgicos por parte da Autoridade suprema? Os súditos para cujo bem se faz a lei não têm direito e obrigação, se a lei se revela prejudicial a eles, de pedir ao legislador, com confiança filial, sua modificação ou sua ab-rogação?
Entre as medidas mais urgentes, não conviria fazer conhecer de modo público a faculdade que tem qualquer sacerdote de celebrar segundo o íntegro e fecundo missal romano revisado por São Pio V, tesouro precioso, tão profundamente enraizado na tradição milenar da Igreja, Mãe e Mestra?
Esses esclarecimentos doutrinais e litúrgicos, unidos à renovação universal da liturgia romana tradicional, não deixariam de dar imensos frutos espirituais: restauração da verdadeira noção do sacerdócio e do sacrifício, e por conseguinte renovação da santidade sacerdotal e religiosa; aumento do fervor dos fiéis; reforço da unidade da Igreja; e forte impulso à evangelização dos países que foram cristãos, e dos países infiéis.
Suplicamos encarecidamente a Vossa Santidade, que é o único que tem o poder de fazê-lo como sucessor de Pedro e Pastor da Igreja universal, que confirme seus irmãos na fé, e sancione com sua autoridade apostólica os esclarecimentos indispensáveis que exige a trágica situação atual da Igreja.
Não obstante, tão necessária restauração não poderá realizar-se na Igreja sem uma ajuda extraordinária do Espírito Santo, alcançada pela intercessão da Santíssima Virgem Maria. Esta renovação tão desejada nos virá, pois, pela oração e especialmente pelo santo sacrifício da missa, e a isto é que nós, de nossa parte e com a graça de Deus, nos dedicamos e nos queremos dedicar cada vez mais.
Receba Vossa Santidade nossos sentimentos de respeito filial em Jesus e em Maria.
+ Bernard Fellay,
Superior geral
Fraternidade Sacerdotal São Pio X
Flavigny, festa da Purificação,
2 de fevereiro de 2001