Category: Santo Tomás de Aquino
Terça-feira após o domingo da Septuagésima
«E, adiantando-se um pouco, prostrou-se com o rosto em terra,
orando e dizendo: Meu Pai... » (Mt 26, 39)
I. Aqui se verifica as três condições da oração:
1. A solicitude, significada por estas palavras: "adiantando-se um pouco", pois Cristo afasta-se mesmo daqueles que elegera, conforme aquilo do Evangelho: "Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai em segredo" (Mt 6, 6). Observe, contudo, que Nosso Senhor adianta-se "um pouco", e não muito, para nos ensinar que Ele jamais está longe dos que o invocam; também para que os Apóstolos, vendo-o rezar, aprendam com o exemplo.
Segunda-feira após o domingo da Septuagésima
«Não nos cansemos, pois, de fazer o bem,
porque a seu tempo colheremos, não desfalecendo» (Gl 6,9)
Três coisas tiramos destas palavras:
I. O Apóstolo nos exorta a fazer o bem. De fato, é preciso fazer o bem, como tudo naturalmente ensina:
1. Pois todas as criaturas são boas: "E Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas" (Gn 1, 31). Isso basta para envergonhar os pecadores: a multidão das criaturas, que são todas boas e eles próprios, que são maus.
2. Pois todos naturalmente fazem o bem. Com efeito, toda criatura se dá a si mesma, e este é um indício da bondade delas mesmas e da Criação. Conforme o dizer de Dionísio: Deus é o bem difusivo de si. Agostinho: Este é um grande indício da bondade divina, que toda criatura é compelida a dar-se a si própria.
3. Pois todos naturalmente apetecem o bem e a ele tendem. O bem é aquilo que é por todos desejado.
Domingo da Septuagésima
«Saiu cerca da terceira hora, viu outros, que estavam na praça ociosos, e disse-lhes: Ide vós também, para a minha vinha, e dar-vos-ei o que for justo» (Mt 20, 3)
Nestas palavras, quatro coisas são dignas de nota:
I. A bondade do Senhor. "Saiu", diz o Evangelho: saiu para a salvação do seu povo. Que Nosso Senhor tenha saído para conduzir os homens à vinha da justiça, é um ato de infinita bondade.
(IIª-IIªe, q. 137 a. 4: II Sent., dist. XXIX, exposit litt.; III Cont. Gent., cap. CLV; De Verit., q. 24, a. 13).
O décimo discute-se assim. — Parece que o homem constituído na graça não precisa do auxílio da mesma, para perseverar.
1. — Pois, a perseverança, como a continência, é algo menos que a virtude, como claramente o diz o Filósofo. Ora, o homem, uma vez justificado pela graça, não precisa do auxílio da mesma, para praticar a virtude. Logo, com maior razão, não precisa desse auxílio para perseverar.
2. Demais. — Todas as virtudes são infundadas simultaneamente. Ora, a perseverança é considerada uma virtude. Logo, a perseverança coexiste com a graça das outras virtudes infusas.
3. Demais. — Como diz o Apóstolo, o homem ganhou mais com o dom de Cristo, do que perdeu com o pecado de Adão. Ora, Adão recebera o dom de poder perseverar. Logo, com maior razão, pela graça de Cristo, obtemos o poder de perseverar. Portanto, não precisamos, para isso, de nenhuma graça.
Mas, em contrário, Agostinho diz: Porque pedimos a Deus a perseverança, se ele não a dá? Pois, é uma petição irrisória, desde que sabemos que ele não nos satisfaz o pedido, e que está em nosso poder esse dom mesmo, não recebido de Deus. Ora, a perseverança é pedida, mesmo pelos santificados pela graça; pois, isso está compreendido na oração — Santificado seja o vosso nome — como,no mesmo lugar Agostinho o confirma, citando as palavras de Cipriano. Logo, o homem, mesmo constituído em graça, precisa que Deus lhe dê a perseverança.
SOLUÇÃO. — A perseverança pode ser entendida em tríplice acepção. — Às vezes, significa um hábito do espírito, que fortifica o homem contra o ímpeto da tristeza, para que se não afaste da vida virtuosa. E assim, a perseverança está para a tristeza como a continência, para a concupiscência e o prazer, segundo o Filósofo. — Outras vezes, pode chamar-se perseverança a um hábito pelo qual o homem tem o propósito de perseverar no bem até o fim. — Ora, de ambos esses modos, a perseverança é infundida simultaneamente com a graça, assim como a continência e as demais virtudes.
Noutra acepção, chama-se perseverança à continuação no bem até o fim da vida. E para consegui-la, o homem, constituído na graça não precisa, por certo, de nenhuma outra graça habitual, mas, ao auxílio divino, que o dirige e protege contra o ímpeto das tentações, conforme resulta da questão precedente. Portanto, quem está justificado pela graça, há necessariamente de pedir a Deus o referido dom da perseverança, para livrar-se do mal, até o fim da vida. Pois, a muitos é dada a graça, aos quais não é dado nela perseverar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção colhe, quanto à primeira acepção da perseverança. Assim como a segunda também colhe, no concernente à segunda acepção.
Donde se deduz a resposta à segunda objeção.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, o homem, no seu primeiro estado, recebeu o dom pelo qual poderia perseverar; não o recebeu, contudo, para que perseverasse. No estado presente, porém, pela graça de Cristo, muitos recebem o dom da graça, pelo qual podem perseverar, e além disso é-lhes concedido perseverarem. Portanto, o dom de Cristo é maior que o delito de Adão. E contudo, o homem podia, pelo dom da graça, perseverar mais facilmente, no estado de inocência, em que nenhuma rebelião havia da carne contra o espírito, do que no estado presente, em que a restauração operada pela graça de Cristo, embora já começada, no espírito, ainda não se consumou na carne. O que se dará na prática, onde o homem, não só poderá perseverar, mas onde também não poderá pecar.
(II Sent., dist. XXIX, expos. Litt.; De Verit., q. 24, a. 13, 14; q. 27, a. 5, ad 3; In Psalm. XXXI).
O nono discute-se assim. — Parece, que quem já conseguiu a graça pode, por si mesmo, praticar o bem e evitar o pecado, sem outro auxílio da mesma.
1. — Pois, é vão ou imperfeito aquilo que não realiza o fim para o qual foi feito. Ora, a graça nos é dada para podermos fazer o bem e evitar o pecado. Se, portanto com o auxílio dela, o homem não pode evitá-lo, resulta que é vã ou imperfeita.
2. Demais. — Pela graça o Espírito Santo mesmo habita em nós, conforme a Escritura (1 Cor 3, 16): Não sabeis vós, que sois templo de Deus, e que o Espírito de Deus mora em vós? Ora, o Espírito Santo, sendo onipotente, tem poder para nos levar a agir retamente e guardar-nos do pecado. Logo, quem conseguiu a graça pode agir retamente e livrar-se do pecado, sem outro auxílio da mesma.
3. Demais. — Se o homem, que já conseguiu a graça, ainda precisa de outro auxílio dela, para viver retamente e abster-se do pecado, pela mesma razão, quando tiver alcançado esse outro auxílio, precisará ainda de um terceiro. Donde, o processo irá ao infinito, o que é inadmissível. Logo, quem está em graça não precisa de outro auxílio da mesma, para agir bem e abster-se do pecado.
Mas, em contrário. Agostinho diz: assim como os olhos da carne, por perfeitos que sejam, não podem ver, senão ajudados pelo brilho da luz, assim também, o homem, embora perfeitissimamente justificado, não pode viver retamente, se não for ajudado pela luz eterna da divina justiça. Ora, a justificação é operada pela graça, conforme a Escritura (Rm 3, 24): Tendo sido justificados gratuitamente por sua graça. Logo, quem já tiver a graça, precisa ainda de outro auxílio da mesma para viver retamente.
SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 5), o homem, para viver retamente precisa duplamente do auxílio de Deus. Primeiro, do dom habitual, que restaura a natureza humana corrupta e, uma vez restaurada, eleve-a a fazer obras meritórias para a vida eterna, que lhe excedem a capacidade. Segundo, o homem precisa do auxílio da graça, afim de que Deus a mova para agir. — Ora, do primeiro modo, o homem, no estado da graça, não precisa de nenhum outro auxílio da mesma, que seria um como segundo hábito infuso. Precisa porém do auxílio da graça, pelo qual Deus o move a agir retamente. — E isto, por duas razões. A primeira, de ordem geral, é que, como já dissemos, nenhum ser criado pode praticar qualquer ato, senão em virtude de moção divina. — A segunda, de ordem especial, se funda na condição do estado da natureza humana, que, embora restaurada pela graça, quanto ao espírito, permanece contudo corrupta e contaminada na carne, pela qual serve à lei do pecado, como diz o Apóstolo (rm 7, 25). Embora permaneça ainda uma certa obscuridade da ignorância na inteligência, pela qual, como diz o mesmo Apóstolo (Rm 8, 26), não sabemos o que havemos de pedir, como convém. Pois, por causa das várias eventualidades da vida, e por não nos conhecermos perfeitamente a nós mesmos, não podemos plenamente saber o que nos convém, conforme aquilo da Escritura (Sb 9, 14): Os pensamentos dos mortais são tímidos, e incertas as nossas providências. Por onde, temos necessidade de ser dirigidos e protegidos por Deus, que tudo conhece e tudo pode. E por isso, mesmo aos que pela graça renasceram filhos de Deus, convém dizer: E não nos deixes cair em tentação e Faça-se a tua vontade, assim no céu como na terra, e o mais que contém a oração dominical, relativa ao assunto vertente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O dom da graça habitual não nos é dado para que deixemos, por ele, de precisar de outro auxílio divino. Pois, toda criatura necessita de ser conservada, por Deus, no bem que d’Ele recebeu. Por onde, de precisar o homem de auxílio divino, ainda depois de ter recebido a graça, não se pode concluir que ela tenha sido dada em vão ou seja imperfeita. Pois, mesmo no estado da glória, quando já a graça for absolutamente perfeita, o homem precisava do divino auxílio. Na vida presente, porém, enquanto não está completamente restaurado, a graça é, de certo modo, imperfeita, como já dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A ação do Espírito Santo, que nos move e protege, não fica circunscrita pelo efeito do dom habitual, que causa em nós. Mas, além desse efeito, move-nos e protege-nos, simultaneamente com o Pai e o Filho.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção conclui que o homem não precisa de outra graça habitual.
(Supra, q. 63, a. 2, ad 2; q. 74, a. 3, ad 2; II Sent., dist. XX, q. 2, a. 3, ad 5; dist. XXIV, q. 1, a. 4; dist. XXVIII, a. 2; III Cont. Gent., cap. CLX; De Verit., q. 22, a. 5, ad 7; q. 24, a. 1, ad 10, 12; a. 12, 13; De Malo, q. 3, a. 1, ad 9; I Cor., cap. XII, lect. I; Ad Hebr., cap. X, lect. III).
O oitavo discute-se assim. — Parece que o homem pode, sem a graça, não pecar.
1. — Pois, ninguém peca, fazendo o inevitável, como diz Agostinho. Se portanto, o homem, em estado de pecado mortal, não pode evitá-lo resulta que, pecando, não peca. O que é inadmissível.
2. Demais. — O homem é punido afim de não pecar. Se pois, o estado de pecado mortal não pode deixar de pecar, resulta que é punido em vão. O que é inadmissível.
3. Demais. — A Escritura diz (Sr 15, 18): Diante do homem estão à vida e a morte, o bem e o mal; o que lhe agradar, isso lhe será dado. Ora, quem peca não deixa de ser homem. Logo, pode escolher entre o bem e o mal, e portanto, sem a graça evitar o pecado.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não duvido que por ninguém deve ser ouvido e deve ser por todos anatematizado quem nega que devemos orar, para não cairmos em tentação; pois, quem o faz nega seja necessário ao homem, para não pecar, o auxílio da graça de Deus, bastando só a vontade humana, com a aceitação da lei.
SOLUÇÃO. — Podemos encarar o homem à dupla luz: no estado da natureza íntegra e no da natureza corrupta. — No primeiro, podia, mesmo sem a graça habitual, não pecar, nem mortal nem venialmente. Pois, pecar não é senão afastar-se do que é natural, o que o homem, no estado de natureza íntegra, podia evitar. Não o podia, porém, sem o auxílio de Deus que conserva no bem; pois, subtraído esse auxílio, a própria natureza voltaria ao nada.
No estado, porém, da natureza corrupta, o homem precisa da graça habitual, que restaura a natureza, para abster-se completamente do pecado. E essa restauração se faz, primeiro, pelo espírito, no estado da vida presente, em que o apetite carnal ainda não está completamente purificado. Por isso, o Apóstolo, personificando o homem redimido diz (Rm 7, 25): Eu mesmo sirvo à lei de Deus segundo o espírito; e sirvo à lei do pecado, segundo a carne. E nesses estado, o homem pode abster-se de todo pecado mortal, que se funda no espírito, como já estabelecemos (q. 74, a. 5). Não pode, porém, livrar-se de todo pecado venial, por causa da corrupção do apetite inferior da sensualidade. Pois, a razão pode certamente reprimir-lhe cada um dos movimentos, em particular; sendo, por isso, que estes constituem essencialmente pecados e atos voluntários. Mas não reprimi-los a todos, porque, enquanto se esforça por resistir a um, pode surgir outro. E também porque a razão nem sempre pode estar vigilante para evitar tais movimentos, como já dissemos (q. 74, a. 3 ad 2).
Semelhantemente, antes de a razão humana, onde se radica o pecado mortal, ter sido reparada pela graça santificante, podia o homem evitar todo pecado mortal, num determinado tempo; pois, não havia, por força, de pecar, atual e continuamente. Não podia, porém, durante muito tempo permanecer sem pecado mortal. Por isso, Gregório diz: o pecado que não é logo detido pela penitência, arrasta, com o seu peso, para outro. E a razão disto é que, assim como o apetite inferior deve estar sujeito à razão, assim também a razão deve estar sujeita a Deus e colocar nele o fim da sua vontade. Ora, é necessariamente, pelo fim, que se hão de reger todos os movimentos humanos; assim como, pelo juízo da razão, todos os movimentos do apetite inferior. Por onde, não estando o apetite inferior totalmente sujeito à razão, hão de surgir movimentos desordenados nesse apetite sensitivo; e assim também, não estando a razão humana totalmente sujeita a Deus, conseqüentemente, muitas desordens hão de lhe viciar os atos. Ora, o homem não tem o coração firmado em Deus, a ponto de não querer separar-se dele, por conseguir qualquer bem ou evitar qualquer mal, desprezando-lhe os preceitos. Por isso, peca mortalmente, e sobretudo porque, nos seus atos súbitos, obra de acordo com um fim preconcebido e um hábito preexistente, no dizer do Filósofo. Embora, com premeditação da razão, possa agir contrariamente à ordem do fim preconcebido e à inclinação do hábito. Mas como não pode viver em estado de contínua premeditação, não lhe é possível permanecer muito tempo sem agir de acordo com a vontade desordenadamente afastada de Deus, senão for, logo, reconduzido, pela graça, à ordem devida.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O homem pode evitar cada um dos atos do pecado, singularmente; não, porém, todos, senão com o auxílio da graça, conforme já dissemos. E contudo, como é por falta sua, que não se prepara a receber a graça, não pode escusar-se do pecado, pois, sem a graça, é incapaz de evitá-lo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A punição é útil para, com a dor que provoca, fazer nascer na vontade a regeneração. Contanto, que o punido seja filho da promessa, de modo que, simultâneo com o estrepito da mesma, que repercute exteriormente, e flagela, Deus mova a vontade, interiormente, com inspiração oculta, como diz Agostinho. Logo, a correção é necessária, pois a vontade humana a exige, para poder abster-se do pecado; porém, não é suficiente, sem o auxílio de Deus. Por isso, a Escritura diz (Ecle 7, 14): Considera as obras de Deus, porque ninguém pode corrigir, a quem ele desprezou.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, o lugar citado da Escritura se entende do homem, no estado da natureza íntegra, quando ainda não era escravo do pecado e podia portanto pecar e não pecar. No estado atual, porém, é-lhe dado tudo quanto quer; mas só com o auxílio da graça pode querer o bem.
(Infra, q. 113, a. 2; II Sent., dist. XXVIII, a. 2 ; III Cont. Gent., cap. CLVII ; IV, cap. LXXII ; De Verit., q. 24, a. 12 ad 34 ; q. 28, a. 2 ; Ad Ephes., cap. V, lect. V)
O sétimo discute-se assim. — Parece que o homem pode ressurgir do pecado sem o auxílio da graça.
1. — Pois, o que é pré-exigido para a graça existe sem ela. Ora, ressurgir do pecado é pré-exigido para a iluminação da graça, conforme a Escritura (Ef 5, 14): Levanta-te dentre os mortos e Cristo te alumiará. Logo, o homem pode ressurgir do pecado, sem a graça.
2. Demais. — O pecado se opõe à virtude, como a doença, à saúde, segundo já se disse (q. 71, a. 1 ad 3). Ora, o homem, por virtude da natureza, pode sair da doença para a saúde, sem auxílio de remédio externo, por conservar internamente o princípio vital, do qual procede a operação natural. Logo, por semelhante razão, também o homem pode restaurar-se a si mesmo, saindo do estado de pecado para o da justiça, sem auxílio da graça exterior.
3. Demais. — Qualquer ser natural pode voltar ao ato adequado à sua natureza; assim a água aquecida volta, por si mesma, à sua frieza natural; e a pedra, atirada para cima, volta por si mesma ao seu movimento natural. Ora, o pecado é um ato contra a natureza, como claramente o diz Damasceno. Logo, o homem pode, por si mesmo, voltar, do pecado, para o estado de justiça.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 2, 21): se foi dada uma lei, que possa justificar, segue-se que morreu Cristo em vão, i. é, sem causa. Por igual razão, se o homem tem uma natureza pela qual possa justificar-se, Cristo morreu em vão, i. é, sem causa. Ora, isto não se pode admitir. Logo, o homem não pode justificar-se por si mesmo, i. é, sair do estado da culpa para o da justiça.
SOLUÇÃO. — O homem de nenhum modo pode ressurgir do pecado, por si mesmo, sem o auxílio da graça. Pois, depois de praticado o ato pecaminoso, permanece o reato, como já se disse (q. 87, a. 6). Por onde, ressurgir do pecado não é o mesmo que ter cessado o ato pecaminoso, mas sim, recuperar o perdido pelo pecado. Ora, pelo pecado, o homem sofre tríplice detrimento; como resulta do sobredito (q. 85, a. 1; q. 86, a. 1; q. 87, a. 1): a mácula, a corrupção do bem natural e o reato da pena. — A mácula, por ficar privado do esplendor da graça, por causa da deformidade do pecado. — A corrupção do bem natural, por desordenar-se a natureza humana pela não sujeição da vontade a Deus; pois, desaparecida esta ordem, há de por conseqüência ficar desordenada a natureza toda do homem pecador. — Enfim, pelo reato da pena o homem, pecando mortalmente, merece a condenação eterna. Ora, é manifesto que esse tríplice detrimento não pode ser reparado senão por Deus. — Assim, o esplendor da graça, provindo da iluminação da luz divina, a alma não pode recuperá-lo se Deus não a iluminar de novo; e para isso é necessário o dom habitual do lume da graça. — Semelhantemente, a ordem da natureza não pode ser restaurada, de modo à vontade do homem ficar sujeita a Deus, se Ele não a atrair para si, como já dissemos (a. 6). — E também, enfim, o reato da pena eterna não pode ser remido senão por Deus, contra quem foi cometida a ofensa, e que é o juiz do homem. E, portanto, o homem precisa do auxílio da graça para ressurgir do pecado, quanto ao dom habitual e quanto à moção interna divina.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Atribui-se ao homem o que lhe depende do livre arbítrio, necessário para ressurgir do pecado. Por onde e o lugar — Levanta-te e Cristo te iluminará — não significa, que todo levantar-se do pecado preceda à iluminação da graça; mas que, quando o homem, movido no seu livre arbítrio por Deus, se esforça por levantar-se do pecado, recebe o lume da graça justificante.
DONDE A RESPOSTA À SEGUNDA. — A razão natural não é princípio suficiente da saúde espiritual, que a graça santificante confere ao homem; mas tal princípio é a graça, de que o pecado o priva. Por isso, não pode ele restaurar-se a si mesmo, mas precisa lhe seja de novo infundida a graça, como se de novo a alma fosse infundida num corpo, pela ressurreição deste.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A natureza íntegra pode restaurar-se por si mesma, no que lhe é conveniente e proporcionado. Mas no que lhe excede a capacidade não pode, senão por auxílio externo. Ora, a natureza humana decaiu, pelo ato do pecado, pois não permaneceu íntegra, mas se corrompeu, como já se disse. Logo, não pode restaurar-se por si mesma, nem em relação ao seu bem conatural, nem, como maior razão à justiça sobrenatural.
(I, q. 62, a. 2; II Sent., dist. V, q. 2, a 1; dist. XXVIII, a. 4; IV, dist. XVII, q. 1, a. 2, qª 2, ad 2; III Cont., Gent. Cap. CXLIX; De Verit., q. 24, a. 15; Quodl. I q. 4, a. 2; In Ioan., cap. I, lect. VI; Ad Hebr., cap. XII, lect III).
O sexto discute-se assim. — Parece que o homem pode preparar-se a si mesmo para a graça, sem o auxílio da mesma.
1. — Pois, ao homem não foi imposto nada de impossível como já se disse (a. 4, ad 1). Ora, a Escritura diz (Zc 1, 3): Convertei-vos a mim e eu me converterei a vós. Ora, preparar-se para a graça não é senão converter-se para Deus. Logo, o homem pode por si mesmo, sem a graça, preparar-se para ela.
2. Demais. — O homem prepara-se para a graça fazendo o que está em si; pois, se o fizer, Deus não a negará, conforme diz a Escritura (Mt 7, 11): Deus dá espírito bom aos que lhe pedirem. Ora, dizemos que está em nós o que de nós depende. Logo, ao nosso poder foi dado prepararmo-nos para a graça.
3. Demais. — Se o homem precisa da graça afim de preparar-se para ela, pela mesma razão precisará de outra para obter a primeira, e assim ao infinito, o que é inadmissível. Logo, devemos parar na primeira, de modo que o homem, sem a graça, pode preparar-se para a mesma.
4. Demais. — A Escritura diz (Pr 16, 1): Da parte do homem está o preparar a sua alma. Ora, pertence ao homem o que ele por si mesmo pode fazer. Logo, por si mesmo, pode preparar-se para a graça.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Jo 6, 44): Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, o não trouxer. Se, pois, o homem pudesse preparar-se por si mesmo, não seria necessário ser levado por outrem. Logo, não pode preparar-se para a graça, sem o auxílio dela.
SOLUÇÃO. — Há dupla preparação da vontade humana para o bem. — Uma, pela qual se ela prepara, afim de obrar o bem e gozar de Deus. E essa preparação da vontade não pode ser sem o dom habitual da graça, como princípio da obra meritória, segundo já dissemos (a. 5). A outra visa conseguir o dom mesmo da graça habitual. Ora, para o homem preparar-se, afim de receber esse dom, não é necessário pressupor na alma nenhum outro dom habitual, porque assim iríamos ao infinito. Mas é preciso pressupor um auxílio gratuito de Deus, que mova a alma interiormente ou inspire o bem proposto. Assim, desses dois modos precisamos do auxílio divino, como já dissemos (a. 2, a. 3).
Ora, que precisamos do auxílio da moção divina afim de nos prepararmos para a graça, é manifesto. Pois, todo agente, visando um fim, necessariamente toda causa dirigirá os seus efeitos para o seu fim. Ora, a ordem dos fins é relativa à ordem dos agentes ou dos motores. Por onde, o homem há de necessariamente converter-se para o fim último, movido pelo primeiro motor; ao fim próximo, porém, pela moção de algum motor inferior. Assim, o ânimo do soldado converte-se a buscar a vitória por moção do chefe do exército; mas por instigação do tribuno é que se converte a seguir a bandeira de um exército. Ora, sendo Deus o primeiro motor absoluto, é em virtude da sua moção que todas as coisas se convertem para ele, por força da tendência geral delas para o bem, pela qual cada uma busca, ao seu modo, assimilar-se com Deus. Por isso Dionísio diz, que Deus converte todas as coisas para si mesmo. Os homens justos, porém, Ele os converte a si, como o fim especial a que tendem e ao qual desejam se unir como ao bem próprio, conforme a Escritura (Sl 72, 28): Para mim me é bom unir-me a Deus. Portanto, o homem não pode converter-se para Deus, senão pelo levar Deus a agir assim. Ora, preparar-se para a graça é como converter-se para Deus, assim como quem tem desviados os olhos da luz do sol prepara-se a receber essa luz, convertendo-os para ele. Por onde é claro que o homem não pode preparar-se para receber o lume da graça, senão com o auxílio gratuito da moção interna de Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A conversão do homem para Deus se faz pelo seu livre arbítrio; por isso foi-lhe dado o preceito de converter-se para Deus. Mas o livre arbítrio não pode converter-se para Deus, senão porque Ele o faz proceder desse modo, conforme àquilo da Escritura (Jr 31, 18): Converte-me e converter-me-ei, porque tu és o Senhor meu Deus; e ainda (Lm 5, 21): Converte-nos, Senhor, a ti e nós nos converteremos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O homem nada pode fazer senão movido por Deus, conforme a Escritura (Jo 15, 5): Sem mim não podeis fazer nada. Portanto, quando se diz que faz o que está no seu poder, isso significa que pode assim agir, quando movido por Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção colhe quanto à graça habitual, que exige uma preparação, porque toda forma exige uma disposição para recebê-la. Mas a moção que o homem recebe de Deus não pré-exige nenhuma outra, por ser Deus o primeiro motor. Por onde, não há necessidade de se proceder ao infinito.
RESPOSTA À QUARTA. — É próprio do homem preparar a sua alma, por fazê-lo com livre arbítrio. Contudo, não o faz sem o auxílio de Deus, que o move e o atrai para si, como dissemos.
(Infra, q. 114, a. 2; II Sent., dust. XXVIII, a. 1; dist. XXIX, a. 1 ; III Cont. Gent., cap. CXLVII ; De Verit., q. 24, a. 1, ad 2 ; a. 14 ; Quold. I, q. 4, a. 2).
O quinto discute-se assim. — Parece que o homem pode merecer a vida eterna, sem a graça.
1. — Pois, diz o Senhor (Mt 19, 17): Se tu queres entrar na vida, guarda os mandamentos. Por onde se vê que depende da vontade humana entrar na vida eterna. Ora, o que da nossa vontade depende por nós mesmos o podemos fazer. Logo, o homem pode, por si mesmo, merecer a vida eterna.
2. Demais. — A vida eterna é um galardão ou prêmio, que Deus dá aos homens, conforme a Escritura (Mt 5, 12): o vosso galardão está nos céus. Ora, Deus dá o galardão ou o prêmio ao homem, segundo as suas obras, no dizer da Escritura (Sl 61, 12): Tu retribuirás a cada um segundo as suas obras. Logo, sendo o homem senhor dos seus atos, foi deixado ao seu poder entrar na vida eterna.
3. Demais. — A vida eterna é o fim último da vida humana. Ora, todos os seres da natureza podem, pelas suas faculdades naturais, conseguir o seu fim. Logo, com maior razão, o homem, de natureza mais elevada, pode chegar à vida eterna pelas suas faculdades naturais, sem o auxílio da graça.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 6, 23): A graça de Deus é a vida eterna. O que foi dito, explica a Glosa a esse lugar, para entendermos, que Deus nos conduz, pela sua misericórdia, à vida eterna.
SOLUÇÃO. — Os atos conducentes ao fim devem ser a este proporcionados. Ora, nenhum ato excede à proporção do princípio ativo. Por isso, vemos que nenhum ser natural pode produzir, pela sua operação própria, um efeito que lhe exceda a virtude ativa, senão só o que lhe for proporcionado à virtude. Ora, a vida eterna é um fim desproporcionado à natureza humana, como do sobredito resulta (q. 5, a. 5). Por onde, o homem, pelas suas faculdades naturais, não pode praticar obras meritórias proporcionadas à vida eterna; para isso é necessária uma virtude mais alta, que é a virtude da graça. Portanto, sem esta, ele não pode alcançar a vida eterna. Pode, porém, praticar certas obras conducentes a determinados bens que lhe sejam conaturais, como, trabalhar no campo, beber, comer, ter amigos e outros semelhantes, como diz Agostinho.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O homem, pela sua vontade, pode fazer obras meritórias para a vida eterna. Mas, como diz Agostinho, no mesmo livro, para isso é necessário que a vontade lhe seja preparada pela graça de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Ao lugar do Apóstolo — a graça de Deus é a vida eterna — diz a Glosa: É certo que a vida eterna é dada em retribuição das boas obras; mas estas mesmas já procedem da graça de Deus. Pois, como também já dissemos (a. 4), para cumprir os mandamentos de Deus, como devemos e meritoriamente, é necessária a graça.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção colhe quanto ao fim conatural do homem. Pois, a natureza humana, por isso mesmo que é mais nobre, pode atingir um fim mais elevado, ao menos com o auxílio da graça, e o qual de nenhum modo podem alcançar os seres de natureza inferior. Assim, tem melhor disposição para a saúde quem pode alcançá-la, com o auxílio de certos remédios, do que quem de nenhum modo o pode, como diz o Filósofo.
(II Sent., dist. XXVIII, a. 3; De Verit., q. 24, a. 14, ad 1, 2, 7; Ad Rom., cap. II, lect III).
O quarto discute-se assim. — Parece que o homem, sem a graça, só pelas suas faculdades naturais, pode cumprir os preceitos da lei.
1. — Pois, diz o Apóstolo (Rm 2, 14): os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei. Ora, o que o homem faz naturalmente pode fazê-lo por si por si mesmo, sem a graça. Logo, sem esta pode cumprir os preceitos da lei.
2. Demais. — Jerônimo diz, que devem ser amaldiçoados os que dizem ser impossível o por Deus preceituado aos homens. Ora, é impossível, para o homem, o que ele não pode cumprir por si mesmo. Logo, por si mesmo, pode cumprir todos os preceitos da lei.
3. Demais. — De todos os preceitos da lei o maior é aquele (Mt 27, 37): Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração. Ora, este mandamento o homem pode cumpri-lo pelas suas faculdades naturais, amando a Deus sobre todas as coisas, como já dissemos (a. 3). Logo, pode cumprir todos os mandamentos da lei, sem a graça.
Mas, em contrário, Agostinho diz que é próprio da heresia dos Pelagianos crer que, sem a graça, o homem possa cumprir todos os mandamentos divinos.
SOLUÇÃO. — De dois modos podemos cumprir os mandamentos da lei. — Primeiro, quanto à substância das obras, quando praticamos atos de justiça, de fortaleza e das demais virtudes. E deste modo, o homem podia, no estado da natureza íntegra, cumprir todos os mandamentos da lei; do contrário, não poderia, nesse estado, deixar de pecar, pois o pecar não é senão transgredir os mandamentos divinos. Mas, no estado da natureza corrupta, não pode cumprir todos os mandamentos divinos, sem o auxílio da graça. — De outro modo, os mandamentos da lei podem ser cumpridos, não só quanto à substância das obras, mas também quanto ao modo de agir, i. é, praticando-as com caridade. E assim, nem no estado da natureza íntegra, nem no da corrupta, o homem pode cumprir, sem a graça, os mandamentos da lei. Por isso, Agostinho depois de ter dito, que sem a graça os homens não podem, absolutamente, fazer nenhum bem, acrescenta: a graça é necessária, não só para lhes dar a conhecer o que devem praticar, mas também para fazerem o de que foram informados, com amor. Além disso, precisam, em um outro estado, do auxílio da moção divina, para cumprirem os mandamentos, como dissemos (a. 2, a. 3).
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No dizer de Agostinho, não devemos nos admirar de dizer o Apóstolo, que os gentios fazem naturalmente as coisas da lei; pois, o Espírito da graça obra em nós a instauração da imagem de Deus, segundo a qual fomos naturalmente criados.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O que podemos, com o auxílio divino, não nos é absolutamente impossível, conforme àquilo do Filósofo: o que podemos por meio dos amigos podemos de certo modo por nós mesmos. Por isso, no mesmo lugar, Jerônimo confessa que o nosso arbítrio é livre, no sentido de sempre precisamos do auxílio de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O preceito do amor de Deus o homem não pode cumpri-lo só pelas suas faculdades naturais, conforme às exigências da caridade, como do sobredito resulta (a. 3).