Category: Santo Tomás de Aquino
[Art. Seq.; q. 107, a. 1, ad 2, 3; q. 108, a. 1. II Cor., cap. III, lect, II; Ad Hebr., cap. VIII, lect. II].
O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei nova é uma lei escrita.
1. — Pois, a lei nova é o Evangelho mesmo. Ora, este é escrito (Jo 20, 31): Mas, foram escritas estas coisas, afim de que vos creiais. Logo, a lei nova é uma lei escrita.
2. Demais. — A lei infusa é a da natureza, conforme a Escritura (Rm 2, 14-15): Naturalmente fazem as coisas que são da lei os que mostram a obra da lei escrita nos seus corações. Se pois a lei do Evangelho fosse infusa, não diferiria da lei natural.
3. Demais. — A lei do Evangelho é própria dos que vivem no regime do Novo Testamento. Ora, a lei infusa é comum tanto a esses como aos que viveram no regime do Velho Testamento. Pois, diz a Escritura (Sb 7, 27), que a divina Sabedoria, pelas nações, se transfunde nas almas santas, forma os amigos de Deus e os profetas. Logo, a lei nova não é uma lei infusa.
Mas, em contrário, a lei nova é a lei do Novo Testamento. Ora, esta é infusa no coração. Pois, o Apóstolo, citando a autoridade da Escritura (Jr 31, 31-33) — Eis aí virão os dias, diz o Senhor, e farei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá — e expondo qual seja essa aliança, diz (Heb 8, 8-10): Porque este é o testamento que ordenarei à casa de Israel, imprimindo as minhas leis na mente deles, e as escreverei sobre o seu coração. Logo, a lei nova é infusa.
SOLUÇÃO. — Todo ser é considerado como sendo o que nele é principal, consoante o Filósofo. Ora, o que há de principal na lei do Novo Testamento, e no que consiste toda a sua virtude, é a graça do Espírito Santo, dada pela fé em Cristo. Por onde, a lei nova é principalmente a graça mesma do Espírito Santo, dada aos fiéis de Cristo. E isto se torna manifesto pelas palavras do Apóstolo (Rm 3, 27): Onde está o motivo de te gloriares? Todo ele foi excluído. Por que lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da fé — chamando, assim, lei à graça mesma da fé. E mais expressamente (Rm 8, 2): A lei do espírito de vida em Jesus Cristo me livrou da lei do pecado e da morte. Por isso diz Agostinho, que, assim como a lei das ações foi escrita em tábuas de pedra, assim, a lei da fé o foi nos corações dos fiéis. E noutro lugar do mesmo livro: Que são as leis de Deus por Ele próprio escritas nos corações, senão a presença mesma do Espírito Santo?
Contudo, a lei nova encerra certos preceitos como que secundários disponentes à graça do Espírito Santo e ao uso dessa graça. E sobre eles era necessário que os fiéis de Cristo fossem instruídos por palavras e escrituras, tanto em relação ao que devem crer como ao que devem agir.
Por onde, devemos dizer, que a lei nova é principalmente uma lei infusa; e, secundariamente, uma lei escrita.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O escrito nos Evangelhos não contém senão o que diz respeito à graça do Espírito Santo, quer dispondo, quer ordenando para o uso dessa graça. Dispondo o intelecto pela fé, pela qual se obtém a graça do Espírito Santo, o Evangelho encerra o concernente à manifestação da divindade ou da humanidade de Cristo. Quanto ao afeto, ele contém a atinente ao desprezo do mundo, que torna o homem capaz da graça do Espírito Santo; pois, o mundo, i. é, os amantes do mundo, não pode receber o Espírito Santo, como diz a Escritura (Jo 14, 17). Quanto ao uso da graça espiritual, ele consiste nos atos virtuosos, aos quais freqüentemente o escrito do Novo Testamento exorta os homens.
RESPOSTA À SEGUNDA. — De dois modos pode haver algo de infuso no homem. — Primeiro, como fazendo parte da natureza humana. E nesse sentido a lei natural é nela infusa. — De outro modo, como lhe sendo acrescentado à natureza pelo dom da graça. E deste modo a lei nova é infusa no homem, e indica não só o que ele deve fazer, mas também o ajuda a cumprir a lei.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Ninguém nunca teve a graça do Espírito Santo, senão por fé explícita ou implícita em Cristo. Ora, pela fé em Cristo o homem pertence ao Novo Testamento. Por onde, aqueles a quem foi infundida a lei da graça pertenciam ao Novo Testamento.
Em seguida devemos tratar da lei do Evangelho, chamada lei nova. E primeiro, em si mesmo considerada. Segundo, comparada com a lei antiga. Terceiro, do que a lei nova contém.
Na primeira questão discutem-se quatro artigos:
29 de janeiro
I. — Se o Verbo de Deus é o Filho de Deus e todas as palavras de Deus possuem alguma semelhança com esse verbo, todos nós devemos:
1. Em primeiro lugar, ouvir com satisfação as palavras de Deus. Se ouvirmos com prazer as palavras de Deus, isto é sinal de que amamos a Deus.
2. Em segundo lugar, crer nas palavras de Deus, porque é assim que o Verbo de Deus habita em nós, isto é, Cristo, que é o Verbo de Deus. Lê-se no Apóstolo S. Paulo: « Habitar Cristo, pela fé, em vossos corações ». (Ef 3, 17). Lê-se também em S. João: « Não tendes o Verbo de Deus permanecendo em vós porque não acreditais n’Aquele que Ele enviou ». (Jo 5, 38).
3. Em terceiro lugar, convém que sempre tenhamos o Verbo de Deus, que permanece em nós, como objeto das nossas meditações. Não é conveniente apenas crer, mas é necessário também meditar, pois de outro modo, a fé não nos seria útil. A meditação sobre o Verbo de Deus é muito útil contra o pecado. Lê-se nos Salmos: « Escondi no meu coração a Vossa palavra, para não pecar contra vós » (Sl 118, 11). Lê-se, ainda, a respeito do homem justo: « Meditarei dia e noite na Sua Lei » (Sl 1, 2). Por isso sabemos que a Virgem Maria « conservava todas essas palavras, meditando sobre elas no seu coração » (Lc 2, 51).
28 de janeiro
« Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo » (Jo 4, 11)
I. — Pela altura ou profundidade do poço compreende-se a profundidade das sagradas Escrituras e da sabedoria divina: « Continua distante o que estava distante, e profundo, o profundo: quem o poderá sondar? » (Ecl 7, 24).
(IV. Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 3, qª 3, ad 3 ; q. 2, a 2, qª 1, 2, 4. III Cont. Gent., cap. CXXIII, CXXV).
O quarto discute-se assim. — Parece que a lei antiga estabeleceu inconvenientemente preceitos relativos à sociedade doméstica.
1. — Pois, tudo quanto o escravo é pertence ao dono, como diz o Filósofo. Ora, o que pertence a alguém deve pertencer-lhe perpetuamente. Logo, a lei ordenava inconvenientemente, que, no sétimo ano, os escravos ficassem livres.
2. Demais. — Assim como um asno ou um boi é propriedade do dono, assim também o escravo. Ora, a lei ordenava, que os animais extraviados fossem restituídos ao dono. Logo, ordenava inconvenientemente ao dizer (Dt 23, 15): Não entregarás a seu senhor o escravo que se tiver acolhido a ti.
3. Demais. — A lei divina deve ser mais misericordiosa que a humana. Ora, as leis humanas punem gravemente os que castigam demasiado asperamente os escravos ou as escravas. Ora, o mais áspero dos castigos é o que produz a morte. Logo, a lei estatuía inconvenientemente ao dizer (Ex 21, 20-21): O que ferir o seu escravo ou a sua escrava com uma vara, se sobrevier um ou dois dias, não ficará ele sujeito à pena, porque é dinheiro seu.
4. Demais. — O domínio do senhor sobre os escravo é diferente do domínio do pai sobre o filho como diz Aristóteles. Ora, é por causa do domínio servil, que o dono podia vender o escravo ou a escrava. Logo, a lei permitia inconvenientemente que o pai pudesse vender, para criada ou escrava, a sua filha.
5. Demais. — O pai tem poder sobre o filho. Ora, punir em excesso pertence a quem tem poder sobre o pecador. Logo, a lei mandava inconvenientemente, que o pai levasse o seu filho aos anciãos da cidade, para ser punido.
6. Demais. — O Senhor proibiu que se contraíssem casamentos com estrangeiros, e se dissolvessem os assim contraídos. Logo, a lei permitia inconvenientemente que se pudesse casar com as cativas estrangeiras.
7. Demais. — O Senhor ordenou que, ao se casarem, evitassem certos graus de consangüinidade e afinidade. Logo, a lei mandava inconvenientemente que o irmão do que morresse sem filhos lhe desposasse a mulher.
8. Demais. — Entre marido e mulher, havendo a máxima familiaridade, deve também haver a fidelidade mais firme. Ora, tal não poderá ser se o matrimonio for dissolúvel. Logo, o Senhor permitiu inconvenientemente, que o marido pudesse demitir a mulher, depois de escrito o libelo de repúdio; e que, ulteriormente, não pudesse retomá-la.
9. Demais. — Assim como a mulher pode romper a fidelidade para com o marido, assim também o pode o dono em relação ao escravo e o filho, ao pai. Ora, para investigar a injúria do escravo contra o senhor ou do filho contra o pai, a lei não instituiu nenhum sacrifício. Logo, parece supérfluo ter instituído o sacrifício da zelotipia, para investigar o adultério da mulher. Assim, pois, a lei estabeleceu inconvenientemente os preceitos judiciais relativos à sociedade doméstica.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Sl 18, 10): Os juízos do Senhor são verdadeiros, cheios de justiça em si mesmos.
Solução. — A sociedade doméstica se funda, como diz o Filósofo, na conveniência quotidiana, ordenada às necessidades da vida. Ora, a vida humana se conserva de dois modos. — Individualmente, enquanto cada homem constitui um indivíduo. E para conservar essa vida, ajuda-se o homem dos bens exteriores, donde tira a alimentação, a roupa e o mais, necessário para viver. E para tomar conta disso tudo precisa de escravos. — De outro modo, especificamente, pela geração, para o que precisa de mulher, que lhe gere filhos. Por isso, na comunhão doméstica, há três relações: a do dono para como o escravo; do marido para com a mulher; do pai para com os filhos. — Ora, a esses três casos, a lei antiga estabeleceu preceitos adequados.
Assim, mandava que os escravos fossem tratados benevolamente. Para não sofrerem trabalhos imoderados, o Senhor ordenou que (Dt 5, 14), no dia do sábado, descansasse o teu escravo e a tua escrava bem como tu. E, além disso, no infligir às penas, impôs que os mutiladores dos escravos os deixassem ir livres. E o mesmo estabeleceu relativamente à escrava com quem alguém tivesse casado. Também e especialmente determinou, que os escravos que faziam parte do povo, saíssem livres, no sétimo ano, com tudo o que trouxeram, mesmo com a roupa. Mandava ainda a lei que se lhes desse viático.
Quanto ao casamento, a lei estatuía que os homens se casassem com mulheres da sua tribo; isso para se não confundirem os lotes das tribos. E que um irmão se casasse com a mulher do seu irmão defunto e sem filhos. Isto para que quem não pode ter sucessores do seu sangue, tivesse-os ao menos por adoção, e assim não se lhe delisse totalmente a memória. Proibia também o casamento entre certas pessoas. Assim com mulheres estrangeiras, por causa do perigo da sedução; e com próximas parentas, pela reverência natural a elas devida. Estipulou também como os maridos deviam tratar a mulher com quem casaram. Assim, nem de leve deviam infamá-la; por isso mandava punir o que atribuía um falso crime à sua mulher. E também, por ódio dele contra a mulher, que o filho não sofresse nenhum detrimento. E ainda, que, por ódio, o marido não castigasse a mulher, mas antes, escrevendo um libelo, a repudiasse. E, enfim, para que, desde o princípio, os cônjuges se ligassem com grande amor, mandava que a quem tivesse casado de pouco não se lhe impusesse nenhum encargo público, a fim de poder livremente gozar da convivência com sua mulher.
Quanto aos filhos, instituiu que os pais lhes dessem educação, instruindo-os na fé. Por isso diz (Ex 12, 26 ss): Quando os vossos filhos vos disserem: Que rito é este? Responder-lhes-eis: É a vítima da passagem do Senhor. E que lhes ensinassem os bons costumes. Por isso, os pais deviam dizer-lhes (Dt 21, 20): Despreza ouvir as nossas admoestações, passa a vida em comezainas e dissoluções e banquetes.
Donde a resposta à primeira objeção. — O Senhor não quis que os filhos de Israel, por Ele libertos da escravidão, e transferidos para o serviço divino, ficassem perpetuamente escravos. Por isso diz a Escritura (Lv 25, 39): Se, constrangido da pobreza, se vender a ti teu irmão, não o oprimirás com a servidão de escravo; mas o tratarás como jornaleiro e colono; porque eles são meus servos e eu os tirei da terra do Egito, não se vendam em qualidade de escravos. Por onde, como eram escravos, não absoluta, mas relativamente falando, terminado o prazo, eram mandados livres.
Resposta à segunda. — A ordenação referida entende-se do escravo procurado pelo dono para matá-lo, ou para algum ministério pecaminoso.
Resposta à terceira. — A lei distinguia se os ferimentos feitos nos escravos eram certos ou incertos. Se certos, impunha uma pena. Assim, no caso de mutilação, impunha a pena da perda do escravo, que devia ser posto em liberdade; no de morte, a pena do homicídio, quando o escravo morria nas mãos do dono, que o castigava. Se porém a lesão fosse certa, mas, só aparente, i. é, se o escravo castigado não morria imediatamente, mas, só depois de alguns dias, a lei não infligia nenhuma pena, por ser ele propriedade do dono. Pois, em tal caso era incerto se morrera do ferimento. Se porém o ferido fosse um homem livre, que não morrera imediatamente, mas andasse encostado ao seu bordão, não era réu de homicídio quem o feriu, mesmo que o ferido viesse a morrer subseqüentemente. Mas estava obrigado a pagar as despesas que a vítima fez com os médicos. Ora, isto não se dava com o escravo, propriedade do dono; porque tudo quanto o escravo tinha, e até mesmo a sua pessoa, era propriedade daquele. Por isso, a lei dava como causa de não sofrer o dono a pena pecuniária, ser o escravo dinheiro seu.
Resposta à quarta. — Como já se disse (ad 1), nenhum judeu podia possuir outro como escravo, absolutamente, mas só, de certo modo, como mercenário, por algum tempo. E, assim, a lei permitia que, por pobreza premente, o pai vendesse o filho ou a filha. Isto o dizem claramente as palavras mesmas da lei: Se alguém vender sua filha para ser serva, esta não sairá como costumam sair às escravas. E do mesmo modo, alguém podia vender, não só o filho, mas também a si mesmo, mais como mercenário, que como escravo, conforme aquilo (Lv 25, 39-40): Se, constrangido da pobreza, se vender a ti teu irmão, não o oprimirás com a servidão de escravo, mas o tratarás como jornaleiro e colono.
Resposta à quinta. — Como diz o Filósofo, o governo paterno só tem o poder de admoestar; mas não tem poder coativo, pelo qual podem ser coibidos os rebeldes e os contumazes. Por isso, neste caso, a lei mandava que o filho contumaz fosse punido pelos governadores da cidade.
Resposta à sexta. — O senhor proibia que as mulheres estrangeiras fossem tomadas em matrimônio, por causa do perigo de sedução, afim de não caírem na idolatria. E especialmente o proibia se essas mulheres pertencessem às nações vizinhas, a cujos ritos os judeus podiam mais facilmente se apegar. Aquela porém, que quisesse deixar o culto dos ídolos e converter-se ao culto da lei, podia ser tomada em matrimônio. Tal foi o caso de Rute, que casou com Booz, a qual disse à sua sogra (Rt 1, 16): O teu povo será o meu povo e o teu Deus, o meu Deus. Por isso a cativa não podia ser aceita como esposa, senão depois de raspada a cabeleira, cortadas as unhas e deixadas às vestes com que foi prisioneira, ter chorado o pai e a mãe; o que significava a perpétua rejeição da idolatria.
Resposta à sétima. — Como diz Crisóstomo, a morte era mal inconsolável para os judeus, que faziam tudo para a vida presente. Por isso foi-lhes estatuído que ao defunto se lhe nascesse um filho, do irmão; o que era uma como mitigação da morte. Determinava-se porém que ninguém, a não ser o irmão ou um parente próximo, desposasse a mulher do defunto, porque, do contrário, o que nascesse de tal união não era considerado filho do que morrera. Além disso, um estranho não tinha tanto interesse em perpetuar a família do defunto, como o tinha o irmão, ao qual também, pelo parentesco, era justo que assim procedesse. Por onde é claro que o irmão, ao desposar a mulher de seu irmão, fazia às vezes da pessoa do defunto.
Resposta à oitava. — A lei permitia o repúdio da esposa; não que isso fosse absolutamente justo, mas por causa da dureza dos judeus, como diz o Senhor (Mt 19, 8). Mas isto devemos versar mais desenvolvidamente, quando tratarmos do matrimonio (IIa IIae, q. 67).
Resposta à nona. — A esposa quebra a fé do matrimonio pelo adultério; e isso facilmente, levada do prazer, e às escondidas, porque o olho do adúltero observa a escuridão como diz a Escritura (Jó 24, 15). Mas, não há a mesma relação entre o pai e o filho que entre o escravo e o senhor. Porque a infidelidade entre eles não procede do desejo do prazer, mas antes, da malícia; nem pode ficar oculto, como a infidelidade da mulher adúltera.
O terceiro discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais relativos aos estranhos não foram convenientemente estabelecidos.
1. — Pois, diz Pedro (At 10, 34-35): Tenho na verdade alcançado que Deus não faz acepção de pessoas; mas que em toda nação aquele que teme a Deus e obra o que é justo, esse lhe é aceito. Ora, os que são aceitos de Deus, não devem ser excluídos da sua igreja. Logo, a lei mandava inconvenientemente; que o Amonita e o Moabita não entrarão jamais na congregação do Senhor, ainda depois da décima geração. E ao contrário, no mesmo capítulo, ordena, a respeito de certas nações (Dt 23, 7): Não abominarás o Idumeu, porque é teu irmão, nem o Egiptano, porque tu foste estrangeiro na sua terra.
2. Demais. — Pelo que não depende de nós não podemos merecer nenhuma pena. Ora ser eunuco ou nascer de mulher pública não depende de ninguém. Logo, a lei ordena inconvenientemente (Dt 23, 1-2): O eunuco e o que nasceu de mulher pública não entrarão na congregação do Senhor.
3. Demais. — A lei antiga ordenou misericordiosamente, que o estrangeiro não fosse afligido, quando diz (Ex 22, 21): Não molestarás nem afligirás o estrangeiro, porque também vós mesmos fostes estrangeiros na terra do Egito; e ainda (Ex 23, 9): Não será molesto ao estrangeiro, porque vós sabeis que almas são as dos estrangeiros, pois que também vós o fostes na terra do Egito. Ora, aflige a outrem quem o aprime com usuras. Logo, a lei permitiu inconvenientemente emprestar usurariamente dinheiro aos outros.
4. Demais. — Muito mais nossos próximos são os homens que as árvores. Ora, devemos, aos que nos são mais próximos, ter mais afeto e mostrar os efeitos do amor, conforme a Escritura (Sr 13, 19): Todo animal ama ao seu semelhante; assim também todo homem ama ao seu próximo. Logo, o Senhor mandou, inconvenientemente, que matassem todos os prisioneiros das cidades inimigas e que entretanto não cortassem as árvores frutíferas.
5. Demais. — O bem comum deve, por natureza, ser preferido por todos ao bem particular. Ora, na guerra feita contra os inimigos visa-se o bem comum. Logo, a lei mandava, inconvenientemente que, na iminência de um combate, voltasse para a casa o que, p. ex., acabou de edificar um prédio novo, ou o que plantou uma vinha, ou o que desposou uma mulher.
6. Demais. — Ninguém deve tirar vantagem de uma culpa. Ora, é culpado o homem medroso e de coração pávido; pois falta-lhe a virtude da fortaleza. Logo, eram inconvenientemente escusados dos trabalhos do combate os medrosos e os pávidos de coração.
Mas, em contrário, diz a Divina Sabedoria (Pr 8, 8): Justos são todos os meus discursos: neles não há coisa má nem depravada.
Solução. — Podem os homens ter com os estrangeiros dupla relação: uma, pacífica; outra hostil. E a lei estabeleceu preceitos convenientes para regularem ambos esses casos.
Assim, aos judeus se oferecia tríplice ocasião de conviver pacificamente com os estrangeiros. — Primeiro, quando, peregrinos, os estrangeiros passavam pelas terras deles. — Segundo, quando vinham para elas afim de aí habitarem ádvenas. E em ambos os casos a lei estabeleceu preceitos de misericórdia. Assim diz (Ex 22, 21): Não molestarás o estrangeiro; e (Ex 22, 9): Não serás molesto ao estrangeiro. — Terceiro, quando alguns estrangeiros queriam ser admitidos totalmente ao convívio e rito deles, no que se atendia a uma certa ordem. Assim, não eram logo recebidos como cidadãos; do mesmo modo certos povos gentios tinham estabelecido, que não fossem considerados cidadãos senão os que tivessem tido avós ou bisavós com essa qualidade, conforme o refere o Filósofo. E isto porque se os estrangeiros, logo ao chegarem, fossem admitidos ao gozo dos direitos dos nacionais, poderiam dar lugar a muitos perigos. Assim, não tendo ainda um amor comprovado pelo bem público, poderiam atentar contra o povo. Por isso a lei estabeleceu, que podiam ser recebidos a fazer parte do povo, na terceira geração, os que provinham de certas nações, de alguma afinidade com os judeus. Tais eram os egípcios, entre os quais nasceram e foram criados, e os idumeus, filhos de Esaú, irmão de Jacó. Outras porém, como os amonitas e os moabitas, que se portaram hostilmente para com eles, nunca os admitiam no seu seio. Enfim os amalecitas, que foram os seus piores inimigos, e com os quais não tinham nenhuma cognação, eles os consideravam como inimigos perpétuos. Por isso, diz a Escritura (Ex 17, 16): A guerra do Senhor será contra Amalec de geração em geração.
Também, quanto às relações hostis como os estrangeiros, a lei estabeleceu preceitos adequados. — Assim, primeiro, instituiu que se fizesse a guerra justamente, mandando que, quando fossem atacar uma cidade, primeiro oferecessem a paz. — Segundo, que continuassem fortemente a guerra empreendida, confiando em Deus; e para ser isso melhor observado, instituiu que, na iminência do combate, o sacerdote os animasse, prometendo o auxílio de Deus. — Terceiro, ordenou que se removessem os impedimentos ao combate, mandando voltassem para a casa certos que podiam causar tais impedimentos. — Quarto, instituiu que usassem moderadamente da vitória, poupando mulheres e crianças, e também não cortando as árvores frutíferas da região.
Donde a resposta à primeira objeção. — A lei não excluía do culto de Deus os homens de nenhuma nação, e nem do que dizia respeito à salvação da alma. Assim, diz (Ex 12, 48): Se algum peregrino quiser passar para a vossa terra e celebrar a Páscoa do Senhor, circuncidem-se primeiro todos os seus varões, e então o celebrará como é devido e será como natural da mesma terra. Mas, na ordem das coisas temporais, no concernente à comunidade do povo, nela não se admitia nenhum estrangeiro imediatamente, pela razão supra dita. Mas alguns, como os egípcios e os idumeus, só depois da terceira geração; outros eram excluídos perpetuamente, em detestação da culpa passada, como os moabitas, os amonitas e os amalecitas. Pois, assim como um homem é punido pelo pecado que cometeu, afim de os outros, com esse exemplo, temerem e se absterem de pecar; assim também, por algum pecado, uma nação ou cidade pode ser punida, para as outras se absterem de pecado semelhante. Podia porém alguém, excepcionalmente, ser admitido no grêmio do povo, por algum ato de virtude. Assim, como se lê na Escritura (Jd 14, 6), Aquior, o general dos filhos de Amon, foi incorporado no povo de Israel, e toda a descendência da sua linhagem. E semelhantemente, Rute moabita, que era mulher virtuosa. Embora se possa dizer, que a referida proibição se aplicava aos homens e não, às mulheres, que não podem ser, absolutamente falando, cidadãs.
Resposta à segunda. — Como diz o Filósofo, um cidadão pode ser considerado à dupla luz: absoluta e relativamente. Do primeiro modo, é cidadão quem pode praticar atos próprios de cidadão; p. ex., tomar parte no conselho ou nos juízos do povo. Do segundo, pode ser considerado cidadão todo habitante da cidade, mesmo os escravos, as crianças e os velhos, sem a capacidade que lhes dê poder sobre o pertencente à comunidade. Por isso, também os espúrios eram excluídos, por causa da sua origem vil, da igreja e do grêmio do povo, até a décima geração. Semelhantemente, os eunucos, por não poderem ter a honra de serem pais; e, sobretudo, no povo judeu, em que o culto de Deus era conservado segundo a geração carnal. Pois, mesmo entre os gentios, os que geravam muitos filhos eram distinguidos com alguma honra insigne, como diz o Filósofo. Contudo, no atinente à graça de Deus, os eunucos, bem como os estrangeiros, não eram separados dos demais, como se disse. Assim, diz a Escritura (Is 56, 3): E não diga o filho do estrangeiro, o qual se une ao Senhor, proferindo: O senhor com uma divisão me separará do seu povo. E não diga o eunuco: Eis-me aqui um lenho seco.
Resposta à terceira. — Receber usuras dos outros, não estava na intenção da lei, que apenas o permitia, por causa da inclinação dos judeus para a avareza. E para se comportar mais pacificamente para com os estrangeiros dos quais auferiam lucros.
Resposta à quarta. — A lei fazia uma certa diferença relativa às cidades inimigas. Umas eram remotas e não do número das que lhes eram prometidas. E nessas, uma vez vencidas, matavam os varões que lutaram contra o povo de Deus; poupando porém mulheres e crianças. Mas, das cidades vizinhas, que lhes estavam prometidas, mandavam-se matar todos, por causa das iniqüidades dos antepassados, para punir as quais o Senhor mandava o povo de Israel, como, por assim dizer, executor da divina justiça. Assim, diz a lei (Dt 9, 5): Porque elas obraram impiamente, por isso foram destruídas à tua entrada. Quanto às árvores frutíferas mandava-se fossem poupadas, para utilidade do próprio povo, a cujo bem estar devia servia a cidade com o seu território.
Resposta à quinta. — O construtor de uma casa nova, ou o plantador da vinha, ou o que desposou uma mulher eram excluídos do combate, por duas razões. Primeiro, por os homens costumarem amar mais o que acabam ou estão a ponto de possuir, e por isso temendo muito perdê-lo. Por onde, era provável que, por causa de tal amor, também temessem muito a morte, e assim fossem menos fortes na luta.
Segundo, porque, como diz o Filósofo, é considerado um infortúnio perdermos um bem que estávamos a ponto de possuir. Ora, os parentes, que ficavam, haviam de se contristar demasiado com a morte dos que foram para a guerra, sem poderem tomar conta dos bens que estavam a ponto de possuir. E também o povo, considerando nisso, havia de ficar horrorizado. Por isso, tais homens ficavam livres do perigo da morte, afastados da luta.
Resposta à sexta. — os medrosos eram mandados para a casa não em benefício próprio, mas para ao povo não advirem danos, da presença deles. Pois o temor e a fuga dos mesmos provocariam também os outros a temer e a fugir.
O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais relativos ao convívio social foram inconvenientemente estabelecidos.
1. — Pois, os homens não podem conviver pacificamente, se um se apoderar do pertencente a outro. Ora, isto parece estar permitido na lei, quando diz (Dt 23, 24): Se entrares na vinha de teu próximo, come quantas uvas quiseres. Logo, a lei antiga não cuida convenientemente da paz social.
2. Demais. — Muitos estados e reinos foram destruídos sobretudo por se ter permitido às mulheres o direito de propriedade, como diz o Filósofo. Ora, isto foi estabelecido pela lei antiga (Nm 27, 8): Quando algum homem morrer sem filhos, a herança passará à sua filha. Logo, a lei não cuidou convenientemente do bem do povo.
3. Demais. — A sociedade humana se conserva principalmente por os homens, comprando e vendendo, comunicarem-se entre si os bens de que precisam, como diz Aristóteles. Ora, a lei antiga tirou o poder de vender, pois, ordenava que a propriedade vendida revertesse ao vendedor no qüinquagésimo ano do jubileu, como está claro na Escritura (Lv 25, 28). Logo, neste ponto, a lei preceituou inconvenientemente ao povo judeu.
4. Demais. — As necessidades humanas exigem, antes de tudo, que os homens estejam prontos a fazer concessões mútuas. Ora, essa disposição se elimina se os credores não restituem o que recebem. Por isso, diz a Escritura (Sr 29, 10): Muitos deixaram de emprestar, não por desumanidade, mas porque temeram ser defraudados sem o merecerem. Ora, a lei permitia isso. Primeiro, porque mandou (Dt 15, 2): Aquele a quem seu amigo ou seu próximo ou seu irmão dever alguma coisa não a poderá repetir, porque é o ano da remissão do Senhor. E noutro lugar (Ex 22, 15) diz, que, presente o dono, se o animal emprestado tiver morrido, não estará obrigado a restituí-lo. Segundo, porque se anula a garantia fundada no penhor; pois, diz a lei (Dt 24, 10): Quando requereres de teu próximo alguma coisa que ele te deve, não entrarás em sua casa para dela levares algum penhor; e ainda (Dt 24, 12-13): Não pernoitará em tua casa o penhor, mas, imediatamente lho tornarás a dar. Logo, a lei dispôs insuficientemente sobre o mútuo.
5. Demais. — Como a defraudação do depósito leva a um perigo máximo, é mister empregar nisso a máxima cautela. Por isso, diz a Escritura (2 Mc 3, 15): Os sacerdotes invocavam aquele que está do céu dominando tudo, que fez uma lei sobre os depósitos, rogando-lhe que os guardasse salvos para aqueles que os tinham depositado. Ora, nos preceitos da lei antiga estabelece-se uma pequena cautela relativa aos depósitos. Se o depósito for perdido, ficará garantido pelo juramento do depositário. Logo, neste ponto, a lei não dispôs convenientemente.
6. Demais. — Assim como um mercenário aluga o seu trabalho, assim outros alugam a casa ou bens semelhantes. Ora, não era necessário que o locatário pagasse imediatamente o preço da coisa alugada. Logo, também era muito duro o seguinte preceito da lei (Lv 19, 13): Não deterás em teu poder até o dia seguinte a paga do jornaleiro.
7. Demais. — Como freqüentemente se tem necessidade do juiz, deve ser fácil o acesso ao mesmo. Logo, a lei estatuiu inconvenientemente, que fossem a um lugar determinado a fim de obter julgamento nas suas questões.
8. Demais. — É possível não só dois, mas ainda três ou mais concordarem em mentir. Logo, inconvenientemente estabelece a lei (Dt 19, 15): tudo passará por constante sobre o depoimento de duas ou três testemunhas.
9. Demais. — A pena deve ser infligida conforme a gravidade da culpa. Por isso diz a lei (Dt 25, 2): O número dos golpes regular-se-á pela qualidade do pecado. Ora, a certas culpas iguais a lei estatuiu penas desiguais: Assim, quando diz (Ex 22, 1): o ladrão restituirá cinco bois por um boi e quatro ovelhas por uma ovelha. Também alguns pecados não muito graves punia com pena grave; assim, quem era colhido enfeixando lenha no sábado era apedrejado (Nm 15, 32 ss). Também o filho insolente, porque cometeu um pequeno delito, i. é, porque passava a vida em comezainas e banquetes, mandava-o lapidar (Dt 21, 18 ss). Logo, as penas da lei foram inconvenientemente estatuídas.
10. Demais. — Diz Agostinho: as leis estabelecem oito gêneros de penas, segundo escreve Túlio e são os seguintes: a multa, os ferros, os açoites, o talião, a infâmia, o exílio, a morte, a servidão. Dessas, a lei antiga estatuiu algumas. Assim, a multa, quando o ladrão era condenado a pagar o quíntuplo ou o quádruplo. Os ferros, quando mandava encerrar num cárcere o delinqüente. Os açoites, quando determina (Dt 25, 2): Se virem que o delinqüente merece açoites, deitá-lo-ão em terra e fá-lo-ão açoitar na sua presença. A infâmia era aplicada contra aquele que, não querendo desposar a mulher do seu irmão defunto, esta lhe tirava o sapato e lhe cuspia na face. (Dt 25, 9) Também aplicava a pena de morte, quando diz (Lv 20, 9): O que amaldiçoar o seu pai ou a sua mãe morra de morte. E enfim, a de talião (Ex 21, 24): Olho por olho, dente por dente. Logo, inconvenientemente, a lei deixava de infligir as outras duas penas — a da escravidão e a do exílio.
11. Demais. — A pena só é devida à culpa. Ora, os brutos não são passíveis de culpa. Logo, inconvenientemente a lei lhe infligia pena, quando diz (Ex 21, 29): O boi, que matar um homem ou uma mulher, será apedrejado; e (Lv 20, 16): A mulher que se ajuntar com qualquer bruto será morta juntamente com ele. Donde se conclui que a lei antiga ordenou inconvenientemente sobre o convívio social dos judeus.
12. Demais. — O Senhor mandou, que o homicídio fosse punido com a morte do homicida. Ora, a morte de um bruto tem muito menos importância que a de um homem. Logo, a pena do homicídio não pode ser suficientemente compensada pela de um bruto. Logo, é inconveniente a seguinte disposição da lei (Dt 21, 1-4): Quando for achado o cadáver de um homem que foi morto, sem que se saiba quem foi o matador, sairão os anciões da cidade mais vizinha e tomarão da manada uma novilha, que não tenha ainda carregado como o jugo nem fendido a terra como o relho do arado; e levá-lo-ão a um vale áspero e pedregoso, que nunca tivesse sido lavrado nem semeado, e ali cortarão o pescoço à novilha.
Mas, em contrário, a Escritura lembra o seguinte, como benefício (Sl 147, 20): Não fez assim a toda outra nação e não lhes manifestou o seu juízo.
Solução. — Como diz Agostinho, citando Túlio, um povo é a associação de muitos indivíduos, baseada no consenso jurídico e na utilidade comum. Por onde, a noção de povo implica uma comunhão de homens ordenada por justos preceitos legais. Ora, há duas espécies de comunhão entre os homens. Uma fundada na autoridade do príncipe; outra, na vontade própria dos indivíduos. E como cada um pode dispor do que lhe pertence, é necessário que, pela vontade do príncipe, a justiça se exerça entre os seus súditos e penas sejam infligidas aos malfeitores. Por outro lado, aos indivíduos lhes pertence o que possuem; e portanto, por autoridade própria, podem dispor disso, uns em relação aos outros, por compra, venda, doação e modos semelhantes.
Ora, sobre uma e outra espécie de comunhão a lei ordenou suficientemente. Assim, estabeleceu juízes (Dt 16, 18): Estabelecerás juízes e magistrados em todas as tuas portas, para que julguem o povo com retidão de justiça. Instituiu também a ordem justa do julgamento (Dt 1, 16-17): Julgai o que for justo, ou ele seja cidadão ou estrangeiro: nenhuma distinção haverá de pessoas. Evitou ainda a ocasião de juízos injustos, proibindo aos juízes aceitarem dádivas (Ex 23, 8; Dt 16, 19). Determinou, além disso, o número duplo ou triplo das testemunhas. E enfim, estabeleceu penas certas pelos diversos delitos, como depois se dirá (ad 10).
Quando à propriedade, é ótimo, como diz o Filósofo, que ela seja exercida separadamente; e o uso dela, em parte, comum, e, em parte, dividido, por vontade dos proprietários.
Ora, estes três modos de possuir foram estabelecidos pela lei antiga. — Pois, primeiro, a propriedade foi dividida entre particulares (Nm 33, 53-54): Eu vos dei a terra para a possuirdes, a qual repartireis entre vós por sorte. Ora, como diz o Filósofo, muitas cidades foram destruídas pelos modos irregulares de propriedade. Por isso a lei estabeleceu tríplice remédio para regular a propriedade. — O primeiro, que fosse dividida igualmente pelo número de homens; por isso se diz: Aos que forem em maior número dareis maior porção, e aos que forem menos, porção mais pequena. — O segundo, que a propriedade não pudesse ser alienada perpetuamente, mas que, depois de certo tempo, revertesse aos seus proprietários para que não se confundissem os lotes possuídos. — O terceiro, para evitar a confusão, de os parentes próximos sucederem aos mortos. No primeiro grau, o filho; no segundo, a filha; no terceiro, os irmãos; no quarto, os tios paternos; no quinto, quaisquer outros parentes próximos. E para conservar ulteriormente a distinção dos lotes, a lei estatuiu que as mulheres herdeiras se casassem com homens das suas tribos.
Quanto ao segundo modo de propriedade a lei instituiu que sob certos aspectos o uso das coisas fosse comum. — Primeiro, quanto ao cuidado delas, preceitua (Dt 22, 1-4): Vendo extraviados o boi ou a ovelha de teu irmão, não passarás de largo, mas conduzi-los-ás a teu irmão; e assim em casos semelhantes. — Segundo, quanto ao fruto. Pois, era permitido em comum a todos entrar lìcitamente na vinha do amigo e comer dela, contanto que não levasse frutos para fora. E mandava, especialmente, que se deixassem para os pobres as gamelas esquecidas, os frutos e os cachos de uva remanescentes (Lv 19, 9; Dt 24, 19). E também eram repartidos, os frutos nascidos no sétimo ano.
Quanto ao terceiro modo, a lei estatuía a repartição feita pelos proprietários. — Uma, puramente gratuita (Dt 14, 28-29): Todos os três anos separarás outro dízimo; e virão os levitas e o peregrino e o órfão e a viúva e comerão e se fartarão. — Outra, em recompensa da utilidade, como, por compra e venda, locação e condução, mútuo e, ainda, por depósito. E a respeito de tudo isso encontram-se ordenações certas na lei.
Por onde claro fica, que a lei antiga ordenou suficientemente sobre as relações sociais do povo judeu.
Donde a resposta à primeira objeção. — Como diz o Apóstolo (Rm 13, 8), aquele que ama ao próximo tem cumprido com a lei; porque todos os preceitos da lei, sobretudo os ordenados ao próximo, o foram para o fim de os homens se amarem uns aos outros. Ora, do amor procede ao repartirem entre si os seus bens, conforme a Escritura (1 Jo 3, 17): O que vir a seu irmão ter necessidade e lhe fechar as suas entranhas, como está nele à caridade de Deus? Por isso a lei visava acostumar os homens a repartirem facilmente entre si os seus bens; e também o Apóstolo manda aos ricos dêem facilmente e repartam (1 Tm 6, 18). Ora, não reparte facilmente quem não suporta que o próximo tire, sem causar grande detrimento, um pouco dos seus bens. Por isso, a lei ordenou que fosse lícito ao que entrasse na vinha do próximo comer quantas uvas quisesse, sem levar consigo para fora, para que isso não fosse ocasião de causar graves danos, que iria perturbar a paz. Pois, entre disciplinados, ela não se perturba por tirar alguém um pouco dos bens de outrem, o que, ao contrário, confirma a amizade e acostuma os homens a repartir facilmente.
Resposta à segunda. — A lei determinou que só na falta de filhos varões as mulheres sucedessem nos bens paternos. Pois então era necessário que a sucessão fosse concedida às mulheres, para consolação do pai, a quem seria penoso ver a sua herança passar completamente a estranhos. Mas a lei acrescenta neste ponto a cautela necessária ordenando que as mulheres, sucedendo na herança paterna, casassem com homens da sua tribo, para se não confundirem os lotes das tribos.
Resposta à terceira. — Como diz o Filósofo, a regulamentação da propriedade contribui muito para a conservação da cidade ou da nação. Por isso, como ele ainda diz, certas nações gentias estatuíram, que ninguém pudesse vender as suas propriedades, senão por manifesta necessidade. Pois, se as vendessem a cada passo, poderia acontecer viesse à propriedade a cair totalmente em mãos de poucos; e então, haveria necessariamente a cidade ou a região de ficar vazia de habitantes. Por isso a lei antiga, a fim de evitar esse perigo, ordenou de modo a satisfazer às necessidades dos homens, permitindo a venda das propriedades durante um certo tempo. Mas simultaneamente evitou o perigo, ordenando que depois desse tempo, a propriedade vendida revertesse ao vendedor. E assim o fez para os lotes se não confundirem, e permanecesse sempre a mesma distinção determinada das tribos. — Mas como os edifícios urbanos não constituíam lotes distintos, a lei permitia que como os bens móveis, pudessem ser vendidos definitivamente. Pois, não era fixo o número das casas da cidade, como era certa a medida dos lotes, que não podia ser aumentada. Ao passo que o podia o número das casas urbanas. As casas, porém que não eram urbanas e que não tinham muros em torno do terreno, não podiam ser vendidas em caráter perpétuo; porque tais casas não eram construídas senão para a cultura e a guarda da propriedade. Por isso e justamente, a lei estabeleceu a mesma disposição para elas que para os lotes.
Resposta à quarta. — Como já se disse, a intenção da lei, nos seus preceitos, era levar a se acostumarem os homens a satisfazer mutuamente às necessidades uns dos outros. Por isso sobretudo fomenta a amizade. E essa facilidade de se proverem uns aos outros ela quis estabelecer, não só no atinente às prestações gratuitas e absolutas, mas ainda ao concedido por mútuo. Porque este contrato é o mais freqüente e o mais necessário ao maior número.
Por isso, institui muitas disposições para facilitar essa transação. Primeiramente, determinou que fossem os judeus fáceis em fazer empréstimo, nem de tal se retraíssem por aproximar-se o ano da remissão. — Segundo, não gravassem, aquele a quem concedessem mútuo, com usuras, ou recebendo como penhor coisas absolutamente necessárias à vida, e se as recebessem, que as restituíssem imediatamente. Pois assim se lê na Escritura (Dt 23, 19): Não emprestarás com usura a teu irmão; e (Dt 24, 6): Não receberás em lugar do penhor nem a mó de cima nem a de baixo, porque te deu por penhor a sua própria vida; e ainda (Ex 22, 26): Se receberes do teu próximo em penhor a sua capa, restitua antes do sol posto — Terceiro, não exigissem o pagamento importunamente. Assim, estatui (Ex 22, 25): Se emprestares algum dinheiro ao necessitado do meu povo que habita contigo, não o apertarás como um exator. E por isso também ordenava (Dt 24, 10-11): Quando requereres de teu próximo alguma coisa que ele te deve, não entrarás em sua casa para dela levares algum penhor; mas estarás de fora e ele te trará o que tiver. Isso, ou porque a casa, sendo o nosso mais seguro abrigo, é molesta ao dono que lha invadam ou para não permitir ao credor tomasse o penhor que quisesse, mas antes, de modo que o devedor desse como penhor aquilo de que menos precisasse. — Em quarto lugar, instituiu que, no sétimo ano, os débitos fossem completamente perdoados. Pois era provável que os que podiam restituir, comodamente, o fizessem antes do sétimo ano e não defraudasse, voluntariamente, o prestamista. Se porém fossem os devedores absolutamente insolventes, os credores lhes deviam de perdoar o débito em virtude do mesmo amor por que deviam dar de novo, por causa de indigência.
Quanto aos animais emprestados, a lei estatuiu o seguinte. Se morressem ou se estropiassem, na ausência daquela a quem foram emprestados, e por negligência do mesmo, era ele obrigado à restituição. Se porém morressem ou se estropiassem, apesar da sua presença e do cuidado diligente, não estava obrigado a restitui. E sobretudo, se tivessem sido alugados. Porque, então, como podiam morrer e estropiar-se em poder do mutuante, este, conseguida a conservação do animal, como já tinha tirado lucro do mútuo, não teria mutuado de graça. Isto principalmente devia observar-se quando os animais eram tomados por aluguel. Porque então, o uso deles, sendo pago por um certo preço, nada mais se devia pagar, com a restituição dos mesmos, salvo por algum dano resultante da negligência do prestamista. Se porem os animais não tivessem sido tomados de aluguel, poderia haver uma certa eqüidade, de modo a pelo menos se pagar tanto quanto pudesse dar de aluguel o uso do animal morto ou estropiada.
Resposta à quinta. — O mútuo e o depósito diferem em ser o primeiro feito em benefício do mutuado, enquanto o segundo, em benefício do depositante. Por isso, em certos casos, havia maior obrigação de restituir o mútuo do que o depósito. Pois este podia perder-se de dois modos. Por uma causa inevitável ou natural; p. ex., se o animal depositado morreu ou estropiou-se. Ou por uma causa extrínseca, p. ex., se foi tomado por inimigos ou devorado por uma fera. E neste caso, havia obrigação de restituir ao dono o que restava do animal morto. Nos demais casos supra-referidos, não havia nenhuma obrigação de restituir; mas somente a de prestar juramento, para evitar a suspeita de fraude. De outro modo, o depósito podia ser perdido por uma causa evitável, p. ex., o furto. E então, por causa da sua negligência, o depositário tinha obrigação de restituir. Mas, como já dissemos (a. 4), quem recebia um animal em mútuo, estava obrigado a restituí-lo, mesmo que, na sua ausência, o animal tivesse morrido ou ficado estropiado. Assim, respondia por uma negligência menor que a por que respondia o depositário, que era só a do furto.
Resposta à sexta. — Os mercenários, que alugavam o seu trabalho, eram pobres e tiravam dele o sustento quotidiano. Por isso a lei sabiamente ordenou que logo se lhes pagassem o salário, para lhes não faltar o sustento. Mas os que alugavam outras coisas eram em geral ricos, e assim não precisavam do preço da locação para o sustento quotidiano. Por onde, não é em ambos os casos a mesma a situação.
Resposta à sétima. — Os juízes são constituídos para resolverem os casos duvidosos de justiça entre os homens. Ora, pode haver dupla dúvida. — Uma, entre pessoas simples. E para resolvê-la a lei ordenava (Dt 16, 18): Estabelecerás juízes e magistrados em todas as tribos, para que julguem o povo em retidão de justiça. — Mas também, pode haver dúvidas mesmo entre peritos. E, para o evitar, a lei determinou que todos buscassem o lugar principal escolhido por Deus, em que haveria de estar o sumo sacerdote, para resolver as dúvidas relativas às cerimônias do culto divino; e estabeleceu um juiz sumo do povo, que resolvesse sobre o atinente aos julgamentos entre as partes. Assim também hoje, por apelação ou consulta, as causas dos juízes inferiores são deferidas aos superiores. Por isso diz a lei (Dt 17, 8-9): Se acontecer que penda diante de ti algum negócio difícil e escabroso, e vires que dentro das tuas portas são vários os pareceres dos juízes, levanta-te e sobe ao lugar que o Senhor teu Deus tiver escolhido; e encaminhar-te-ás aos sacerdotes da linhagem da Levi e ao juiz que nesse tempo for. Mas, como esses julgamentos de causas duvidosas não sucediam freqüentemente, o povo não ficava com isso onerado.
Resposta à oitava. — Os negócios humanos não são susceptíveis de prova demonstrativa e infalível; mas basta uma probabilidade conjectural, como a de que usam os oradores. Por onde, embora seja possível duas ou três testemunhas combinarem para mentir, não é contudo fácil nem provável que o façam. Por isso recebesse o testemunho como verdadeiro, e sobretudo se neles não vacilarem e não forem, por outras causas, suspeitas. E assim, porque as testemunhas não se desviavam facilmente da verdade, a lei instituiu que fossem diligentíssimamente examinadas, e punidas gravemente as falsas. Havia ainda alguma razão de determinar-lhes o número, que é significar a infalível verdade das Pessoas divinas. Estas são às vezes consideradas como duas, porque o Espírito Santo é o nexo entre elas; ora, como três, segundo Agostinho, comentando aquilo da Escritura (Jo 8, 17): E na vossa mesma lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro.
Resposta à nona. — Não só pela gravidade da culpa, mas também por outras inflige-se uma pena grave. Primeiro, pela gravidade do pecado; pois, todas as condições sendo iguais, ao maior pecado é devido pena mais grave. Segundo, por causa do costume no pecar; porque de pecados habituais os homens não se afastam facilmente senão por meio de penas graves. Terceiro, por causa da intensa concupiscência ou deleitação no pecado; coisas de que se os homens não apartam facilmente, senão por causa de penas graves. Quarto, pela facilidade em cometer o pecado e perdurar nele; pois tais pecados, quando manifestados, devem ser sobretudo punidos para aterrorizar os outros pecadores.
Quanto à gravidade do pecado, devemos atender a um quádruplo grau, ainda relativamente a um mesmo fato. — O primeiro era quando alguém cometia o pecado involuntariamente. Então, se fosse absolutamente involuntário, havia escusa completa da pena. Por isso, diz a lei, que se uma donzela for violentada no campo, não é ré de morte, porque gritou e não houve alguém que a livrasse. Se porém o pecado fosse de algum modo voluntário, mas cometido por fraqueza, p. ex., quando se peca por paixão, esse pecado ficaria diminuído. E então a pena, conforme a um verdadeiro julgamento, devia diminuir. Salvo, se merecesse ser agravada, por causa do bem comum, a fim de afastar os outros de cometerem tal pecado, como já se disse. — O segundo grau era quando alguém pecava por ignorância. E então de certo modo era reputado réu, por causa da negligência em informar-se; contudo, não era punido pelos juízes, mas expiava o pecado com sacrifícios. Por isso dia a Escritura (Lv 4, 2): Se alguém pecar por ignorância oferecerá uma cabra sem defeito. Mas, isto deve entender-se da ignorância de fato e não, da ignorância do preceito divino, que todos eram obrigados a conhecer. — O terceiro grau era quando alguém pecava por soberba, i. é, por eleição ou por malícia certas. E então era punido conforme a gravidade do delito. — O quarto grau, quando pecava por protérvia e pertinácia. E nesse caso devia absolutamente ser morto como rebelde e infrator da ordem legal.
Ora, conforme estas disposições devemos concluir que, na pena do furto, a lei considerava o que podia freqüentemente acontecer. Por onde, no furto de coisas fáceis de se guardarem dos ladrões, estes não deviam restituir senão o duplo. Ora, ovelhas não se podem facilmente guardar de serem furtadas, pois, pastando nos campos, acontecia freqüentemente que o eram. Por isso a lei impôs pena maior, estabelecendo se restituíssem quatro por uma. Mas já os bois se guardam mais dificilmente, por viverem largados nos campos e não pastarem em rebanhos, como as ovelhas. Por isso, impôs em tal caso pena ainda maior, mandando restituir cinco bois por um. E isto digo, não fosse o caso em que o animal furtado fosse encontrado vivo em poder do ladrão; pois então, como nos demais furtos, restituía só o duplo; por poder-se presumir que, conservando-o vivo, pensava em restituí-lo. Ou pode-se dizer, segundo a Glosa, que o boi e a vaca têm cinco utilidades: serem imolados, arar, dar a carne, dar leite e ainda fornecer couro para muitos ursos. Por isso, por um boi furtado, o ladrão devia restituir cinco. Também a ovelha tem quatro utilidades: ser imolado, dar carne, leite, e fornecer a lã.
Quanto ao filho contumaz, era morto, não por ter comido e bebido; mas por causa da contumácia e da rebelião, sempre punidas de morte, como se disse. — O que colhia lenha ao sábado era lapidado, como violador da lei, que mandava observar o sábado em comemoração da criação do mundo, como já dissemos (q. 100, a. 5); por isso era morto como infiel.
Resposta à décima. — A lei antiga infligia a pena de morte nos crimes mais graves, i. é, nos pecados contra Deus, no homicídio, no furto de homens, na irreverência para com os pais, no adultério e no incesto. Mas, no furto de outras coisas, estabeleceu a pena da multa. Nos ferimentos e mutilações, a pena de talião, e semelhantemente, no pecado de falso testemunho. Nas outras culpas menores, a de flagelação ou de infâmia.
A pena de escravidão infligiu-a em dois casos. Primeiro, quando, no sétimo ano da remissão, o escravo não queria usar do benefício da lei e sair livre; por isso era-lhe infligida a pena de ficar perpetuamente escravo. Segundo, ao ladrão, quando não tinha como o que restituir.
A pena do exílio a lei não a cominou, absolutamente falando, porque, enquanto os demais povos jaziam na corrupção da idolatria, só o povo judeu adorava a Deus. Por isso, se alguém fosse excluído completamente desse povo, correria perigo de cair na idolatria. Por onde, a Escritura refere que Davi disse a Saul (1 Sm 26, 19): Malditos são os que me arrojaram hoje, para que eu não habite na herança do Senhor, dizendo: Vai, serve a deuses estrangeiros. Havia porém um exílio particular, e era o seguinte. Quem ferisse, sem o cuidar, o próximo, não podendo provar-se que nutria qualquer ódio contra ele, devia refugiar-se numa das cidades destinadas para tal e aí permanecer até a morte do sumo sacerdote. E então era-lhe lícito voltar para a casa; porque as iras particulares costumam aplacar-se com calamidade geral do povo; e assim, já os parentes próximos do morto não estavam mais propensos a matar o homicida.
Resposta à undécima. — Mandavam-se matar os animais, não por qualquer culpa deles, mas como pena dos donos, que não os impediram de cometerem as referidas transgressões da lei. Por isso, o dono era sobretudo punido se o boi já era muito avezado a marrar; pois nesse caso podia obviar o perigo mais facilmente, que se o boi se pusesse subitamente a dar marradas. Ou os animais eram mortos para fazer detestar o pecado, e pelo seu aspecto, não incutirem horror nos homens.
Resposta à duo décima. — A razão literal da disposição citada estava, como diz Rabbi Moisés, em ser freqüentemente o homicida de alguma cidade próxima. E matava-se a novilha para descobrir o homicídio oculto; o que se fazia por três meios. Um era que os anciãos convocados juravam nada ter omitido para guardar os caminhos. Outros, que o dono da novilha era danificado com a morte da mesma; de modo que se, antes, o homicídio fosse descoberto, o animal não seria morto. O terceiro, que o lugar em que a novilha fosse morta permanecia inculto. Por isso, a fim de evitar um e outro dano, os homens da cidade facilmente indicariam o homicida, se o soubessem; e raramente aconteceria que não se viesse a saber quaisquer palavras ou indícios relativos a ele. — Ou isso se fazia para incutir o terror do homicídio e fazer detestá-lo. Assim, a morte da novilha, animal útil e robusto, principalmente antes de trabalhar sob o jugo, significava que quem quer que cometesse um homicídio, embora útil e forte, devia ser morto e com morte cruel, significada pela degolação. E que, como vil e objeto, devia ser excluído do convívio humano. Isso era significado pelo abandono da novilha morta num lugar áspero e inculto, para apodrecer.
Misticamente porém, a novilha do rebanho significa a carne de Cristo, que não sofreu o jugo, não cometeu pecado nem fendeu a terra com o arado, i. é, não se manchou com mácula nenhuma de sedição. O ser morta num vale áspero, significa a desprezada morte de Cristo, que purgou todos os pecados; e mostra que o diabo é o autor do homicídio.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei antiga constituiu inconvenientemente os chefes.
1. — Pois, como diz o Filósofo, a ordenação do povo depende precipuamente do chefe máximo.
Ora, a lei não determina como esse chefe supremo devia ser constituído; só determina sobre os chefes inferiores. Assim, diz, primeiro (Ex 18, 21): Escolhe dentre os do povo uns tantos homens tementes a Deus, etc.; e (Nm 11, 16): Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel; e (Dt 1, 13): Daí dentre vós homens sábios e capazes, etc. Logo, a lei antiga constituiu insuficientemente os chefes do povo.
2. Demais. — É próprio do que é ótimo fazer coisas ótimas, como diz Platão. Ora, a ótima constituição de um estado ou de um povo qualquer é ser governado por um rei. Pois esse regime representa por excelência o governo divino, pelo qual o Deus único governa o mundo desde o princípio. Logo, a lei devia ter constituído um rei para o povo e não deixar a escolha ao arbítrio deles, como o permitiu; (Dt 17, 14-15): Quando disseres eu constituirei um rei para me governar, elegerás aquele, etc.
3. Demais. — Dia a Escritura (Mt 12, 25): todo reino dividido contra si mesmo será desolado, o que ficou experimentalmente patenteado no povo judeu, cuja causa da destruição foi a divisão do reino. Ora, a lei deve principalmente buscar o que respeita ao bem comum do povo. Logo, a lei antiga devia ter proibido a divisão do reino em dois governos. E nem devia isso ter sido feito por autoridade divina, como, segundo se lê na Escritura (1 Rs 11, 29), o foi por autoridade de Ahias Silonita.
4. Demais. — Assim como os sacerdotes são constituídos para a utilidade do povo, no concernente a Deus, conforme o diz a Escritura (Heb 5, 1), assim os príncipes são constituídos tais para essa mesma utilidade, na ordem das coisas humanas. Ora, aos sacerdotes e aos levitas da lei destinavam-se certos proventos de que deviam viver, como os dízimos, as primícias e muitas outras semelhantes. Logo e pela mesma razão, aos príncipes do povo devia se ordenar o que lhes servisse de sustento; e tanto mais quando lhes era proibido aceitar donativos, como diz a Escritura (Ex 23, 8): Não aceitarás donativos, porque eles fazem cegar ainda aos prudentes e pervertem as palavras dos justos.
5. Demais. — Assim como o regime real é o melhor de todos, assim o regime do tirano é a pior corrupção do governo. Ora, o Senhor, ao constituir o rei, instituiu um direito tirânico, conforme a Escritura (1 Sm 8, 11): Este será o direito do rei que vos há de governar; ele tomará os vossos filhos etc. Logo, a lei dispôs inconvenientemente sobre a constituição dos príncipes.
Mas, em contrário, o povo de Israel se gabava da formosura do seu governo (Nm 24, 5): Que formosos são os teus pavilhões, ó Jacó, e que belas as tuas tendas, ó Israel! Ora, a formosura o governo do povo depende de príncipes bem constituídos. Logo, pela lei o povo foi bem constituído em relação aos seus reis.
Solução. — A respeito da boa constituição dos chefes de uma cidade ou nação, duas coisas devemos considerar. Uma, que todos tenham parte no governo; assim se conserva a paz do povo e todos amam e guardam um tal governo, como diz Aristóteles. A outra é relativa à espécie do regime ou à constituição dos governos. E tendo estes diversas espécies, como diz o Filósofo, as principais são as seguintes. A monarquia, onde o chefe único governa segundo o exige a virtude; a aristocracia, i. é, o governo dos melhores, na qual alguns poucos governam segundo também o exige a virtude. Ora, o governo melhor constituído, de qualquer cidade ou reino, é aquele onde há um só chefe, que governa segundo a exigência da virtude e é o superior de todos. E, dependentes dele, há outros que governam, também conforme a mesma exigência. Contudo esse governo pertence a todos, quer por poderem os chefes ser escolhidos dentre todos, quer também por serem eleitos por todos. Por onde, essa forma de governo é a melhor, quando combinada: monarquia, por ser só um o chefe; aristocracia, por muitos governarem conforme o exige a virtude; democracia i. é, governo do povo, por, deste, poderem ser eleitos os chefes e ao mesmo pertencer à eleição deles.
E isto foi o que instituiu a lei divina. Pois Moisés e os seus sucessores governavam o povo, sendo, como singularmente, os chefes de todos; e isso é uma espécie de monarquia. Mas eram escolhidos setenta e dois anciões, conforme a virtude. Pois, diz a Escritura (Dt 1, 15) Eu tirei das vossas tribos homens sábios e nobres e os constitui príncipes; sinal de um regime aristocrático.
Mas era também democrático por serem esses escolhidos dentre todo o povo: Escolhe dentre os do povo uns tantos sábios, etc. E também era o povo quem os escolhia: Daí entre vós homens sábios, etc. Por onde é claro que a melhor constituição dos chefes foi a estabelecida pela lei.
Donde a resposta à primeira objeção. — O povo judeu era governado por Deus, com especial cuidado. Por isso diz a Escritura (Dt 7, 6): O Senhor teu Deus te escolheu para seres o seu povo próprio. Por isso, o Senhor reservou para si a escolha do chefe supremo. E foi isto que Moisés pediu (Nm 27, 16): O Senhor Deus dos espíritos de todos os homens escolha algum homem que vigie sobre essa multidão. Assim, por ordem de Deus, foi Josué constituído no principado, depois de Moisés. E a respeito de cada um dos juízes, sucessores de Josué, se lê que Deus suscitou ao povo um salvador; e que o espírito do Senhor esteve neles, como está claro na Escritura. Por isso o Senhor também não cometeu ao povo a eleição do rei, mas a reservou para si, como se lê na Escritura (Dt 17, 15): Constituirás rei aquele a quem o Senhor teu Deus tiver escolhido.
Resposta à segunda. — O governo real é o melhor regime para o povo, se não se corromper. Mas, por causa do grande poder de que o rei é dotado, o seu governo facilmente degenera em tirania, se não for perfeita a virtude de quem foi investido nesse poder. Pois, como diz Aristóteles, só o virtuoso pode suportar a boa fortuna. Ora, são poucos os de virtude perfeita; e principalmente os judeus eram cruéis e inclinados à avareza, vícios que sobretudo fazem os homens cair na tirania. Por isso o Senhor, desde o princípio, não lhes deu nenhum rei com amplos poderes; mas juízes e governadores, que lhes servissem de guardas. Mas depois, o pedido do povo, concedeu-lhe, quase indignado, um rei, como é claro pelo que disse a Samuel (1 Sm 8, 7): Não é a ti que eles rejeitaram, mas a mim, para eu não reinar sobre eles. Contudo, desde o princípio, para a escolha do rei, instituiu, primeiro, o modo de elegê-lo. Para isso estabeleceu as duas condições seguintes. Que, ao elegê-lo, procurassem conhecer o juízo de Deus. E não constituíssem reis de outra nação, por terem esses pouca afeição à nação de que foram feitos chefes, e por conseqüência não cuidam dela. Em segundo lugar, ordenou como os reis já constituídos deviam ter o seu gênero de vida: não multiplicarem os seus carros e cavalos, nem as mulheres, nem acumular riquezas imensas. Pois é por tais cobiças, que resvalam na tirania e se divorciam da justiça. Também determinou o modo de se haverem para com Deus: lerem sempre e meditarem a sua lei, e tê-lo sempre em temor e obediência. Ordenou ainda como havia de proceder em relação aos súditos: não os desprezar soberbamente, nem oprimi-los nem se desviarem da justiça.
Resposta à terceira. — A divisão do reino e a multidão dos reis foram dadas, antes, como pena aos judeus, por causa das suas muitas dissensões, que suscitaram principalmente contra o reinado justo de David, do que para a perfeição deles. Donde o dizer a Escritura (Os 13, 11): Eu te darei um rei no seu furor: e ainda (Os 8, 4): Eles reinaram por si mesmos e não por mim; eles foram príncipes e eu não os conheci.
Resposta à quarta. — Os sacerdotes eram destinados ao culto, conforme à sucessão na família. E isto para serem tidos em maior reverência, por não poder qualquer do povo vir a ser sacerdote. Por isso, a honra que lhes era devida redundava em reverência ao culto divino. Por onde, era necessário se lhes destinassem certos bens especiais de que vivessem, os quais eram tirados dos dízimos, das primícias, como também das oblações e dos sacrifícios. Os príncipes, porém, eram tirados dentre todo o povo; e por isso tinham certos bens próprios de que podiam viver. E tanto mais quanto o Senhor proibira que mesmo o rei superabundasse em riquezas ou em magnificência de aparato. Quer porque, assim, não lhes era fácil serem arrastados pela soberba e caírem na tirania; ou também porque, não sendo os príncipes muito ricos e sendo laborioso o principado e cheio de cuidados, este não era muito desejado pela gente do povo, e assim desapareciam os motivos de sedição.
Resposta à quinta. — O direito referido não era devido ao rei por instituição divina; mas antes, prenunciava a usurpação dos reis, que para si constituíram um direito iníquo, degenerando em tiranos e depredadores do povo. Isso é claro pelo que a Escritura acrescenta: E vós sereis seus servos, o que constitui, propriamente, a tirania; pois, os tiranos governam os seus súditos como se estes fossem escravos. E o dito de Samuel tinha por fim aterrá-los para não pedirem um rei. Mas, continua ainda a Escritura, o povo não quis dar ouvidos às razões de Samuel. Pode porém acontecer que um bom rei, sem tirania, tome os filhos do povo, constituindo-se seus tribunos e centuriões, e se apodere de muitos bens dos seus súditos, a fim de procurar o bem comum.
Em seguida devemos tratar da razão de ser dos preceitos judiciais.
E nesta questão discutem-se quatro artigos:
27 de janeiro
O Verbo Eterno do Pai, que pela sua imensidade abrange todas as coisas, para revocar à elevação da glória divina o homem diminuído pelo pecado, quis fazer-se limitado, assumindo a nossa limitação, não renunciando, porém, à sua majestade. para que ninguém fosse dispensado de receber a doutrina da palavra celeste, que transmitira extensivamente por intermédio dos homens que a estudaram, e, de modo claro, pelos livros da Sagrada Escritura, condensou, numa breve suma, a doutrina da salvação humana. Desse modo conhecê-la-iam também aqueles que se entregam mais aos cuidados das coisas terrenas.