Category: Santo Tomás de Aquino
(I, q. 60, a. 5; IIª-IIªe, q.26, a. 3; II Sent., dist. XXXIX, a. 3; De Virtut., q. 2, a. 2, as 16; q. 4, a. 1, ad 9; Quodl. I, q. 4, a. 3).
O terceiro discute-se assim. — Parece que o homem não pode amar a Deus sobre todas as coisas, só pelas suas faculdades naturais, sem o auxílio da graça.
1. — Pois, amar a Deus sobre todas as coisas é no que consiste própria e principalmente o ato de caridade. Ora, a caridade o homem não pode tê-la por si mesmo; porque, como diz o Apóstolo (Rm 5, 5), a caridade de Deus está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado. Logo, só pelas suas faculdades naturais, o homem não pode amar a Deus sobre todas as coisas.
2. Demais. — Nenhuma natureza pode pretender o que lhe é superior. Ora, amar a Deus mais que a si mesmo é pretender o que é superior à natureza criada; logo, não pode amar a Deus mais que a si mesma, sem o auxílio da graça.
3. Demais. — A Deus, que é o sumo bem é devido o sumo amor, e este consiste em amá-lo sobre todas as coisas. Ora, não podemos amar a Deus com o sumo amor, que lhe devemos, sem a graça; do contrário, esta seria dada inutilmente. Logo, o homem não pode, sem a graça, e só com as suas faculdades naturais, amar a Deus sobre todas as coisas.
Mas, em contrário. — Como certos ensinam, o primeiro homem foi constituído só com as suas faculdades naturais, em cujo estado manifestamente amou de algum modo a Deus. Ora, não O amou tanto quanto a si, ou menos que a si, porque então pecaria. Logo, amou-O mais que a si. Por onde, só pelas suas faculdades naturais o homem pode amar a Deus mais que a si e sobre todas as coisas.
SOLUÇÂO. — Como já dissemos na Primeira Parte (q. 60, a. 5), onde também expusemos as diversas opiniões sobre o amor natural dos anjos, o homem, no estado da natureza íntegra, podia obrar, em virtude da sua natureza, o bem que lhe é conatural, sem o acréscimo do dom da graça, embora, não sem o auxilio da moção divina. Ora, amar a Deus sobre todas as coisas é conatural ao homem e mesmo a qualquer criatura, não só racional, mas também irracional e mesmo inanimada, conforme o modo do amor que convém a cada uma delas. E a razão está em ser natural a todos os seres desejarem e amarem o que lhes corresponda a natureza; pois, todo ser ageconforme a sua capacidade natural, segundo Aristóteles. Ora, é manifesto que o bem da parte é para o bem do todo. Por onde, por desejo ou amor natural, cada ser ama o seu bem próprio, por causa do bem comum de todo o universo, que é Deus. Por isso, Dionísio diz, que Deus atrai todas as coisas ao seu amor. Por onde, o homem, no estado da natureza íntegra, referia não só o amor de si mesmo ao amor de Deus, como fim, mas também o de tudo o mais. E assim, amava a Deus mais que a si mesmo e sobre todas as coisas. Mas no estado da natureza corrupta, já não procede do mesmo modo por causa do apetite da vontade racional, que, por causa da corrupção da natureza procura o seu bem particular; salvo sendo restaurada pela graça de Deus. E portanto, devemos dizer, que o homem, no estado de natureza íntegra, não precisa do dom da graça, acrescentada aos seus dotes naturais, para amar a Deus naturalmente sobre todas as coisas; embora, precisasse do auxílio de Deus, para mover-se para esse fim. Mas no estado da natureza corrupta, precisa, mesmo para isso, do auxílio da graça, que restaura a natureza.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A caridade ama a Deus sobre todas as coisas de modo mais eminente que a natureza. Pois, esta ama a Deus sobre todas as coisas enquanto princípio e fim do bem natural. A caridade porém, enquanto objeto da felicidade, e enquanto o homem tem uma certa sociedade espiritual com Deus. E também a caridade acrescenta ao amor natural de Deus uma certa presteza e prazer, assim como qualquer hábito virtuoso o acrescenta ao ato bom, feito só pela razão natural do homem, sem o hábito da virtude.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Quando se diz que nenhuma natureza pode nada do que lhe é superior, não se deve por aí entender que não possa buscar um objeto que lhe seja superior. Pois, é manifesto que o nosso intelecto, por conhecimento natural, pode conhecer certas coisas que lhe são superiores, como o demonstra o conhecimento natural de Deus. Mas devemos entendê-lo no sentido de a natureza não poder praticar um ato que lhe exceda a capacidade das forças. Ora, tal não é o ato de amar a Deus sobre todas as coisas, natural a toda natureza criada, como já se disse.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Chama-se sumo o amor, não só quanto ao grau da dileção, mas também quanto à razão e ao modo de amar. E sendo assim, o sumo grau do amor é o pelo qual a caridade ama a Deus como beatificante, conforme já dissemos.
(II Sent., dist. XXVIII, a. 1; dist. XXXIX, expos. Litt.; IV, dist.XVII, q. 1, a. 2, qª 2, ad; 3; De Verit., q. 24, a. 12; II Cor., cap. III, lect. I).
O segundo discute-se assim. — Parece que o homem pode querer e fazer o bem sem a graça.
1. — Pois, está no poder do homem aquilo de que ele é senhor. Ora, o homem é senhor de seus atos, e sobretudo da sua vontade, como já se disse (q. 1, a. 1; q. 13, a. 6). Logo, pode querer e fazer o bem por si mesmo, sem o auxílio da graça.
2. Demais. — Um ser tem mais poder sobre o que lhe é natural do que sobre o que lhe contraria a natureza. Ora, o pecado é contra a natureza, como diz Damasceno, ao contrário, o ato virtuoso é segundo a natureza da alma, como já se disse (q. 71, a. 1). Ora, desde que o homem pode por si mesmo pecar, conclui-se com maioria de razão, que pode por si mesmo querer o fazer o bem.
3. Demais. — O bem da inteligência é a verdade, como diz o Filósofo. Ora, a inteligência pode por si mesma conhecê-la, assim como todo ser pode por si mesmo realizar o seu ato natural. Logo, com maior razão, o homem pode por si mesmo fazer e querer o bem.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 9, 16): Não depende do que quer, i.é, do querer, nem do que corre, i. é, do correr, mas, de usar Deus da sua misericórdia. E Agostinho: sem a graça, os homens não podem, absolutamente, fazer o bem por pensamento, nem por vontade, amor, ou ação.
SOLUÇÃO. — A natureza do homem pode ser considerada à dupla luz. Na sua integridade, como existia em nosso primeiro pai, antes do pecado ou como após esse pecado existe agora em nós. Ora, tanto num como noutro estado, a natureza humana precisa do auxílio divino, como primeiro motor, para fazer ou querer qualquer bem, conforme já dissemos (a. 1). Porém no estado de natureza íntegra, podia o homem, quanto o exigem os atos virtuosos e só ajudado das suas faculdades naturais, querer e obrar o bem proporcionado à sua natureza, tal como é o da virtude adquirida; não porém o da virtude infusa, que lhe excede a natureza. No estado da natureza corrupta, porém, o homem falha, mesmo no que poderia por natureza alcançar, de modo que não lhe é possível fazer, só pelas suas faculdades naturais, todo o bem de que a sua natureza é capaz. Contudo, pelo pecado não ficou a natureza humana totalmente corrupta, de modo a ficar privada de todo bem natural. Por isso, pode o homem, mesmo no estado da natureza corrupta e por virtude da sua natureza, fazer algum bem particular, como, edificar casas, plantas vinhas e coisas semelhantes. Mas não pode fazer todo bem que lhe é conatural, sem falhar em caso algum. Assim como um homem doente pode, por si mesmo, fazer algum movimento, mas, sem ser curado pelo médico, não pode mover-se perfeitamente, como um homem são.
Por onde, o homem necessita, no estado da natureza íntegra, do auxílio da graça, acrescentado às suas faculdades naturais, mas só, para fazer e querer o bem sobrenatural. No estado da natureza corrupta, porém, precisa desse auxílio, primeiro, para fortificar-se, e depois para praticar o bem da virtude sobrenatural, que é meritório. Além disso, em um e outro estado, o homem precisa do auxílio divino para mover-se à prática do bem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O homem é senhor dos seus atos de querer ou não querer, por causa da deliberação racional, que pode inclinar-se para um ou outro lado. Mas só e necessariamente por uma deliberação precedente é que poderá deliberar ou não, se disso for capaz. Ora, como esse processo não pode ir ao infinito, é forçoso, finalmente, o livre arbítrio humano ser movido por algum princípio externo, superior a mente humana, e que é Deus, como o prova o filósofo. Por onde, o espírito do homem, mesmo ainda não corrompido, não tem de tal modo o domínio dos seus atos, que dispense a moção divina. E, com maior razão, o livre arbítrio do homem enfermo pelo pecado, que encontra, na corrupção da sua natureza um obstáculo a pratica do bem.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Pecar não é mais do que claudicar na pratica do bem adequado à natureza de um ser. Ora, todo ser criado, assim como não existe senão em virtude de outro e, em si considerado, nada é: assim também precisa, por esse outro, de ser conservado no bem adequado à sua natureza. Por onde, se não for sustentado por Deus, pode, abandonado a si mesmo, falhar na pratica do bem, assim como pode, nessas condições, reduzir-se ao nada.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Também a verdade o homem não a pode conhecer sem o auxílio divino, como já dissemos (a. 1). E contudo, a natureza humana ficou mais corrupta, pelo pecado, no seu desejo do bem, que no conhecimento da verdade.
(II Sent., dist. XXVIII, a. 5; Cor., cap. XII, lect. I)
O primeiro discute-se assim. — Parece, que sem a graça o homem não pode conhecer a verdade.
1. — Pois, sobre aquilo da Escritura. — Ninguém pode dizer Senhor Jesus, senão pelo Espírito Santo — diz a Glosa de Ambrósio: Quem quer que diga a verdade, pelo Espírito Santo a diz. Ora, o Espírito Santo habita em nós pela graça. Logo, sem esta não podemos conhecer a verdade.
2. Demais. — Agostinho diz: As mais certas doutrinas são as por assim dizer, iluminadas pelo sol, de modo a serem vistas. Deus, porém é que ilumina, sendo a razão, para o espírito, o que é a vista para os olhos; mas os olhos do espírito são os sentidos da alma. Ora, os sentidos do corpo, por mais puros que sejam, não podem ver nada sem a luz do sol. Logo, também a mente humana, por perfeita que seja, não pode, raciocinando, conhecer a verdade, sem a iluminação divina, que é auxílio da graça.
3. Demais. — Não pode a mente humana conhecer a verdade, senão pensando, como claro está em Agostinho. Ora, o Apóstolo diz (2 Cor 3, 5): Não que sejamos capazes de nós mesmos de ter algum pensamento como de nós mesmos. Logo, o homem não pode conhecer a verdade, por si mesmo, sem auxílio da graça.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não aprovo o que disse numa oração — Deus, que só aos puros permitiste conhecer a verdade. Pois, poderia alguém objetar, que muitos, embora impuros, conhecem muitas verdades. Ora, pela graça, o homem se torna puro, conforme a Escritura (Sl 50, 12): Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova nas minhas entranhas um espírito reto. Logo, sem a graça, o homem pode, por si mesmo, conhecer a verdade.
SOLUÇÃO. — Pelo uso ou por um ato da luz intelectual, é que conhecemos a verdade; pois, segundo o Apóstolo (Ef 5, 13), tudo o que se manifesta é luz. Ora, qualquer uso implica movimento, tomando o movimento em acepção lata, no qual se consideram movimentos o inteligir e o querer, segundo o Filósofo claramente o diz. Vemos porém, que o movimento dos seres corpóreos implica, não só a forma, que é o princípio dele ou da ação, mas também a moção do primeiro móvel. Ora, o primeiro móvel, na ordem material, é o corpo celeste. Assim, por perfeito que seja o calor do fogo, não poderia aquecer senão pela moção do corpo celeste. Ora, é manifesto, que todos os movimentos corpóreos se reduzem ao do corpo celeste, como ao primeiro motor corpóreo. Pois, assim também todos os movimentos, tanto os corpóreos como os espirituais, reduzem-se ao primeiro móvel absoluto, que é Deus. E portanto, por perfeita que se suponha uma natureza corpórea ou espiritual, ela não pode se atualizar se não for movida por Deus. E esse movimento depende da ordem da sua providência e não, da necessidade natural, como o do corpo celeste. Nem só, porém todo movimento procede de Deus, como primeiro motor; mas também dele, como do ato primeiro, procede toda perfeição formal. Por onde, o ato intelectual, bem como o de todo ser criado, depende de Deus, de dois modos: por haurir nele a perfeição ou a forma pela qual age; e por ser movido por ele à ação.
Mas, toda forma inerente às coisas criadas por Deus tem a sua eficiência relativa a um ato determinado, que lhe é próprio, e além do qual não pode ir senão reforçado por outra forma superveniente. Assim, a água não pode aquecer senão aquecida pelo fogo. Ora, a forma do intelecto humano é o lume inteligível, suficiente, em si mesmo, para conhecer certos inteligíveis, a saber, aqueles cujo conhecimento podemos obter por meio dos sensíveis. O que porém é superior à sua capacidade o intelecto humano não pode conhecer senão fortalecido pelo lume da graça; p. ex., pelo lume da fé ou da profecia, chamado lume da graça, por ser acrescentado à natureza. Por onde, devemos dizer que para conhecer qualquer verdade o homem precisa do auxílio de Deus que o move ao seu ato. Não precisa porém, para conhecer a verdade, em todos os casos, de nova iluminação acrescentada à iluminação natural, mas só nos casos que lhe excedem o conhecimento natural. E contudo, algumas vezes milagrosamente, pela sua graça, instrui a certos, relativamente ao que podem conhecer pela razão natural; assim como, algumas vezes, faz milagrosamente certas coisas que a natureza pode fazer.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Toda verdade, seja dita por quem for, provém do Espírito Santo, como lume, que naturalmente a infunde e move a compreender e falar a verdade. Não porém como habitando na pessoa pela graça santificante ou como conferindo algum dom habitual acrescentando ao da natureza. Pois isto só se dá no conhecimento e na expressão de certas verdades e, sobretudo, nas que respeitam à fé, ao que se refere o texto citado do Apóstolo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O sol material ilumina exteriormente, ao passo que o sol inteligível, que é Deus, interiormente. Por onde, o lume natural infuso na alma é, em si mesmo, iluminação de Deus, que permite ao conhecimento natural atingir o seu objeto. E para isto não é necessária outra iluminação, senão só para os objetos excedentes ao conhecimento natural.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Sempre precisamos, para qualquer pensamento, do auxílio divino que move o intelecto à ação; pois inteligir alguma coisa, atualmente, é pensar, como claramente o diz Agostinho.
Em seguida devemos tratar do princípio exterior dos atos humanos, i. é Deus, enquanto, com a sua graça, nos ajuda a proceder retamente. E primeiro, devemos tratar da graça de Deus. Segundo, da sua causa. Terceiro, dos seus efeitos.
O primeiro tratado será tripartido. Assim, primeiro, trataremos da necessidade da graça. Segundo, da graça, quanto à sua essência mesma. Terceiro, da sua divisão.
Na primeira questão discutem-se dez artigos:
O quarto discute-se assim. — Parece que a lei nova ordenou inconvenientemente conselhos certos e determinados.
1. — Pois, os conselhos se tomam sobre os meios convenientes à consecução do fim, como já dissemos, quando tratamos do conselho (q. 14, a. 2). Ora, nem todos servem para todos. Logo, não se devem propor a todos conselhos certos e determinados.
2. Demais. — Conselhos se tomam sobre o melhor bem. Ora, não há graus determinados do melhor bem. Logo, não se devem dar conselhos certos e determinados.
3. Demais. — Os conselhos dizem respeito à perfeição da vida. Ora, também a essa perfeição respeita a obediência. Logo, o Evangelho deixou de dar, inconvenientemente, conselho sobre ela.
4. Demais. — Muito do concernente à perfeição da vida esta incluído nos preceitos. Assim isto (Mt 5, 44): Amai a vossos inimigos, e também os preceitos que o senhor deu aos Apóstolos. Logo, a lei nova deu conselhos inconvenientemente, quer pelos não ter dado todos, quer pelos não ter distinguido dos preceitos.
Mas, em contrário. — Os conselhos do amigo sábio são de grande utilidade, conforme a Escritura (Pr 27, 9): Com perfume e variedade de cheiros se deleita o coração, e com os bons conselhos do amigo se banha a alma em doçura. Ora, Cristo é sábio e amigo por excelência. Logo, os seus conselhos são os de máxima utilidade e conveniência.
SOLUÇÃO. — A diferença entre o preceito e o conselho está em, o primeiro implicar necessidade ao passo que o segundo depende da vontade daquele a quem é dado. E por isso, convenientemente, a lei nova, que é a lei da liberdade, acrescentou aos preceitos os conselhos; o que não o fez a lei antiga, lei da escravidão. Logo e forçosamente, os preceitos da lei nova devem ser entendidos como relativos ao necessário à consecução do fim, que é a eterna beatitude, na qual ela nos introduz diretamente. Ao passo que os conselhos hão de versar sobre aquilo pelo que o homem pode, melhor e mais expeditamente, conseguir o referido fim.
Ora, o homem está colocado entre os bens deste mundo e os espirituais, nos quais consiste a beatitude eterna. E de modo que, quanto mais se apega a aqueles, tanto mais se afasta destes, e inversamente. Por onde, quem se apega totalmente as coisas deste mundo, constituindo nelas o seu fim e considerando-as como a razão e a regra dos seus atos, aparta-se totalmente dos bens espirituais. Ora, essa desordem é que os preceitos fazemdesaparecer. Desprezar porém totalmente as coisas do mundo, não é necessário para o homem alcançar o fim referido. Pois ele pode chegar à beatitude eterna usando das coisas deste mundo, sem por nelas o seu fim. A este porém chegará mais facilmente, desprezando totalmente as coisas. Por isso o Evangelho dá conselhos sobre esse ponto.
Ora, os bens deste mundo, que servem ao uso da vida humana, são das três categorias seguintes. As riquezas dos bens externos, buscadas pela concupiscência dos olhos; os prazeres da carne, pela concupiscência da carne; e as honras, pela soberba da vida, como se vê na Escritura (1 Jo 2, 16). Ora, é próprio dos conselhos evangélicos fazer desapegar-nos dessas três espécies de bens, totalmente, na medida do possível. E nesse tríplice desapego se funda toda a religião, que busca o estado de perfeição. Assim, as riquezas são desprezadas pela pobreza; os prazeres da carne, pela castidade perpétua; a soberba da vida, pela submissão da obediência. Mas pelos conselhos propostos, em absoluto, é que observamos, em si mesmas, essas três disposições de vida. Ao passo que por um conselho particular, aplicado a um caso dado, observamos cada uma das disposições referidas. Assim, quem dá esmola a um pobre, sem estar obrigado a isso, segue o conselho, em particular. Também segue o conselho, em particular, quem em tempo determinado se abstém dos prazeres da carne, para se vacar a oração. Semelhantemente, quem não cede à sua vontade, num caso particular, em que podia fazê-lo licitamente, segue em tal caso o conselho. Assim quando, sem estar obrigado, beneficia aos seus inimigos; ou quando perdoa a ofensa de quem podia justamente vingar-se. Assim todos os conselhos particulares se reduzem aos três conselhos gerais e perfeitos supra-referidos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os conselhos referidos, em si mesmos, são aplicáveis a todos. Mas pode se dar não o sejam a alguém, sem disposição para eles, por não ter o afeto para os mesmos inclinado. Por isso o Senhor, quando propõe os conselhos evangélicos, sempre faz menção da inclinação do homem a observá-los. Assim ao dar conselho da pobreza perpétua, diz antes (Mt 19, 21): Se queres ser perfeito; acrescentando depois: vai e vende o que tens. Semelhantemente, ao dar o conselho da castidade perpétua, diz (Mt 19, 12): Há uns castrados, que a si mesmos se castraram por amor do reino dos céus; mas logo acrescenta: O que é capaz de compreender isto compreenda-o. Do mesmo modo o Apóstolo, tendo dado o conselho da virgindade, diz (1 Cor 7, 35): Digo-vos isto para proveito vosso; não para vos ilaquear.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os bens melhores, particulares, são indeterminados, em cada caso dado. Mas os que o são em geral, simples e absolutamente falando, são determinados. Ora, a esses se reduzem todos os bens particulares referidos, como já se disse.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Entende-se que o Senhor também deu o conselho de obediência quando disse: E siga-me. E nós o seguimos, não só imitando-lhe as obras, mas também obedecendo-lhe aos mandamentos, conforme aquilo (Jo 10, 27): As minhas ovelhas ouvem a minha voz; e eu conheço-as e elas me seguem.
RESPOSTA À QUARTA. — O que o Senhor disse sobre o verdadeiro amor aos inimigos e disposições semelhantes, se se referirem à preparação da alma, é necessário para a salvação. E então o homem deve estar preparado a fazer bem aos inimigos e a agir sempre nesse sentido, quando a necessidade o exigir. Por isso estabeleceram-se preceitos para o regular. Mas é apenas por um conselho particular, como já dissemos, que estaremos preparados a fazê-lo, pronta e atualmente, aos inimigos, quando não ocorrer especial necessidade. E quanto aos preceitos que se lêem noutro lugar do Evangelho, eles constituíam disciplinas próprias do tempo, ou são certas concessões, como dissemos (q. 2, ad 3). Por isso não são dados como conselhos.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a lei ordenou insuficientemente os atos internos do homem.
1. — Pois, são dez os mandamentos que ordenam o homem para Deus e para o próximo. Ora, o Senhor deu complemento só a três deles, a saber: sobre a proibição do homicídio, sobre a do adultério, e sobre a do juramento falso. Logo, ordenou o homem insuficientemente, omitido o complemento aos outros preceitos.
2. Demais. — O Senhor nada ordenou, no Evangelho, sobre os preceitos judiciais, salvo sobre o repúdio da esposa, sobre a pena de talião e sobre a perseguição aos inimigos. Ora, há muitos outros preceitos judiciais na lei antiga, como já se disse (q. 104, a. 4; q. 105). Logo, neste ponto, ordenou insuficientemente a vida do homem.
3. Demais. — A lei antiga, além dos preceitos morais e judiciais, continha certos outros, cerimoniais, sobre os quais o Senhor nada ordenou. Logo, ordenou insuficientemente.
4. Demais. — É da boa disposição interna da mente não fazer o homem nenhuma boa obra visando qualquer fim temporal. Ora, há muitos outros bens temporais que não o aplauso humano; pois, há muitas outras obras boas além do jejum, da esmola e da oração. Logo, o Senhor ensinou inconvenientemente quando, só em relação a essas três obras, mandou evitar a glória do aplauso humano, e nada ensinou sobre os demais bens terrenos.
5. Demais. — É naturalmente ínsito no homem procurar as coisas necessárias à vida, e isso lhe é comum com os irracionais. Por onde, diz a Escritura (Pr 6, 6-8): Vai ter, ó preguiçoso, com a formiga, e considera os seus caminhos; a qual, não tendo condutor, nem mestre, faz o seu provimento no estio, e ajunta no tempo da ceifa de que se sustentar. Ora, todo preceito estabelecido contra a inclinação da natureza é iníquo, por ser contra a lei natural. Logo, o Senhor proibiu inconvenientemente ao homem a busca do alimento e do vestuário.
6. Demais. — Não se deve proibir nenhum ato virtuoso. Ora, o juízo é um ato de justiça, conforme a Escritura (Sl 18, 15): Até que a justiça venha a fazer juízo. Logo, o Senhor proibiu inconvenientemente o juízo. E portanto, a lei nova ordenou insuficientemente os atos internos.
Mas, em contrário, Agostinho diz: Devemos considerar que, quando o Senhor disse: — Quem ouve estas minhas palavras — significa com isso suficientemente que o seu sermão contem plenamente todos os preceitos que regulam a vida cristã.
SOLUÇÃO. — Como resulta do lugar aduzido de Agostinho, o sermão que o Senhor fez na montanha contém toda a regulamentação da vida cristã, e ordena perfeitamente os atos humanos internos. Pois, depois de declarar o fim da beatitude e de exaltar a dignidade dos Apóstolos, que deviam divulgar a doutrina evangélica, ordena os atos humanos internos. Primeiro, os do homem para consigo mesmo; depois, os relativos ao próximo.
Os atos relativos a nós mesmos, ele os ordena de dois modos, conforme aos nossos dois movimentos internos, que levam aos atos — a vontade de agir e a intenção final. — Por isso, primeiro ordena a vontade do homem, pelos diversos preceitos da lei, de modo que se ele abstenha, não só das obras externas más, em si mesmas, mas também das internas e das ocasiões más. — Depois, ordena a intenção humana, dizendo que, em nossos atos não devemos buscar nem a glória humana, nem as riquezas mundanas, o que é entesourar na terra.
Em seguida, ordena o movimento interior do homem relativamente ao próximo. Assim, não devemos julgá-lo temerária, injusta ou presunçosamente. Nem devemos ser de tal modo negligentes que lhe entreguemos as coisas sagradas, se forem indignos.
E, por último, ensina o modo de cumprir a doutrina evangélica. Que é implorar o auxílio divino; esforçar-se por entrar pela porta estreita da virtude perfeita; tomar cautela para não se deixar transviar pelos sedutores. E faz ver que a observação dos mandamentos é necessária à virtude; não bastante só a confissão da fé, ou obrar milagres, ou só ouvir a doutrina.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Senhor completou só os preceitos da lei dos quais os Escribas e os Fariseus não tinham inteligência reta. E isto se dava, principalmente, sobre três preceitos do decálogo. — Assim, quanto à proibição do adultério e do homicídio, pensavam que só era proibido o ato exterior e não, o desejo interior. E isso pensavam mais no concernente ao adultério e ao homicídio, do que ao furto e ao falso testemunho. Porque o movimento da ira, tendente ao homicídio, e o da concupiscência, tendente ao adultério, são considerados como de certo modo inerentes à natureza; isso não se dá com o desejo de furtar ou de proferir falso testemunho. — Deste tinham falsa inteligência, pensando que o perjúrio é, por certo, pecado; mas que o juramento deve em si mesmo ser desejado e repetido, porque, segundo lhes parecia, implica reverência a Deus. Por isso, o Senhor mostrou, que não devemos desejar, como bom, o juramento, mas é melhor falar sem jurar, salvo se houver necessidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Sobre os preceitos judiciais os Escribas e os Fariseus erravam de dois modos. — Primeiro, pensando que eram justos em si mesmos certos preceitos estabelecidos por Moisés, como permissões. Assim, o repúdio da esposa e receber usuras dos estranhos. Por isso, o Senhor proibiu o repúdio da mulher (Mt 5, 32) e receber usuras (Lc 6, 35): emprestai sem daí esperardes nada.
De outro modo erravam, pensando que certas práticas que a lei ordenava por justiça, deviam ser feitas por espírito de vingança, cobiça das coisas temporais ou ódio dos inimigos. E isto em relação a três preceitos. — Assim, julgavam lícito o desejo da vingança, por causa do preceito sobre a pena de talião; ora, esse preceito foi dado para se observar à justiça e não para se tirar vingança. E por isso o Senhor, para evitar a má inteligência dele, ensina que a alma do homem deve estar preparada a sofrer ainda maiores injúrias, se necessário for. — Pensavam ser lícito a moção da cobiça, por causa dos preceitos judiciais que ordenavam fosse feita a restituição da coisa furtada, mesmo com algum acréscimo, como já dissemos (q. 105, a. 2 ad 9). E isso a lei ordenou para fazer observar a justiça e não para dar lugar a cobiça. Por isso o Senhor ensina que não exijamos nada pela cobiça, mas antes, estejamos prontos a dar ainda mais se for necessário. — Enfim, tinham como lícito a moção do ódio, por causa do preceito legal que mandava matar os inimigos; o que a lei instituiu para que se cumprisse a justiça, como já dissemos (q. 105, a. 3 ad 4), e não para se saciarem os ódios. E, por isso o Senhor ensina a amarmos os inimigos e estarmos prontos se for necessário, a lhes fazer benefícios. — Assim, no dizer de Agostinho, esses preceitos visam à preparação da alma.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos morais deviam absolutamente permanecer na lei nova, pois em si mesmos se incluem na essência da virtude. Enquanto que os preceitos judiciais não deviam necessariamente continuar, do modo pelo qual a lei os determinou, mas foram deixados ao arbítrio humano, que os determinassem de um ou de outro modo. Portanto, o Senhor nos ordenou convenientemente em relação a esses dois gêneros de preceitos. — Quanto à observação dos preceitos cerimoniais, ela desapareceu totalmente, com a aplicação da lei nova. Por isso, em relação a esses preceitos, o Senhor nada ordenou, no seu ensinamento comum. Ensinou porém noutro ponto, que todo culto material, determinado na lei antiga, devia ser mudado, na vigência da lei nova. Assim, diz (Jo 4, 21-23): É chegada a hora em que vós não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém; mas os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade.
RESPOSTA À QUARTA. — Todas as coisas do mundo se reduzem a três: as honras, as riquezas, e os prazeres, conforme a Escritura (1 Jo 2, 16): Tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, que pertence aos prazeres da carne, e concupiscência dos olhos, que respeita às riquezas, e soberba da vida, que diz respeito à ambição de glória e honra. Ora, os prazeres supérfluos da carne, a lei não os prometeu, mas ao contrário, proibiu. Prometeu porém, em troca, uma honra excelsa e a abundância das riquezas: Se tu ouvires a voz do Senhor teu Deus, Ele te exaltará sobre todas as nações que há na terra. Isso, quanto à honra. E pouco adiante acrescenta: O Senhor te fará abundante de todos os bens; quanto às riquezas. Mas essas promessas os judeus as entendiam tão estultamente, que pensavam se devia servir a Deus por causa delas, como se fossem o fim. — Por onde, para o evitar, o Senhor mostrou, primeiro, que não devemos praticar obras virtuosas por causa da glória humana. E ensina serem três as obras a que todas as mais se reduzem. Pois, tudo o que fazemos para refrear as nossas concupiscências se reduz ao jejum; tudo o que fazemos por amor ao próximo se reduz à esmola; enfim tudo o que fazemos para o culto de Deus se reduz à oração. E essas três obras ele as considera especiais, como que sendo as importantes, e pelas quais os homens costumam principalmente buscar a glória. — Em segundo lugar, ensinou que não devemos por nas riquezas o nosso fim, quando disse: Não queirais entesourar para vós tesouros na terra.
RESPOSTA À QUINTA. — O Senhor não proibiu os cuidados necessários, mas só os desordenados. Ora, há quatro cuidados desordenados, que devemos evitar, relativamente aos bens temporais. — Primeiro, não constituirmos neles o nosso fim; nem servirmos a Deus, por causa das necessidades de comer e vestir. Por isso diz: Não queirais entesourar para vós, etc. — Segundo, não devemos buscar as coisas temporais, desesperando do auxílio divino. Por isso o Senhor diz: O vosso Pai sabe que tendes necessidade de todas elas. — Terceiro, os nossos cuidados não hão de ser presunçosos, de modo a confiarmos em nós mesmos, pensando que com o nosso próprio esforço, sem o auxílio divino, poderemos obter o necessário à vida. O que o Senhor nega, dizendo que o homem não pode acrescentar nada à sua estatura. — Quarto, o homem se inquieta com o tempo das suas necessidades, preocupando-se, no presente, com o que só respeita ao futuro. E por isso, o Senhor diz: Não andeis inquietos pelo dia de amanhã.
RESPOSTA À SEXTA. — O senhor não proíbe o juízo da justiça, sem o qual as coisas santas não podem ser negadas aos indignos; mas, o juízo desordenado, como dissemos.
O segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova ordenou insuficientemente os atos externos.
1. — Pois, parece que à lei nova pertence principalmente a fé que obra por caridade, conforme a Escritura (Gl 5, 6): Em Jesus Cristo nem a circuncisão vale alguma coisa, nem o prepúcio; mas, a fé que obra por caridade. Ora, a lei nova explicitou certas verdades de fé, que não estavam explícitas na lei antiga, como p. ex., a fé na Trindade. Logo, também devia ter acrescentado certas obras morais externas, não determinadas pela antiga lei.
2. Demais. — A lei antiga instituiu não somente sacramentos, mas também certas coisas sagradas, como já se disse (q. 101, a. 4; a. 102, a. 4). Ora, na lei nova embora tenha instituído certos sacramentos, não se vê que tivesse Deus determinado coisas sagradas, como as que respeitam à santificação de um templo, ou de vasos, ou mesmo relativas à celebração de alguma solenidade. Logo, a lei nova ordenou insuficientemente as obras externas.
3. Demais. — A antiga lei continha certas observâncias relativas aos ministros de Deus, e também certas outras relativas ao povo, como já se disse (q. 101, a. 4; q. 102, a. 6), ao tratar dos cerimoniais da lei antiga. Ora, vemos que a lei nova estabeleceu certas observâncias para os ministros de Deus (Mt 10, 9): Não possuías ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cintas, e o mais que nesse lugar se segue e ainda em outro (Lc 9; 10). Logo, a lei nova também devia ter instituído outras observâncias, relativas ao povo fiel.
4. Demais. — Na lei antiga havia, além dos preceitos morais e cerimoniais, certos, judiciais. Ora, a lei nova não deu nenhum preceito judicial. Logo, ordenou insuficientemente as obras externas.
Mas, em contrário, diz o Senhor (Mt 7, 24): Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou a sua casa sobre rocha. Ora, o edificador sábio não omite nada de necessário ao edifício. Logo, nas palavras de Cristo, está suficientemente estabelecido tudo o que pertencer à salvação humana.
SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a lei nova devia ordenar ou proibir só os atos externos, que nos levam à graça, ou que respeitam necessariamente ao reto uso da mesma. Ora, a graça não podemos segui-la por nós mesmos, mas só por Cristo. Por onde, os sacramentos, pelos quais conseguimos a graça, o Senhor, Ele próprio, os instituiu. São eles: o batismo, a eucaristia, a ordem dos ministros da lei nova, quando instituiu os Apóstolos e os setenta e dois discípulos; a penitência; o matrimonio indissolúvel; enfim, a confirmação, prometida pela missão do Espírito Santo. Lê-se também no Evangelho, que, por sua instituição, os Apóstolos curavam os enfermos, ungindo-os com óleo. São esses os sacramentos da lei nova.
Quanto ao bom uso da graça, ele é obra da caridade. E as obras da caridade, enquanto necessárias à virtude, pertencem aos preceitos morais, que também a lei antiga estabeleceu. Por onde, neste ponto, a lei nova não devia acrescentar nada à antiga, quanto a tais obras externas. E quanto à determinação delas, quando ordenadas ao culto de Deus, ela pertence aos preceitos cerimoniais da lei; quando ordenadas ao próximo, aos judiciais, como dissemos (q. 99, a. 4). Ora, essas determinações não são em si mesmas necessárias à graça interior, no que consiste a lei nova. Por onde, não se incluem nos preceitos desta, mas são deixadas ao arbítrio humano. Delas, umas respeitam os súditos, e são relativas a cada um em particular; outras, aos superiores temporais ou espirituais, e são relativas à utilidade comum.
Assim pois a lei nova não devia determinar, ordenado ou proibido, quaisquer obras externas, além dos sacramentos e preceitos morais, que de si mesmos constituem a essência da virtude. Tais são os preceitos de não matar, não furtar e outros semelhantes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As verdades da fé são superiores à razão humana, e por isso não podemos alcançá-las sem ser pela graça. Por onde, com graça mais abundante podem-se explicitar mais verdades da fé. Ao passo que, na prática de atos virtuosos, nós nos dirigimos pela razão natural, que é uma determinada regra das ações humanas, com já dissemos (q. 19, a. 3; q. 63, a. 2_. E por isso neste ponto não havia necessidade de se estabelecerem preceitos, além dos da lei moral, que são ditames da razão.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os sacramentos da lei nova conferem a graça, que não é dada senão por Cristo; e por isso era necessário dele recebessem a instituição. Ao contrário, as coisas sagradas, como um templo ou um altar consagrado, ou coisas semelhantes, não conferem nenhuma graça, como também não a confere a celebração mesma das solenidades. Por onde, como essas coisas, em si mesmas, não, pertencem à necessidade interna da graça, o Senhor deixou ao arbítrio dos fiéis a instituição delas.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos referidos o Senhor deu aos Apóstolos, não como observâncias cerimoniais, mas como instituições morais. E podem se entender em duplo sentido. — Ou, conforme Agostinho, como concessões e não, como preceitos. Assim o Senhor concedeu-lhes pudessem exercer o ofício da pregação sem alforje nem bordão nem coisas semelhantes, por terem como que o poder de receber o necessário à vida daqueles a quem pregavam; e por isso acrescentou: porque é digno o trabalhador do seu alimento. Mas também, não peca, antes, faz mais do que deve, quem leva consigo o de que vive, desempenhando o dever da pregação, sem receber paga daqueles a quem prega o Evangelho, como fez Paulo. — De outro, pode-se entender, conforme a exposição de outros Santos, que foram dados aos Apóstolos certos preceitos temporais, no tempo em que foram mandados a pregar o Evangelho na Judéia, antes da paixão de Cristo. Pois, como que ainda pequenos e vivendo sob a proteção de Cristo, precisavam os discípulos de receber certas instituições especiais feitas pelo Mestre, como os súditos as recebem dos seus superiores. E principalmente, porque deviam exercitar-se aos poucos, para se deixarem do cuidado com as coisas temporais. E assim se tornavam idôneas para pregar o Evangelho por todo o mundo: Nem é para admirar se, ainda na vigência do regime da lei antiga, e sem terem os Apóstolos recebido a perfeita liberdade do Espírito, instituiu certos modos determinados de viver, os quais, nas vésperas da paixão, aboliu, por estarem os discípulos já neles suficientemente exercitados. Donde o dizer o Evangelho (Lc 22, 35-36): Quando eu vos mandei caminhar sem bolsa e sem alforje e sem sapatos, faltou-vos porventura alguma coisa? E eles responderam: Nada. Prosseguiu logo Jesus: Pois agora quem tem bolsa tome-a, e também alforje. Porque já estava iminente o tempo da perfeita liberdade, em que seriam entregues totalmente ao próprio arbítrio, quanto às coisas que, em si mesmas, não são necessariamente exigidas pela virtude.
RESPOSTA À QUARTA. — Os preceitos judiciais, em si mesmos considerados, também não concernem necessariamente à virtude, de um modo determinado; senão só quanto à idéia geral de justiça. Por isso, a aplicação deles o Senhor a deixou aos diretores dirigir os outros, espiritual ou temporalmente. Ao passo que fez certas explicações dos preceitos judiciais da lei antiga, por causa da má inteligência dos Fariseus, como a seguir se dirá (a. 3, ad 2).
(Quodl. IV, q. 8, a. 2; Ad Rom., cap. III, lect. IV)
O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei nova não devia ordenar nem proibir certos atos externos.
1. — Pois, a lei nova é o Evangelho do reino celeste, conforme a Escritura (Mt 24, 14): Serás pregado este Evangelho do reino por todo o mundo. Ora, o reino de Deus não consiste em atos externos, senão só em internos, conforme a Escritura (Lc 17, 21): Está o reino de Deus dentro de vós; e (Rm 14, 17): O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça e paz e gozo no Espírito Santo. Logo, a lei nova não devia ordenar nem proibir qualquer ato externo.
2. Demais. — A lei nova é a lei do Espírito, como diz a Escritura (Rm 8, 2), onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade, como diz o Apóstolo (2 Cor 3, 17). Logo, não há liberdade, quando o homem é obrigado a fazer ou a evitar certos atos externos. Logo, a lei nova não contem nenhum preceito ou proibição sobre atos externos.
3. Demais. — Todos os atos externos dependem das mãos, como os internos, da alma. Ora, a diferença entre a lei nova e a antiga é que esta coibia as mãos, e aquela coíbe a alma. Logo, a lei nova não devia estabelecer proibições e preceitos sobre os atos externos, mas somente sobre os internos.
Mas, em contrário, pela lei nova os homens se tornam filhos da luz; e por isso diz a Escritura (Jo 12, 36): Crede na luz, para que sejais filhos da luz. Ora, os filhos da luz devem fazer as obras da luz e não as das trevas, conforme o Apóstolo (Ef 5, 8): Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz. Logo, a lei nova devia proibir certas obras externas e ordenar outras.
SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 106, a. 1, 2), o que há de principal na lei nova é a graça do Espírito Santo, que se manifesta na fé que obra por caridade. E esta graça os homens a conseguem pela mediação do Filho de Deus humanado, cuja humanidade foi primeiro, cheia de graça, que, depois, se nos comunicou. Por isso, diz a Escritura (Jo 1, 14): O verbo se fez carne; e em seguida: Cheio de graça e de verdade; e em seguida: E todos nós participamos da sua plenitude, e graça por graça. E por isso acrescenta: a graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Por onde, convém que, por certos meios sensíveis externos, a graça que promana do Verbo encarnado chegue até nós; e que a graça interior, que torna a carne sujeita ao espírito, produza certas obras sensíveis externas.
Assim pois os atos externos podem de dois modos pertencer à graça — Primeiro, por levarem de certo modo a ela. E tal é a ação dos sacramentos instituídos pela lei nova, como, o batismo, a Eucaristia e outros. — De outro modo, há atos externos produzidos por inspiração da graça. Mas aqui devemos fazer uma distinção. Certos atos externos têm conveniência ou contrariedade necessária com a graça interior, consistente na fé que obra por caridade. E esses atos são ordenados ou proibidos pela lei nova; assim ela ordena a confissão da fé e proíbe a negação. Por isso a Escritura diz (Mt 10, 32-33): Todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai; e o que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai. Há outros atos porém que não têm contrariedade ou conveniência necessária com a fé que obra por caridade. E esses a lei nova não os ordenou nem os proibiu na sua instituição primitiva, mas foi deixado pelo legislador, i. é, por Cristo, ao arbítrio de cada um determinar como deve proceder em relação a eles. Assim, cada qual é livre, relativamente a esses atos, de determinar o que lhe convém fazer ou evitar; e o mesmo deve ordenar aos seus súditos o chefe, determinando o que, em tal caso, deve ser feito ou evitado. Por isso, neste ponto, a lei do Evangelho é chamada lei da liberdade; porque a lei antiga fazia muitas determinações e pouco deixava para ser determinado pela liberdade humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O reino de Deus consiste principalmente nos atos internos; por conseqüência, também pertence ao reino de Deus tudo aquilo sem o que esses atos não podem ser praticados. Assim se o reino de Deus consiste na justiça interior e na paz e alegria espiritual, necessariamente todos os atos exteriores, que repugnam à justiça, à paz ou à alegria espiritual repugnam também ao reino de Deus, e portanto devem ser proibidas pelo Evangelho desse reino. O reino de Deus, ao contrário, não consiste no que é indiferente à vida interior, como, p. ex., comer tais comidas ou tais outras. Por isso o Apóstolo disse antes: reino de Deus não é comida nem bebida.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Segundo o Filósofo, é livre quem é causa de seus atos. Logo, pratica um ato livremente quem de si mesmo o faz. Ora, o que o homem pratica por um hábito conveniente à sua natureza, por si mesmo o pratica; porque o hábito inclina ao que é conforme à natureza. Se pois o hábito fosse repugnante á natureza, o homem não agiria por si mesmo, mas levado por uma corrupção sobreveniente. Ora, a graça do Espírito Santo é como um hábito interior infuso em nós, que nos inclina a agir retamente. Logo faz-nos praticar livremente o que convém à graça e evitar o que lhe repugna. — Assim pois, a lei nova se chama lei da liberdade, em dois sentidos. Primeiro, por não nos obrigar a fazer nem a evitar nada, senão o em si mesmo necessário, ou contrário à salvação; e isso entra na ordenação ou na proibição da lei. Em segundo sentido, porque essas ordenações ou proibições ela nos faz cumpri-las livremente, enquanto as cumprimos por inspiração interna da graça. E por estas duas razões a lei nova é chamada lei da perfeita liberdade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei nova, proibindo os movimentos desordenados da alma, também havia necessariamente de coibir os atos desordenados das mãos, efeitos dos atos internos.
Em seguida devemos tratar do conteúdo da lei nova.
E nesta questão discutem-se quatro artigos:
[III Sent., dist. XL, a. 4, qª 3 ; Quodl. IV, q. 8, a. 2 ; In Matth, ; cap. IX].
O quarto discute-se assim. — Parece que a lei nova é mais onerosa que a antiga.
1. — Pois, sobre aquilo da Escritura — Aquele que quebrar um destes mínimos mandamentos — diz Crisóstomo: Os mandamentos de Moisés, como — não matarás, não fornicarás — são mais fáceis de praticarem. Enquanto que os de Cristo, como — Não te encolerizarás, não cobiçaras — são mais difíceis. Logo, a lei nova é mais onerosa que a antiga.
2. Demais. — É mais fácil usar da prosperidade terrena, do que sofrer tribulações. Ora, no Antigo Testamento, a prosperidade temporal era consecutiva à observância da lei, como se vê na Escritura (Dt 28, 1-14). Ao passo que muitas adversidades perseguem os observantes da lei nova, consoante o Apóstolo (2 Cor 6, 4-10): Portemo-nos em nossas mesmas pessoas como ministros de Deus, na muita paciência, nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, etc. Logo, a lei nova é mais onerosa que a antiga.
3. Demais. — Um preceito acrescentado a outro é mais difícil de ser observado. Ora, a lei nova foi acrescentada à antiga. Assim, esta proibiu o perjúrio; ao passo que aquela, até mesmo o juramento. A lei antiga proibia a separação da mulher sem o libelo de repúdio; a nova proibiu absolutamente a separação, como o diz a Escritura (Mt 5, 31 ss), conforme a exposição de Agostinho. Logo, a lei nova é mais onerosa que a antiga.
Mas, em contrário, diz a Escritura (Mt 11, 28): Vinde a mim, todos os que andam em trabalho e vos achais carregados. E segundo a explicação de Hilário: Chama a si os que padecem as dificuldades da lei e estão carregados com os pecados do século. E depois, o Senhor acrescenta, falando do jugo do Evangelho: O meu jugo é suave, e o meu peso leve. Logo, a lei nova é mais leve que a antiga.
SOLUÇÃO. — Em relação às obras virtuosas, para regular as quais foram dados os preceitos da lei, surge dupla dificuldade. — Uma, relativa às obras externas, que em si mesmas trazem uma certa dificuldade e onerosidade. E neste ponto a lei antiga será muito mais onerosa que a nova. Pois, com as suas múltiplas cerimônias, obrigava a mais atos externos que a lei nova. Esta, além dos preceitos da lei natural, poucas coisas acrescentou, com a doutrina de Cristo e dos Apóstolos. Embora muitos acréscimos se fizessem depois, por instituição dos santos padres. Mas ainda neste ponto, Agostinho diz, que não se deve perder de vista a moderação, para não se tornar onerosa a vida dos fiéis. Assim, referindo-se a certos, diz: Carregam com obras servis a própria religião nossa, que, com manifestíssimas e pouquíssimas cerimônias de sacrifícios, a misericórdia de Deus quis que fosse livre. De modo que é mais tolerável a condição dos judeus, sujeitos, a sacramentos legais e não a presunções humanas.
A outra dificuldade versa sobre os atos virtuosos internos, como quando praticados pronta e agradavelmente. Ora, atacar essa dificuldade é a função da virtude. Pois, a prática desses atos, muito difícil para quem não possui a virtude, torna-se fácil para o virtuoso. E neste ponto os preceitos da lei nova são mais onerosos que os da antiga. Pois, aquela proíbe os movimentos internos da alma, que a lei antiga não proibia expressamente em todos os casos, embora o fizesse em certos, em que porém não se acrescentava nenhuma pena à proibição. Ora, o que a lei nova dispõe é dificílimo para quem é sem virtude. Pois, como diz o Filósofo, é fácil fazer o que faz o justo; mas agir como ele age, deleitável e prontamente, é difícil para quem não tem justiça. E assim também diz a Escritura (1 Jo 5, 3): os seus mandamentos não são custosos; o que Agostinho explica: o que não é difícil para quem ama o é para quem não ama.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A autoridade aduzida se refere expressamente à dificuldade da lei nova, quanto à expressa proibição dos movimentos internos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — As contrariedades que sofrem os observantes da lei nova não são impostas pela lei mesma; contudo, como o amor, em que a lei consiste, são facilmente toleradas. Pois, como diz Agostinho o amor torna fácil e quase destrói o que é cruel e duro.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Esses acréscimos aos preceitos da lei antiga têm por fim facilitar-lhe a observância, como diz Agostinho. Logo, daí não se conclui que a lei nova seja mais onerosa, mas ao contrário, mais fácil.