Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute-se assim. – Parece que a nossa alegria espiritual causada pela caridade não pode ser completa.
1. – Pois, quanto maior for a alegria que sentirmos por causa de Deus, tanto mais completa ela será em nós. Ora, nunca poderemos nos alegrar tanto, por causa de Deus, quanto ele é digno; porque sempre a sua bondade, que é infinita, excede a alegria do ser criado, que é finita. Logo, a nossa alegria, por causa de Deus, não pode ser completa.
2. Demais. – O que já é completo não pode ser maior. Ora, a alegria, mesmo a dos bem aventurados, pode ser maior, porque a de um é maior que a de outro. Logo, a alegria por causa de Deus não pode ser completa, na criatura.
3. Demais. – A compreensão não é senão a plenitude do conhecimento. Ora, assim como a potência cognoscitiva da criatura é finita, assim também a sua potência apetitiva. E como Deus não pode ser compreendido por nenhuma criatura, resulta a alegria de nenhuma, por causa de Deus, pode ser completa.
Mas, em contrário, o Senhor diz aos discípulos: Para que o meu gozo fique em vós, e para que o vosso gozo seja completo.
SOLUÇÃO. – A plenitude da alegria pode ser entendida de dois modos. - De um modo, relativamente ao objeto com que nos alegramos; isto é, que nos alegremos com ele tanto quanto ele é digno dessa alegria. E assim só é completa a alegria que Deus tem consigo mesmo; porque sendo infinita é condigna da sua infinita bondade; ao passo que a alegria e quer criatura há de por força ser finita. - Doutro modo pode-se entender a plenitude da alegria relativamente a quem a tem. Ora, a alegria está para o desejo, como o repouso, para o movimento, como já dissemos quando tratamos das paixões. Ora, o repouso é completo quando nada mais resta do movimento. Logo, também a alegria é completa quando nada mais resta a desejar. Mas enquanto estamos neste mundo, não cessa em nós o movimento do desejo, porque ainda resta que nos aproximemos mais de Deus pela graça, como do sobredito resulta. Quando porém já tivermos chegado à beatitude perfeita, nada mais restará para desejar; porque então haverá o gozo completo de Deus, na qual o homem obterá tudo quanto desejar relativamente a outros bens, conforme aquilo da Escritura; O que enche de bens o teu desejo, E então há de aquietar-se não só o desejo de Deus, mas qualquer outro. E por isso a alegria dos bem-aventurados será perfeitamente completa. E mesmo supercompleta, porque obterão mais do que o que são capazes de desejar. Pois, como diz o Apóstolo, nem jamais veio ao coração do homem o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. E é isto mesmo que diz o Evangelista: No seio vos meterão uma boa medida e bem cheia. Como porém nenhuma criatura é capaz da alegria, por causa de Deus, que lhe seja condigna, daí resulta que o homem não é capaz de comportar essa alegria absolutamente completa; mas, antes, entra nela, conforme a Escritura Entra no gozo de teu Senhor.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A objeção colhe, quanto à plenitude da alegria concernente ao objeto com que nos alegramos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Alcançada a beatitude, cada um terá atingido o termo que lhe foi prefixado pela predestinação divina, nem restará nenhum outro termo a atingir; embora, alcançado o termo, um chegue a maior proximidade de Deus e outro, a menor. Por onde, a alegria de cada um, como sujeito dela, será completa, porque os desejos se lhe aquietarão completamente. Será, porém maior a de um que a de outro, conforme a participação mais completa da beatitude divina.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A compreensão implica a plenitude do conhecimento relativamente ao objeto conhecido, de modo que seja conhecido tanto quanto pode sê-lo. Mas o conhecimento também é susceptível de plenitude por parte do sujeito que conhece, como já o dissemos também a propósito da alegria. Por isso, o Apóstolo diz: Somos cheios do conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e inteligência espiritual.
O segundo discute-se assim. – Parece que a alegria espiritual, causada pela caridade, pode ser mesclada de tristeza.
1. – Pois, é próprio da caridade folgar com os bens do próximo, conforme a Escritura: A caridade não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Ora, esta alegria pode mesclarse de tristeza, no dizer do Apóstolo: Alegrai-vos com os que se alegram, chora com os que choram. Logo, a alegria espiritual da caridade pode mesclar-se de tristeza.
2. Demais. – A penitência, diz Gregório, consiste em chorarmos os males cometidos e não praticarmos de novo atos que devamos lamentar. Ora, não há verdadeira penitência sem caridade. Logo, a alegria da caridade pode mesclar-se de tristeza.
3. Demais. – A caridade nos leva a desejarmos estar com Cristo, conforme ao Apóstolo: Tendo desejo de ser desatado da carne, e estar com Cristo, Ora, esse desejo produz em nós uma certa tristeza, como o diz a Escritura: Ai de mim, que o meu desterro se prolongou. Logo, a alegria da caridade pode mesclar-se de tristeza.
Mas, em contrário, a alegria da caridade consiste em alegrar-se com a sabedoria divina. Ora, essa alegria não vai de mistura com a tristeza, conforme aquilo da Escritura: A sua conversação nada tem de desagradável. Logo, a alegria da caridade não pode mesclar-se de tristeza.
SOLUÇÃO. – A caridade causa uma dupla alegria, relativamente a Deus, como já dissemos. - Uma principal e própria da caridade, que nos leva a nos alegrar com o bem divino em si mesmo considerado. E essa alegria da caridade não pode mesclar-se de tristeza, como também não pode ir de mistura com o mal o bem com que ela se alegra. Por isso o Apóstolo diz: Alegrai-vos incessantemente no Senhor. Outra alegria da caridade é a pela qual nos alegramos com o bem divino enquanto participado por nós. Ora, essa participação pode ser impedida por alguma contrariedade. E por aí a caridade pode mesclar-se de tristeza, quando nos entristecemos com o que contraria à nossa participação do bem divino, ou a do próximo, a que amamos como a nós mesmos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As lágrimas do próximo só podem provir de algum mal. Ora, todo mal implica falta na participação do sumo bem. Por onde, a caridade nos faz condoermo-nos com o próximo, na medida em que estão impedidos de participar do bem divino.
RESPOSTA À SEGUNDA. – As iniquidades são as que fazem uma separação entre nós e Deus, como diz a Escritura. Por onde, a razão de nos condoermos por causa dos nossos pecados passados, ou mesmo pelos dos outros, é esses pecados nos impedirem a participação do bem divino.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora no miserável desterro desta vida participemos, de certo modo, do bem divino, pelo conhecimento e pelo amor, essa miséria contudo, impede a participação perfeita desse bem, tal como se dará na pátria. Por onde, essa tristeza mesma que nos leva a chorar, por causa da dilação da glória, constitui um impedimento à participação do bem divino.
O primeiro discute-se assim. – Parece que a alegria não é efeito da caridade em nós.
1. – Pois, da ausência da coisa amada resulta antes a tristeza que a alegria. Ora, Deus, que amamos com caridade, está ausente de nós, enquanto vivemos nesta vida; pois, enquanto estamos no corpo, vivemos ausentes do Senhor, como diz a Escritura. Logo, a caridade não nos causa, mais a tristeza que a alegria.
2. Demais. – Pela caridade, sobretudo merecemos a bem-aventurança. Ora, entre as condições pelas quais merecemos a bem-aventurança está o pranto, próprio da tristeza, conforme a Escritura: Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados, Logo, é efeito da caridade antes a tristeza, que a alegria.
3. Demais. – A caridade é uma virtude distinta da esperança, como do sobredito resulta. Ora, a alegria é causada pela esperança, conforme aquilo da Escritura: Na esperança, alegres. Logo, não é causada pela caridade.
Mas, em contrário, a Escritura: A caridade de Deus esta derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado. Ora, a alegria é causada em nós pelo Espírito Santo, conforme a Escritura: O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça e paz e gozo no Espírito Santo. Logo, a caridade é causa de alegria.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, quando tratamos das paixões, do amor procede a alegria e a tristeza, mas de modo contrário. Pois, a alegria é causada pelo amor, quer por causa da presença do bem amado, quer porque no bem amado mesmo existe e é conservado o bem próprio dele. E este segundo amor é o que constitui por excelência o amor de benevolência, que leva anos alegrarmos com o amigo próspero, embora ausente. Ao contrário, porém, do amor resulta a tristeza, quer pela ausência do amado, ou porque o amado, a quem queremos o bem, está dele privado, ou é de qualquer modo deprimido. Ora, a caridade é o amor de Deus, cujo bem é imutável, porque ele é a sua bondade mesma. E por isso mesmo que é amado, está no amante por um nobilíssimo efeito seu, conforme aquilo da Escritura: Aquele que permanece na caridade permanece em Deus e Deus nele. Logo, a alegria espiritual que temos relativamente a Deus é causada pela caridade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Enquanto estamos no corpo, somos considerados como vivendo ausentes do Senhor, por comparação com a presença que o manifesta a certos, por uma espécie de visão. Por isso, o Apóstolo acrescenta, no mesmo lugar: Porque andamos por fé, e não na visão. Mas, ele está presente aos que o amam, mesmo nesta vida, habitando neles pela graça.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O pranto, que merece a bem-aventurança, refere-se aquilo que é a ela contrário. Por onde, a mesma razão que leva a caridade a causar esse pranto, produz a alegria espiritual que tem Deus como objeto; pois, pela mesma razão por que gozamos de um bem, contristamo-nos com o que lhe é contrário.
RESPOSTA À TERCEIRA. – De dois modos podemos ter alegria espiritual fundada em Deus: gozando do bem divino em si mesmo considerado; ou gozando-o enquanto participado por nós. A primeira alegria é a melhor e procede principalmente da caridade. Mas, a segunda procede também da esperança, que nos dá a expectativa da fruição do bem divino; embora também essa fruição, perfeita ou imperfeita, seja obtida conforme a medida da caridade.
O oitavo discute-se assim. – Parece mais meritório amar ao próximo que a Deus.
1. – Pois, parece mais meritório o que o Apóstolo sobretudo prefere. Ora, o Apóstolo prefere o amor do próximo ao de Deus, conforme o diz: - Eu desejara ser anátema por Cristo, por amor de meus irmãos, Logo, é mais meritório amar ao próximo que a Deus.
2. Demais. – De certo modo parece menos meritório amar ao amigo, como se disse. Ora, Deus é o amigo por excelência, ele que foi o primeiro que nos amou a nós, como diz a Escritura. Logo, amar a Deus parece menos meritório.
3. Demais. – O mais difícil é mais virtuoso e meritório, pois a virtude versa sobre a dificuldade e o bem como diz Aristóteles. Ora, é mais fácil amar a Deus, que o próximo, quer por todos os seres naturalmente amarem a Deus, quer por não haver em Deus nada que não seja digno de ser amado - o que não se dá com o próximo. Logo, é mais meritório amar ao próximo, que a Deus.
Mas, em contrário, o que faz com que uma coisa seja o que é, é essa coisa mesma de maneira mais eminente. Ora, o amor do próximo não é meritório, senão por ser amado por causa de Deus. Logo, o amor de Deus é mais meritório que o do próximo.
SOLUÇÂO. – A comparação do amor do próximo com o de Deus pode ser entendida de duplo modo. - De um, considerando-se um e outro amor separadamente. E então nenhuma dúvida há que o amor de Deus não seja mais meritório; pois, em si mesmo, é devida recompensa a esse amor, porque a última recompensa é o gozo de Deus, para o qual tende o movimento do amor divino. Por isso ao amante de Deus é prometida, na Escritura, uma recompensa: aquele que me ama, será amado de meu Pai e me manifestarei a ele. De outro modo, essa comparação pode ser entendida de modo que o amor de Deus seja considerado no sentido em que só Deus é amado; e o amor do próximo, no sentido em que ele seja amado por causa de Deus, E assim, o amor do próximo inclui o de Deus; mas o de Deus não inclui o do próximo. Por onde, a comparação se faz entre o amor perfeito de Deus, que abrange também o do próximo, e um amor de Deus insuficiente e imperfeito; pois, nós temos de Deus este mandamento. Que o que ama a Deus, ame também a seu irmão. E neste sentido, o amor do próximo tem preeminência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO, – Segundo uma exposição da Glosa, o Apóstolo, quando em estado de graça, não desejava separar-se de Cristo, por amor de seus irmãos; mas o desejava, quando no estado de infidelidade. Por onde, nesse ponto, não deve ser imitado. Ou podemos dizer, segundo Crisóstomo, que essas palavras não significam amasse o Apóstolo mais ao próximo, que a Deus; mas que amava a Deus mais que a si mesmo. Queria assim ser privado por algum tempo do gozo divino, que é próprio ao amor de si, para buscar, no próximo, a honra divina, o que é próprio ao amor de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O amor do amigo é às vezes menos meritório só por ser o amigo amado como tal; e portanto, afasta-se da verdadeira essência do amor de caridade, que é Deus. Logo, o ser Deus amado, por si mesmo não diminui o mérito; antes, constitui a essência total deste.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A bondade constitui a essência do mérito e da virtude, mais que a dificuldade. Por onde, não é necessário seja tudo o que é mais difícil mais meritório; mas, sim, que seja mais difícil de modo a também ser melhor.
O sétimo discute-se assim. – Parece mais meritório amar o inimigo que o amigo.
1. - Pois, diz a Escritura. Se vós não amais senão os que vós amam, que recompensa haveis de ter? Logo, amar ao amigo não merece recompensa; mas, amar aos inimigos, sim, como no mesmo lugar se diz. Portanto, é mais meritório amar aos inimigos, que aos amigos.
2. Demais. – Um ato é tanto mais meritório quanto maior é a caridade donde procede. Ora, amar os inimigos é próprio dos filhos perfeitos de Deus, como diz. Agostinho; ao passo que mesmo a caridade imperfeita pode amar o amigo. Logo, há maior mérito em amar o inimigo que o amigo.
3. Demais. – Quanto o bem custa mais parece que há maior mérito, pois cada um receberá a sua recompensa particular segundo o seu trabalho, como diz a Escritura. Ora, precisamos fazer mais esforço para amar o inimigo do que para amar o amigo, por ser mais difícil. Logo, parece que amar o inimigo é mais meritório que amar o amigo.
Mas, em contrário, o melhor é mais meritório. Mas é melhor amar o amigo, por ser melhor amar ao melhor; ora, o amigo, que ama, é melhor que o inimigo, que odeia. Logo, amar ao amigo é mais meritório que amar o inimigo.
SOLUÇÃO. – A razão de amar ao próximo, com caridade, se funda em Deus, como já dissemos. Logo, quando se indaga se é melhor ou mais meritório amar o amigo ou o inimigo, o amor de um e o de outro são susceptíveis de dupla relação: uma concernente ao próximo amado; outra, à razão de ser amado. Ora, pela primeira relação, o amor do amigo tem preeminência sobre a do inimigo, por ser o amigo melhor e nos ser mais chegado; portanto, é matéria mais própria do amor e, por isso, o ato de amor que a tem como objeto, é melhor. Logo, o contrário é pior; pois, é pior odiar o amigo que o inimigo.
Pela segunda, porém, o amor ao inimigo tem preeminência, por duas razões. - A primeira é que a razão de amarmos ao amigo pode ser outra que não Deus; ao passo que só Deus pode ser a razão de amarmos ao inimigo. A segunda é que, pressuposto seja tanto um como outro amado por amor de Deus, mais forte se manifesta o amor de Deus, quando torna a alma humana capaz de atingir objetos mais elevados, isto é, de chegar até ao amor dos inimigos; assim como a virtude do fogo se manifesta tanto mais forte quanto maior for o número de objetos em que difunde o seu calor. E também tanto mais forte se mostra o amor divino quanto mais nós, por causa dele, fizermos coisas mais difíceis; assim como a virtude do fogo é tanto mais forte quanto mais pode queimar matéria menos combustível.
Mas assim como um mesmo fogo age sobre o que lhe está próximo mais fortemente do que sobre um objeto remoto, assim também, a caridade mais fervorosamente ama os que nos são chegados do que os que nos são afastados. E neste ponto, o amor dos amigos, em si considerados, é mais fervoroso e melhor que o dos inimigos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As palavras do Senhor devem entender-se em sentido próprio. Pois, o amor dos amigos não tem recompensa, junto de Deus, quando são amados somente por serem amigos. E isto se dá quando os amamos de modo que não amamos os inimigos. E porém meritório o amor dos amigos se forem amados por causa de Deus e não só por serem amigos.
Às outras objeções são CLARAS AS RESPOSTAS, pelo que fica dito. - Pois, as duas seguintes procedem fundadas na razão de amar. - E a última, fundada nos que são amados.
O sexto discute-se assim. – Parece que deve haver algum modo no amor divino.
1. – Pois, a essência do bem consiste no modo, na espécie e na ordem, como se vê claramente em Agostinho. Ora, o amor de Deus é o que há de melhor no homem, segundo aquilo do Apóstolo: Sobre tudo isto revesti-vos da caridade. Logo, deve haver modo no amor divino.
2. Demais. – Agostinho diz: Dize-me, peço-te, qual é o modo no amar. Pois, temo não me inflame, mais ou menos do que o necessário, no desejo e no amor do meu Senhor. Ora, buscaria em vão o modo, se nenhum houvesse no amor divino. Logo, há nesse amor algum modo.
3. Demais. – Como diz Agostinho, o modo é o que a medida própria de cada ser lhe determina. Ora, a medida da vontade humana, como a da ação exterior, é a razão. Logo, assim como o efeito exterior da caridade deve ter um modo estabelecido pela razão, conforme aquilo da Escritura - o vosso culto racional - assim também o amor interno de Deus deve ter modo.
Mas, em contrário, Bernardo diz, a causa de amar a Deus é Deus; o modo é amá-lo sem modo.
SOLUÇÃO. – Como resulta claro do lugar citado de Agostinho, o modo implica uma certa determinação de medida. Ora, essa determinação se encontra tanto na medida como no medido, mas de maneiras diversas. Na medida, essencialmente, porque ela, por essência, determina e impõe o modo às outras causas. Nas coisas medidas a medida existe de outra maneira, isto é, enquanto elas se lhe subordinam. Logo, na medida não se pode conceber nenhuma falta de modo; mas no medido não há modo, se não estiver subordinado, quer por deficiência, quer por excesso, à medida.
Ora, de todos os objetos de desejo e de ação, a medida é o fim; pois a razão própria do que desejamos e fazemos deve ser fundada no fim, como claramente o diz o Filósofo. Logo, o fim, em si mesmo, tem modo; os meios, porém, o tem enquanto proporcionados ao fim. Pois onde, como diz o Filósofo, o desejo do fim, em todas as artes, não tem fim nem limite; mais há um limite nos meios, Assim, o médico não impõe nenhum limite à saúde, mas se esforça pela tornar perfeita; impõem-no porém ao remédio, pela dar totalmente, senão só o necessário à recuperação da saúde; e se o remédio excedesse essa finalidade, ou não a alcançasse, seria sem modo.
Ora, o fim de todos os atos humanos e afetos é o amor de Deus, que nos leva, por excelência, a alcançar o fim último, como já dissemos. Logo, não se pode admitir modo, no amor de Deus, como em coisa medida, de maneira que seja susceptível de mais e de menos; mas sim, como o modo existe na medida, em que não pode haver excesso, mas, quanto mais subordinado à regra, tanto melhor será. Portanto, quanto mais amado for Deus, tanto mais perfeito será o amor.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O existente por si tem prioridade sobre o existente por outro. Por onde, a bondade da medida, que tem modo por si mesma, tem prioridade sobre a do medido, que tem modo mediato. E assim também a caridade, que tem modo como medida, tem preeminência sobre as outras virtudes, que tem modo como medidas que são.
RESPOSTA À SEGUNDA. – No mesmo lugar Agostinho acrescenta, que o modo de amar a Deus é amá-lo de todo o coração, isto é, amá-lo o quanto podemos. Ora, este é o modo próprio da medida.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Esse afeto, cujo objeto depende do juízo da razão, deve ser medido por esta. Ora, Deus, objeto do amor divino, excede o juízo da razão; logo, pela exceder, não pode ser medido por ela. Mas, o mesmo não se dá com o ato interior de caridade e com os atos externos. Pois, o ato interior de caridade tem natureza de fim, porque o bem último do homem consiste em a sua alma unir-se a Deus, conforme aquilo da Escritura: Para mim é bom unir-me a Deus. Ao passo que os atos exteriores tem natureza de meios. E portanto devem ser comensurados tanto pela caridade como pela razão.
O quinto discute-se assim. – Parece que Deus não pode ser totalmente amado.
1. – Pois, o amor resulta do conhecimento. Ora, Deus não pode ser totalmente conhecido por nós, porque então o compreendemos. Logo, não pode ser totalmente amado por nós.
2. Demais. – O amor é uma união, como está claro em Dionísio. Ora, o coração do homem não pode unir-se totalmente com Deus, porque Deus é maior que o nosso coração, como diz a Escritura. Logo, Deus não pode ser totalmente amado.
3. Demais. – Deus ama-se totalmente a si mesmo. Logo, se for também totalmente amado por outrem, esse amá-lo-á tanto quanto ele se ama a si mesmo, o que é inadmissível. Logo, Deus não pode ser totalmente amado por nenhuma escritura.
Mas, em contrário, a Escritura: Amarás ao senhor teu Deus de todo o teu coração.
SOLUÇÃO. – Entendendo-se o amor como um meio entre o amante e o amado, a questão se Deus pode ser totalmente amado, pode ser compreendida em tríplice sentido. - Num sentido tal que o modo se refira totalmente ao ser amado. E então Deus deve ser totalmente amado, porque o homem deve amar tudo o concernente a Deus. - Noutro sentido pode a questão ser entendida de modo que a totalidade se refira ao amante. E assim, ainda Deus deve ser totalmente amado, porque o homem deve amá-la com todas as suas forças e deve ordenar ao amor de Deus tudo o que tem, conforme aquilo da Escritura: Amarás ao senhor teu Deus de todo o teu coração. - Num terceiro sentido a questão pode ser entendida quanto à relação entre o amante e a causa amada, de maneira que o modo do amante seja adequado ao da causa amada. O que não pode se dar, no caso vertente. Pois, sendo qualquer ser amável na medida em que é bom, Deus, tendo uma bondade infinita, é infinitamente amável. E nenhuma criatura pode amá-la infinitamente, porque toda virtude da criatura, natural ou infusa, é finita.
Donde se deduzem claramente as RESPOSTAS AS OBJEÇÕES – Pois, as três primeiras, fundadas neste terceiro sentido, são procedentes. - E a ultima é procedente, fundada no segundo sentido.
O quarto discute-se assim – Parece que Deus não pode ser imediatamente amado nesta vida.
1. – Pois, o desconhecido não pode ser amado, como diz Agostinho. Ora, nós não conhecemos Deus imediatamente nesta vida, porque agora o vemos como por um espelho, em enigmas, como diz a Escritura. Logo, também não o amamos imediatamente.
2. Demais. – Quem não pode o menos não pode o mais. Ora, amar a Deus é mais que conhecê-lo pois, o que está unido ao Senhor, pelo amor, é um mesmo espírito com ele. Ora, o homem não pode conhecer a Deus imediatamente. Logo e muito menos, amá-lo.
3. Demais. – O homem separa-se de Deus pelo pecado, conforme aquilo da Escritura: As vossas iniquidades são as que fizeram uma separação entre vós e o vosso Deus. Ora, o pecado esta antes na vontade que no intelecto. Logo, o homem pode amar a Deus imediatamente, mas menos, do que imediatamente conhecê-lo.
Mas, em contrário, o conhecimento mediato de Deus é chamado enigmático e desaparecerá na pátria, como se vê na Escritura. Ora, a caridade não desaparecerá, conforme no mesmo lugar se lê. Logo, a caridade da via nos une diretamente a Deus.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, o ato da virtude cognoscitiva torna-se completo por estar o objeto conhecido no sujeito conhecente: ao passo que completo se torna o ato da virtude apetitiva pelo inclinar-se do apetite ao seu objeto. Por onde e necessariamente, o movimento da potência apetitiva há de tender para o objeto tal como ele é na sua natureza mesma; ao passo que o ato da potência cognoscitiva se consuma ao modo do sujeito conhecente. Ora, a ordem das coisas em si mesmas é tal, que Deus, em si mesmo, é cognoscível e amável, por ser a verdade e a bondade essenciais, pelas quais conhecemos e amamos os outros seres. Mas, nascendo dos sentidos o nosso conhecimento, nós conhecemos em primeiro lugar o que nos está mais próximo dele; e o último termo do nosso conhecimento é o que está em máximo grau deles afastado. Assim sendo, devemos concluir que o amor, enquanto ato da potência apetitiva, tende, mesmo na condição da vida presente, primariamente, para Deus, dele derivando para os outros seres; e portanto, a caridade ama a Deus imediatamente e, aos outros seres, mediante Deus. O contrário porém se dá com o conhecimento, porque conhecemos Deus por meio dos outros seres, como a causa pelo efeito; ou por meio de eminência ou de negação, conforme claramente o ensina Dionísio.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Embora não possa o desconhecido ser amado, isso não implica seja a ordem do amor a mesma do conhecimento. Pois, o amor é o termo do conhecimento. Portanto, quando acaba este, isto é, na coisa mesma, conhecida mediante outra, logo pode começar o amor.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O amor de Deus sendo algo de maior que o conhecimento do mesmo, sobretudo nesta vida, pressupõe esse conhecimento. E como o conhecimento não termina nas coisas criadas, mas, por elas, tende para outro termo, neste começa o amor, do qual deriva para outros seres. E realiza assim uma como circulação, pela qual o conhecimento, começando pelas criaturas, tende para Deus; e o amor, começando em Deus, como do fim último, deriva para as criaturas.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A caridade nos livra de nos separarmos de Deus, separação que é consequência do pecado; mas disso não nos livra só o conhecimento. Por onde, é a caridade que, amando à alma, imediatamente une com Deus, pelo vínculo da união espiritual.
O terceiro discute-se assim. – Parece que Deus deve ser amado com caridade, não por causa dele mesmo, mas por causa de outro ser.
1. – Pois, diz Gregório: Pelo que conhece, a alma aprende a amar o desconhecido. E chama desconhecido aos objetos inteligíveis e às coisas divinas; conhecido, ao sensível. Logo, Deus deve ser amado por causa de outro ser.
2. Demais. – O amor resulta do conhecimento. Ora, Deus é conhecido mediante outros seres, conforme aquilo da Escritura: As coisas de Deus invisíveis se veem, consideradas pelas obras que foram feitas. Logo, é amado por causa de outro ser e não por si mesmo.
3. Demais. – A esperança gera a caridade, como diz a glosa. E também o temor introduz a caridade, no dizer de Agostinho. Ora, a esperança tem a expectativa de alcançar algo de Deus; por seu lado, o temor procura evitar alguma pena que Deus pode infligir. Logo, parece que Deus deve ser amado por causa de algum bem esperado ou por algum mal temido. Portanto, não deve ser amado por si mesmo.
Mas, em contrário, Agostinho diz: fruir é unir-se, por amor, a um objeto, em si mesmo considerado. Ora, devemos fruir de Deus, como no mesmo lugar diz Agostinho. Logo, devemos amar a Deus por si mesmo.
SOLUÇÃO. – A expressão - por causa implica uma relação causal. Ora, há quatro gêneros de causas: a final, a formal, a eficiente e a material, à qual reduz também a disposição material, causa não absoluta, mas relativamente. E segundo esses quatro gêneros de causas, dizemos que uma coisa deve ser amada por causa de outra. Pelo gênero da causa final, como quando amamos um remédio por causa da saúde. Pelo da causa formal, quando amamos alguém por causa da virtude, isto é, por ser bom formalmente, por causa da virtude, e por consequência amável. Pela causa eficiente, quando amamos certos por serem filhos de um determinado pai. E quanto à disposição, que se reduz ao gênero da causa material, dizemos que amamos uma coisa por causa daquilo que nos dispõe ao amor dela. Assim, por causa de certos benefícios recebidos, embora, depois de termos começado a amar, amemos o amigo, não por causa desses benefícios mas por causa da sua virtude.
Ora, dos três primeiros modos não amamos a Deus por causa de outro ser, mas por causa dele mesmo. Pois, ele não se ordena a nenhum outro ser, como para o fim, mas ao contrário, é o fim último de todos os seres. Nem, para ser bom, é informado por nenhum outro ser; mas a sua substância é a sua bondade, pela qual e exemplarmente todos os seres são bons. Nem por fim, a sua bondade lhe advém de outro ser, senão dele, para todos os outros. - Mas, do quarto modo, Deus pode ser amado por causa de outras causas; pois, por meio de certos outros, nos dispomos a progredir no amor de Deus; Por exemplo, pelos benefícios dele recebidos, ou pelos prêmios esperados, ou ainda pelas penas que, por ele, buscamos evitar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O dito - pelo que conhece, a alma aprende a amar o desconhecido - não significa que os objetos conhecidos sejam a razão de amarmos os desconhecidos a modo de causa formal, final ou eficiente; mas, que assim, o homem se dispõe a amar o desconhecido.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Por certo que alcançamos o conhecimento de Deus por meio de outros seres; mas depois de já o conhecermos, não o conhecemos por outros, mas por si mesmo, conforme aquilo da Escritura: Não é já sobre o teu dito que nós cremos nele; mas é porque nós mesmos o ouvimos e porque sabemos ser este verdadeiramente o Salvador do mundo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A esperança e o temor conduzem à caridade a modo de uma certa disposição, como do sobredito se colhe.
O segundo discute-se assim. – Parece que amar, enquanto ato de caridade, não difere da benevolência.
1 – Pois, como diz o Filósofo, amar é querer bem a alguém. Ora, isto é benevolência. Logo, o ato de caridade em nada difere da benevolência.
2. Demais. – O ato depende do mesmo sujeito a que pertence o hábito. Ora, o sujeito do hábito da caridade é a potência da vontade, como já se disse. Logo, também o ato de caridade é um ato da vontade. Ora, este ato não pode tender senão para o bem, como a benevolência. Portanto, o ato de caridade não difere da benevolência.
3. Demais – O Filósofo estabelece cinco condições para haver amizade. A primeira é querermos bem ao amigo; a segunda, que lhe queiramos a existência e a vida; a terceira, convivermos com ele; a quarta, elegermos as mesmas coisas que ele; a quinta, sofrermos e gozarmos com ele. Ora, as duas primeiras condições pertencem à benevolência. Logo, o primeiro ato de caridade é a benevolência.
Mas, em contrário, o Filósofo diz que a benevolência não é amizade nem amor, mas é o principio da amizade. Ora, a caridade é amizade, como já dissemos. Logo, a benevolência não é o mesmo que o amor, ato da caridade.
SOLUÇÃO. – Chama-se propriamente benevolência ao ato da vontade pelo qual queremos bem a outrem. Ora, esse ato de vontade difere do amor atual, tanto do existente no apetite sensitivo, como do existente no apetite intelectual, que é a vontade. - Pois, o amor existente no apetite sensitivo é uma paixão. Ora, toda paixão inclina com um certo ímpeto para o seu objeto. A paixão do amor, porém, é próprio não surgir subitamente, mas nascer da contemplação assídua do objeto amado. Por isso, o Filósofo, mostrando a diferença entre a benevolência e o amor-paixão, diz, que na benevolência não há expansão e apetite, isto é, nenhuma inclinação impetuosa, mas só pelo juízo da razão é que queremos bem a outrem. Semelhantemente, esse amor resulta de uma certa convivência, ao passo que a benevolência nasce, às vezes, repentinamente, como quando ao vermos dois pugilistas em luta, querermos que um vença o outro.- O amor, porém, cuja sede é o apetite intelectivo, também difere da benevolência. Pois, implica uma certa união fundada no afeto do amante para com o amado, enquanto considera a este como, de certo modo, unido a si ou a si pertencente, e por isso, move-se para ele. Ao passo que a benevolência é um ato simples da vontade, pelo qual queremos algum bem a outrem mesmo sem pressupor a predita união afetuosa com ele. Assim, pois, o amor, enquanto ato da caridade, inclui por certo a benevolência; mas a dileção ou amor acrescenta a união do afeto. E por isso o Filósofo diz, no mesmo lugar, que a benevolência é o princípio da amizade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Filósofo, no mesmo lugar, define o amar, sem incluir na definição a essência total desse ato, senão só algo de pertencente à essência, por onde se manifesta sobretudo o ato de amar.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O amor é ato da vontade tendente para o bem; mas implicando uma certa união com o amado, o que a benevolência não implica.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os elementos que o Filósofo enumera, no lugar citado, constituem a amizade, enquanto procedentes do amor que temos por nós mesmos, conforme aí mesmo o diz. De modo que façamos tudo quanto ele enumera, para com o amigo, como se fosse outro eu; o que se inclui na supradita união do afeto.