Category: Santo Tomás de Aquino
O primeiro discute-se assim. – Parece que a beneficência não é um ato de caridade.
1. – Pois, praticamos a caridade sobretudo para com Deus. Ora, não podemos praticar a beneficência para com ele, conforme aquilo da Escritura. Que lhe darás? ou que receberá ele da tua mão? Logo, a beneficência não é um ato de caridade.
2. Demais. – A beneficência consiste sobretudo na distribuição de dádivas. Ora, isto é próprio da liberalidade. Logo, a beneficência não é ato de caridade, mas de liberalidade.
3. Demais. – O que damos ou é devido ou não. Ora, o benefício prestado como débito é obra de justiça; o prestado como não devido é feito de graça e, a esse título, é obra de misericórdia. Logo, todo benefício ou é ato de justiça ou de misericórdia e, portanto não de caridade.
Mas, em contrário. - A caridade é uma espécie de amizade, como já se disse. Ora, o Filósofo considera, entre os outros atos de amizade, o de fazer bem aos amigos, e isso é praticar a beneficência para com eles, Logo, a beneficência é ato de caridade.
SOLUÇÃO. – A beneficência nada mais implica senão o fazer bem a outrem. Ora, esse bem pode ser considerado à dupla luz. - Primeiro, como sendo a ideia geral do bem; e então se inclui na ideia geral de beneficência, é um ato de amizade, e portanto de caridade. Pois, o ato de amor inclui a benevolência, pelo qual queremos bem ao amigo, como já estabelecemos. Ora, a vontade, quando possível, é que pratica esse bem, que queremos. Logo e consequentemente, fazer bem ao amigo é ato de amizade. E por isso a beneficência, quanto à ideia geral, é um ato de amizade ou caridade. - Se porém o bem, que fazemos a outrem, é considerado sob um aspecto especial, então será tomada em acepção particular e constituirá uma virtude especial.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como diz Dionísio, o amor move as causas ordenadas a uma relação mútua, referindo as inferiores às superiores, para serem aquelas aperfeiçoadas por estas; e movendo as superiores a prover às inferiores. E a esta luz, a beneficência é efeito do amor; e, portanto, não podemos fazer bem a Deus, mas sim honrá-lo, a ele nos sujeitando. E a ee pertence fazer-nos benefícios, por amor.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Dois elementos devemos considerar, na distribuição dos bens: o ato externo de dar, e o afeto interno que tivermos pelas riquezas e que consiste em deleitarmo-nos com elas. Ora, é próprio da liberalidade moderar a paixão interior, de modo a não desejarmos e amarmos em excesso as riquezas, o que nos leva à liberalidade nas dádivas. Portanto, quem fizer alguma grande dádiva, tendo contudo grande desejo de não fazê-la, não será liberal. Mas quanto ao ato externo de dar, a prestação do benefício é própria em geral à amizade ou à caridade. Portanto não contraria a amizade quem dá a outrem, por amor, um bem que deseja conservar; antes, isso mostra mais a perfeição da amizade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como a amizade ou a caridade é levada, em relação ao benefício feito pela ideia geral do bem; assim, a justiça, pela de débito. Ao passo que a misericórdia, ao fazer o benefício, se inspira na ideia de aliviar a miséria ou a necessidade..
O quarto discute-se assim. – Parece que a misericórdia é a máxima das virtudes.
1. – Pois, à virtude é próprio, por excelência, o culto divino. Ora, a misericórdia tem preferência sobre o culto divino, conforme um lugar de Oséas e outro do Evangelho. Misericórdia quero e não sacrifício. Logo, a misericórdia é a máxima virtude.
2. Demais. – Àquilo do Apóstolo. - A piedade para tudo é útil - diz a Glosa: A máxima disciplina cristã esta na misericórdia e na piedade. Ora, a disciplina cristã contém todas as virtudes. Logo, a máxima virtude é a misericórdia.
3. Demais. – A virtude torna bom aquele que a tem. Logo, uma virtude será tanto melhor, quanto mais tornar o homem semelhante a Deus; porque tanto melhor ele é quanto mais se assemelhar a Deus. Ora, isto é por excelência resultado da misericórdia, pois de Deus diz a Escritura: as suas misericórdias são sobre todas as suas obras; e, no Evangelho o Senhor diz: Sede misericordiosos como também vosso pai é misericordioso, Logo, a misericórdia é a máxima virtude.
Mas, em contrário, o Apóstolo, depois de ter dito: Vós, como escolhidos de Deus, revesti-vos de entranhas de misericórdia, etc., acrescenta sobre tudo isto, revesti-vos de caridade. Logo, a misericórdia não é a máxima virtude.
SOLUÇÃO. – Uma virtude pode ser máxima de dois modos: em si mesma considerada, e em relação ao seu sujeito. Ora, em si mesma, a misericórdia é máxima. Pois é lhe próprio repartir-se com os outros; e o que é mais, remediar-lhes as necessidades. Ora, isto é peculiar ao que é eminentemente superior. Por isso dizemos que ter misericórdia é próprio de Deus, e por aí se lhe ela manifesta eminentemente. - Mas, quanto ao seu sujeito, a misericórdia não é a virtude máxima, salvo se esse sujeito for supremo, sem ninguém acima de si, e todos, abaixo. Pois, quem tem superior é lhe melhor estar unido com ele do que remediar às necessidades do inferior. Por onde, para o homem, que tem Deus como superior, a caridade, pela qual se une com ele, tem prioridade sobre a misericórdia, que remedia as necessidades do próximo. Mas dentre todas as virtudes concernentes ao próximo, a mais principal é a misericórdia; assim como também o seu ato é mais importante; pois, remediar às necessidades de outrem, como tal, é próprio de quem é superior e melhor.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Nós não adoramos a Deus, fazendo-lhe sacrifícios externos ou oferendas, por que Deus disso precise, mas por nossa causa o do próximo. Pois, Deus embora não precise dos nossos sacrifícios, quer que lhes ofereçamos por devoção nossa e para utilidade do próximo. Por onde, a misericórdia, pela qual remediamos às necessidades dos outros, é o sacrifício mais agradável a Deus, por satisfazer mais imediatamente à utilidade do próximo, conforme aquilo da Escritura. Não vos esqueçais de fazer bem e de repartir dos vossos bens com os outros; porque com tais oferendas é que Deus se dá por obrigado.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A religião cristã consiste eminentemente na misericórdia, quanto às obras externas. Contudo, o afeto interior da caridade, pelo qual nos unimos com Deus, prepondera sobre o amor e a misericórdia para com o próximo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Pela caridade nós nos assemelhamos com Deus, que nos leva à união com ele pelo afeto. E por isso, prepondera sobre a misericórdia, que nos assemelha com Deus por semelhança no agir.
O terceiro discute-se assim. – Parece que a misericórdia não é uma virtude.
1. – Pois, o que há de principal na virtude é a eleição, como diz o Filósofo. Ora, a eleição é o apetite premeditado, segundo se lê no mesmo autor. Logo, ao que impede a deliberação não pode chamar-se virtude. Ora, a misericórdia a impede, conforme aquilo de Salústio: Todos os homens que deliberam sobre coisas duvidosas devem ser isentos de ira e de misericórdia; pois, o ânimo em que dominam esses afetos não atina facilmente com a verdade. Logo, a misericórdia não é uma virtude.
2. Demais. – Tudo o contrário à virtude não é louvável. Ora, a némese encontra a misericórdia, como diz o Filósofo. Mas, a némese é uma paixão louvável, como ele também o afirma. Logo, a misericórdia não é virtude.
3. Demais. – A alegria e a paz não são virtudes especiais, porque resultam da caridade, como já se disse. Ora, também a misericórdia resulta da caridade; pois, a caridade nos faz chorar com os que choram e alegrarmo-nos com os que se alegram. Logo, a misericórdia não é uma virtude especial.
4. Demais. – Pertencendo a misericórdia à potência apetitiva, não é virtude intelectual. Nem é virtude teologal, por não ter Deus como objeto. Não é também virtude moral, por não concernir aos atos, o que é próprio da justiça; nem concerne às paixões, pois não se reduz a nenhuma das dez medianias enumeradas pelo Filósofo. Logo, a misericórdia não é uma virtude.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Muito melhor, mais humano e mais acomodado ao sentir dos homens pios é o que Cicero disse, ao fazer o elogio de César: Nenhuma das tuas virtudes é mais admirável nem mais grata, que a tua misericórdia. Logo, a misericórdia é uma virtude.
SOLUÇÃO. – A misericórdia implica a dor para com a miséria alheia. Ora, esta dor pode ser, de algum modo, considerada um movimento do apetite sensitivo; e a esta luz, a misericórdia é paixão e não, virtude. De outro modo, porém, pode ser considerada movimento do apetite intelectivo enquanto nos desagrada o mal de outrem. Ora, este movimento pode ser regulado pela razão; e pode, uma vez assim regulado, regular também o movimento do apetite inferior. Donde o dizer Agostinho, este movimento da alma, isto é, a misericórdia, serve à razão, quando nós a dispensamos para conservar a justiça, quer dando ao necessitado, quer perdoando ao arrependido. Ora, a virtude humana consistindo essencialmente num movimento da alma regulado pela razão, como do sobredito resulta, a misericórdia é, por consequência, virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O lugar citado de Salústio entende-se da misericórdia, enquanto paixão não regulada pela razão; pois, assim, ela impede o conselho racional, fazendo-nos apartar da justiça.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O Filósofo se refere, no lugar aduzido, à misericórdia e a némese, considerando-as como paixões. Ora, como tais, implicam contrariedade relativamente ao julgamento dos males alheios, com os quais o misericordioso se compadece, julgando-os como sofridos por outrem imerecidamente; ao passo que o nemésico se alegra quando julga outrem sofrê-los pelos merecer; e se entristece quando as coisas correm bem aos que disso não são dignos. Ora, ambos esses afetos são louváveis e procedem do mesmo sentimento moral, como no mesmo lugar diz Aristóteles. Mas, propriamente, a misericórdia se opõe à inveja, como a seguir se dirá.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A alegria e a paz nada acrescentam à ideia do bem, que é o objeto da caridade; e portanto, não exigem outras virtudes diferentes da caridade. Ao passo que a misericórdia concerne uma ideia especial, a saber: a miséria daquele de quem nos compadecemos.
RESPOSTA À QUARTA. – A misericórdia é uma virtude moral concernente às paixões e se reduz à mediania chamada némese, porque ambas procedem do mesmo sentimento moral, como diz Aristóteles. Ora, essas medianias o Filósofo não as considera virtudes, mas paixões; pois, mesmo como paixões, são louváveis. Nada impede, porém, que provenham de hábito eletivo. E então são, por essência, virtudes.
O segundo discute-se assim. – Parece que os nossos defeitos não são a razão pela qual temos misericórdia.
1. – Pois, é próprio de Deus ter misericórdia, donde o dizer a Escritura As suas misericórdias são sobre todas as suas obras, Ora, Deus não tem nenhum defeito. Logo, os nossos defeitos não podem ser a razão de termos misericórdia.
2. Demais. – Se os nossos defeitos fossem a razão de termos misericórdia, necessariamente os que mais defeitos tivessem teriam também mais misericórdia. Ora, isto é falso, pois, como diz o Filósofo, os que se perderam totalmente não tem misericórdia. Logo, parece que os nossos defeitos não são a razão de termos misericórdia.
3. Demais. – É por termos defeitos que suportamos as injúrias. Ora, como diz o Filósofo no mesmo lugar os que tem disposição a injuriar não tem misericórdia. Logo, o ter defeitos não é a razão de termos misericórdia.
Mas, em contrário, a misericórdia é uma espécie de tristeza. Ora, dos nossos defeitos vem o padecermos tristeza, e por isso os fracos se contristam mais facilmente. Logo, a razão de termos misericórdia são os nossos defeitos.
SOLUÇÃO. – Sendo a misericórdia compaixão pela miséria alheia, como dissemos daí resulta que nos compadecemos quando nos condoemos com tais misérias. Ora, como a tristeza ou a dor tem por objeto o nosso mal próprio, nós nos entristecemos ou condoemos, quando consideramos nossa a miséria alheia, o que pode dar-se de dois modos. - De um modo, pela união do afeto, operada pelo amor. Pois, é porque o amante considera o amigo como outro eu, que reputa o mal dele por seu próprio, e portanto, sofre com esse mal como sofreria com o seu. E por isso, o Filósofo entre as outras condições da amizade, põe a de nos condoermos com o amigo. E o Apóstolo diz: Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram. - De outro modo, pela união real, quando o mal de certos nos esta tão próximo que nos pode atingir. E por isso o Filósofo diz que nós nos compadecemos com os que nos são chegados e semelhantes, porque estes nos levam a pensar que também poderíamos vir a sofrer idênticos males. E daí também procede serem os velhos e os sábios, os fracos e os medrosos, que se consideram como podendo vir a sofrer males, mais misericordiosos. Pelo contrário, os que se tem por felizes, e a tal ponto poderosos, que se julgam livres de sofrer qualquer mal, não se compadecem do mesmo modo. - Assim, pois, sempre o defeito é a razão da misericórdia: quer por considerarmos o defeito de outrem, como nosso, por causa da união do amor; quer pela possibilidade de virmos a padecer sofrimentos semelhantes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus só se compadece por amor, por nos amar como criaturas suas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os que já estão imersos em males infinitos, não temem sofrer mais nada, e por isso não se comiseram. Nem, semelhantemente, os que muito temem, porque estão a tal ponto entregues à paixão própria, que não se importam com a miséria alheia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os que tem disposição injuriosa, quer por terem sofrido injúrias, quer por quererem assacá-las, são incitados à ira, e à audácia, paixões que implicam virilidade, exaltando o ânimo do homem para coisas árduas e, por isso, privando-o de ponderarem do que hão de sofrer no futuro. E por isso esses tais, quando nessa disposição, não se comiseram, conforme aquilo da Escritura. A ira não tem misericórdia, nem o furor que rompe. E pela mesma razão, os soberbos não tem comiseração, por desprezarem os outros e os considerarem maus, reputando-os assim dignos de padecerem o que sofrem. Donde o dizer Gregório: falsa justiça, isto é, a dos soberbos, não tem compaixão, mas desprezo.
O primeiro discute-se assim. – Parece que o mal não incita propriamente à misericórdia.
1. – Pois, como já demonstramos a culpa é maior mal que a pena. Ora, a culpa não desperta a misericórdia, mas antes, a indignação. Logo, o mal não incita à misericórdia.
2. Demais. – As coisas cruéis ou terríveis comportam um excesso de mal. Ora, como diz o Filósofo, o terrível difere do lamentável e exclui mesmo a compaixão. Logo, o mal, como tal, não incita à misericórdia.
3. Demais. – Os sinais dos males não são verdadeiros males. Ora esses sinais provocam a misericórdia, como se lê claramente no Filósofo. Logo, o mal não incita propriamente à misericórdia.
Mas, em contrário, diz Damasceno, que a misericórdia é uma espécie de tristeza. Ora, o que move à tristeza é o mal. Logo, o mal incita à misericórdia.
SOLUÇÃO. – Como diz Agostinho, a misericórdia é a compaixão do nosso coração pela miséria alheia, que nos leva a socorrê-la, se o pudermos. Pois, a misericórdia é assim chamada de termos o coração comiserado pela miséria alheia. Ora, a miséria se opõe à felicidade; e em a natureza da beatitude ou felicidade está podermos o que quisermos. Pois, no dizer de Agostinho: feliz é quem tem tudo o que quer e não quer nada de mau. Logo e ao contrário, a miséria implica em sofrermos o que não queremos. Ora de três modos podemos querer uma coisa. De um modo, com desejo natural; assim, todos os homens querem existir e viver. De outro modo, escolhendo e por uma certa premeditação. De terceiro modo, podemos querer uma coisa, não em si, mas na sua causa; assim, dizemos que quem quer comer o que é nocivo, quer, de certo modo, adoecer. Por isso, incita à misericórdia, por implicar a miséria: - primeiro o que contraria ao apetite natural de quem quer uma coisa, isto é, o mal que perde e aflige, cujo contrário os homens naturalmente desejam. Donde o dizer o Filósofo a misericórdia é uma tristeza causada por um mal que presenciamos e é capaz de nos perder ou de afligir. - Segundo esses males movem mais à misericórdia se contrariam a vontade da escolha. Por isso, diz o Filósofo no mesmo lugar, que são dignos de compaixão os males, dos quais a fortuna é a causa; por exemplo, quando acontece um mal em lugar do bem que esperávamos. - Terceiro esses males são ainda mais dignos de compaixão se contrariam totalmente a vontade; por exemplo, quando acontece mal a quem sempre buscou o bem. Donde o dizer ainda o Filósofo, que a misericórdia tem sobretudo por objeto os males de quem os sofre sem as merecer.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – É da essência da culpa ser voluntária. E assim, ela não provoca essencialmente a misericórdia, mas antes, a punição. Mas como a culpa pode, de certo modo, ser uma pena, por trazer consigo um elemento contrário à vontade do pecador, isso faz com que ela também possa ser essencialmente digna de misericórdia. E assim que temos misericórdia dos pecadores; pois, como diz Gregório, a verdadeira justiça não vota desprezo, mas antes compaixão pelos pecadores. E a Escritura: E olhando Jesus para aquelas gentes, se compadeceu delas, porque estavam fatigadas e quebrantadas como ovelhas que não tem pastor.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Sendo a misericórdia compaixão pela miséria alheia, é propriamente relativa a outrem e não a nós mesmos, senão por certa semelhança, assim como se dá com a justiça, quando se consideram no homem diversas partes, segundo Aristóteles.- E neste sentido, diz a Escritura. Tem piedade com a tua alma, fazendo-te agradável a Deus, Assim, pois, não sendo a misericórdia relativa a nós mesmos, mas sim a dor, como quando, por exemplo, sofrermos algo de doloroso, assim também não temos misericórdia, mas nos condoemos, como se nos fossem próprios, com os males das pessoas que nos são chegadas, como se fossem elas partes de nós mesmos, tais como os filhos ou os pais. E por isso o Filósofo diz: o que é lamentável exclui a misericórdia.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como da esperança e da recordação dos bens resulta o prazer, assim, da esperança e da recordação dos males, a tristeza; não porém, tão veemente, como quando resulta da sensação do objeto presente. Por isso os sinais dos males, quando nos representam como atuais males dignos de compaixão, incitam-nos à misericórdia.
O quarto discute-se assim. – Parece que a paz é uma virtude.
1. – Pois, não se dão preceitos senão para regular os atos de virtude. Ora, há preceitos estabelecidos sobre a paz que devemos guardar como está claro no Evangelho: Guardai paz entre nós. Logo, a paz é uma virtude.
2. Demais. – Nós não merecemos senão por atos virtuosos. Ora, fazer paz é meritório, conforme aquilo da Escritura Bem-aventurados os pacíficos, porque eles serão chamados filhos de Deus. Logo, a paz é uma virtude.
3. Demais. – Os vícios se opõem às virtudes. Ora, as dissensões, que se opõem à paz, a Escritura as enumera entre os vícios. Logo, a paz não é uma virtude.
Mas, em contrário. - A virtude não é o fim último, mas caminho para ele. Ora, a paz é, de certo modo, o fim último, como diz Agostinho. Logo, a paz não é uma virtude.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos quando determinados atos resultam uns dos outros, procedentes do agente, dependentemente de uma mesma razão, todos esses atos procedem da mesma virtude, e não, cada um de uma virtude particular, como bem se vê na ordem material. Assim, o fogo, aquecendo, liquefaz e rarefaz, sem ser nele uma a virtude liquefativa e outra, a rarefativa; mas, todos esses efeitos o fogo os produz pela sua só virtude calefativa. Ora, sendo a paz causada pela caridade, subordinada à razão do amor de Deus e do próximo, como demonstramos não há outra virtude, de que a paz seja o ato próprio, senão a caridade como também já dissemos, a propósito da alegria.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Estabeleceu-se um preceito sobre a paz que devemos guardar porque ela é um ato de caridade. E por isso é também ato meritório. Por isso é colocada entre as bem-aventuranças, atos de virtude perfeita como já dissemos. E também entre os frutos por ser um bem final, acarretando consigo a doçura espiritual.
Donde se deduz clara a RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A uma mesma virtude se opõem muitos vícios, conforme os diversos atos dela. E assim, à caridade não só se opõe o ódio, em razão do ato do amor, mas também, a acédia ou a inveja, em razão da alegria; e a dissensão, em razão da paz.
O terceiro discute-se assim. – Parece que a paz não é um efeito próprio da caridade.
1. – Pois, não podemos ter a caridade sem a graça santificante. Ora, certos tem paz sem terem essa graça; assim, os gentios tem às vezes paz. Logo, a paz não é efeito da caridade.
2. Demais. – Não é efeito da caridade aquilo cujo contrário pode coexistir com ela. Ora, a dissensão, contrária à paz, pode co-existir com a caridade; pois, vemos até mesmo santos doutores, como Jerônimo e Agostinho, dissentirem em certas opiniões. E também se lê na Escritura que Paulo e Barnabé dissentiram. Logo, parece que a paz não é efeito da caridade.
3. Demais. – Um mesmo efeito não pode provir de causas diversas. Ora, a paz é efeito da justiça, conforme a Escritura: A paz é obra da justiça. Logo, não é efeito da caridade.
Mas, em contrário, a Escritura. Gozam muita paz os que amam tua Lei.
SOLUÇÃO. – Dupla união exige, por essência, a paz, como dissemos. A primeira se funda na ordenação dos nossos próprios apetites à unidade; a outra, na união do nosso próprio apetite com o de outrem. E ambas essas uniões a caridade as produz. A primeira, quando amamos a Deus de todo o nosso coração de modo a lhe referirmos tudo; e, assim, todo os nossos apetites se reduzem à unidade. A outra, quando amamos ao próximo como a nós mesmos, donde resulta querermos satisfazer-lhe a vontade como se fosse a nossa própria; por isso, Aristóteles considera como um dos sinais da amizade a identidade de eleição; e Túlio (Salústio) diz, que é próprio dos amigos quererem e não quererem as mesmas causas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A graça santificante não falta a ninguém senão por causa do pecado, que leva o homem a afastar-se do fim devido, constituindo o seu fim nalguma coisa que lhe é contrária. E assim sendo, o seu apetite não adere principalmente ao verdadeiro bem final, mas a um bem aparente. E por isso, sem a graça santificante não pode haver verdadeira paz, mas só aparente.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como diz o Filósofo, a amizade não exige a concórdia nas opiniões, mas a nos bens concernentes à vida, sobretudo nos grandes; pois, dissentir em coisas pequenas não é, a bem dizer, dissentir. E por isso nada impede dissintam nas suas opiniões os que tem caridade mútua. E nem isto repugna à paz, porque as opiniões são relativas ao intelecto, que precede o apetite, unido pela paz. Semelhantemente, quando existe a concórdia em relação a bens importantes, a dissensão relativamente a pequenos bens não é contra a caridade. Pois essa dissensão procede da diversidade de opiniões, pensando um que o objeto da dissensão diz respeito ao bem relativamente ao qual estão de acordo, e o outro, que não diz respeito a tal bem. E sendo assim, tal dissensão fundada em pequenas coisas e em opiniões, contraria por certo à paz perfeita, no regime da qual a verdade será plenamente conhecida e todo apetite satisfeito; não repugna, porém à paz imperfeita, como a temos nesta vida.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A paz é indiretamente obra da justiça, enquanto remove o obstáculo. Mas é diretamente obra da caridade, causa, por essência, da paz. Pois, o amor é uma força unitiva, como diz Dionísio. Ora, a paz é a união das inclinações apetitivas.
O segundo discute-se assim. – Parece que nem todos os seres desejam a paz.
1. – Pois, a paz, segundo Dionísio, opera a união, dos consensos, Ora, em seres sem conhecimento, o consenso não é susceptível de união. Logo, não podem desejar tal paz.
2. Demais. – Um apetite não pode tender simultaneamente para termos contrários. Ora, muitos desejam a guerra e a dissensão. Logo, nem todos desejam a paz.
3. Demais. – Só o bem é desejável. Ora, há uma certa paz que parece má; do contrário o Senhor não dirá: Não vim trazer a paz. Logo, nem todos os seres desejam a paz.
4. Demais. – O que todos os seres desejam é o sumo bem, que é o fim último. Ora, tal fim não é a paz, pois, nós a temos, mesmo, nas condições da vida atual; do contrário, o Senhor teria ordenado em vão: Guardai paz entre vós. Logo, nem todos os seres desejam a paz.
Mas, em contrário, Agostinho diz que todos os seres desejam a paz. E o mesmo também diz Dionísio.
SOLUÇÃO. – Por isso mesmo que desejamos uma coisa havemos de desejar a consecução dela; e portanto a remoção dos obstáculos capazes de impedi-la. Ora, a consecução de um bem desejado pode ser impedida por um apetite contrário nosso ou de outrem, e ambos esses obstáculos a paz os elimina como já dissemos. Logo e necessariamente todos os seres que desejam hão de desejar a paz, por todos esses desejarem alcançar tranquilamente e sem impedimentos o que desejam; ora, nisso consiste essencialmente a paz, que Agostinho define a tranquilidade da ordem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A paz implica a união não só do apetite intelectual ou racional e do animal, que são susceptíveis de consenso, mas também, do apetite natural. E por isso, Dionísio diz, que a paz é operativa do consenso e da co-naturalidade; implicando o consenso a união dos apetites procedentes do conhecimento, e a co-naturalidade, a dos apetites naturais.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Mesmo os que procuram a guerra e as dissensões não desejam senão a paz, que consideram não possuir. Pois, como dissemos, não há paz quando concordamos com alguém, contrariando ao que mais queremos. Por isso, os homens procuram romper essa concórdia, onde há falta de paz, guerreando, afim de conseguirem uma paz em que nada lhes contrarie à vontade. Por onde, todos os que guerreiam procuram, com a guerra, alcançar uma paz mais perfeita do que a anteriormente possuída.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A paz consiste na quietação e na união do apetite. Ora, assim como o apetite pode buscar o bem real ou o aparente, assim também a paz pode ser verdadeira, e aparente. A verdadeira não pode existir sem o apetite do verdadeiro bem; porque todo mal, embora, de algum modo, pareça bem, e possa, por isso, aquietar o apetite, encerra contudo, muitas deficiências, que trazem o apetite inquieto e perturbado. Por isso paz verdadeira não pode ser senão a fundada no bem e a dos bons. Donde o ser a paz dos maus aparente e não verdadeira; e de aí o dizer a Escritura: Vivendo em grande guerra de ignorância, chamam paz a tantos e tão grande males.
RESPOSTA À QUARTA. – A verdadeira paz não podendo fundar-se senão no bem; e assim como possuirmos o verdadeiro bem de dois modos - perfeita e imperfeitamente, assim também dupla é a verdadeira paz. - Uma, perfeita, consistente no gozo perfeito do sumo bem, pelo qual todos os apetites se unem na quietude da união. E este é o fim último da criatura racional, conforme aquilo da Escritura. O que estabeleceu a paz nos seus limita. - Outra é a paz imperfeita, possuída neste mundo; porque embora a tendência principal da alma descanse em Deus, há contudo, certos obstáculos internos e externos, que perturbam essa paz.
O primeiro discute-se assim. – Parece que a paz é o mesmo que a concórdia.
1. – Pois, como diz Agostinho, a paz dos homens é a concórdia ordenada. Ora, o de que agora se trata é da paz dos homens. Logo, a paz é o mesmo que a concórdia.
2. Demais. – A concórdia é uma união das vontades. Ora, a essência da paz consiste nessa união; pois, como diz Dionísio a paz une a todos e produz a concórdia. Logo, a paz é o mesmo que a concórdia.
3. Demais. – Coisas que tem o mesmo contrário são idênticas. Ora um mesmo contrário - a dissenção - se opõe à concórdia e à paz; donde o dizer a Escritura· Não é Deus de dissensão, senão de paz. Logo, a paz é o mesmo que a concórdia.
Mas, em contrário, pode haver concórdia de certos ímpios, no mal. Ora, para os ímpios não há paz, diz a Escritura. Logo, a paz não é o mesmo que a concórdia.
SOLUÇÃO. – A paz inclui a concórdia e lhe acrescenta algo. Logo, onde há paz há concórdia, mas nem sempre há concórdia onde há paz, se tomarmos este nome no seu sentido próprio. Pois, a concórdia, no sentido próprio, é sempre relativa a outrem; pois, ela faz as vontades de diversos corações convirem num mesmo consenso. Mas também pode se dar que a vontade de um mesmo homem tenda para objetos diversos; e isto, de dois modos. De um modo, quanto às diversas potências apetitivas assim, o apetite ensitivo muitas vezes busca o contrário do apetite racional, conforme aquilo da Escritura: A carne deseja contra o espírito. De outro modo, quando uma mesma potência apetitiva tende para diversos objetos desejáveis, que não podem ser obtidos simultaneamente. E portanto, há de necessariamente haver contrariedade entre os movimentos do apetite. Ora, unir esses movimentos pertence essencialmente à paz pois o homem ainda não tem o coração pacificado, enquanto, embora já tenha algo do que quer, ainda lhe resta a vontade de outra coisa, que não pode ter simultaneamente com a que já tem. Ora, operar essa união não pertence essencialmente à concórdia. Por onde, a concórdia implica a união dos diversos apetites dos que desejam; ao passo que a paz, além dessa união, implica também a união dos apetites de um mesmo homem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Agostinho, no lugar citado, refere-se à paz entre um homem e outro. E a essa paz chama concórdia, não qualquer, mas, ordenada; isto é, enquanto que um homem concorda com outro relativamente ao que convém a ambos. Pois, se um concorda com outro, não por espontânea vontade, mas quase coagido pelo temor de um mal iminente, essa concórdia não é verdadeiramente paz, porque a ordem entre os que concordam não é observada, mas antes, é perturbada por uma causa que veio trazer o temor. E por isso Agostinho disse antes, que a paz é a tranquilidade da ordem, cuja tranquilidade consiste em todos os apetites sensitivos de um mesmo homem estarem em quietação.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Se um homem estiver de acordo com outro relativamente a um mesmo objeto, nem por isso o seu acordo implica união completa, se não estiverem também em mútuo consenso todos os movimentos apetitivos do mesmo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – À paz se opõe dupla dissensão: a de um homem para consigo mesmo, e a para com outro. Ora, à concórdia se opõe só esta segunda espécie de dissensão.
O quarto discute-se assim. – Parece que a alegria é uma virtude.
1. – Pois, o vício é contrário à virtude. Ora, a tristeza é considerada um vício, como claramente o mostra a acédia e a inveja. Logo, também a alegria deve ser considerada virtude.
2. Demais. – Como o amor e a esperança são paixões, cujo objeto é o bem; assim também a alegria. Ora, o amor e a esperança são considerados virtudes. Logo, também virtude deve ser considerada a alegria.
3. Demais. – Os preceitos da lei são relativos aos atos das virtudes. Ora, é nos ordenado alegrarmo-nos em Deus, conforme aquilo da Escritura. Alegrai-vos incessantemente no Senhor. Logo, a alegria é uma virtude.
Mas, em contrário, a alegria não está enumerada entre as virtudes teologais, nem entre as morais, nem entre as intelectuais, como do sobre dito se colhe.
SOLUÇÃO. – A virtude, como já dissemos, é um hábito operativo: e portanto tem, por essência, inclinação para o ato. Ora, de um mesmo hábito podem provir vários atos da mesma ordem relacionados e de modo a resultar do outro. E como os atos posteriores não procedem do hábito da virtude senão mediante um ato anterior, daí vem que a virtude não recebe a sua definição nem a sua denominação senão de um ato anterior, embora também outros atos resultem dela. Ora, é manifesto, pelo que já dissemos das paixões que o amor é a primeira afeição da potência apetitiva, da qual resulta também o desejo e a alegria. Por onde, o hábito da virtude que inclina a amar inclina também a desejar o bem amado e a alegrar-se com a posse dele. Mas - como entre esses atos o amor é o primeiro, daí resulta que a virtude não recebe a sua denominação da alegria, nem do desejo, mas, do amor, e se chama caridade. Assim, pois, a alegria não é uma virtude distinta da caridade, mas, um ato ou efeito da caridade. E, por isso, o Apóstolo a enumera entre os frutos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A tristeza, vício, é causada pelo amor desordenado de nós mesmos, que não é um vício especial, mas uma como raiz geral de todos, segundo já dissemos. Por isso é mister se considerem como vícios especiais, certas tristezas particulares, porque não derivam de nenhum vício especial, mas de um geral. Mas, o amor de Deus é considerado uma virtude especial, à qual se reduz a alegria, conforme dissemos, como ato próprio dela.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A esperança, como a alegria, resulta do amor; mas a esperança acrescenta, pelo seu objeto, a ideia especial - a de um bem árduo, mas possível de ser alcançado; e por isso é considerada uma virtude especial. Ao passo que a alegria concernente ao objeto não acrescenta nenhuma ideia especial, além do amor, que possa causar uma virtude especial.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O preceito da lei sobre a alegria foi dado, considerando-a ato de caridade, embora não seja o primeiro ato desta.