Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que os anjos devem julgar.
1. ─ Pois, diz o Evangelho: Quando vier o Filho do homem na sua majestade e todos os anjos com ele. Ora, refere da vinda para o juízo. Logo, parece que também os anjos julgarão.
2. Demais. ─ As ordens dos anjos recebem a sua denominação do ofício que exercem. Ora, uma ordem de anjos é a dos Tronos, a que incumbe o poder judiciário; pois trono é o assento real, o sólio do rei, a cátedra de doutor. Logo, certos anjos julgarão.
3. Demais. - Aos santos depois desta vida é prometida a igualdade com os anjos. Se, portanto, os homens terão o poder de julgar, com maior razão os anjos.
Mas, em contrário. ─ O Evangelho diz: E lhe deu o poder de exercitar o juízo, porque é Filho do homem. Ora, os anjos não participam da natureza humana. Logo, nem do poder judiciário.
2. Demais. ─ Não pode julgar o ministro do juiz. Ora, no juízo final, os anjos serão como uns ministros, conforme aquilo do Evangelho: Enviará o Filho do homem os seus anjos e tirarão do seu reino todos os escândalos. Logo, os anjos não julgarão.
SOLUÇÃO. ─ Os assessores do juiz devem-lhe ser conformes. Ora, o juízo é atribuído ao Filho, que se manifestará, na sua natureza humana, tanto aos bons como aos maus; embora toda a Trindade julgue por autoridade própria. Por onde, é também necessário que os assessores do juiz tenham a natureza humana, na qual possam ser vistos de todos, bons e maus. E assim aos anjos não compete julgar. ─ Embora possam, de certo modo, julgar, pela aprovação da sentença.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Como se vê pela Glosa ao lugar citado, os anjos virão com Cristo, não como juízes, mas, como testemunhas dos atos humanos, pois, foi sob a guarda deles que os homens procederam bem ou mal.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O nome de Trono é atribuído aos anjos em razão de aquele juízo que Deus sempre exerce, governando todas as cousas com suma justiça; de cujo juízo os anjos são de certo modo executores e promulga dores. Mas, no juízo com que Cristo homem julgará os homens, terá homens como assessores.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Aos homens é prometida a igualdade com os anjos, quanto ao prêmio essencial. Mas nada impede receberem os homens um prêmio acidental, que os anjos não terão. Tal a auréola das virgens e dos mártires. E o mesmo podemos dizer do poder judiciário.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que o poder judiciário não compete à pobreza voluntária.
1. ─ Pois, julgar só foi prometido aos doze Apóstolos, conforme aquilo do Evangelho: Vós estar eis sentados sobre doze tronos e julgareis, etc. Ora, todos os Apóstolos não eram voluntariamente pobres. Logo, parece que nem a todos compete o poder judiciário.
2. Demais. ─ É maior sacrifício oferecermos a Deus o nosso próprio corpo do que cousas exteriores. Ora, os mártires e também as virgens oferecem o próprio corpo em sacrifício a Deus; ao passo que os voluntariamente pobres só oferecem os bens exteriores, em sacrifício. Logo, a sublimidade do poder judiciário mais compete aos mártires e às virgens que aos pobres voluntários.
3. Demais. ─ Diz o Evangelho: O mesmo Moisés, em quem vós tendes as esperanças é o que vos acusa. Ao que diz a Glosa: porque não lhe credes na palavra. E continua o evangelista: A palavra que eu vos tenho falado essa o julgará no dia último. Logo, o fato mesmo de alguém propor a lei ou exortar com palavras à correção dos costumes, dá-lhe o direito de julgar os que o desprezarem. Ora, essa é função dos doutores. Logo, mais compete aos doutores julgar que aos que voluntariamente abraçaram a pobreza.
4. Demais. ─ Cristo, por ter sido julgado injustamente como homem, mereceu ser o juiz de toda a humanidade, conforme o diz o Evangelho: E lhe deu o poder de exercitar o juízo porque é Filho do homem. Ora, os que sofrem perseguição por amor da justiça são julgados injustamente. Logo, mais que aos pobres, lhes compete o poder judiciário.
5. Demais. ─ O superior não pode ser julgado pelo inferior. Ora, muitos que usaram licitamente das suas riquezas serão superiores no mérito a muitos que abraçaram a pobreza voluntária. Logo, não serão os pobres voluntários que os hão de julgar a eles.
Mas, em contrário. ─ Diz a Escritura: Não salva aos ímpios e faz justiça aos pobres. Logo, pertence aos pobres julgar.
2. Demais. ─ Aquilo do Evangelho ─ Vós que abandonastes tudo, etc. ─ diz a Glosa: Os que abandonaram tudo e seguiram a Deus, esses serão os juízes; os que usaram retamente dos bens que licitamente possuíram, serão esses os julgados. Donde a mesma conclusão anterior.
SOLUÇÃO. ─ Por três razões especiais à pobreza voluntária pertence o poder judiciário. ─ Primeiro, por uma razão de conveniência. Pois, a pobreza voluntária é a daqueles que, desprezados todos os bens do mundo, se consagraram totalmente a Cristo. Nada tiveram assim na mente, que lhes pudesse desviar da justiça o pensamento. Tornavam-se por isso idôneos para julgar, como amantes da justiça acima de tudo. ─ Segundo, pelo seu mérito. Pois, à humildade corresponde a exaltação fundada no mérito. Ora, nada torna o homem mais desprezível neste mundo que a pobreza. Por isso, o Evangelho promete aos pobres a excelência do poder judiciário, quando diz que quem se humilhar por Cristo será exaltado. ─ Terceiro, porque a pobreza predispõe ao referido modo de julgar. Pois, quando dizemos que cada um dos santos julgará, isso significa, como explicamos, que terá gravado no coração o tesouro das verdades divinas, que poderá manifestar aos outros. Ora, no progresso para a perfeição, a primeira cousa que devemos abandonar são as riquezas exteriores, que são as que adquirimos em último lugar; e o que vem em último lugar na geração virá em primeiro na destruição. Por isso, entre as bem-aventuranças, meios pelos quais progredimos na perfeição, ocupa o primeiro lugar a pobreza. E assim à pobreza compete o poder judiciário, enquanto é ela a disposição primeira para a perfeição referida. Razão por que não é a quaisquer pobres; mesmo voluntários, prometido o poder judiciário, mas só aos que, tendo abandonado tudo, seguiram a Cristo, num estado de vida perfeita.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Diz Agostinho: Não é pelo Evangelho prometer, que os doze Apóstolos estarão sentados sobre doze tronos, que serão só doze homens os que exercerão com Cristo o poder judiciário. Do contrário, como o Evangelho também refere que em lugar de Judas, traidor, foi escolhido o Apóstolo Matias, Paulo, que trabalhou mais que os outros Apóstolos, nenhum assento teria entre os juízes. Por onde, o número doze significa toda a multidão dos que devem julgar, porque é esse número o resultado da multiplicação das duas partes do número sete ─ três e quatro. Ora, o número doze é um número perfeito por consistir na soma de seis mais seis, e seis é um número perfeito. ─ Ou porque, literalmente, Cristo falava aos doze Apóstolos e nas pessoas deles prometia o poder judiciário a todos os que no futuro os imitassem.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A virgindade e o martírio não dispõem o coração a conservar os decretos da justiça divina, como a pobreza; assim como, ao contrário, as riquezas materiais, pela solicitude que causam, abafam a palavra de Deus, na expressão do Evangelho. ─ Ou devemos responder que a pobreza, não só basta para merecer o exercício do poder judiciário, mas é a primeira parte da perfeição a que o poder judiciário compete. Por isso entre as consequências da pobreza, que visam a perfeição, podemos contar a virgindade, o martírio, e todas as obras perfeitas. Mas nada disso é tão principal como a pobreza, porque o princípio de uma cousa é a sua parte mais importante.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Quem propôs a lei ou exortou ao bem julgará, causalmente falando, porque os outros serão julgados conforme as palavras que ele pronunciou ou propôs. Por isso, em sentido próprio, o poder judiciário não incumbe à pregação nem à doutrina. ─ Ou devemos responder, segundo outros, que o poder judiciário requer três condições: a primeira, o despreendimento dos cuidados temporais, a fim de não ficar a alma impedida de receber a sabedoria; a segunda, o hábito que realmente contenha o conhecimento e a observância da justiça; a terceira, o ensino dessa justiça aos outros. E assim, a doutrina será a perfeição que completa o mérito para exercer o poder judiciário.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Cristo, deixando condenar-se injustamente, humilhou-se a si próprio: Foi oferecido, diz a Escritura, porque ele mesmo quis. E o mérito da sua humildade lhe mereceu as honras do poder judiciário, em virtude do qual tudo lhe foi submetido, como diz o Apóstolo. Por onde, o poder judiciário é devido de preferência aos que voluntariamente se humilharam, desprezando os bens temporais, por causa dos quais o mundo nos honra, do que aos que foram humilhados pelos outros.
RESPOSTA À QUINTA. ─ O inferior não pode, por autoridade própria, julgar o superior; mas o pode, em virtude de uma autoridade superior, como no caso da delegação de juízos. Por isso, não há inconveniente em ser concedido como prêmio acidental aos pobres, julgarem os outros, mesmo os de mérito mais excelente em relação ao prêmio essencial.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que ninguém julgará com Cristo.
1. ─ Pois, o Evangelho diz: O pai deu ao Filho todo o juízo, a fim de que etc. Ora, uma tal honorificência não é devida senão a Cristo. Logo, etc.
2. Demais. ─ Quem julga tem autoridade sobre o julgado. Ora, os méritos e os deméritos, objeto do juízo final, só a autoridade divina o pode apreciar. Logo, ninguém poderá julgar em tal matéria.
3. Demais. ─ O juízo final não se processará oralmente, mas mentalmente, como é mais provável pensar. Ora, o serem os méritos e os deméritos conhecidos de todos, que é como acusar e glorificar; e a retribuição da pena ou do prêmio, que é como o proferir a sentença, tudo isso só por divino poder se fará. Logo, só Cristo, que é Deus, será o julgador.
Mas, em contrário, o Evangelho: Vós estareis sentados sobre doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel.
2. Demais. ─ A Escritura diz: O Senhor entrará em juízo com os anciãos do seu povo. Logo, parece que também outros julgarão com Cristo.
SOLUÇÃO. - A palavra julgar é susceptível de muitos sentidos.
Assim, em sentido causal dizemos que julga a causa pela qual alguém deve ser julgado. E, nesta acepção, dizemos que alguém julga, por comparação, enquanto certos devem ser julgados por comparação com outros. Tal o lugar do Evangelho: Os habitantes de Nínive se levantarão no dia de juízo com esta geração e a condenarão. E assim, julgar, no juízo final, tanto o poderão os bons como os maus.
Noutro sentido, empregamos a palavra julgar interpretativamente. Pois, por interpretação, julgamos que faz uma cousa quem consente com aquele que a faz. Dai o dizermos que quem aprova a sentença de Cristo, consentindo nela, julga com Cristo. E nesta acepção, todos os eleitos julgarão; e por isso diz a Escritura ─ Os justos julgarão as nações.
Em terceiro sentido, empregamos o vocábulo julgar por semelhança; assim, dizemos que julga quem, sentando-se num lugar elevado, como o juiz, com ele se assemelha; e nesta acepção, dizemos que os assessores julgam. Deste modo também dizem uns, que os varões perfeitos, a quem o Evangelho promete o poder judiciário, julgarão, por ocuparem um lugar honroso; porque aparecerão superiores aos outros no juízo acorrendo ao encontro de Cristo no ar.
Nada disto basta porém para a execução da promessa do Senhor, quando disse: Vós estareis sentados e julgareis; pois, o juízo é mais que o assentar-se um em lugar eminente.
Há, pois, um quarto modo de julgar, apropriado aos varões perfeitos, que julgarão por trazerem gravados em si os decretos da justiça divina, pelos quais os homens serão julgados; tal como se disséssemos que julga o livro onde esta contida a lei. Donde a expressão da Escritura: O juiz estará sentado e os livros estão abertos. E é neste sentido que Ricardo Vitorino explica a judicatura de que se trata. São suas palavras: Os que se entregam à contemplação divina, os que todos os dias lêem no livro da sabedoria, transcrevem nas páginas do seu coração tudo o que de, verdade perceberam na agudeza da sua inteligência. E mais adiante: Que são os corações desses homens, a quem Deus ensinou todas as verdades, senão uns como decretos canônicos?
Mas como julgar implica um ato que tem um terceiro por objeto, por isso, propriamente falando, dizemos que julga quem profere uma sentença contra outrem. O que de dois modos pode ser. ─ Primeiro, por autoridade própria, quando se trata de quem tem domínio e poder sobre os outros e de quem estes, que são os julgados, dependem, sendo por isso que pode exercer a justiça sobre eles. E neste sentido julgar só a Deus pertence. ─ De outro modo julgar é levar ao conhecimento dos outros, publicando-a, a sentença proferida por autoridade de outrem. E neste sentido os varões perfeitos julgarão, porque darão aos demais o conhecimento da divina justiça, para saberem o que justamente pelos seus méritos lhes é devido; e então juízo se chama a própria manifestação da justiça. Donde o dizer Ricardo Vitorino: O abrirem os juízes os livros dos seus decretos aos que devem julgar é permitir aos seus inferiores, quaisquer que sejam, ler-lhes no íntimo do coração e revelar-lhes o seu pensamento no concernente ao juízo que devem proferir.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A objeção procede; quanto ao juízo por autoridade própria, que só a Cristo compete. E o mesmo se deve responder à segunda.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Não há inconveniente em uns santos fazerem certas revelações a outras ─ ou a modo de iluminação, como os anjos superiores iluminam os inferiores; ou a modo de locução, como os inferiores falam aos superiores.
O quarto discute-se assim. ─ Parece que o juízo não se dará no vale de Josafá nem em nenhum lugar adjacente.
1. ─ Pois, é preciso pelo menos todos os que vão ser julgados estarem na terra, só se elevarem nas nuvens os julgadores. Ora, toda a Terra da Promissão não poderia conter a multidão dos que devem ser julgados. Logo, o juízo final não poderá realizar-se no Vale de Josafá.
2. Demais. ─ A Cristo humanado foi dado o poder de julgar, para que julgasse com justiça quem foi injustamente julgado no pretório de Pilatos e cumpriu no Gólgota a sentença de um julgamento iníquo. Logo, este deveria ser, antes, o teatro do juízo.
3. Demais. ─ As nuvens se formam da exalação dos vapores. Ora, no tempo do juízo final, não haverá mais evaporação nem exalação. Logo, não será possível os justos serem arrebatados nas nuvens a receber a Cristo nos ares. Portanto, todos, bons e maus, estarão na terra, e haverá necessidade de um lugar muito mais amplo que o vale de Josafá.
Mas, em contrário, a Escritura: Ajuntarei todas as gentes e levá-las-ei ao vale de Josafá e ali entrarei com das em juízo.
2. Demais. ─ Diz a Escritura: Assim virá do mesmo modo que haveis visto ir ao céu. Ora, Cristo subiu ao céu, do monte Olivete, sobranceiro ao vale de Josafá. Logo, nesse lugar é que virá julgar.
SOLUÇÃO. ─ Não podemos ter absoluta certeza sobre o modo por que se dará o juízo e como os homens se reunirão para ele. Podemos contudo com probabilidade concluir, do que diz a Escritura, que Cristo descerá nas proximidades do monte Olivete, donde subiu ao céu; de modo que se mostre que aquele que desceu esse mesmo é também o que subiu.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Uma grande multidão pode ser contida num pequeno espaço. Aliás bastará acrescentar ao referido lugar um espaço suficiente a abranger a multidão dos que devem ser julgados, contanto que de todos os pontos desse espaço possam todos ver a Cristo, que, elevado nos ares e refulgente de intenso brilho, possa ser visto de longe.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora Cristo, por ter sido julgado injustamente, merecesse o poder judiciário, contudo não julgará no estado de abatimento em que foi injustamente julgado, mas na forma gloriosa com que subiu ao Pai. Por onde, o lugar da ascensão será mais próprio para o juízo, que o lugar onde foi condenado.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Por nuvens deve-se aqui entender, como interpretam certos, uma condensação de raios luminosos emitidos pelos corpos dos santos, e não quaisquer evaporações da terra e da água. ─ Ou podemos dizer que essas nuvens serão geradas por virtude divina, para mostrar a conformidade entre o advento para o juízo e a ascenção; de modo que quem ascendeu nas nuvens também nas nuvens virá julgar. ─ Além disso, as nuvens, por serem frias, indicam a misericórdia do juiz.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que o tempo do juízo final não é ignoto.
1. ─ Pois, assim como os santos Patriarcas esperavam o primeiro advento, assim nós o segundo. Ora, os santos Patriarcas conheceram o tempo do primeiro advento, como o demonstra o número de semanas referido por Daniel. Por isso o Evangelho repreende os judeus por não terem conhecido o tempo do advento de Cristo, quando diz: Hipócritas, sabeis distinguir os aspectos do céu e da terra, pois como não sabeis reconhecer o tempo presente? Logo, parece que também para nós deve ser determinado o tempo do segundo advento, quando Deus virá julgar.
2. Demais. ─ Os sinais nos levam ao conhecimento das cousas assinaladas. Ora, a Escritura nos dá muitos sinais do juízo futuro. Logo, podemos chegar a lhe conhecer o tempo.
3. Demais. ─ O Apóstolo diz: Nós outros somos a quem os fins do século tem chegado. E noutro lugar da Escritura: Filhinhos, é chegada a última hora, etc. Logo, como já se passou muito tempo desde que essas palavras foram ditas, parece que ao menos agora podemos saber que o juízo final está próximo.
4. Demais. ─ O tempo do juízo não deve ser oculto senão porque, ignorando-lhe o tempo determinado, cada um se preparará para ele mais solicitamente. Ora, a mesma solicitude empregaríamos mesmo se lhe conhecessemos o dia com certeza. Pois, também ignoramos o dia da morte; e, como diz Agostinho, no estado em que nos encontrar o nosso último dia, nesse mesmo nos encontrará o último dia do mundo. Logo, não há necessidade de nos ser oculto o tempo do juízo.
Mas, em contrário, o Evangelho: A respeito porém a este dia ou desta hora, ninguém sabe quando há de ser, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai. Ora, diz que o Filho não sabe por não nô-lo fazer saber.
2. Demais. ─ O Apóstolo diz: Assim como costumes vir um ladrão de noite, assim virá o dia do Senhor. Logo, como a vinda de um ladrão à noite é absolutamente incerta, também absolutamente incerto será o dia do juízo final.
SOLUÇÃO. ─ Deus, pela sua ciência, é a causa das cousas. Ele se comunica às criaturas de dois modos: dando a virtude de serem causas produtoras de outras cousas, e dando a certas delas o conhecimento. Mas em ambos os casos faz certas reservas para si: fazendo certas cousas sem a cooperação de nenhuma criatura, e tendo para si certos conhecimentos que nenhuma simples criatura pode conhecer. Ora, tal deve ser por excelência o conhecimento do que depende só do poder divino, com o qual nenhuma criatura coopera. E tal é o que se dá com o fim do mundo, quando será o dia do juízo; pois, o mundo não acabará por ação de nenhuma causa criada, assim como começou a existir por obra imediata de Deus. Por isso e convenientemente, o conhecimento do fim do mundo fica reservado só a Deus. E isso mesmo o Senhor o diz, com aquelas palavras: Não é da vossa conta, diz, saber os tempos nem momentos que o Padre reservou ao seu poder; como se dissesse ─ só ao seu poder estão reservados.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ No primeiro advento Cristo veio oculto, segundo aquilo da Escritura: Tu verdadeiramente és um Deus escondido, o Deus d'Israel, o Salvador. Por onde, para os fiéis o poderem conhecer era preciso predeterminar o tempo certo desse advento. Mas no segundo advento virá manifestamente, como diz a Escritura: Deus virá manifestamente, etc. Por isso nenhum erro poderá haver sobre ele. Portanto, não há símil.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Como diz Agostinho, os sinais referidos pelos Evangelhos, nem todos concernem ao segundo advento, o do juízo final; mas certos respeitam o tempo da destruição de Jerusalém, já passado. Outros porém, e em maior número, dizem respeito ao advento em que quotidianamente vem ter com a sua Igreja, visitando-a espiritualmente, enquanto em nós habita pela fé e pelo amor. ─ Mas nem o que os Evangelhos ou as Epístolas dizem referente ao último advento em nada podem contribuir para podermos conhecer com certeza o tempo do juízo. Porque as tribulações prenunciadas e precursoras do advento próximo de Cristo, também existiram nos tempos primitivos da Igreja, ora mais intensas, ora mais remissas. Por isso os dias dos Apóstolos também foram chamados os últimos dias, como lemos nos Atos, quando Pedro expõe aquelas palavras de Joel ─ Haverá nos últimos dias, etc., aplicando-as ao segundo advento. E contudo, já muito tempo decorreu desde então, e a Igreja sofreu ora mais ora menos tribulações. Por onde, não é possível determinar quanto tempo ainda falta, nem com uma aproximação de mês, de ano, de século ou de milênio, como Agostinho o diz no mesmo livro. Se porém acreditarmos que no fim mais abundarão as tribulações, não podemos contudo saber com certeza qual será a extensão delas, imediatamente precedentes ao dia de juízo e ao advento do Anticristo. Pois, também nos tempos da Igreja primitiva houve perseguições de tal modo cruéis e tal abundância de heresias, que certos esperavam como próxima ou iminente a vinda do Anticristo, como referem Eusébio e Jerônimo.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ A expressão ─ última hora, e outras locuções semelhantes, que se lêem na Escritura, não pode nos dar a conhecer nenhum determinado espaço de tempo. Pois, não são usados para exprimir um breve tempo, mas o último estado do mundo, que lhe é como a idade novíssima, da qual porém não sabemos por que espaço de tempo durará, assim como também a velhice, última idade da vida humana, não tem nenhum termo definido e pode às vezes durar tanto quanto todas as idades precedentes e mesmo mais, como diz Agostinho. Por isso também o Apóstolo exclui o falso sentido que alguns deram às suas palavras, pensando que já estava iminente o dia do Senhor.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Mesmo suposta incerta a morte, de dois modos concorre para a vigilância a incerteza do juízo. ─ Primeiro, por ignorarmos se ainda faltará um espaço de tempo igual ao da vida humana; e assim, essa dupla incerteza tornará maior a diligência. ─ Segundo, porque não devemos ser solícitos só com a nossa pessoa, mas também com a família, ou a nação, ou o reino ou toda a Igreja, cujo tempo de duração não se mede pelo da vida humana; e contudo, cada um desses organismos há de dispor-se para o dia do Senhor não os surpreender despreparados.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que o juízo universal será instruído e sentenciado oralmente.
1. ─ Pois, como diz Agostinho, é incerto quantos dias durará esse juízo. Ora, não seria incerto se todas as fases desse juízo respondessem a um processo mental. Logo, o juízo final há de processar-se oralmente e não só mentalmente.
2. Demais. ─ Gregório diz, como o assinala o Mestre: Aqueles ao menos ouvirão as palavras do Juiz, que lhe deram fé às palavras. Ora, isto não pode aplicar-se ao verbo mental, porque então todos ouvirão as palavras do Juiz, porque todos, bons e maus, conhecerão os atos uns dos outros. Logo, parece que o juízo final se processará oralmente.
3. Demais. ─ Cristo virá julgar com forma humana, de modo a poder ser corporalmente visto de todos. Logo e pela mesma razão parece que falará realmente de modo a ser ouvido de todos.
Mas, em contrário. ─ Agostinho diz: O livro da vida, de que fala o Apocalipse, significa uma ação especial do poder divino, que despertará na memória de cada um todas as suas obras, boas ou más, e os fará percorrer todas, com maravilhosa celeridade e de um só olhar da mente, de modo que a ciência de cada qual lhe acuse ou excuse a consciência, sendo assim julgados simultaneamente todos e cada um. Ora, se se fossem discutir oralmente os méritos individuais, não poderiam ser todos e cada um julgados a um tempo. Logo, parece que essa discussão não será oral.
2. Demais. ─ A sentença deve corresponder proporcionalmente ao testemunho. Ora, o testemunho, acusatório ou excusatório, será mental. Donde o dizer o Apóstolo: Dando testemunho a eles a sua mesma consciência e os pensamentos de dentro, que umas vezes os acusam e outras os defendem, no dia em que Deus há de julgar as causas ocultas dos homens. Logo, parece que a sentença e o juízo total se processará mentalmente.
SOLUÇÃO. ─ A verdade nesta matéria não pode ser estabelecida com certeza. Podemos contudo pensar, com probabilidade, que o juízo final na sua totalidade ─ quanto a sua instrução, à acusação dos maus, à glorificação dos bons e à sentença de ambos ─ se processará mentalmente. Pois, se os atos de cada um fossem discriminados oralmente, levaria isso um inconcebivelmente grande espaço de tempo. Donde a perguntar Agostinho: Se o livro, de acordo com cuja escrita todos devem ser julgados, segundo a Escritura, fosse um livro material, quem lhe poderia calcular o volume ou o tamanho? Ou em quanto tempo poderia ser lido um livro onde estivessem descritas as vidas de todos universalmente? Ora, não seria necessário menos tempo para narrar oralmente as obras de cada um, que para as ler, se estivessem escritas num livro material. Por onde, é provável que as profecias do Evangelho devem ser entendidas como havendo de se cumprir, não vocal, mas mentalmente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Agostinho diz ser incerto por quantos dias durará esse juízo, por não ser determinado se há de processar-se mental ou oralmente. Pois, se o fosse oralmente, exigiria tempo muito mais dilatado. Se porém mentalmente, num momento poderia realizar-se.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Mesmo se o juízo se processar só mentalmente, as palavras de Gregório podem ser verdadeiras. Pois, ainda que, por ação especial do poder divino ─ ao que o Evangelho chama locução. ─ todos conheçam os seus atos e os alheios, contudo os que tiveram fé fundada nas palavras de Deus serão julgados por essas mesmas palavras, porque, como diz o Apóstolo ─ Todos quantos com lei pecaram por lei serão Julgados. Assim e de um modo especial os fiéis ouvirão palavras que os infiéis não ouvirão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Cristo aparecerá corporalmente para todos corporalmente reconhecerem o juiz; o que poderá dar-se de súbito. A locução, porém, medida pelo tempo, exigiria um enorme espaço dele, se o juízo devesse processar-se oralmente.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que não haverá nenhum juízo universal.
1. ─ Pois, como diz a Escritura, não julgará Deus duas vezes a mesma cousa. Ora, presentemente Deus julga as obras de cada um; pois, depois da morte atribui a cada qual penas ou recompensas, conforme o mérito; e também premeia ou pune a certos nesta vida, pelas suas boas ou más obras. Logo, parece que não haverá outro juízo.
2. Demais. ─ Nenhum juízo é precedido pela execução da sentença. Ora, a sentença do juízo divino discerne entre os que devem alcançar o Reino ou ser dele excluídos, como lemos no Evangelho. Logo, como depois da morte já uns alcançaram o reino eterno e outros foram excluídos dele para sempre, parece que não haverá outro juízo.
3. Demais. ─ É necessário levar uma questão a juízo quando não se sabe como decidi-la. Ora, antes do fim do mundo, cada condenado já teve proferida a sua condenação, e a cada santo a sua beatitude. Logo, parece não haver necessidade de nenhum outro juízo.
Mas, em contrário. ─ O Evangelho diz: Os habitantes de Nínive se levantarão no dia do juízo com esta geração e a condenarão. Logo, depois da ressurreição haverá o juízo.
2. Demais. ─ O Evangelho diz: Os que obraram bem sairão para a ressurreição da vida; mas os que obraram mal sairão ressuscitados para a condenação. Logo, parece que depois da ressurreição haverá ainda o juízo.
SOLUÇÃO. - Assim como a operação concerne ao princípio que dá às cousas o ser, assim o juízo concerne à condução delas ao seu termo final. Ora, há duas espécies de obras de Deus. Uma pela qual deu, no princípio, o ser as cousas, instituindo a natureza e determinando tudo o necessário ao complemento dela; e dessa obra diz a Escritura que Deus descansou. Outra obra de Deus é a pela qual governa as criaturas, da qual diz o Evangelho: Meu Pai até agora não cessa de obrar, e eu obro também incessantemente. Do mesmo modo também se distingue em duplo juízo divino, mas em ordem inversa. Um, correspondente à obra do governo, que não pode existir sem o juízo. E por esse juízo cada qual é julgado pelas suas obras, cada uma em particular, não só no concernente a cada indivíduo, mas também no concernente ao governo universal. Donde o ser diferido o prêmio de um em utilidade dos outros, como diz o Apóstolo, e o redundar a pena de um em benefício dos demais. Daí a necessidade de um outro juízo, o universal, correspondente, por oposição, à produção primeira do ser das cousas; de modo que, assim como então tudo proveio imediatamente de Deus, assim também no juízo receberá o mundo o seu último complemento, cada um recebendo finalmente o que lhe é estritamente devido. Por isso no juízo final a justiça divina se manifestará em todo o seu esplendor e universalidade, pondo em evidência o que agora fica oculto, porque às vezes os atos de um são aplicados em utilidade de outro, mais do que o permitiriam as exigências das obras aparentes. E assim também haverá então a separação completa entre os bons e os maus, porque depois já não será possível concorrerem aqueles para o proveito destes, nem ao inverso, proveito que, nesta vida, justifica provisoriamente a mistura dos bons com os maus, enquanto as cousas deste mundo são governadas pela providência divina.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Todo homem ao mesmo tempo é uma pessoa singular e faz parte de todo o gênero humano. Por isso será objeto de um duplo juízo. Um particular, a que responderá depois da morte, e pelo qual receberá a recompensa do que fez neste mundo, embora não totalmente, porque só a alma, sem o corpo, é que terá essa recompensa. A outro juízo responderá como parte de todo o gênero humano, no mesmo sentido em que dizemos de alguém que é julgado pela justiça humana quando o é a comunidade a que pertence. Portanto, também cada um será julgado então quando, no juízo universal de todo o gênero humano, se fizer a completa separação entre os bons e os maus. Nem por isso Deus julgará duas vezes a mesma causa, porque não infligirá duas penas ao mesmo pecado; mas a pena não completamente infligida antes do juízo será completada no juízo final depois que os ímpios forem punidos tanto no corpo como na alma simultaneamente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A sentença própria proferida no juízo universal será a separação completa entre os bons e os maus, que não se realizará antes dele. Mas nem quanto a sentença particular de cada um, o juízo produzirá plenamente o seu efeito; porque também os bons, depois do juízo universal serão mais plenamente premiados, quer pela glória de que participará o corpo, quer por estar completo o número dos santos; assim como os maus sofrerão maiores tormentos pela pena infligida também ao corpo e por estar completo o número dos condenados a serem punidos, pois, quanto maior o número dos que arderem tanto mais arderão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O juízo universal concerne mais diretamente à universalidade dos homens que a cada um deles em particular, como dissemos. Pois, embora cada um, antes do juízo, tenha já um conhecimento certo da sua condenação ou do seu prêmio, contudo nem todos lhe conhecem a condenação ou a recompensa que recebeu. Daí a necessidade do juízo universal.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que nem todos os méritos ou deméritos, próprios e alheios, serão conhecidos num rápido olhar.
1. Pois, o que consideramos separadamente não podemos ver de um só olhar. Ora, os condenados considerarão os seus pecados cada um em separado e os deplorarão. Por isso exclamarão: De que nos aproveitou a nós a soberba? etc. Logo, nem tudo verão de um só olhar.
2. Demais. ─ O Filósofo ensina, que não podemos inteligir muitas cousas ao mesmo tempo. Ora, os méritos e os deméritos, próprios e alheios, não poderão ser vistos sem serem compreendidos. Logo, não poderão todos ser vistos ao mesmo tempo.
3. Demais. ─ O intelecto dos condenados, depois da ressurreição, não será mais penetrante do que o dos bons anjos, quanto ao conhecimento natural com que conhecem as cousas por meio de idéias inatas. Ora, com esse conhecimento os anjos não podem ver várias cousas simultaneamente. Logo, nem no juízo poderão os condenados ver simultaneamente todas as obras.
Mas, em contrário. ─ Aquilo de Job ─ Serão cobertos de confusão ─ diz a Glosa: A vista do juiz, todos os males surgirão aos olhos da alma. Ora, verão o juiz subitamente. Logo, também assim os males que cometeram. E pela mesma razão todos os outros.
2. Demais. ─ Agostinho rejeita a hipótese de ser lido no juízo um livro material, onde estarão escritas as ações de cada um, porque ninguém poderia avaliar o tamanho desse livro nem o tempo necessário para o ler. Mas semelhantemente, também ninguém poderia avaliar o tempo necessário para alguém pesar todos os méritos e deméritos, próprios e alheios, se os visse a todos simultaneamente. Logo, devemos admitir que cada um verá tudo ao mesmo tempo.
SOLUÇÃO. ─ Nesta matéria duas são as opiniões.
Uns dizem que cada um verá num instante todos os méritos e deméritos, próprios e alheios. ─ O que dos bem-aventurados poderemos facilmente crê-lo, porque verão tudo no Verbo e assim não é impossível verem muitas coisas simultaneamente. Mas é difícil admitir essa explicação para os condenados cujo intelecto não foi elevado a ponto de poderem ver a Deus e nele todas as cousas.
Por isso outros pretendem que os maus verão simultaneamente todos os gêneros dos pecados que cometeram, e isso basta para a acusação ou absolvição que deve resultar do juízo, Mas não verão tudo simultaneamente, considerada cada cousa em particular. ─ Mas também esta explicação não concorda com as palavras de Agostinho, quando diz que enumerarão todas as cousas num só ato da inteligência; pois, o que se conhece genericamente não se enumera.
Podemos por isso escolher uma via média: conhecerão cada cousa em particular, mas não num instante, senão num tempo brevíssimo, com a coadjuvação do poder divino. E tal o diz Agostinho, no mesmo lugar, quando afirma que as cousas eles as enumerarão com espantosa celeridade. Nem há nisso impossível, porque em qualquer tempo, por pequeno que seja, há infinitos instantes em potência.
Donde se deduzem claras as respostas às objeções de ambas as partes.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que não será possível a um ler tudo o que outro tem na consciência.
1. ─ Pois, os ressuscitados não terão um conhecimento mais puro que o dos anjos, com os quais lhes é prometida a igualdade, como o diz o Evangelho. Ora, os anjos não podem ler no coração uns dos outros o que lhes depende do livre arbítrio; para terem disso conhecimento, é preciso que lhes seja revelado pela palavra. Logo, os ressuscitados não poderão ler o que os outros tem na consciência.
2. Demais. ─ Tudo o que conhecemos o é em si mesmo ou na sua causa ou no seu efeito. Ora, os méritos ou deméritos que alguém tem na consciência não pode outro conhecê-los em si mesmos, porque só Deus penetra os corações e lhes perscruta os segredos. Nem na sua causa, porque nem todos verão a Deus, que só pode influir sobre o afeto, donde procedem os méritos, ou os deméritos. Enfim nem no efeito, porque muitos deméritos haverá de que nenhum efeito há de restar, delidos que foram totalmente pela penitência. Logo, não poderá um ler tudo o que esta na consciência de outro.
3. Demais. ─ Crisóstomo diz, segundo o cita o Mestre das Sentenças: Se neste mundo tiveres na memória os teus pecados, se os confessares presentemente na presença de Deus, se pedires que te sejam perdoados, mais depressa os deliras. Se porém os esqueceres, então deles terás que te recordar contra a vontade quando sei tornarem públicos e forem manifestos à vista de todos teus amigos e inimigos, e dos santos anjos. Donde se conclui que preteriu a confissão. Logo, os pecados confessados não se tornarão públicos.
4. Demais. ─ Será uma consolação saber alguém que tem muitos companheiros no pecado e, por isso, menos se envergonhar dele. Ora, o pecador, cujos pecados fossem conhecidos de outrem, menos se envergonharia deles. O que não é admissível. Logo, nem todos conhecerão os pecados de todos.
Mas, em contrário. ─ Aquilo do Apóstolo ─ Porá às claras o que se acha escondido ─ diz a Glosa: As obras e os pensamentos, bons e maus, serão então públicos e conhecidos de todos.
2. Demais. ─ Os pecados passados de todos os bons serão igualmente perdoados. Ora, conhecemos os pecados de certos santos, como Madalena, Pedro e David. Logo e pela mesma razão serão conhecidos os pecados dos outros eleitos. E muito mais, dos condenados.
SOLUÇÃO. ─ No último dia e no juízo universal é necessário a justiça divina manifestar-se a todos, com evidência, ela que nesta vida fica muitas vezes oculta. Ora, uma sentença que premeia ou castiga não pode ser justa, senão proferida de acordo com os méritos ou deméritos. Por onde, assim como o juiz e o seu assessor devem conhecer o mérito da causa, para poderem proferir uma sentença justa, assim também é preciso para uma sentença se manifestar como tal, que todos os que dela tiverem conhecimento conheçam também os méritos que a fundamentam. Por onde, como cada um conhecerá o seu prêmio e a sua condenação do mesmo modo por que serão conhecidos de todos, assim também, do mesmo modo por que cada um trará à memória os seus méritos e deméritos também conhecerá os méritos e os deméritos alheios. ─ E esta é a opinião mais provável e comum, embora o Mestre diga o contrário, i. é, que os pecados já delidos pela penitência não se publicarão aos outros, no juízo. Mas de aqui resultaria que também não seria perfeitamente conhecida a penitência desses pecados, o que seria muito em detrimento da glória dos santos e da glória de Deus, que tão misericordiosamente lhes perdoou.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Todos os méritos ou deméritos precedentes contribuirão para aumentar a glória ou a miséria do ressuscitado. Será portanto do que exteriormente se vir que se poderá deduzir tudo o que esta nas consciências. Sobretudo se o poder divino cooperar para que a justa sentença do juiz seja conhecida de todos.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Os méritos ou os deméritos poderão ser manifestados aos outros nos seus defeitos, como do sobredito se colhe. Ou ainda em si mesmos, por permissão divina, embora o intelecto criado não seja capaz de tanto.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ A publicação dos pecados para ignomínia do pecador é efeito da negligência cometida na omissão da confissão. Mas o serem revelados os pecados dos santos não poderá lhes redundar em pejo e vergonha, assim como não reverte em confusão de Maria Madalena serem narrados publicamente na Igreja os seus pecados. Porque a vergonha é o temor da desonra, como diz Damasceno, o que não poderá ter lugar com os bem-aventurados. Essa publicidade lhes redundará, ao contrário, em grande glória, por causa da penitência que fizeram, assim como um confessor aprova quem corajosamente confessa graves crimes. Mas se diz que os pecados foram delidos por que Deus não mais deles se lembra para os punir.
RESPOSTA À QUARTA. ─ O fato de um pecador conhecer os pecados dos outros em nada lhe diminuirá a confusão; ao contrário, a aumentará fazendo-o pesar melhor o seu vitupério pelo comparar com o alheio. E se isso é causa de diminuir a confusão é porque a vergonha leva em conta a apreciação humana, que vai perdendo da sua importância com o costume. Mas, no juízo final a confusão depende da apreciação de Deus, fundada no conhecimento exato de cada pecado, de um só pecador ou de muitos.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que depois da ressurreição não conhecerá cada qual todos os pecados que cometeu.
1. ─ Pois, tudo o conhecemos ou o recebemos de uma primeira impressão dos sentidos ou o tiramos do tesouro da memória. Ora, os ressuscitados não terão a percepção sensível dos seus pecados, por serem já passados e os sentidos só perceberem os objetos presentes. Além disso, muitos pecados já foram esquecidos e não poderão mais ser extraídos do tesouro da memória. Logo, o ressuscitado não terá conhecimento de todos os pecados que cometeu.
2. Demais. ─ Como diz o Mestre, nos chamados livros de consciência hão de ler-se os méritos de cada um. Ora, num livro não se podem ler senão os sinais nele escritos. Ora, os pecados deixam certos sinais na consciência, conforme a Glosa, e que outra cousa não são senão o reato ou a mácula. Logo, como a muitos a mácula e o reato de diversos pecados lhes foram delidos pela graça, resulta que não poderão ler na consciência todos os pecados cometidos. Donde a mesma conclusão anterior.
3. Demais. ─ Aumentando a causa aumenta o efeito. Ora, a causa, que nos faz deplorar os pecados presentes à nossa memória, é a caridade. Mas, os santos ressuscitados tem caridade perfeita e, por isso, deplorarão sumamente os pecados cometidos, sempre que à memória se lhes apresentem. O que não é possível, porque não lhes haverá mais choro nem mais gritos, diz a Escritura. Logo, não terão presentes à memória os pecados cometidos.
4. Demais. ─ Assim estão os ressurgidos condenados para o bem que em vida fizeram, como os bem-aventurados para os pecados que em vida cometeram. Ora, os ressurgidos condenados, segundo parece, não terão conhecimento dos bens que outras praticaram; do contrário, muito se lhes aliviaria a pena. Logo, nem os bem-aventurados terão conhecimento dos pecados que cometeram.
Mas, em contrário, diz Agostinho, por um efeito especial do poder divino todos os seus pecados os terão presentes à memória.
2. Demais. ─ Assim está o juízo humano para o testemunho externo como o juízo divino para o testemunho da consciência, conforme aquilo da Escritura: O homem vê o que aparece, mas Deus perscruta o coração. Mas nenhum juízo humano pode ser perfeito sem o depoimento de testemunhas sobre tudo o que deve ser julgado. Logo, sendo o juízo divino perfeitíssimo, há de a consciência deponha fielmente sobre o objeto do juízo. Ora, o juízo recairá sobre todas as obras boas e más, conforme aquilo do Apóstolo: Importa que todos nós compareçamos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba o galardão segundo o que tem feito, ou bom ou mau, estando no próprio corpo. Logo, é necessário a consciência de cada um ter presente todas as obras que praticou, boas ou más.
SOLUÇÃO. ─ Diz o Apóstolo: Naquele dia o Senhor julgará dando testemunho a cada um a sua mesma consciência e os pensamentos de dentro, que umas vezes os acusam e outras os defendem. Ora, em todo juízo, é necessário a testemunha, o acusador e o defensor terem conhecimento do que vai ser debatido em juízo. Logo, como esse juízo universal constituirá o objeto de todas as obras humanas, necessariamente cada um terá conhecimento de tudo o que praticou. Por isso as consciências de todos serão uns como livros contendo todas as obras praticadas, objeto do juízo, É desses livros que diz a Escritura: Foram abertos os livros; e foi aberto outro livro, que é o da vida; e foram julgados os mortos pelas causas que estavam escritas nos livros segundo as suas obras. E tais livros assim abertos, diz Agostinho significarem os santos do Novo e do Velho Testamento, nos quais o Senhor exarou os mandamentos que queria que fossem praticados. Por isso diz Ricardo Vitorino: Os corações deles serão uns como decretos canônicos. Quanto ao livro da vida, de que se fala em seguida, significa as consciências de cada um, chamadas no singular ─ um livro, porque um mesmo poder divino fará todos terem presentes na memória as suas obras. E esse poder, que fará com que cada homem se represente na memória os seus atos, se chama livro da vida. ─ Ou, os primeiros livros significam as consciências; o segundo, a sentença do juiz já proferida na sua providência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Embora da memória se tenham dissipado muitos méritos e muitos deméritos, nenhum deles contudo haverá que de certo modo não permaneça no seu efeito. Pois os méritos cujo valor se conservou intacto se substituirão pelo prêmio que lhes for devido; e os que foram reduzidos a nada permanecerão no reato de ingratidão, agravada pelo pecado cometido depois de recebida a graça. Também e do mesmo modo, os deméritos não apagados pela penitência permanecem no reato da pena que lhes é devida. E os delidos pela penitência permanecerão na memória mesma dessa penitência, de que terão as almas conhecimento simultâneo com o dos outros méritos. Por onde, todo homem terá meio de tornar as suas obras presentes à memória. ─ Contudo, como diz Agostinho, esse efeito será principalmente devido ao poder divino.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Nas consciências de todos perdurarão certos sinais das obras praticadas. Nem é mister sejam esses sinais só constitutivos do reato, como do sobre dito resulta.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora nesta vida a caridade seja a causa de deplorarmos os nossos pecados, contudo os santos na pátria estarão de modo imersos na felicidade, que não poderão sofrer nenhuma dor. Por isso não terão de deplorar pecados; ao contrário, se regozijarão com a providência divina, que lh'os perdoou; assim como os anjos do céu se comprazem com a justiça divina, que permite que aqueles a quem guardam abandonem ia graça e caiam no pecado; e contudo velam solicitamente pela salvação deles.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Os maus conhecerão todas as boas obras que praticaram, o que, longe de lhes mitigar a pena, a aumenta; porque a dor máxima é ter perdido muitos bens. Donde o dizer Boécio que o sumo gênero de infortúnio é ter sido feliz.