Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. - Parece que o movimento dos corpos celestes não cessará, nessa renovação do mundo.
1. Pois, diz a Escritura: ver-se-ão sempre as sementes e as searas, o frio e o estio, o verão e o inverno, o dia e a noite sucedendo um ao outro todo o tempo que a terra durar. Ora, o dia e a noite, o verão e o inverno são causados pelo movimento do sol. Logo, nunca o movimento do sol cessará.
2. Demais. ─ A Escritura diz: Isto diz o Senhor, que dá o sol para a luz do dia, a ordem da lua e das estrelas para a luz da noite; o que turba o mar e logo soam as suas ondas; se faltarem estas leis diante de mim, então furtará também a linhagem de Israel, para que não haja diante de mim todos os dias. Ora, a linhagem de Israel não faltará nunca mas durará perpetuamente. Logo, as leis do dia e da noite, e das ondas do mar, causadas pelo movimento do céu, durarão perpetuamente. Portanto, o movimento do céu nunca cessará.
3. Demais. ─ A substância dos corpos celestes existirá sempre. Ora, é vão admitir a existência de uma cousa sem lhe admitir a causa que a produziu. Ora, os corpos celestes foram feitos para que dividam o dia e a noite e sirvam de sinais para mostrar os tempos, os dias e os anos, na expressão da Escritura. O que não poderão fazer senão pelo movimento. Logo, o movimento deles perdurará sempre; do contrário seria inútil continuarem a existir.
4. Demais. ─ Essa renovação do mundo torná-lo-á melhor. Logo, nenhum dos corpos que continuarão á existir será privado de nenhuma das suas perfeições. Ora; o movimento faz parte da perfeição dos corpos celestes; pois, como diz Aristóteles, é pelo movimento que esses corpos participam da divina bondade. Logo, o movimento do céu não cessará.
5. Demais. ─ O sol, movendo-se em círculo, ilumina sucessivamente as diversas partes do mundo. Se pois o movimento circular do céu cessasse, em algum ponto da superfície da terra haveria perpétua obscuridade. O que não se coaduna com o mundo renovado.
6. Demais. ─ Se o movimento cessasse não seria senão por acarretar no céu uma certa imperfeição, uma como fadiga ou cansaço. O que não pode ser, porque esse movimento é natural e os corpos celestes são impassíveis e, portanto, nenhuma fadiga lhes causará o seu movimento, como diz Aristóteles. Logo, o movimento do céu não cessará nunca.
7. Demais. ─ Inútil é uma potência que não se atualiza. Ora, seja qual for a posição ocupada por um corpo celeste, está em potência em relação a outra. Logo, se não se atualizar, essa potência existirá em vão e será sempre imperfeita. Ora, não pode atualizar-se senão pelo movimento local. Logo, há de mover-se sempre.
8. Demais. ─ O que é indiferente a quaisquer modificações, ou se lhe atribuem todas ou nenhuma. Ora, ao sol é indiferente estar no oriente ou no ocidente; do contrário o seu movimento não seria uniforme em todas as suas posições, e se moveria mais rápido para o lugar que lhe fosse mais natural ocupar. Logo, ou o sol não se lhe pode atribuir nenhuma das duas posições referidas, ou se lhe hão de atribuir ambas. Ora, nem ambas nem nenhuma das duas lhe podem ser atribuídas senão sucessivamente; pois, se está em repouso, necessariamente há de ser em algum lugar. Logo, o corpo do sol há de mover-se sempre. E pela mesma razão todos os corpos celestes.
9. Demais. ─ O movimento do céu é a causa do tempo. Portanto, faltando ele desaparecerá este. Ora, se faltasse deveria ser instantaneamente, mas, a definição do instante é: o que é o início do futuro e o fim do passado, segundo o diz Aristóteles. E assim, depois do último instante do tempo ainda haveria tempo. O que é impossível. Logo, o movimento do céu não cessará nunca.
10. Demais. ─ A glória não destrói a natureza. Ora, o movimento do céu é natural. Logo, não será destruído pela glória.
Mas, em contrário, o Apocalipse: diz que o anjo que apareceu jurou por aquele que vive por século de séculos, porque não haverá mais tempo, i. é, depois de ter o sétimo anjo tocado a corneta, durante o som da qual, os mortos ressurgirão, diz o Apóstolo. Ora, não havendo tempo, não haverá também movimento do céu. Logo, o movimento do céu cessará.
2. Demais. ─ A Escritura ordena: Não se porá o teu sol de ali em diante e a tua lua não minguará. Ora, o ocaso do sol e o minguante da lua são causados pelo movimento do céu. Logo, o movimento do céu um dia cessará.
3. Demais. ─ Como o prova Aristóteles, o movimento do céu tem por fim as contínuas gerações que se dão neste mundo. Ora, a geração cessará uma vez completo o número dos eleitos. Logo, o movimento do céu cessará.
4. Demais. ─ Todo movimento tende para algum termo, como diz Aristóteles. Ora, todo movimento que tende para um termo nele repousa uma vez alcançado. Logo, ou o movimento do céu não atingirá nunca o seu fim, sendo então inútil, ou há de acabar no repouso.
5. Demais. ─ O repouso é mais nobre que o movimento; porque os seres imóveis mais se assemelham a Deus, que é a suma imobilidade. Ora, o movimento dos corpos terrestres tem por termo natural o repouso. Logo, sendo os corpos celestes muito mais nobres que os terrestres, o movimento deles há de ter como termo natural o repouso.
SOLUÇÃO. ─ Sobre esta questão há três opiniões.
A primeira é dos filósofos, que dizem que há de durar sempre o movimento do céu. ─ Mas esta opinião não concorda com a nossa fé, consoante à qual o número dos eleitos foi predeterminado por Deus. Portanto, a geração humana não pode durar perpetuamente; e pela mesma razão tudo o mais ordenado a essa geração, como o movimento do céu e as variações dos elementos.
Outros porém, pretendem, que o movimento do céu deve cessar, de acordo com as leis da natureza. ─ Mas isto também é falso. Porque a todo corpo dotado de movimento natural um lugar lhe compete onde naturalmente repousa, para o qual naturalmente se move e do qual só por violência se afasta. Ora, não podemos determinar nenhum lugar como esse aos corpos celestes; pois, não é mais natural ao sol mover-se para o oriente do que dele se afastar. Portanto, ou o seu movimento não seria totalmente natural, ou não terminaria naturalmente no repouso.
Por isso devemos responder, com outros, que o movimento do céu cessará no mundo renovado, não por nenhuma causa natural, mas pelo querer da vontade divina. Pois, os corpos celestes, como todos os mais, foram feitos, a dupla luz, para a utilidade do homem, como dissemos. Ora, no estado da glória, o homem não precisará do ministério dos corpos celestes para sustentar a vida do corpo. Pois, desse modo, os corpos celestes lhe servem mediante o movimento, pois, é o movimento do céu a causa da multiplicação dos homens; da geração das plantas e dos animais, necessários ao uso humano; e também do equilíbrio da atmosfera, pela qual se conserva a saúde. Portanto, glorificado o homem, o movimento do céu cessará.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Essas palavras se referem à terra na sua condição atual, em que pode ser princípio da geração e da corrupção das plantas. O que se conclui das palavras mesmas citadas ─ em todo o tempo que a terra durar, ver-se-ão sempre as sementes e as searas, etc. Ora, devemos conceder, pura e simplesmente, que, enquanto a terra durar, produzindo sementes e searas, o movimento do céu não cessará.
E semelhantemente devemos responder à segunda objeção, que Deus se refere, no lugar aduzido, à duração da linhagem de Israel, na situação presente. O que é claro pela sequência: E a linhagem de Israel, para que não haja gente diante de mim todos os dias. Ora, depois desta vida, já não haverá a sucessão dos dias. Por isso as leis mencionadas também não existirão no mundo renovado.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O fim aí assinalado aos corpos celestes é o fim próximo, por ser o ato próprio deles. Mas esse ato se ordena a um fim ulterior, a saber, servir ao homem, como é claro pelo lugar seguinte: Não seja que, levantando os olhos ao céu, vejas o sol e a lua e todos os astros do céu, e caindo em erro, adores e desculto a essas causas, que o Senhor teu Deus criou para o serviço de todas as gentes que vivem debaixo do céu. Por onde, devemos julgar dos corpos celestes antes pelo serviço que prestam ao homem do que pelo fim que a Escritura lhes assinala. E os corpos celestes de outro modo servirão ao ministério do homem glorificado, como já dissemos. Donde, pois, não se segue que continuem a existir em vão.
RESPOSTA À QUARTA. ─ O movimento não é da perfeição dos corpos celestes, senão enquanto, mediante ele, são a causa da geração e da corrupção dos seres terrestres. E por aí também o movimento fá-los participarem da bondade divina por uma certa semelhança de causalidade. Mas o movimento não é da perfeição da substância do céu, que subsistirá. Donde portanto não se segue que, cessado o movimento, a substância do céu, enquanto subsistente, sofra qualquer detrimento na sua perfeição.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Todos os corpos elementares por si mesmos de certo modo participarão do esplendor da glória. Por onde, embora algum ponto da superfície da terra não seja iluminado pelo sol, de maneira nenhuma reinará aí a obscuridade.
RESPOSTA À SEXTA. ─ Aquilo do Apóstolo ─ Todas as criaturas gemem, etc. ─ a Glosa de Ambrósio diz expressivamente: Todos os elementos cumprem a sua missão laboriosamente; assim, o sol e a lua ocupam o espaço, que lhes foi determinado no céu, não sem labor. Essa como pena tem em nós a sua causa. Por isso descansarão quando nós subirmos ao céu. ─ Tal labor, como creio, não significa nenhuma fadiga ou paixão que os corpos celestes sofram no seu movimento, pois, este é natural, não acompanhado de qualquer violência, como o prova Aristóteles. Mas a palavra labor, no lugar citado, significa a falta do termo a que tende o movimento. Por onde, sendo o movimento de tais corpos ordenado pela divina providência a completar o número dos eleitos, enquanto este não se acha completo, ainda não alcançou o movimento dos corpos celestes o fim para que foi ordenado. E então, por semelhança, se diz que trabalham, como o homem que ainda não possui o que busca. Ora, essa privação não mais a terá o céu, quando o número dos eleitos estiver completo. ─ Ou pode ainda o texto referir-se ao desejo que nutrem as criaturas dessa futura renovação, que esperam, por divina disposição.
RESPOSTA À SÉTIMA. ─ Nos corpos celestes não há nenhuma potência a ser aperfeiçoada pelo lugar, ou que tenha por finalidade existir num determinado lugar. Mas, nesses corpos, a potência está para o lugar, assim como a potência que tem um artífice para as diversas casas do mesmo gênero que poderá construir; pois, se fizer apenas uma delas, já não podemos dizer que tenha essa potência em vão. Semelhantemente, qualquer que seja o lugar ocupado por um corpo celeste, a potência que tem a ocupar um lugar não fica por isso incompleta nem vã.
RESPOSTA À OITAVA. ─ Embora um corpo celeste seja por natureza indiferente a qualquer lugar: que possa vir a ocupar, contudo, já não é indiferente a esses lugares, quando comparado a outros corpos. Assim, ocupando um determinado lugar, poderá dispor-se mais nobremente a certas atividades, que ocupando outro; desse modo, a posição do sol, em relação a nós, lhe é mais nobre durante o dia que durante a noite. Por onde, é provável que, como a futura renovação do mundo se ordenará totalmente para o homem, o céu terá, nessa renovação, o lugar mais nobre possível relativamente à nossa habitação. Ou, segundo outros, o céu repousará no mesmo lugar onde foi feito, do contrário qualquer revolução do céu ficaria incompleta. Mas, essa explicação não é satisfatória. Porque, havendo no céu uma revolução que não se perfará senão em trinta e seis mil anos, resultaria que o mundo deveria durar esse espaço de tempo; e isso não parece provável. Além disso, se assim fosse poderíamos saber quando acabará o mundo. Pois, os astrólogos deduzem o lugar onde os corpos celestes foram feitos, considerando o número de anos decorridos desde o princípio do mundo. Do mesmo modo, poder-se-ia saber com certeza o número de anos depois do qual os astros voltariam à mesma posição. Ora, o tempo do fim do mundo nos é desconhecido, por disposição divina.
RESPOSTA À NONA. ─ O tempo há de acabar um dia, quando cessar o movimento do céu; nem o último momento do tempo será o princípio de um tempo futuro. Pois, a definição citada não se aplica ao momento senão como continuação das partes do tempo, e não enquanto termo do tempo total.
RESPOSTA À DÉCIMA. ─ O movimento do céu não é considerado natural por ser como parte da natureza, no mesmo sentido em que dizemos ser naturais os princípios da natureza. Nem outrossim por ter um princípio ativo em a natureza do corpo celeste, pois, é um princípio puramente receptivo; sendo-lhe o princípio ativo a substância espiritual, como diz o Comentador. Não portanto inconveniente se a renovação gloriosa do mundo fizer desaparecer esse movimento; pois, essa disparição não acarreta qualquer alteração em a natureza do corpo celeste.
AS OUTRAS TRÊS OBJEÇÕES concedemos, i. é, as três primeiras, em contrário, porque concluem como devem. Mas como as outras duas concluem pela cessação natural do movimento do céu, devemos por isso lhes responder.
DONDE RESPOSTA À PRIMEIRA DELAS. ─ O movimento cessa quando foi atingido o termo por causa do qual existia, desde que esse termo lhe seja consecutivo e não concomitante. Ora, o termo em vista do qual, segundo os filósofos, o movimento celeste existe, é concomitante a esse movimento, pois, é a imitação da divina bondade, pela causalidade que ele exerce sobre os seres terrestres. Donde não se segue que esse movimento deva cessar naturalmente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora a imobilidade seja, absolutamente falando, mais nobre que o movimento, contudo este, quando é um meio para uma participação mais perfeita da divina bondade, é mais nobre que o repouso que de nenhum modo poderia fazer alcançar essa participação. Por isso a terra, ínfimo dos elementos, é privada de movimento, embora também Deus, o nobilíssimo dos seres e causa do movimento universal, não tenha movimento. Donde também o movimento dos corpos superiores poder ser admitido como naturalmente perpétuo, sem nunca vir a acabar no repouso, embora seja este o termo do movimento dos corpos inferiores.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que o mundo não será nunca renovado.
1. ─ Nada existirá senão o que já antes existia especificamente, conforme aquilo da Escritura: Que é o que foi? É o mesmo que o que há de ser. Ora, o mundo não teve nunca outra disposição, diferente da atual, quanto às suas partes essenciais, aos gêneros e às espécies. Logo, nunca será renovado.
2. Demais. ─ Toda inovação é uma alteração. Ora, é impossível o universo alterar-se; porque todo alterado se reduz ao ser alterante, mas não alterado, sujeito contudo ao movimento local e impossível de ser colocado fora do universo. Logo, não é mundo susceptível de alteração.
3. Demais. ─ A Escritura diz: Deus descansou no sétimo dia de toda a obra, que fizera; o que significa, expõe os Santos Padres, que cessou de criar novos seres. Ora, nessa primeira Instituição não impôs às criaturas um modo de ser diverso do que agora tem naturalmente. Logo, nunca tiveram outro modo de ser.
4. Demais. ─ A atual disposição dos seres do universo é natural. Se, portanto, fossem mudados para outra disposição, esta última lhes contrariaria a natureza. Ora, o que não é natural e é acidental não pode ser perpétuo, como o demonstra Aristóteles. Por consequência, essa nova disposição as criaturas teriam de a perder. Daí a necessidade de se admitir, com Empédoeles e Orígenes, uma transformação circular do mundo: depois deste mundo haveria outro, e em seguida outro e assim por diante.
5. Demais. ─ A glória da renovação é dada como prêmio à criatura racional. Ora, onde não há mérito, não pode haver prêmio. Logo, como as criaturas insensíveis não podem merecer, resulta que não serão renovadas.
Mas, em contrário, a Escritura: Eis aqui estou eu que crio uns céus novos e uma terra nova, e não persistirá na memória o que antes existiu. E noutro lugar: Vi um céu novo e uma terra nova; porque o primeiro céu e a primeira terra se foram.
2. Demais. ─ Uma habitação deve ser adaptada ao habitante. Ora, o mundo foi feito para ser habitação do homem. Logo, deve-lhe ser adaptada. Ora, o homem será renovado. Portanto, também o mundo.
3. Demais. ─ Todo animal ama ao seu semelhante, diz a Escritura; donde se conclui ser a semelhança a causa do amor. Ora, o homem tem certa semelhança com o universo, sendo por isso chamado pequeno mundo. Logo, o homem ama naturalmente o mundo universo. Portanto, lhe deseja o bem. Logo, para o desejo do homem ser satisfeito, também o universo deve ser renovado.
SOLUÇÃO. ─ Cremos que todos os seres corpóreos foram feitos para o homem, e por isso dizemos que todos lhe estão sujeitos. Ora, podem lhe servir de dois modos: sustentando-lhe a vida do corpo e fazendo-o progredir no conhecimento de Deus, pois, as cousas de Deus invisíveis ele as vê consideradas pelas obras que foram feitas, como diz o Apóstolo. Ora, do primeiro serviço prestado pelas criaturas o homem glorificado de nenhum modo precisará; pois, o poder divino, glorificando-lhe imediatamente a alma, tornar-lhe-á o corpo, por meio dela, absolutamente incorruptível. Do segundo ministério também não precisará, para o conhecimento intelectual, porque com esse conhecimento os santos verão imediatamente a essência de Deus. Mas, os olhos carnais não poderão alcançar essa visão da essência. Por isso, a fim de terem a consolação de gozarem, na medida do que lhes for possível, da visão divina, contemplarão a divindade nos seus efeitos corporais, onde aparecerão indícios manifestos da majestade divina; sobretudo na carne de Cristo, depois nos corpos dos santos e enfim em todos os mais corpos. Será portanto necessário todos os corpos receberem maior influência da bondade divina, que neste mundo; não para os fazer variar de espécie, mas para lhes acrescentar à perfeição da glória. E tal será a renovação do mundo. Por onde, ao mesmo tempo será o mundo renovado e o homem glorificado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Salomão se refere, nesse lugar, ao curso natural das cousas, como se vê pelo que acrescenta: Nada de novo debaixo do sol. Ora, como o sol se move circularmente, por força o que lhe está sujeito a ação deve também de certo modo mover-se em círculo. E isso consiste em o que já existir voltar de novo à existência, na mesma espécie, mas com individualidade diferente, como diz Aristóteles. Ora, o que já está na vida da glória não depende do sol.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Essa objeção se funda na alteração natural, produzida por um agente natural, cuja ação se produz fatalmente. Pois, tal agente não pode infundir nenhuma disposição nova nos seres que lhe estão sujeitos, salvo se for modificado no mesmo sentido. Ora, o que Deus faz procede da sua livre vontade por onde, sem haver em Deus mudança nenhuma, sua vontade pode introduzir no universo ora uma ora outra alteração, que, portanto, não se reduzirão a nenhum princípio movido, mas a Deus, princípio imóvel.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Quando se diz que Deus no sétimo dia cessou de fazer novas criaturas, significa isso que nada depois foi feito que já antes - não preexistisse por alguma semelhança genérica ou específica; ou pelo menos no seu principio seminal; ou enfim em potência virtual. Ora, afirmo que a futura renovação do mundo já preexistia nas obras dos seis dias, numa como remota semelhança, na glória e na graça dos anjos. Preexistiu também em potência virtual, então infundida na criatura, para receber da ação divina essa renovação.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Essa nova disposição não será natural nem contra a natureza; mas superior à natureza, como a graça e a glória são superiores à natureza da alma. E emanará de um agente eterno que eternamente a fará subsistir.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Embora os corpos insensíveis não possam merecer essa glória, propriamente falando, o homem contudo mereceu que ela fosse conferida a todo o universo, redundando-lhe isso em aumento da sua glória. Assim como pode um merecer vestir-se de roupas mais ornadas, sem que essas vestes de nenhum modo merecessem tais ornatos.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que a divindade poderá ser contemplada, sem alegria, pelos maus.
1. ─ Pois, sabemos que os ímpios hão de mui manifestamente conhecer que Cristo é Deus. Logo, ver-lhe-ão a divindade. E contudo não hão de comprazer-se com a visão de Cristo. Logo, Cristo poderá ser visto, sem alegria, pelos maus.
2. Demais. ─ A vontade perversa dos ímpios não se opõe mais à humanidade que à divindade de Cristo. Ora, o verem a glória da humanidade de Cristo lhes redunda em pena, como se disse. Logo e com maior razão, a vista da sua divindade lhes causará, antes, tristeza que alegria.
3. Demais. ─ Um fato afetivo não é necessariamente a consequência de um fato intelectual; donde o dizer Agostinho: Ao ato do intelecto, precedente, pode-se-lhe seguir um ajecto tardio ou não se lhe seguir nenhum. Ora, a visão é própria ao intelecto, ao passo que a alegria, ao afeto. Logo, é possível ver-se a divindade sem sentir com isso nenhuma alegria.
4. Demais. ─ Tudo o que é recebido o é ao modo do recipiente, e não ao do recebido. Ora, tudo o que é visto de certo modo é recebido pelo vidente. Logo, embora a divindade seja, em si mesma, a fonte de toda a alegria, contudo, vista pelos que estão absorvidos pela tristeza, não deleitará, mas ao contrário, aumentará a tristeza.
5. Demais. ─ Assim está o sentido para o sensível como o intelecto para o inteligível. Ora, com todos os sentidos se dá o que se passa com o do gosto que, quando não que agrada o pão, que lhe constitui uma pena quando esse sentido está mal disposto, como diz Agostinho. Logo, como os condenados tem o intelecto mal disposto, parece que a visão da luz incriada é-lhes antes causa de pena que de alegria.
Mas, em contrário, o Evangelho: A vida eterna consiste em que conheçam por um só verdadeiro Deus a ti; por onde é claro que a essência da felicidade consiste na visão de Deus. Ora, da essência da beatitude é a alegria. Logo, a divindade não pode ser vista sem advir dela a alegria.
2. Demais. ─ A essência mesma da divindade é a essência da verdade. Ora, a cada um é agradável conhecer a verdade, pois, todos os homens por natureza desejam saber, como diz Aristóteles. Logo, a divindade não pode ser vista sem causar alegria.
3. Demais. ─ A visão que não for sempre uma causa de alegria há de às vezes ser causa de tristeza. Ora, a visão de Deus não pode nunca ser causa de tristeza, porque o prazer de inteligir não é mesclado de nenhuma tristeza, como diz o Filósofo. Logo, como a divindade não pode ser contemplada senão pelo intelecto, parece que ver a Deus não é possível, sem alegria.
SOLUÇÃO. ─ Em todo objeto apetível ou deleitável duas cousas devemos considerar: o objeto apetecido, ou que causa prazer; e a razão da apetibilidade ou do prazer. Ora, assim como, segundo Boécio, o que é pode ter alguma cousa mais do que aquilo que é, mas o seu ser mesmo não é susceptível de nenhuma mescla, assim, um objeto apetível ou deleitável é susceptível de mescla com o que pode fazê-lo perder essas duas qualidades, mas a razão mesma que o torna deleitável não comporta nem pode comportar nenhuma mescla pela qual deixe de ser deleitável ou apetível. As cousas porém deleitáveis por uma bondade participada, razão pela qual são deleitáveis e apetíveis, podem, quando apreendidas, não deleitar; mas o que por essência é bom, é impossível que não cause prazer quando essa essência é percebida. Ora, Deus sendo em si mesmo a bondade essencial, a sua divindade não pode ser vista sem causar alegria.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Os ímpios conhecerão manifestamente que Cristo é Deus, não por lhe verem a divindade, mas pelos sinais claríssimos dela.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A divindade, essencialmente considerada, ninguém pode odiá-la, como ninguém pode odiar a bondade por essência. Mas dizemos que alguns odeiam certos atos da divindade, quando fazem ou ordenam o que contraria à vontade. Por onde, a ninguém pode deixar de ser deleitável a visão da divindade.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ As palavras de Agostinho devem ser aplicadas quando o objeto de uma apreensão precedente do intelecto é o bem por participação e não por essência, como o são todas as criaturas; podendo por isso conter esse objeto algo que não mova o afeto. Semelhantemente, neste mundo conhecemos a Deus pelos seus efeitos, e o nosso intelecto não lhe atinge a essência mesma da bondade.
Por onde, não é forçoso que o afeto resulte da apreensão antecedente do intelecto, como o seria se apreendesse a essência divina em si mesma, que é a própria bondade.
RESPOSTA À QUARTA. ─ A palavra tristeza não designa uma disposição, mas antes, uma paixão. Ora, toda paixão fica aniquilada por uma causa superveniente mais forte, longe de aniquilar a esta. Assim, a tristeza dos condenados desapareceria se vissem a Deus em essência.
RESPOSTA À QUINTA. ─ A indisposição de um órgão faz desaparecer a proporção natural entre ele e o objeto que naturalmente lhe causaria prazer, que, por isso, fica impedido. Mas a indisposição dos condenados não os priva da proporção com que se ordenavam à contemplação da divina bondade, pois, não deixarão nunca de ser a imagem do Criador. Não há portanto símil.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que Cristo no juízo não aparecerá sob a forma da humanidade gloriosa.
1. ─ Pois, àquilo do Evangelho ─ Eles verão aquele a quem traspassaram, diz a Glosa: Porque virá com a mesma carne com que foi crucificado. Ora, foi crucificado numa forma abatida. Logo, com essa mesma forma aparecerá e não com forma gloriosa.
2. Demais. ─ O Evangelho diz, que aparecerá o sinal do Filho do homem no céu, i. é, o sinal da cruz. E Crisóstomo diz: Cristo virá ao juízo com sinais ostensivos não só das feridas cicatrizadas mas também da sua morte ignominiosíssima. Logo, parece que não aparecerá em forma gloriosa.
3. Demais. ─ Cristo aparecerá no juízo em forma que possa ser visto por todos. Ora, sob a forma da sua humanidade gloriosa Cristo não poderá ser visto por todos, bons e maus; porque os olhos não glorificados não são proporcionados à vista da claridade de um corpo glorioso. Logo, não aparecerá sob forma gloriosa.
4. Demais. ─ O prometido como prêmio aos justos não será concedido aos iníquos. Ora, contemplar a glória da humanidade e o prêmio prometido aos justos pelo Evangelho, quando diz: Ele entrará e sairá e achará pastagens, i. é, alimento na divindade e na humanidade, como o expõe Agostinho. E outro lugar da Escritura diz: Verão o rei no seu esplendor. Logo, no juízo não aparecerá a todos sob forma gloriosa.
5: Demais. ─ Cristo julgará naquela forma com que foi julgado. Por isso, aquilo do Evangelho ─ Dá o Filho vida àqueles que quer, diz a a Glosa: Na forma em que foi injustamente julgado, nessa mesma julgará, de modo a poder ser visto dos ímpios. Ora, foi julgado numa forma de humilhado. Logo, nessa mesma comparecerá ao juízo.
Mas, em contrário, o Evangelho: Então verão o Filho do homem, que virá sobre uma nuvem com grande poder e majestade. Ora, a majestade e o poder são atributos da glória. Logo, aparecerá em forma gloriosa.
2. Demais. ─ Quem julga deve estar numa posição superior a quem é julgado. Ora, os eleitos, que serão julgados por Cristo, terão corpos gloriosos. Logo e com maior razão, o juiz aparecerá em forma gloriosa.
3. Demais. ─ Assim como ser julgado implica uma situação de humilhação, assim julgar supõe a autoridade e a glória. Ora, no seu primeiro advento, quando Cristo para ser julgado, apareceu em figura de humilhado. Logo, no segundo advento, quando vier julgar, aparecerá em forma gloriosa.
SOLUÇÃO. ─ Cristo é chamado pelo Apóstolo o mediador entre Deus e os homens, por ter satisfeito por eles e por eles interceder perante o Pai; e comunica aos homens o que é próprio do Pai, segundo ele próprio o disse: Eu lhes dei a glória que tu me havias dado. E esse título de mediador lhe cabe pelos dois modos com que comunica com ambos os extremos. Pois, enquanto comunica com os homens, desempenha-lhes o papel perante o Pai; e enquanto comunica com o Pai distribui-lhe os dons aos homens. Ora, como no primeiro advento teve por fim satisfazer por nós perante o Pai, por isso revestiu-se da forma da nossa miséria. E como no segundo advento terá por alvo executar sobre os homens a justiça do Pai, deverá manifestar a sua glória que lhe cabe em comum com o Pai. Portanto, aparecerá em forma gloriosa.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Aparecerá Cristo com a mesma carne, mas não no mesmo estado.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O sinal da cruz aparecerá no juízo, para mostra da humilhação passada, que nele não mais se verá. Para assim aparecer em toda a sua justiça a condenação dos que desprezaram tão grande misericórdia e a dos que sobretudo perseguiram a Cristo injustamente. Quanto às cicatrizes que lhe deixará ver o corpo não implicarão nenhum estado de miséria, mas serão os sinais do soberano poder com que Cristo, pela paixão e pelo abatimento, triunfou de seus inimigos. Manifestará também uma ignominiosíssima morte, não fazendo-a aparecer sensivelmente aos olhares, como se então a estivesse padecendo, mas despertando nos homens a lembrança da sua morte passada pelos sinais que fará aparecerem da sua pretérita paixão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O corpo glorioso tem o poder de deixar-se ver ou não a olhos não glorificados, como se colhe do que foi dito. Por onde, sob forma gloriosa Cristo poderá ser visto de todos.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Assim como a glória de um amigo nos causa prazer, assim a glória e o poder de quem odiamos nos faz imensamente sofrer. Por onde, assim como a contemplação da gloriosa humanidade de Cristo será um prêmio para os justos, assim há de ser um suplício para os inimigos de Cristo. Por isso a Escritura diz: Vejam e sejam contundidos os que tem inveja do teu povo; e devore o fogo, i. é, da inveja, aos teus inimigos.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Forma, no lugar citado, é tomada no sentido de natureza humana, sob cuja forma foi julgado e também virá julgar; não porém pela qualidade da natureza, que não será a mesma ─ a de humilhada ─ com que foi julgado.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que Cristo não virá julgar sob sua forma humana.
1. Pois, o juízo requer a autoridade em quem julga. Ora, Cristo tem autoridade sobre vivos e mortos enquanto Deus, pois, nessa qualidade é que é o Senhor e Criador de tudo. Logo, virá julgar sob forma divina.
2. Demais. ─ O juiz há de ter um poder irresistível, donde o dizer a Escritura: Não pretendas ser juiz se não tem valor para romperes com esforço por entre as iniquidades. Ora, poder invencível é o de Cristo enquanto Deus. Logo, julgará como Deus.
3. Demais. ─ O Evangelho diz: O Pai a ninguém julga, mas todo o juízo deu ao Filho, a fim de que todos honrem ao Filho bem como honram ao Pai. Ora, ao Filho não é devida, na sua natureza humana, a mesma honra que ao Pai. Logo, não virá julgar sob forma humana.
4. Demais. ─ A Escritura diz: Eu estava atento ao que via, até que foram postos uns tronos e o antigo dos dias se assentou. Ora, os tronos designam o poder judiciário; e a antiguidade se atribui a Deus em razão da sua eternidade, como diz Dionísio. Logo, julgar convém ao Filho, como eterno. Portanto, não como homem.
5. Demais. ─ Agostinho, citado pelo Mestre diz: Pelo Verbo de Deus se opera a ressurreição das almas; pelo Verbo feito na carne Filho do homem se opera a ressurreição dos corpos. Ora, o juízo final concernirá mais a alma que o corpo. Logo, é antes como Deus que como homem, que Cristo virá julgar.
Mas, em contrário. ─ Diz o Evangelho: Deu-lhe o poder de julgar, por ser Filho do homem.
2. Demais. ─ Diz a Escritura: A tua causa tem sido julgada como a de um ímpio; por Pilatos, diz a Glosa. Por isso, ganharás a causa e a sentença; para julgares com justiça, diz a Glosa. Ora, Cristo foi, como homem, julgado por Pilatos. Logo, como homem virá julgar.
3. Demais. ─ Julgar pertence a quem pertence legislar. Ora, Cristo nos deu a lei do Evangelho, revestindo-se da natureza humana. Logo, como tal é que virá julgar.
SOLUÇÃO. ─ Todo juízo supõe o domínio do juiz sobre aquele que julga, donde o dizer o Apóstolo: Quem és tu que julgas o servo alheio? Por onde a Cristo compete julgar, pelo domínio que tem sobre os homens, que serão o objeto principal do juízo final. Ora, Cristo é nosso Senhor, não só em razão da criação, pois o Senhor é Deus, ele nos fez e não nós outros a nós, como diz a Escritura; mas também em razão da redenção, que operou pela sua natureza humana, e por isso diz o Apóstolo ─ por isso é que morreu Cristo e ressuscitou para ser Senhor tanto de mortos como de vivos. Ora, para alcançarmos o prêmio da vida eterna não nos bastariam os bens da criação, sem o acréscimo do benefício da redenção, por causa dos obstáculos provenientes à natureza criada pelo pecado dos nossos primeiros pais. Por onde, como pelo juízo final uns serão admitidos no reino celeste e outros excluídos dele, conveniente será que o próprio, Cristo, na sua natureza humana, por benefício de cuja redenção o homem é admitido no reino dos céus, presida a esse juízo. E, tal o diz a Escritura: Ele é o que por Deus foi constituído juiz de vivos e mortos. Ora, pela redenção do gênero humano não só restaurou a natureza humana mas também em universal todas as criaturas, na medida em que todas se aperfeiçoam, com a restauração do homem, segundo aquilo do Apóstolo: Pacificando, pelo sangue da sua cruz tanto o que está na terra como o que está no céu. Por onde, Cristo, pela sua, paixão, mereceu exercer o domínio e o poder judiciário, não só sobre o homem, como sobre todas as criaturas, conforme aquilo do Evangelho: Tem-se-me dado todo o poder no céu e na terra.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Cristo, na sua natureza divina, tem a autoridade de senhor sobre todas as criaturas, por direito de criação. Mas, pela sua natureza humana tem a autoridade do domínio merecida pela sua paixão, autoridade essa como secundária e adquirida. Ao passo que a primeira é natural e eterna.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora Cristo enquanto homem não tenha, por si mesmo, um poder irresistível, por virtude natural da espécie humana, contudo por dom da divindade tem, mesmo na sua natureza humana, um poder irresistível, pelo qual todas as cousas sujeitou debaixo dos pés dele. Por isso julgará, certo, na sua natureza humana, mas por virtude da divindade.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Cristo não seria capaz de obrar a redenção do gênero humano, se fosse um puro homem. Por onde, o fato mesmo de ter podido redimir, na sua natureza humana, o gênero humano, e adquirido desse modo o poder judiciário, mostra manifestamente que é também Deus e assim merece ser honrado por igual com o Pai, não como homem, mas como Deus.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Nessa visão de Daniel está manifestamente expressa toda a ordem do poder judiciário. O qual, como na sua origem primária, reside no próprio Deus, e especialmente no Padre, fonte de toda a divindade. Por isso no texto de Daniel diz, primeiro que o Antigo dos dias se assentou. Mas, do Padre, o poder judiciário foi transmitido ao Filho, não só abeterno segundo a natureza divina, mas também no tempo segundo a natureza humana, pela qual mereceu esse poder. Por isso, na visão referida o profeta acrescenta: E eis que vi um como o Filho do homem, que vinha com as nuvens do céu, e que chegou até o Antigo dos dias e ele lhe deu o poder, e a honra e o reino.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Agostinho se exprime num sentido analógico, reduzindo os efeitos que Cristo obrou em a natureza humana à causas de certo modo semelhantes. E como pela nossa alma somos à imagem e semelhança de Deus, mas pela carne somos da mesma espécie que Cristo humanado, por isso o que Deus operou em nossas almas Agostinho o atribui à divindade; e o que obrou ou há de fazê-lo na carne, lhe atribui à carne. Embora a carne de Cristo, enquanto órgão da divindade, como diz Damasceno, também tenha ação sobre as nossas almas, segundo aquilo do Apóstolo: O sangue de Cristo limpará a nossa consciência das obras da morte. E assim também o verbo feito carne é causa da ressurreição das almas. Por isso, também pela sua natureza humana a Cristo cabe ser juiz não só dos bens do corpo mas também dos da alma.
O oitavo discute-se assim. - Parece que os anjos serão julgados no juízo final.
1. ─ Pois, pergunta o Apóstolo: Não sabeis que havemos de julgar aos anjos? Ora, isto não pode referir-se às condições da vida presente. Logo, deve referir-se ao juízo final.
2. Demais. ─ A Escritura diz de Behemoth, que significa o diabo: Será precipitado à vista de todos. E o demônio perguntou a Cristo, como o refere o Evangelho: Viestes a perder-nos antes do tempo. Comentário da Glosa: Os demônios, vendo o Senhor no mundo, pensavam que iam ser julgados imediatamente. Logo, parece que estão reservados para o juízo final.
3. Demais. ─ A Escritura diz: Se Deus não perdoou aos anjos que pecaram, mas tirados pelos calabres do inferno, os precipitou no abismo, para serem atormentados e tidos como de reserva até o juízo. Logo, parece que os anjos serão julgados.
Mas, em contrário. ─ Deus não julgará duas vezes a mesma causa, diz a Escritura. Ora, os maus anjos já estão julgados, donde o dizer o Evangelho: O príncipe deste mundo já está julgado. Logo, Os anjos não serão julgados no juízo final.
2. Demais. ─ Os anjos superam, em bondade e em malícia, a maior parte dos homens neste mundo. Ora, certos homens, bons e maus, não serão julgados. Logo, também não serão julgados os anjos bons ou maus.
SOLUÇÃO. ─ O juízo para avaliar os méritos não se exercerá sobre bons anjos nem sobre os maus; porque nem os bons terão nenhum mal, nem os maus nenhum bem a ser discernido pelo juízo. Mas, se nos referimos ao juízo de retribuição, então devemos distinguir duas espécies de retribuição. ─ Uma correspondente aos méritos próprios dos anjos. E essa a receberam desde o princípio tanto os bons como os maus anjos, quando foram aqueles sublimados à felicidade e estes imersos na miséria. ─ Outra retribuição é a correspondente aos méritos ou deméritos adquiridos com a cooperação dos anjos. E essa se fará no juízo futuro, porque os bons anjos mais se regozijarão com a salvação daqueles para cujos méritos contribuíram, assim como mais serão torturados os maus com a condenação de maior número de maus, que eles incitaram ao mal, ─ Por onde, diretamente falando, não haverá juízo para os anjos, nem para o pronunciarem nem para lhe responderem, senão só para os homens. Mas, indiretamente, o juízo de certo modo lhes dirá respeito, na medida em que forem comparsas dos atos humanos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Essas palavras do Apóstolo se referem ao juízo comparativo; porque certos homens aparecerão, no juízo final, superiores a certos anjos.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Os próprios demônios serão precipitados à vista de todos, porque serão atirados ao cárcere perpétuo do inferno, donde não terão mais a liberdade de sair. Pois o saírem dele não lhes fora concedido senão na medida em que a providência divina o ordenara para provar a vida dos homens.
E a mesma resposta devemos dar à terceira objeção.
O sétimo discute-se assim. ─ Parece que nenhum mau será julgado.
1. ─ Pois, assim como é certa a condenação dos infiéis, assim a dos mortos em pecado mortal. Ora, é por causa da certeza da condenação que o Evangelho diz: Quem nele não crê já está condenado. Logo, pela mesma razão os mais pecadores também não serão julgados.
2. Demais. ─ A voz do juiz há de ser muito terrível de ouvir aos condenados no juízo final. Mas, como diz Gregório, citado pelo Mestre, o juiz não dirigirá a palavra aos infiéis. Logo, se a dirigisse aos fiéis a serem condenados, os infiéis tirariam vantagem da sua infidelidade. O que é absurdo.
Mas, em contrário. ─ Parece que todos os maus devem ser julgados. Porque a todos lhes é infligida a pena segundo a gravidade da culpa. Ora, isso não é possível sem primeiro o juízo o determinar. Logo, todos os maus serão julgados.
SOLUÇÃO. ─ O juízo como retribuição da pena ao pecado, todos os maus devem a ele comparecer; mas só os fiéis, se se trata do juízo como ponderação dos méritos. Porque os infiéis não tem o fundamento da fé, sem o qual todas as obras que praticarem carecem da perfeita retidão de intenção. Não há por isso nessas obras nenhuma mescla de bem ou de mérito e de mal, o que é necessário para poder haver avaliação. Mas os fiéis, que conservam o fundamento da fé, tem pelo menos o mérito do ato de fé, que embora não seja meritório sem a caridade, contudo, por natureza pode ser causa de merecer. Por isso as obras dos fiéis serão susceptíveis de ponderação, no juízo. Por onde, os fiéis que pelo menos foram do número dos cidadãos da Cidade de Deus, como cidadãos serão julgados, e não poderão sofrer uma sentença de morte sem os seus méritos serem apreciados. Ao passo que os infiéis serão condenados como inimigos, que os homens costumam exterminar sem lhes entrar na apreciação dos méritos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Embora não haja dúvida sobre a condenação dos que morreram em pecado mortal, contudo como na vida praticaram talvez certas ações meritórias, é necessário, para a manifestação da justiça divina, fazer-lhes a avaliação dos méritos por onde fique claro que foram justamente excluídos da Cidade dos santos, a cujo número apenas aparentemente pertenciam.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Espiritualmente entendida, a palavra dirigida pelo Soberano Juiz aos fiéis, que deve condenar, não lhes será áspera de ouvir, porque lhes manifestará uns restos de complacência, que não poderá haver para com os infiéis, pois; sem fé é impossível agradar a Deus. Mas a sentença de condenação pronunciada contra uns e outros será para todos eles terrível.
Quanto às objeções em contrário se fundam no juízo de retribuição.
O sexto discute-se assim. ─ Parece que os bons não serão julgados no juízo.
1. ─ Pois, diz o Evangelho: Quem nele crê não é julgado. Ora, todos os bons creram em em Cristo. Logo, não serão julgados.
2. Demais. ─ Felizes não são os incertos da sua felicidade; donde conclui Agostinho, que os demônios nunca foram felizes. Ora, os varões santos são felizes já neste mundo. Logo, estão certos da sua felicidade. Ora, o que é certo não pode constituir objeto de juízo. Logo, os bons não serão julgados.
3. Demais. ─ O temor repugna à felicidade. Ora, o juízo final, o mais tremendo de todos, não pode deixar de causar temor aos que devem ser julgados. Por isso, àquilo da Escritura ─ Quando se elevar temerão os anjos, etc. ─ diz Gregório: Consideremos como se abalará então a consciência dos maus, quando mesmo os justos terão a vida cheia de horror. Logo, os santos não serão julgados.
Mas, em contrário. ─ Parece que todos os bons serão julgados. Pois, diz o Apóstolo: Importa que todos nós compareçamos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba o galardão segundo o que tem feito, ou bom ou mau, estando no próprio corpo. Ora, ser julgado não é senão isso. Logo, todos, mesmo os bons, serão julgados.
2. Demais. ─ O universal abrange tudo. Ora, esse juízo será chamado universal. Logo, todos nele serão julgados.
SOLUÇÃO. ─ Duas cousas compreende o juízo: a avaliação dos méritos e a retribuição dos prêmios. Ora, quanto à retribuição dos prêmios, todos serão julgados, mesmo os bons; pois, cada um receberá, por sentença divina, o prêmio correspondente ao mérito. Mas, a avaliação dos méritos não terá lugar senão quando houver mescla de bens com males. Ora, os que elevam sobre o fundamento da fé edifício d'ouro, de prata, de pedras preciosas, totalmente entregues ao serviço divino e que não mesclaram com as suas boas ações nenhum mal grave, para esses não haverá lugar a avaliação dos méritos; tal, p. ex., o que se dará com aqueles que, desprezadas completamente as cousas do mundo, só cuidam solícitos nas cousas de Deus. Por isso hão de salvar-se, mas não serão julgados. Mas aqueles que levantam sobre o fundamento da fé edifício de madeira, de feno e de palha, i. é, os que amem ainda as cousas do mundo, e vivem enredados em negócios seculares, mas de modo que nada anteponham a Cristo e se esforçam por redimir os seus pecados com esmolas, esses mesclam com o mal os méritos das suas boas obras, por isso esses méritos devem ser ponderados. Por isso esses tais embora sejam assim julgados, contudo se salvarão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Sendo a punição um efeito da justiça e o prêmio, da misericórdia, por isso antonomásticamente a punição é, de preferência, considerada objeto do juízo; de modo que às vezes o juízo é tomado no sentido de condenação. Tal o sentido da autoridade citada, como o corrobora a Glosa a esse lugar.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A avaliação dos méritos dos eleitos a serem julgados não tem por fim privar-lhes o coração da certeza da felicidade, mas para mostrar a todos manifestamente a preeminência do bem sobre o mal e proclamar assim a justiça de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Gregório se refere aos justos que ainda vivem esta vida mortal. Por isso tinha dito antes: Os que, na ocasião do juízo, viverem ainda neste mundo, embora já fortes e perfeitas, contudo, apesar de ainda viverem esta vida, não poderão deixar de ser sacudidas pelo pavor no meio desse turbilhão de tantos terrores. Por onde é claro que esse terror se refere ao tempo imediatamente precedente ao juízo, por certo soberanamente tremendo para os maus, mas não para os bons, nos quais não haverá nenhuma suspeita de mal.
Quanto às objeções em contrário, fundam-se no juízo quanto à retribuição dos prêmios.
O quinto discute-se assim. ─ Parece que nem todos os homens comparecerão ao juízo.
1. ─ Pois, diz o Evangelho: Vós estareis sentados sobre doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel. Ora, nem todos os homens pertencem a essas doze tribos. Logo, parece que nem todos comparecerão ao juízo.
2. Demais. ─ O mesmo se conclui do lugar seguinte da Escritura: Os ímpios não ressurgirão no juízo. Ora, muitos são ímpios, Logo, parece que nem todos comparecerão ao juízo.
3. Demais. ─ Os homens serão trazidos a juízo para lhes serem avaliados os méritos. Ora, certos, como as crianças mortas antes da idade de razão, nenhum mérito tiveram. Logo, não é necessário comparecerem a juízo.
Mas, em contrário, a Escritura: Cristo foi constituído por Deus juiz de vivos e mortos. Ora, nessas duas classes estão compreendidos todos os homens, seja como for que os vivos se distinguam dos mortos. Logo, todos comparecerão a juízo.
2. Demais. ─ A Escritura diz: Ei-lo, aí vem sobre as nuvens e todo olho o verá. Ora, isto não seria, se nem todos comparecessem ao juízo. Logo, etc.
SOLUÇÃO. ─ O poder judiciário foi delegado a Cristo homem como prêmio da humilhação que sofreu na sua paixão. Ora, na paixão derramou o seu sangue por todos os homens, o suficiente para se salvarem, embora não produza o seu efeito em todos, por causa do obstáculo que certos lhe opõem. É, pois, conveniente que todos os homens se reúnam no juízo para presenciarem a exaltação de Cristo na sua natureza humana, enquanto constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Diz Agostinho: Não é pelo fato de Cristo dizer ─ Julgareis as doze tribos. de Israel ─ que a tribo de Leví, que era a décima terceira, não será julgada; ou que os Apóstolos só julgarão o povo judaico e não as outras nações. E assim, nas doze tribos estão compreendidas todas as mais nações, pois todas estas Cristo as chamou a si juntamente com as tribos de Israel.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O lugar citado ─ Os ímpios não ressurgirão no juízo ─ se o referirmos a todos os pecadores, significa então que não ressurgirão para julgarem. Mas se por ímpios se entendem os infiéis, então o texto significa que não ressurgirão para serem julgados, porque já estão julgados. Mas todos ressurgirão para comparecerem ao juízo e contemplarem a glória do juiz.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Também as crianças: mortas antes da idade de razão comparecerão ao juízo, não para serem julgadas, mas para presenciarem a glória do juiz.
O quarto discute-se assim. ─ Parece que depois do dia de juízo os demônios não executarão contra os condenados a sentença do juiz.
1. ─ Pois, segundo o Apóstolo, Cristo destruirá todo principado, poder e virtude. Logo, cessará toda superioridade (Glosa). Ora, executar a sentença do juiz implica uma certa superioridade. Logo, os demônios, depois do dia do juízo, não executarão a sentença do juiz.
2. Demais. ─ Assim como os demônios sugerem aos homens o mal, assim os anjos bons, o bem. Ora, premiar os bons não será ofício dos bons anjos, mas Deus diretamente o fará. Logo, também não será ofício dos demônios punir os maus.
Mas, em contrário, os pecadores, pecando, sujeitaram-se ao diabo. Logo, é justo que também lhe fiquem sujeito quanto às penas, como se fossem punidos por ele.
SOLUÇÃO. ─ O Mestre refere duas opiniões, nesta matéria, de acordo ambas com as exigências da justiça de Deus. Pois, pecando, o homem fica, com justiça, sujeito ao demônio, embora o domínio do demônio sobre o pecador seja injusto. Por onde, a opinião que não concede presidam os demônios no futuro, depois do dia de juízo, às penas dos homens, leva em conta a ordem da divina justiça, no concernente às penas de que os demônios fossem os executores. E a opinião contrária considera a ordem da divina justiça em relação aos homens punidos. Mas qual dessas duas opiniões seja a mais verdadeira, não podemos ter certeza. Penso contudo que mais verdadeiro é pensar o seguinte. Assim como os que se salvaram observarão a ordem de serem uns iluminados, e aperfeiçoados pelos outros, porque todas as ordens da hierarquia celeste serão perpétuas, assim também, na aplicação das penas, se observará a ordem de serem os homens punidos pelos demônios, a fim de não ficar totalmente anulada a disposição divina, pela qual os anjos foram constituídos como termo médio entre a natureza humana e a divina. Por onde, assim como as iluminações divinas são deferidas aos homens pelos anjos bons, assim também os demônios serão os executores da justiça divina sobre os maus. Nem isso lhes diminui em nada as penas, porque o mesmo torturar os outros, lhes servirá de tortura; pois, no inferno, a sociedade dos miseráveis, longe de diminuir a miséria, a aumentará.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Essa superioridade da qual o Apóstolo diz, que Cristo fará desaparecer no século futuro, deve ser considerada como sendo da mesma natureza das deste mundo. De acordo com a qual homens governam homens os anjos, aos homens; Os anjos, aos anjos; os demônios, aos demônios; e os demônios, aos homens. E isto tudo para conseguirem o fim ou dele se desviarem. Mas então, quando todos os seres tiverem atingido ao seu fim, nenhuma superioridade mais haverá que a ele conduza ou dele desvie; só haverá então a que conservará bons e maus nos seus fins.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora os demônios não mereçam ser postos acima dos homens, pelos ter sujeitado a si injustamente, contudo assim o exige a relação da natureza, deles com a humana. Pois, os bens naturais eles os conservam íntegros, como diz Dionísio.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Os anjos bons não são a causa principal de os eleitos serem premiados, porque os seus prêmios estes os recebem diretamente de Deus. Mas de certos prêmios acidentais dos homens podem os anjos ser a causa, enquanto os anjos superiores iluminam os inferiores e os homens sobre certos arcanos divinos, não pertencentes à substância da beatitude. Semelhantemente, a sua pena capital os condenados a receberão diretamente de Deus, i. é, a exclusão perpétua da visão beatífica; mas quanto a outras penas, as sensíveis, não há inconveniente em serem infligidas aos homens pelos demônios. ─ Há porém a seguinte diferença: ao passo que o mérito exulta, o pecado deprime. Por onde, sendo a natureza angélica mais elevada que a humana, certos homens de mérito excelente, serão exaltados a ponto de essa exaltação exceder à capacidade da natureza e do prêmio de certos anjos. Donde o serem estes anjos iluminados por tais homens. Mas nenhuns pecadores terão nunca um grau de malícia tal, que cheguem à eminência própria da natureza demoníaca.