Category: Santo Tomás de Aquino
O quinto discute-se assim. ─ Parece que pela sua subtileza um corpo glorioso não está mais adstrito a existir num lugar que lhe seja igual.
1. ─ Pois, os corpos gloriosos serão conformes ao corpo de Cristo, como diz o Apóstolo. Ora, o corpo de Cristo não está adstrito num lugar que lhe seja igual, antes, está contido todo numa hóstia consagrada de pequena ou grande dimensão. Logo, o mesmo se dará com os corpos gloriosos.
2. Demais. ─ O Filósofo prova, que de dois corpos ocuparem o mesmo lugar resulta que o corpo maior ocupará menos espaço, porque as suas diversas partes poderiam ocupar ao mesmo tempo uma só e mesma parte do espaço. E se dois corpos podem ocupar um mesmo espaço, nada impede que multas também o possam. Ora, um corpo glorioso ocupará simultaneamente o mesmo lugar que outro, segundo a opinião comum. Logo, pode também ser encerrado num espaço mínimo.
3. Demais. ─ Assim como é a cor que toma os corpos visíveis, assim é pela quantidade que ocupam um lugar no espaço. Ora, um corpo glorioso está de tal modo sujeito ao espírito, que poderá ser visto ou não, conforme a sua vontade, sobretudo por olhos não glorificados; tal o caso de Cristo. Logo, de modo a sua quantidade está sujeita ao império do espírito, que poderá o corpo glorioso ocupar um grande ou pequeno espaço e ter pequena ou grande quantidade, conforme lh'o aprouver.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que tudo o que ocupa um lugar, ocupa-o de dimensões igual a si. Ora, o corpo glorioso ocupará um lugar. Logo, um lugar igual a si.
2. Demais. ─ As dimensões de um corpo são idênticas às do lugar que ele ocupa, como o prova Aristóteles. Logo, se um lugar fosse maior que o corpo nele encerrado, a mesma causa seria maior e menor que ela própria. O que é inadmissível.
SOLUÇÃO. ─ Um corpo não se relaciona com um lugar senão mediante as dimensões de um e de outro, pelas quais o corpo que ocupa um lugar é circunscrito pelo contato de outro corpo, que o localiza. Por onde, o ocupar um corpo um lugar menor que o exigido pela sua quantidade, não pode ser senão porque a sua quantidade própria assume tamanho menor.
O que não podemos conceber senão de dois modos.
De um modo, por variação da quantidade da mesma matéria; de maneira que a matéria tivesse, antes, uma quantidade maior, vindo a ser menor depois. E isto certos o atribuíram aos corpos gloriosos, dizendo que fazem variar a sua quantidade como lhes apraz, de modo que poderão, à vontade, ter uma quantidade grande ou pequena. ─ Mas isto é insustentável. Porque nenhum movimento, cujo objeto é o que é intrínseco a uma causa pode existir sem que a substância mesma dessa causa sofra uma alteração. Por isso os corpos incorruptíveis, i. é, os celestes, só podem se mover localmente, movimento que não atinge nada do que intrínsecamente os constitui. Por onde, é claro que a alteração da quantidade da matéria repugnaria à impassibilidade. Donde, além disso, se seguiria que um corpo glorioso seria ora mais rarefeito e ora mais denso. Porque, não podendo sofrer nenhuma divisão na sua matéria, esta teria umas vezes dimensões menores e outras vezes maiores, e assim seria ora mais rarefeito e ora mais denso. O que não é possível.
De outro modo, podemos conceber que a quantidade de um corpo glorioso venha a ser menor por variação do lugar; de modo que as partes desse corpo entrem umas nas outras, de sorte que possa reduzir-se a uma quantidade mínima. E isto certos o pretenderam, dizendo que, em razão da sua subtileza, poderá um corpo não glorioso existir simultaneamente com outro corpo não glorioso no mesmo lugar. Do mesmo modo, poderá uma parte ficar dentro da outra, a ponto de poder um corpo glorioso entrar na sua totalidade por um orifício mínimo do outro corpo. E afirmam que assim o corpo de Cristo nasceu do ventre virginal e entrou, pelas portas fechadas, até onde estavam os discípulos. ─ Mas isto não pode ser. Quer porque um corpo glorioso não será, em razão da sua subtileza, que poderá ocupar simultaneamente com outro o mesmo lugar. Quer também porque se pudesse ocupar o mesmo lugar já ocupado por outro corpo, não seria contudo este último um corpo glorioso como dizem muitos. Quer porque repugnaria à disposição do corpo humano, que exige um lugar determinado e uma determinada diferença de partes. Por isso nem por milagre tal poderia dar-se.
Donde pois devemos concluir que um corpo glorioso ocupará sempre um lugar que lhe seja igual.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O corpo de Cristo não está localmente no sacramento do Altar, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A prova do Filósofo se funda na hipótese de uma parte, pela mesma razão, entrasse em outra. Ora, não é possível as partes dos corpos gloriosos entrarem umas nas outras, como dissemos. Logo, a objeção não colhe.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Um corpo é visto por agir sobre a nossa vista. Mas que nos atinja ou não a vista, nenhuma alteração acarreta para o corpo. Não repugna, pois, que se deixe ver ou não, ao arbítrio da sua vontade. Mas ocupar um lugar não é ação procedente do corpo em razão da sua quantidade, como ver o é em razão da sua cor. Logo, não há símil.
O quarto discute-se assim. ─ Parece que um corpo glorioso pode ocupar o mesmo lugar ocupado por outro corpo glorioso.
1. ─ Pois, onde há maior subtileza há menor resistência. Se, portanto, um corpo glorioso é mais subtil que um não-glorioso, menos resistência oferecerá este àquele. E assim, desde que um corpo glorioso pode ocupar o mesmo lugar já ocupado por um não-glorioso, com muito maior razão poderá ocupar simultaneamente com outro corpo glorioso o mesmo lugar.
2. Demais. ─ Assim como o corpo glorioso será mais subtil que o não glorioso, assim um corpo glorioso será mais subtil que outro. Se, portanto, um corpo glorioso pode ocupar o mesmo lugar já ocupado por um corpo não glorioso, também um corpo glorioso mais subtil para coexistir num mesmo lugar com um corpo glorioso menos subtil.
3. Demais. ─ O corpo celeste é subtil, e na ressurreição será glorificado. Ora, o corpo glorioso de um santo poderá ocupar o mesmo lugar que o corpo celeste; porque os santos poderão descer à terra e subir ao céu conforme quiserem. Logo, dois corpos gloriosos poderão ocupar simultaneamente o mesmo lugar.
Mas, em contrário. ─ Os corpos gloriosos serão espirituais, i. é, de certo modo semelhantes aos espíritos. Ora, dois espíritos não poderão ocupar simultaneamente o mesmo lugar, embora o corpo e o espírito o possam, como se disse. Logo, nem dois corpos gloriosos poderão ocupar simultaneamente o mesmo lugar.
2. Demais. ─ Dois corpos ocupando o mesmo lugar, um será penetrado pelo outro. Ora, é sinal de inferioridade ser um corpo penetrado por outro, inferioridade que de nenhum modo existirá nos corpos gloriosos. Logo, dois corpos gloriosos não poderão ocupar simultaneamente o mesmo lugar.
SOLUÇÃO. ─ Um corpo glorioso nenhuma propriedade tem que lhe permita ocupar o mesmo lugar já ocupado por outro corpo glorioso ou não-glorioso. Mas o poder divino pode fazer que ocupem simultaneamente o mesmo lugar dois corpos gloriosos ou dois não gloriosos ou um glorioso e outro não glorioso. Não é contudo curial dois corpos gloriosos ocuparem simultaneamente o mesmo lugar. Quer porque a ordem devida a que devem obedecer exige a separação; quer porque um corpo glorioso não pode opor-se a outro. E assim dois corpos gloriosos não ocuparão nunca simultaneamente o mesmo lugar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A objeção colheria se um corpo glorioso pudesse, em razão da sua subtileza, ocupar simultaneamente com outro o mesmo lugar. O que é falso.
E do mesmo modo devemos responder à segunda objeção.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O corpo celeste e os demais corpos se chamam equivocamente gloriosos, enquanto de certo modo participam da glória, e não por lhes convir os dotes dos corpos humanos glorificados.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que nem por milagre podem dois corpos ocupar simultaneamente o mesmo lugar.
1. ─ Pois, nenhum milagre pode fazer com que dois corpos sejam simultaneamente dois e um só, porque seria fazer os contraditórios existirem ao mesmo tempo. Ora, se admitíssemos dois corpos ocupando simultaneamente o mesmo lugar resultaria que esses dois seriam um só corpo. Logo, não n'o pode operar nenhum milagre. ─ Prova da média. Sejam dois corpos a ocuparem um mesmo lugar e chame-se um A e B o outro. Ora, as dimensões de A serão as mesmas que as do lugar ou serão diversas. Se diversas, haverá então dimensões separadas da matéria. O que é inadmissível, porque as dimensões delimitadas por um lugar nenhum outro sujeito tem senão o corpo que ocupa esse lugar. Se porém forem as mesmas, logo e pela mesma razão as dimensões do corpo B coincidem com as do lugar. Ora, causas idênticas a uma terceira são idênticas entre si, diz Aristóteles. Logo, as dimensões de A e de B são idênticas. Mas, dois corpos não podem ter as mesmas dimensões como não podem ser brancos pela mesma brancura. Logo, A e B são um só corpo. E eram dois por suposição. Portanto, são simultaneamente dois e um só.
2. Demais. ─ Nada pode ser feito milagrosamente contra as noções do senso comum; p. ex., que a parte não seja menor que o todo, pois o que encontra as noções do senso comum diretamente implica contradição. Semelhantemente, nenhum milagre pode contrariar as conclusões da geometria, infalivelmente deduzidas das idéias do senso comum; assim, não pode fazer um triângulo não ter os seus três ângulos iguais a dois retos. Do mesmo modo, nada pode ser suposto, considera uma linha, contra a sua definição, porque separar a definição do definido é admitir a existência simultânea de dois contraditórios. Ora, supor dois corpos ocupando simultaneamente o mesmo lugar contraria as noções do senso comum, as conclusões da geometria e a definição da linha. Logo, nenhum milagre pode fazê-lo. ─ Prova da média. É uma conclusão da geometria que dois círculos não podem tocar-se senão num ponto. Ora, se dois corpos circulares ocuparem o mesmo lugar, dois círculos deles que supuséssemos se tocariam na sua totalidade. Contraria também a definição da linha, porque levaria a existência de mais de uma reta entre dois pontos, o que se daria se dois corpos ocupassem simultaneamente o mesmo lugar, pois, entre dois pontos determinados em diversas superfícies do lugar haveria duas linhas retas, dos dois corpos que ocupassem o mesmo lugar.
3. Demais. ─ Nenhum milagre pode fazer que um corpo incluso em outrem não ocupe lugar; porque então ocuparia um lugar comum e não próprio ─ o que não pode ser. Ora, tal seria a consequência se dois corpos ocupassem simultaneamente o mesmo lugar. Logo, isso nenhum milagre pode fazê-la. ─ Prova da média. ─ Sejam dois corpos num mesmo lugar, dos quais um tem uma das suas dimensões maior que a do outro. O corpo menor estará incluso no maior e o lugar do maior será o lugar comum de ambos. E não terá o corpo menor nenhum lugar próprio, por não haver nenhuma superfície atualmente determinada que o contenha ─ o que é da essência do lugar. Logo, não terá o seu lugar próprio.
4. Demais. ─ O lugar corresponde proporcionalmente ao locado. Ora, nenhum milagre poderá jamais fazer com que um mesmo corpo esteja simultaneamente em vários lugares, senão por uma espécie de conversão, como se dá no sacramento do Altar. Logo, de nenhum modo pode um milagre fazer dois corpos ocuparem simultaneamente o mesmo lugar.
Mas, em contrário. ─ A SS. Virgem deu a luz o seu filho milagrosamente. Ora, nesse parto bendito, dois corpos ocuparam necessariamente o mesmo lugar ao mesmo tempo, porque o corpo do menino nasceu sem detrimento da virgindade materna.
2. Demais. ─ O mesmo se pode demonstrar pelo fato de o Senhor ter entrado, estando as portas fechadas, até onde estavam os discípulos.
SOLUÇÃO. ─ Como do sobre dito se colhe, dois corpos hão de necessariamente ocupar dois lugares diversos, porque a diversidade de matéria exige a diversidade de lugares. E assim vemos, que quando dois corpos se fundem num só, desaparece o ser distinto de um e de outro, ambos se reduzindo a um corpo único, como o demonstram os mitos. Logo, não é possível dois corpos conservarem cada qual a sua individualidade e contudo existirem simultaneamente, senão conservando cada um o seu ser distinto primitivo, que fazia de cada um deles um ser em si mesmo indiviso e dividido de todos os mais. Ora, a existência distinta de cada ser depende dos princípios essenciais de cada um, como da causa próxima, mas de Deus como da causa primeira. Mas a causa primeira pode conservar a existência de um ser, fazendo cessar a ação das causas segundas, como o demonstra a primeira proposição do livro De causis. Por onde, o poder divino e só ele pode fazer um acidente existir sem o sujeito, como se dá no sacramento do Altar. Do mesmo modo, o poder divino, e só ele, pode fazer com que um corpo conserve o seu ser distinto do outro, embora a sua matéria não ocupe lugar diferente do lugar ocupado pela matéria de outro. E assim, podem milagrosamente dois corpos ocuparem ao mesmo tempo o mesmo lugar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O raciocínio feito é sofístico por proceder de uma falsa suposição ou de uma petição de princípio. ─ Pois, começa supondo que entre as duas superfícies opostas de um lugar exista uma dimensão própria ao lugar a que se unisse a dimensão do corpo que nele viesse colocar-se. Ora, esta suposição é falsa; pois, do contrário, sempre que um corpo passasse a ocupar um novo lugar, necessariamente sofreriam uma modificação as dimensões do lugar ou do corpo locado; porque não é possível dois corpos virem a constituir um só, senão sofrendo um deles uma alteração. Mas se, como é verdade, o lugar não tem outras dimensões senão as do corpo locado, é claro que o raciocínio aduzido nada prova. ─ Mas o raciocínio em questão se funda numa petição de princípio. Pois, outra causa não afirma, além de afirmar as dimensões do corpo locado idênticas às do lugar, senão que as dimensões do corpo locado estão contidas entre os limites do lugar, e nessas mesmas dimensões distam os limites do lugar como se lhes fossem suas dimensões próprias de distância, se as tivessem. E assim as dimensões de dois corpos seriam as de um só lugar, o que outra causa não é senão ocuparem os dois corpos simultaneamente o mesmo lugar. Ora, era essa mesma a hipótese inicial.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Suposto que dois corpos ocupem simultaneamente o mesmo lugar, por milagre, daí nada se segue contra as noções do senso comum, nem contra a definição da linha, nem contra nenhuma conclusão da geometria. Pois, como dissemos, a quantidade dimensiva difere de todos os outros acidentes, por ter um princípio próprio de individuação e de distinção, na situação local das suas partes; além do princípio de individuação e de distinção ─ a matéria, sujeito da forma ─ que lhe é comum com todos os outros acidentes. Assim, pois, podemos conceber uma linha como diversa de outra, ou por ter um outro sujeito, como no caso da linha material; ou por ter uma situação diferente, como no caso da linha matemática, cujo conceito é abstrato da matéria. Removida pois a matéria, não poderá haver distinção entre as linhas, senão pelas posições diversas delas; e semelhantemente, nem dos pontos, nem das superfíceis, nem de quaisquer outras dimensões. E assim a geometria não pode supor uma linha acrescentada à outra, como distinta uma da outra, senão tendo posição diferente. Mas, suposta a distinção de sujeitos sem a de posições, por milagre divino, podem considerar-se diversas as linhas com diversidade de sujeito embora sem diferirem de posição; e também diversos os pontos. E assim, linhas diversas traçadas em dois corpos, que ocupam o mesmo lugar, ficam delimitadas por pontos diversos; o ponto é então concebido por nossa, inteligência não no espaço, mas no corpo locado, porque uma linha não é delimitada senão pelos seus pontos terminais. Do mesmo modo, dois círculos determinados em dois corpos esféricos existentes num mesmo lugar, são dois, não pela diversidade de suas posições, aliás não podiam tocar-se na sua totalidade, mas pela diversidade de seus sujeitos; e por isso, apesar de se tocarem na sua totalidade, ainda permanecem dois. Assim como também um círculo, determinado num corpo esférico, locado, é tangente na sua totalidade a outro círculo determinado no corpo que o localiza.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Deus poderia fazer com que um corpo não ocupasse nenhum lugar. Mas daí não se segue que outro corpo também não ocupe um lugar. Porque o corpo maior é o lugar do menor em razão de aquela superfície que seria determinada pelo contacto das extremidades do corpo menor.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Nenhum milagre pode fazer com que um corpo ocupe simultaneamente dois lugares: pois, o corpo de Cristo, não está localmente no altar; embora milagrosamente possam dois corpos ocupar ao mesmo tempo o mesmo lugar. Porque estar em vários lugares simultaneamente repugna ao indivíduo em razão de ser ele, na sua essência, um todo indiviso. Pois, do contrário resultaria a sua divisão pela diferença das situações. Mas ocupar o mesmo lugar já ocupado por outro corpo, repugna-lhe por ser um indivíduo como tal dividido de qualquer outro. Pois, a unidade se completa pela indivisão, como ensina o Filósofo; mas o ser separado dos outros resulta da essência da unidade. Por onde, estar um corpo localmente em diversos lugares ao mesmo tempo implica contradição, como a implica conceber-se um homem privado de razão. Mas nenhuma contradição implica dois corpos ocuparem simultaneamente o mesmo lugar, como do sobredito se colhe. Logo, não há símil.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que em razão da sua subtileza pode um corpo glorioso ocupar simultaneamente o mesmo lugar que um corpo não glorioso.
1. ─ Pois, diz o Apóstolo: O que reformará o nosso corpo abatido, para o fazer conforme ao seu corpo glorioso. Ora, o corpo de Cristo podia ocupar simultaneamente com outro o mesmo lugar; como o demonstra o fato de, depois da ressurreição, ter entrado onde estavam seus discípulos, estando as portas fechadas, como o refere o Evangelho. Logo, também os corpos gloriosos, em razão da sua subtileza poderão ocupar simultaneamente o mesmo lugar com os corpos não gloriosos.
2. Demais. ─ Os corpos gloriosos serão mais nobres que todos os outros corpos. Ora, no nosso mundo, alguns corpos, como p. ex., os raios solares, podem, em razão da sua nobreza, estar simultaneamente com outros no mesmo lugar. Logo e com muito maior razão hão de podê-lo os corpos gloriosos.
3. Demais. ─ O corpo celeste não pode ser dividido, ao menos quanto à substância das esferas; donde o dizer Job, que os céus são tão sólidos como se fossem de metal. Se, portanto, um corpo glorioso não pudesse ocupar em razão da sua subtileza, o mesmo lugar que outro, não glorioso, nunca poderia subir ao céu empíreo, o que é errôneo.
4. Demais. ─ Um corpo que não pode ocupar simultaneamente o mesmo lugar que outro, pode ficar impedido por este no seu movimento ou mesmo ficar dele cativo. Ora, tal não se pode dar com os corpos gloriosos. Logo, poderão ocupar simultaneamente o mesmo lugar que os outros corpos.
5. Demais. ─ Um ponto está para outro, como uma linha para outra, uma para outra superfície e um corpo para outro corpo. Ora, dois pontos podem coexistir no mesmo lugar, como o demonstram duas linhas que se tocam; semelhantemente, duas linhas, pelo contato de duas superfícies; e duas superfícies pelo contato de dois corpos. Porque contíguas são as cousas cujos extremos se tocam, como explica o Filósofo. Logo, não colide com a natureza do corpo poder ocupar simultaneamente o mesmo lugar que outro. Ora, toda nobreza de que um corpo naturalmente susceptível será apanágio dos corpos gloriosos. Logo, o corpo glorioso, em virtude da propriedade da subtileza, poderá ocupar simultaneamente o mesmo lugar que outro.
Mas, em contrário, ─ diz Boécio: A diversidade dos acidentes é a causa das diferenças numéricas. Assim, três homens diferem entre si pelos seus acidentes e não pelo gênero nem pela espécie. Pois, se os despirmos absolutamente de todos os acidentes, contudo cada um ocupará lugares diferentes, que de nenhum modo poderemos reduzir a um só. Logo, postos dois corpos num mesmo lugar, ficarão reduzidos a um só.
2. Demais. ─ Os corpos gloriosos tem maior conveniência com o lugar do que os espíritos angélicos. Ora, os espíritos angélicos, como certos dizem, não poderiam distinguir─se individualmente uns dos outros se não ocupassem lugares diversos. Por isso afirmam que ocupam necessariamente lugar e não podiam ser criados antes da criação do mundo. Logo e com muito maior razão, deviam admitir que dois corpos quaisquer não podem ocupar simultaneamente o mesmo lugar.
SOLUÇÃO. ─ Não é possível admitir-se que um corpo glorioso, em razão da sua subtileza, possa coexistir com outro corpo no mesmo lugar, sem admitir-se também que a subtileza tem como efeito despojá-la do que, como mortal, o impede de ocupar simultaneamente com outro corpo o mesmo lugar.
Ora, como pretendem certos, o que impede, neste mundo, um corpo de ocupar o mesmo lugar que outro é a sua massa, que o leva a ocupar um lugar; ora, esse volume lhe desaparece em virtude da subtileza. ─ Mas isto é insustentável por duas razões.
Primeiro, porque a massa, eliminada pelo dote da subtileza, é a que constitui um defeito; p. ex., matéria desordenada não perfeitamente unida à sua forma. Mas tudo o constitutivo da integridade dos corpos com eles ressurgirão, tanto quanto à forma como quanto à matéria, Ora, o fato de um corpo ocupar um lugar, resulta-lhe da sua natureza íntegra, e não defeituosa. Pois, como o cheio se opõe ao vazio, só não enche um lugar o que, apesar de nele colocado, o deixa vazio. Ora o vácuo, como o define Aristóteles, é um lugar não cheio por um corpo sensível. E dizemos que um corpo é sensível pela sua matéria, pela sua forma e pelos seus acidentes, o que tudo lhe constitui a integridade natural. Ora, sabemos que os corpos gloriosos terão também a sensibilidade táctil, como a tinha o corpo do Senhor, consoante o refere o Evangelho. Nem ficarão privados da matéria, da forma, nem dos acidentes naturais, como a calidez, a frigidez e outros. Por onde, é claro que um corpo glorioso, não obstante o dom da subtileza, ocupará um lugar. E insânia seria dizer que o lugar ocupado por um corpo glorioso estará vazio.
Além disso, a razão dada não vale, porque impedir um corpo de ocupar um determinado lugar é algo mais que ocupar um lugar. Assim, se supusermos as dimensões existindo separadas, sem matéria, essas dimensões não ocuparão nenhum lugar. Por isso certos, admitindo o vácuo, disseram ser este um lugar onde estão as dimensões, sem nenhum corpo sensível. E contudo essas dimensões não poderão existir simultaneamente com outro corpo no mesmo lugar, como o prova o Filósofo, demonstrando ser impossível um corpo matemático, que outra coisa não é senão essas dimensões existindo separadamente; ocupar simultaneamente o mesmo lugar com outro corpo sensível. Por onde, dado que a subtileza dos corpos gloriosos tira-lhes a propriedade de ocupar um lugar, não se seguiria contudo daí que pudessem ocupar simultaneamente com outro corpo um mesmo lugar. Porque, removido o menos, nem por isso fica removido o mais.
Donde pois se conclui, que o impedimento do nosso corpo mortal de não poder simultaneamente com outro ocupar um mesmo lugar, não lhe rica removido pelo dote da subtileza. Ora, nada pode impedir um corpo de ocupar simultaneamente com outro um mesmo lugar, senão a lei natural pela qual cada corpo deve ocupar um lugar diverso do ocupado por outro. Pois, não há outro obstáculo à identidade senão o princípio da diversidade. Mas essa diversidade de lugar não implica no corpo nenhuma qualidade, porque não é em razão de uma qualidade sua que ocupa um determinado lugar. Por onde, removida de um corpo sensível a sua qualidade de quente ou frio, grave ou leve, nem por isso deixa de haver a necessidade de nele introduzirmos a referida distinção, como está provado pelo Filósofo e já por si mesmo é claro. Semelhantemente essa distinção não pode ter o seu fundamento na matéria; porque a matéria não ocupa lugar senão mediante a quantidade dimensiva. Nem afinal à forma é devido um lugar senão quando unida à matéria. Resta, pois, que o fato de dois corpos ocuparem dois lugares diversos se funda na natureza da quantidade dimensiva, que por natureza ocupa um lugar: pois, na sua definição se diz, que a quantidade dimensiva é a que ocupa um lugar. Donde vem que removidos todos os atributos de um ser, o fundamento da referida distinção se encontra na só quantidade dimensiva. Assim, considerando-se a linha separadamente, necessariamente forem duas ou duas partes de uma mesma linha, hão de ocupar lugares distintos; do contrário, uma linha acrescentada a outra não se tornaria maior, o que colide com o senso comum. E o mesmo se dá com as superfícies e os corpos matemáticos. E como é da natureza da matéria, enquanto fundamento das dimensões, ocupar um lugar, daí deriva para essa matéria como necessária a referida distinção.
De modo que assim como não é possível existirem duas linhas ou duas partes de uma mesma linha, se não ocupando lugares distintos, assim é impossível existirem duas matérias ou duas partes de matéria sem distinção de lugares. E como a distinção da matéria é o princípio da distinção dos indivíduos por isso Boécio diz, que não podemos atribuir a dois corpos um mesmo lugar; de modo que ao menos essa diversidade de acidentes a distinção dos indivíduos a requer.
Mas, como dizíamos, a subtileza não tira aos corpos gloriosos a dimensão. E portanto de nenhum modo os isenta da necessidade de ocuparem lugares diversos. Portanto, um corpo glorioso não terá na sua subtileza razão de poder ocupar simultaneamente com outro corpo o mesmo lugar. Mas poderá ocupar o mesmo lugar simultaneamente com outro por obra do poder divino. Assim como também Pedro não dava, por alguma propriedade que lhe fosse natural, à sua sombra o poder de curar os enfermos; mas o poder divino assim o permitia para a propagação da fé. Do mesmo modo, o poder divino poderá fazer, para perfeição da glória, que um corpo glorioso ocupe com outro simultaneamente o mesmo lugar.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O corpo de Cristo não foi pelo dote da subtileza que pôde ocupar simultaneamente com outro o mesmo lugar, mas isso se deu por virtude da sua divindade, depois da ressurreição, como na natividade. Por isso Gregório diz: Aquele corpo do Senhor, que entrou até onde estavam os discípulos, estando as portas fechadas, foi o mesmo que, pela sua natividade, apareceu aos olhos dos homens, saído do seio virginal de Maria. Por onde, não é necessário que isso convenha aos corpos gloriosos em razão da sua subtileza.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A luz não é corpo, como já se estabeleceu, Por onde, a objeção procede de falsas premissas.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O corpo glorioso pode atravessar as esferas celestes sem as dividir, não por força da sua subtileza, mas por poder divino, que lhes vem em auxílio, quando quer.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Porque Deus concede, por um ato da sua soberana vontade, aos santos tudo o que querem, é que não poderão ser cativos nem encarcerados.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Segundo o Filósofo, ao ponto não é natural ocupar um lugar. Por onde, se dissermos que está num lugar não será senão por acidente porque um corpo delimitado ocupa um lugar. E como o lugar total corresponde ao corpo total, assim os limites do lugar correspondem aos limites do corpo. Pode porém dar-se que lugares diversos tenham um termo comum, como duas linhas terminem num mesmo ponto. Por isso, embora dois corpos não possam ocupar senão lugares diversos, contudo a dois termos de dois corpos pode corresponder um mesmo termo de dois lugares. E neste sentido se diz, que os extremos de dois corpos contíguos ocupam simultaneamente o mesmo lugar.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que a subtileza não é propriedade dos corpos gloriosos.
1. ─ Pois, a propriedade da glória excede à da natureza, assim como a claridade da glória excede a do sol, que é a máxima claridade natural. Se, portanto, a subtileza é propriedade dos corpos gloriosos, parece que um corpo glorioso será mais subtil que tudo quanto há de subtil em a natureza. E assim será mais subtil que o vento e o ar, o que é a heresia por Gregório condenada na cidade de Constantinopla, como ele mesmo o narra.
2. Demais. ─ Assim o calor e a frigidez são umas qualidades dos elementos, corpos simples, assim também a subtileza. Ora, o calor e as outras qualidades dos elementos não terão maior intensidade nos corpos gloriosos que nos mortais; ao contrário, então mais se hão de reduzir ao equilíbrio. Logo, não terão maior subtileza do que presentemente.
3. Demais. ─ Os corpos são subtis quando rarefeitos de matéria; por isso consideramos como mais subtis os corpos de menor matéria em dimensões iguais; assim, o fogo, mais subtil que o ar, o ar, que a água, a água, que a terra. Ora, os corpos gloriosos terão a mesma de matéria que presentemente tem nem lhes são maiores as dimensões. Logo, não serão mais subtis então que agora.
Mas, em contrário, o Apóstolo: É semeado o corpo animal, ressuscitará o corpo espiritual, i. é, semelhante ao espírito. Ora, a subtileza do espírito excede toda a subtileza dos corpos. Logo, os corpos gloriosos serão subtilissimos.
2. Demais. ─ Os corpos quanto mais subtis tanto mais nobres. Ora, os corpos gloriosos são nobilíssimos. Logo, serão subtilíssimos.
SOLUÇÃO. ─ A denominação de subtileza deriva do poder de penetração dos corpos; por isso, como diz Aristóteles, subtil é o que tem a propriedade de encher os corpos e as diversas partes dos corpos. ─ Ora, o poder de penetração dos corpos pode provir de duas causas. ─ Primeiro, das suas pequenas proporções, sobretudo em profundidade e largura, mas não em comprimento; porque a penetração fazendo-se em profundidade, a largura nenhum obstáculo lhe opõe. Segundo, da pouca quantidade da matéria, por isso chamamos aos corpos de matéria rarefeita
subtis. E como nos corpos rarefeitos mais predomina a forma do que a matéria, daí a transladação da denominação de subtil aos corpos que se sujeitam do melhor modo possível à forma e se deixam aperfeiçoar por ela da maneira mais completa. Assim, atribuímos a subtileza ao sol, a lua e a corpos semelhantes; e também podemos chamar subtil ao ouro e matérias tais, quando perfeitissimamente completos no ser e na virtude da sua espécie.
E como as cousas incorpóreas carecem de quantidade e de matéria, foi-lhes transladada a denominação de subtilesa, não só em razão da sua subtileza, mas também da virtude. Pois, assim como chamamos subtil ao que é penetrante, porque atinge até ao íntimo das cousas, assim também chamamos subtil ao intelecto capaz de penetrar no seu exame até aos princípios intrínsecos e as propriedades naturais ocultas das cousas. Semelhantemente dizemos que tem uma vista subtil quem pode perceber um objeto, por mínimo que seja, E o mesmo
se dá com os outros sentidos.
E a esta luz também de diversos modos se atribuiu a subtileza aos corpos gloriosos.
Assim, certos heréticos consoante o refere Agostinho, atribuíram-lhes a subtileza ao modo por que as substâncias espirituais se chamam subtis, ensinando que na ressurreição os corpos se transformarão em espírito; razão pela qual o Apóstolo chama espirituais aos corpos ressurrectos. ─ Mas isto é inadmissível. Primeiro, porque um corpo não pode transformar-se em espírito, pois, não tem matéria nenhuma comum, como também o mostra Boécio. Segundo, porque se isso fosse possível, uma vez o corpo convertido em espírito, o homem, naturalmente composto de alma e corpo, não ressurgiria. Terceiro, porque se o Apóstolo assim o tivesse entendido, como usa da expressão ─ corpos espirituais, pela mesma razão usaria da outra ─ corpos animais, para designar os que se converteram na alma. O que é evidentemente falso.
Por isso outros heréticos disseram que o corpo não deixará de existir na ressurreição, mas terá a subtileza a modo da rarefação; de modo que os corpos humanos ressurrectos serão semelhantes ao ar ou ao vento, como refere Gregório. ─ Mas isto não pode sustentar-se. Porque o corpo do Senhor depois da ressurreição era palpável, segundo diz o Evangelho, e contudo devemos crer que era subtil por excelência. Além disso o corpo humano ressurgirá com carnes e ossos, como o corpo do Senhor, conforme o refere o Evangelho; Um espírito não tem carne nem ossos, como vós vedes que eu tenho. E noutro lugar da Escritura se lê: Na minha própria carne verei a Deus, meu Salvador. Ora, a natureza da carne e dos ossos não se compadece com a referida raridade.
Devemos, pois, atribuir aos corpos gloriosos outro modo de subtileza, chamando-lhes subtis por causa da sua completíssima perfeição.
Mas essa completa perfeição uns lhes atribuem em razão da quinta essência que sobretudo neles domina. ─ O que não pode ser. Primeiro, porque a quinta essência não pode de modo nenhum entrar na composição de qualquer corpo, como já se demonstrou. Segundo, porque, dado que viesse a entrar na composição do corpo humano, não poderíamos conceder que se fosse então mais predominante que o é presentemente sobre a natureza elementar. Salvo se o corpo humano resurrecto encerrasse maior quantidade da natureza celeste; mas então não seriam da mesma estatura, a não ser que a matéria elementar do homem sofresse uma diminuição, o que repugna à integridade dos corpos ressuscitados. Ou então, que a natureza elementar se revestisse das propriedades da natureza celeste, por causa da predominância desta no corpo. Donde, uma virtude natural seria a causa da propriedade gloriosa. O que é absurdo.
Daí o pretenderem outros que a referida plenitude de perfeição que nos leva a chamar subtis os corpos humanos, virá da preponderância da alma glorificada sobre o corpo, do qual é forma, em razão do que o corpo glorioso e chamado espiritual, quase totalmente sujeito ao espírito. Ora, o corpo humano está sujeito à alma, primeiramente, para lhe participar da sua essência específica, como à forma está sujeita a matéria. Em seguida também lhe está sujeito como executor das obras de que a alma é o móvel. Por onde, a razão primeira de ser o corpo subtil está na sua subtileza; depois, na agilidade e nas outras propriedades do corpo glorioso. Por isso o Apóstolo quando fala em espiritualidade se refere ao dote da subtíleza, como o explica o Mestre. Donde o dizer Gregório, que o corpo glorioso é chamado subtil por efeito da potência espiritual.
Donde se deduzem as respostas às objeções, fundadas na subtileza resultante da rarefação.
1. ─ Pois, o tato é o primeiro de todos os sentidos, como diz Aristóteles. Ora, os corpos gloriosos não terão absolutamente o sentido do tato, porque esse sentido se opõe em ato pela modificação do corpo animal proveniente de um corpo externo preponderante por uma virtude ativa ou passiva que o tato deve discernir. Mas os corpos gloriosos não são susceptíveis dessa modificação. Logo, nenhum será o sentido do tato.
2. Demais. ─ O sentido do gosto serve à atividade nutritiva. Ora, depois da ressurreição não mais se exercerá essa atividade. Logo, é inútil o sentido do gosto.
3. Demais. ─ Depois da ressurreição nada se corromperá, porque toda criatura será revestida de uma virtude incorruptível. Ora, o sentido do olfato não pode exercer-se senão com a produção de alguma corrupção; pois, o odor não pode ser sentido sem uma espécie de evaporação semelhante ao fumo, que consiste numa resolução de elementos. Logo, o sentido do olfato não se exercerá nos corpos gloriosos.
4. Demais. ─ O ouvido serve para a aprendizagem, como diz Aristóteles. Ora, depois da ressurreição, os bem-aventurados não necessitam de aprender nada por meios sensíveis; porque estarão cheios da sabedoria divina, pela visão mesma de Deus. Logo, não se exercerá então o sentido do ouvido.
5. Demais. ─ A vista se exerce quando a pupila recebe a imagem da cousa vista. Ora, tal não podem os bem─aventurados depois da ressurreição. Logo, não exercerão a atividade da visão, que contudo é o mais nobre de todos os sentidos. Prova da média. O que é atualmente lúcido não pode receber uma imagem visível; por isso um espelho diretamente colocado contra um raio solar não pode reproduzir a imagem de outros objetos. Ora, a pupila dos bem-aventurados, na ressurreição, bem como todo o corpo deles, terá o dom da claridade. Logo, não poderá receber nenhuma imagem de corpo colorido.
6. Demais. ─ Como o verifica a perspectiva, tudo o que vemos o vemos sob um certo ângulo. Ora, isto não é possível aos corpos gloriosos. Logo, não exercerão a atividade do sentido da vista. ─ Prova da média. Sempre que vemos uma causa sob certo ângulo, é mister haver proporção entre o ângulo e a distância do objeto visto. Porque uma causa vista de mais longe é menos vista e sobre um menor ângulo. E poderia o ângulo ser a tal ponto pequeno, que nada visse. Se, portanto, os olhos dos corpos gloriosos vêem sob um ângulo, há de por força, ver numa distância determinada; e de modo que nada veja em distância maior que aquela em que podemos nós ver. O que é de todo absurdo. Donde pois, se conclui, que nos corpos gloriosos não se exercerá o sentido da vista.
Mas, em contrário. ─ A potência atualizada é mais perfeita que a pura potência. Ora, a natureza humana será maximamente perfeita nos bem-aventurados. Logo, exercerão a atividade de todos os sentidos.
2. Demais. ─ As potências sensitivas se avizinham mais da alma que o corpo. Ora, o corpo será premiado ou punido pelos méritos ou deméritos da alma. Logo, também todos os sentidos serão premiados nos bem aventurados e punidos nos maus, conforme o prazer e a dor ou tristeza implicados na atividade deles sentidos.
SOLUÇÃO. ─ Duas opiniões há sobre este assunto.
Uns dizem que os corpos gloriosos terão todas as potências dos sentidos, mas só exercerão a atividade de dois: o tato e a vista. Nem será isso por deficiência dos sentidos, mas, do meio e do objeto. Mas não serão esses outros sentidos inúteis, porque servirão de integrar a natureza humana e a proclamar a sabedoria do Criador. ─ Mas esta opinião não é verdadeira. Porque o que serve de meio aos dois sentidos, de tato e da vista, serve também aos outros. Assim, o meio da vista é o ar, meio também do ouvido e do olfato, como o mostra Aristóteles. Também o gosto, sendo uma espécie de tato, tem o mesmo meio deste, como explica ainda o Filósofo. O olfato também o terão os bem-aventurados, pois a Igreja canta que os corpos dos santos exalarão um odor suavíssimo. Louvores vocais também os haverá na pátria. Donde o dizer Agostinho, àquilo da Escritura ─ Altos louvores de Deus se acham na sua boca: Os corações e as línguas não acabarão nunca de louvar a Deus. E o mesmo também diz a Glosa àquele outro lugar: Em cânticos e a toque de tímbales.
Por isso, segundo outros, devemos admitir que os santos exercerão também os sentidos do olfato e do ouvido. Mas não o gosto de modo que sinta a comida ou a bebida tomadas, como do sobredito resulta. Salvo se se disser que exercerão a atividade do gosto pela ação de alguma umidade exterior sobre a língua.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ As qualidades percebidas pelo tato são as de que se constitui o corpo animal. O corpo animal tem, pois, na vida presente, uma natureza tal, que pode receber do objeto do tato, pelas qualidades tangíveis, tanto a modificação natural como a espiritual. Por isso o sentido do tato é considerado o mais material de todos os sentidos, porque produz no corpo uma modificação mais material. Entretanto, como o ato da sensação se perfaz na modificação espiritual, não implica senão acidentalmente a modificação material. Por onde, os corpos gloriosos, que excluem pela sua impassibilidade a modificação material, serão modificados apenas espiritualmente pelas qualidades tangíveis. O que também se deu com o corpo de Adão, que nem o fogo podia queimar nem uma espada cortar; e contudo sentia a ação desses agentes.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Os santos não terão o sentido do gosto enquanto dá a sensação dos alimentos. Mas enquanto serve para julgar dos sabores, poderão talvez exercê-lo, do modo referido.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Certos ensinaram que o odor outra cousa não é senão uma evaporação à guisa de fumo. Mas esta doutrina não pode ser verdadeira. Como o demonstra o fato de os abutres acorrerem de lugares remotíssimos ao sentirem o cheiro dos cadáveres; e contudo, não seria possível a qualquer evaporação chegar de um cadáver a tão remotos lugares, mesmo se todo ele se resolvesse em vapor; sobretudo que os sensíveis, a igual distância, causam alterações igualmente em todas as direções. O odor pode, pois, algumas vezes alterar o meio e produzir no órgão a modificação espiritual sem o contato de nenhuma evaporação; e se a evaporação é necessária é que o odor fica retido nos corpos pela umidade, e por isso não pode ser percebido sem uma espécie de dissolução que o ponha em liberdade. Mas os corpos gloriosos terão o olfato na sua última perfeição, e de nenhum modo comprimido. E por si mesmo causará a modificação espiritual, como o faz o odor pela evaporação fumal. E assim os santos com o seu sentido do olfato, não impedido por nenhuma umidade, conhecerão não só as excelências dos odores, como se dá conosco, por causa da excessiva umidade do nosso cérebro, mas também as diferenças mínimas entre eles.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Cânticos de louvor se farão ouvir na pátria, embora alguns digam o contrário, e os seus acentos causarão no órgão do ouvido dos bem-aventurados somente uma modificação espiritual. Nem será por aprendizagem que adquirirão a ciência, mas pela perfeição do sentido e pelo prazer. Mas no céu poderá haver voz, já o dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. ─ A intensidade de uma luz não impede a recepção espiritual da espécie da cor, contanto que ela conserve a sua natureza diáfana. E isso o demonstra o fato de, por mais iluminado que esteja o ar, poder ainda ser o meio através do qual exercemos a visão; e quanto mais iluminado tanto mais claramente enxergamos, salvo se a nossa vista estiver enfraquecida por algum defeito. Quanto ao espelho que, colocado diretamente contra o raio solar, não reflete a figura de nenhum outro corpo, não é por ficar impedido de receber a imagem deste, mas por ficar privado da reverberação. Pois, é necessária, para uma forma aparecer num espelho, uma certa reverberação produzida por um corpo obscuro; por isso ao vidro do espelho se lhe coloca posteriormente uma folha de chumbo. Mas o raio solar dissipa a obscuridade desta, e por isso não pode o espelho refletir nenhuma imagem. A claridade do corpo glorioso porém não priva a pupila da sua diafaneidade, porque a glória não destrói a natureza. Por isso uma claridade intensa sobre a pupila, longe de enfraquecer a visão, a torna mais aguda.
RESPOSTA À SEXTA. ─ Tanto mais perfeito é um sentido, tanto melhor pode perceber o seu objeto, com uma fraca impressão. E menor é o ângulo sob a qual a vista é modificada pelo objeto visível, tanto menor é a modificação que causa. Donde vem que uma vista forte pode enxergar mais longe que uma fraca; porque o ângulo visual é tanto menor quanto maior é a distância. E como os corpos gloriosos gozam de uma vista perfeitíssima, poderão ver, mesmo se o órgão visual lhes é ferido por uma modificação mínima. Por isso poderão enxergar então sob um ângulo muito menor do que o podem presentemente; e por consequência, de muito mais longe.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que a impassibilidade priva os corpos gloriosos do exercício atual dos sentidos.
1. ─ Pois, como diz o Filósofo, sentir é de certo modo sofrer. Ora, os corpos gloriosos serão impassíveis. Logo, não terão o exercício atual dos sentidos.
2. Demais. ─ A modificação natural precede à modificação sensível, como o ser natural precede ao ser intencional. Ora, os corpos gloriosos, em virtude da sua impassibilidade, não são susceptíveis de nenhuma modificação natural. Logo, nem da modificação sensível, condição necessária para sentir.
3. Demais. ─ Sempre que a sensação se atualiza, pela recepção de uma nova modificação sensível, dá lugar a um novo juízo. Ora, na vida futura não se formarão novos juízos, porque não haverá então mudanças nos pensamentos. Logo, não hão de exercer os corpos gloriosos atos sensíveis.
4. Demais. ─ Quando uma potência da alma está em intensa atividade, as outras potências sofrem remissão nos seus atos. Ora, na vida futura, a alma será intensamente tomada pelo ato da virtude intelectiva, com que contempla a Deus. Logo, de nenhum modo exercerá os atos da potência sensitiva.
Mas, em contrário, a Escritura: Todo olho o verá. Logo, haverá então atividade sensível.
2. Demais. ─ Diz o Filósofo: O animado se distingue do inanimado pelo sentido e pelo movimento. Ora, na vida futura haverá movimento em ato, porque como faíscas por um canavial discorrerão, na frase da Escritura. Logo, haverá exercício atual da sensibilidade.
SOLUÇÃO. ─ Todos admitem que os corpos gloriosos exercem um certo sentido; do contrário a vida corporal dos santos depois da ressurreição seria assimilada mais ao sono que à vigília. O que não se lhes coaduna com a perfeição, porque no sono o corpo sensível não exerce o ato vital na sua plenitude, e por isso Aristóteles chama ao sono meia vida.
Mas as opiniões variam quando se trata de explicar o modo de sentir.
Uns dizem que, sendo os corpos gloriosos impassíveis e por isso incapazes de receber impressões estranhas, e muito mais que os corpos celestes, não exercerão a atividade sensível recebendo qualquer espécie dos sensíveis, mas antes projetando-o para o exterior. ─ Mas isto não pode ser. Porque na ressurreição perdurará a natureza específica tal qual era no corpo e em todas as suas partes. Ora, os sentidos são por natureza potências passivas, como o prova o Filósofo. Portanto, se na ressurreição os santos sentissem projetando a imagem exteriormente em vez de a receberem em si, não lhes seriam os sentidos potências passivas como presentemente são, mas uma virtude diversa que lhes foi dada; ora, assim como a matéria nunca pode vir a ser forma, assim uma potência passiva não poderá jamais vir a ser ativa.
Por isso pretendem outros que os sentidos dos ressurrectos se lhes atualizará por suscepção, não certo de sensíveis externos, mas por efluxo de forças superiores; de modo que, assim como na vida presente as potências inferiores recebem o influxo das superiores, assim ao contrário, serão então as inferiores que o hão de receber das superiores. ─ Mas este modo de receber não faz realmente sentir. Porque todas as potências passivas segundo a sua natureza específica são determinadas a uma atividade especial; pois, uma potência como tal se ordena à cousa donde lhe derivou o nome. Ora, o objeto ativo e próprio dos sentidos externos é a causa existente fora da alma e não a imagem dela existente na imaginação ou na razão. Por onde, se o órgão do sentido não for movido pelas cousas externas, mas pela imaginação ou por qualquer potência superior, não haverá verdadeiro ato de sentir. Por isso não se pode dizer que os frenéticos e outros mentecaptos, nos quais a predominância da imaginação faz decorrerem as espécies para os órgãos sensíveis, sintam verdadeiramente, mas dizemos que imaginam sentir.
Por onde, devemos responder, com outros, que os corpos gloriosos exercerão a sua sensibilidade pela suscepção do ato dos objetos exteriores à alma.
Devemos porém saber, que os órgãos dos sentidos podem ser modificados pelos objetos externos à alma de dois modos. Primeiro, por modificação natural, quando o órgão dispõe-se pela mesma qualidade natural do objeto exterior à alma, que age sobre ele. Assim, quando a mão se aquece pelo contato com um corpo quente ou sente um cheiro pelo contato com um corpo odorífero. De outro modo, por uma modificação espiritual, quando um órgão recebe a qualidade sensível no seu ser espiritual, i. é, a espécie ou a imagem da qualidade, e não a qualidade em si mesma; assim a pupila recebe a imagem de um corpo branco sem contudo tornar-se branca. Ora, a primeira espécie de percepção não produz a sensação, propriamente falando; porque o sentido é capaz de receber as espécies na matéria, mas separadas da matéria, i. é, sem o ser material que tem fora da alma, como ensina Aristóteles. E essa percepção modifica a natureza do recipiente, porque desse modo a qualidade é recebida no seu ser material; por isso não existirá nos corpos gloriosos. Mas sim a segunda espécie de percepção, que em si mesma, atualiza o sentido sem alterar a natureza do sujeito que a recebe.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Como já resulta do sobredito, a paixão implicada no ato de sentir, que outra cousa não é senão a referida percepção, não altera o estado natural do corpo na sua qualidade, mas o aperfeiçoa espiritualmente. Por isso a impassibilidade dos corpos gloriosos não exclui essa paixão.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Todo sujeito passivo recebe a seu modo a ação do agente. Se, pois, um ser é de natureza a poder receber uma modificação de um agente natural e espiritual, a modificação natural precederá à espiritual, como o ser natural precede ao intencional. Mas se é de natureza a receber somente uma modificação espiritual, não há mister de ser modificado naturalmente. Tal o caso do ar, incapaz de receber a cor no seu ser natural senão só no espiritual, modificando-se pois só deste último modo. Inversamente, os corpos inanimados só naturalmente podem ser modificados pelas qualidades sensíveis, e não espiritualmente. Ora, os corpos gloriosos não podem sofrer nenhuma modificação natural. Só poderão portanto recebê-las espirituais.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Na medida em que um órgão sensível receber uma nova espécie, nessa mesma o sentido comum, mas não o intelecto, formará um novo juízo sobre o objeto. Tal o caso de quem vê o que antes não conhecia. Quanto ao dito de Agostinho ─ não haverá então mudança de pensamentos ─ deve ser entendido dos pensamentos da parte intelectiva. Logo, não colhe a objeção.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Quando de duas cousas uma é a causa da outra, a atenção da alma aplicada a uma não lhe impede nem lhe diminui a atenção aplicada à outra. Assim, um médico, ao mesmo tempo que examina a urina, pode também considerar as regras da arte concernente à cor dela, e mesmo até melhor. Ora, Deus é concebido pelos santos como a razão de tudo o que fazem ou conhecem; por isso os atos da virtude sensitiva, da contemplativa ou da ativa, em nada lhes podem impedir a contemplação divina, nem inversamente. ─ Ou podemos responder, que uma potência fica impedida no seu ato pela atividade intensa de outra, porque uma por si não é capaz de uma operação tão intensa sem que as outras ou os outros órgãos paguem um tributo do influxo do princípio vital que lhes cabia. E como os santos terão todas as suas potências perfeitíssimas, uma poderá exercer intensamente a sua atividade, sem que daí resulte qualquer obstáculo ao ato de outra. Tal se deu com Cristo.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que a impassibilidade será igual em todos.
1. ─ Pois, como diz a Glosa, todos serão igualmente isentos do sofrimento. Ora, não poderão sofrer por terem o dote da impassibilidade. Logo, a impassibilidade será igual em todos.
2. Demais. ─ A negação não é susceptível de mais e de menos. Ora, a impassibilidade é uma negação ou privação da passibilidade. Logo, não poderá ser maior em um que em outro.
3. Demais. ─ Mais branco é o que nenhuma mistura tem de preto. Ora, nenhum dos corpos dos santos terá de mistura qualquer passibilidade. Logo, todos serão igualmente impassíveis.
Mas, em contrário. ─ O mérito deve corresponder proporcionalmente ao prêmio. Ora, dos santos uns tiveram maior mérito que outros. Logo, sendo a impassibilidade um prêmio, há de ser maior em uns que em outros.
2. Demais. ─ A impassibilidade entra na mesma divisão que o dom da claridade. Ora, esta não será igual em todos, como diz o Apóstolo. Logo, nem a impassibilidade.
SOLUÇÃO. ─ A impassibilidade pode ser considerada a dupla luz: em si mesma ou na sua causa. Em si, como só implica privação ou negação, não é susceptível de mais nem de menos, mas será igual em todos os bem-aventurados. Considerada porém na sua causa, será maior em um que em outro. Ora, a sua causa é o domínio da alma sobre o corpo, domínio esse causado da imobilidade com que a alma goza de Deus. Por onde quem mais perfeitamente gozar de Deus terá aí uma causa de maior impassibilidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Essa glosa se refere à impassibilidade em si mesma considerada, e não na sua causa.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora as negações e as privações não sejam em si mesmas susceptíveis de intenção nem de remissão, podem contudo ser mais intensas ou remissas nas suas causas. Assim dizemos mais escuro o lugar que opõe mais e maiores obstáculos à luz.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Certas cousas se intensificam não somente pelo afastamento do que lhe é contrário, mas também por aproximar-se do termo; tal a intensificação da luz. Por isso também a impassibilidade é maior em um que em outro, embora em nenhum coexista com qualquer espécie de passibilidade.
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que os corpos dos santos depois da ressurreição não serão impassíveis.
1. ─ Pois, tudo o que é mortal é passível. Ora, o homem depois da ressurreição será um animal racional mortal, definição esta do homem, que nunca deixará de se aplicar. Logo, o corpo será passível.
2. Demais. ─ Tudo o que é potencial em relação à forma de outro corpo, pode sofrer a ação deste; pois, é a potencialidade em relação à forma que constitui a passibilidade, segundo o Filósofo. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição estarão em potência em relação a outra forma. Logo, serão passíveis. ─ Prova da média. Seres com matéria comum, um deles será potencial em relação à forma de outro; ora, a matéria, por unida a uma forma não perde a potência para unir-se a outra. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição comunicarão com os elementos na matéria, porque serão reconstituídos de matéria idêntica à que agora têem. Logo, serão potenciais em relação a outra forma. E portanto, serão passíveis.
3. Demais. ─ É natural aos contrários serem ativos e passivos uns em relação aos outros, diz o Filósofo. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição serão compostos de elementos contrários, como o são agora. Logo, serão passíveis.
4. Demais. ─ Com o corpo humano ressurgirão o sangue e os outros humores, como se disse. Ora, a luta dos humores uns com os outros gera as doenças e outras paixões do corpo. Logo, os corpos dos santos depois da ressurreição serão passíveis.
5. Demais. ─ Mais repugna à perfeição um defeito atual que um defeito potencial. Ora, a passibilidade implica apenas um defeito potencial. Como porém nos corpos dos bem-aventurados hão de existir em ato alguns defeitos, como as cicatrizes das chagas nos mártires, como as existiram em Cristo, parece que nenhum detrimento sofrerá a perfeição deles se admitirmos que tem corpos passíveis.
Mas, em contrário. ─ Todo passível é corruptível, porque a paixão causada por uma ação muito intensa destrói a substância. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição serão incorruptíveis, conforme aquilo do Apóstolo: Semeia-se o corpo em corrupção, ressuscitará em incorrupção. Logo, serão impassíveis.
2. Demais. ─ O mais forte não sofre do mais fraco. Ora, nenhum corpo será mais forte que o dos santos, dos quais diz o Apóstolo: semeia-se em vileza, ressuscitará em glória. Logo, serão impassíveis.
SOLUÇÃO. ─ A paixão pode ser considerada em duplo sentido. ─ Primeiro, em geral. E então toda recepção é considerada paixão; quer o recebido convenha ao recipiente e o aperfeiçoe; quer o contrário, e o corrompa. Pela remoção dessa paixão são impassíveis os corpos gloriosos, pois, não podem ser privados de nenhuma das suas perfeições. ─ Em sentido próprio paixão é como a define Damasceno: Paixão é o movimento contrário à natureza. Assim paixão se chama o movimento imoderado do coração: ao passo que o moderado lhe é a operação. E a razão disso é que, todo paciente é arrastado para os limites do agente, porque o agente faz assemelhar-se a si o paciente. Por isso o paciente como tal, é arrastado para fora dos seus limites. Assim, pois, tomando a paixão no seu sentido próprio, não haverá nos corpos dos santos ressurrectos nenhuma potencialidade para a paixão. Portanto, serão impassíveis.
Mas razões diversas foram dadas dessa impassibilidade.
Uns a atribuem à condição dos elementos, que no corpo dos ressurrectos não existirão como existem agora. Pois, pensam, os elementos então existirão na sua substância, mas com perda das suas qualidades ativas e passivas. Por onde, se os elementos forem reconstituídos sem elas nos corpos dos ressurrectos, menor perfeição será a deles que a de agora. Além disso, essas qualidades sendo acidentes próprios dos elementos, causadas pela forma e pela matéria delas, muito absurdo será permanecer uma causa sem poder produzir o seu efeito.
Por isso outros pretendem que permanecerão as qualidades, mas sem as suas ações próprias, o que o poder divino assim o fará para a conservação do corpo humano. ─ Mas também isto não é admissível. ─ Porque uma mistura exige a ação e a paixão de qualidades ativas e passivas; e segundo predominarem umas ou outras, diversa será a compleição do mista. O que devemos admitir no corpo ressurrecto, que terá carnes e ossos e partes tais, o que tudo não pode constituir uma só compleição. Além disso, segundo esta opinião, a impassibilidade não poderia considerar-se um dote dos ressurrectos. Porque não introduziria nenhuma disposição na substância impassível, mas só a isenção de qualquer paixão exterior causada por virtude divina, que poderia também fazer o mesmo para com os corpos ainda nas condições da vida presente.
Donde o ensinarem outros que os próprios corpos gloriosos poderão livrar-se por si de qualquer paixão, pela natureza do quinto corpo, que entra, segundo dizem, na composição do corpo humano, para conciliar os elementos numa certa harmonia, que os torne a matéria susceptiva da alma racional. Contudo, no estado desta vida, por causa de predominância da matéria elementar, o corpo humano é passivo, à semelhança dos outros elementos; mas na ressurreição predominará a natureza do quinto corpo. E então impassível se tornará o corpo humano, à semelhança do corpo celeste. ─ Mas esta opinião é inadmissível. Porque o quinto corpo não entra materialmente na composição do corpo humano, como se provou. Além disso, é impossível que uma virtude natural, como a do corpo celeste, confira ao corpo humano a propriedade da glória, que tal é a impassibilidade do corpo glorioso. Pois, a transformação do corpo humano o Apóstolo a atribui ao poder de Cristo, porque qual é o celeste, tais são também os celestiais. E noutro lugar diz: Reformará o nosso corpo abatido, para o fazer conforme ao seu corpo glorioso, segundo a operação com que também pode sujeitar a si todas as cousas, etc. Demais, a natureza celeste não pode ser a ponto predominante no corpo humano que faça desaparecer a natureza elementar, que implica a passibilidade nos seus princípios essenciais.
Por isso, devemos responder que toda paixão resulta da vitória do agente sobre o paciente, do contrário aquele não arrastaria a este para os seus limites. Ora, é impossível um agente dominar o paciente senão lhe enfraquecendo o domínio da sua forma própria sobre a matéria, tratando-se, como agora se trata, da paixão contrária à natureza. Pois, a matéria não se sujeita a um dos contrários sem que desapareça o domínio do outro sobre ela, ou pelo menos fique diminuído. Ora, o corpo humano com tudo o existente nele será, na ressurreição, perfeitamente sujeito à alma, como esta o será perfeitamente a Deus. Por onde, os corpos gloriosos não poderão sofrer mudança nenhuma contra a disposição pela qual são aperfeiçoados pela alma. E portanto serão impassíveis.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Diz Anselmo: Introduziram a idéia de mortalidade na definição do homem os filósofos descrentes de que ele um dia pudesse vir a ser completamente imortal; pois só viam o homem no estado da sua mortalidade atual. ─ Ou podemos responder que, segundo o Filósofo, as diferenças essenciais sendo-nos desconhecidas, recorremos às acidentais para as exprimir, por serem elas as causas destas. Por isso a palavra mortal não entra na definição do homem para significar que a mortalidade lhe pertence à essência; mas sim que a composição de elementos contrários, causa da passibilidade e da mortalidade na vida presente, é da essência humana. Mas, então, não mais lhe será a causa, em virtude da vitória da alma sobre o corpo.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Há duas espécies de potência: a ligada e a livre. E isto é verdade não só da potência ativa, mas também da passiva; pois, a forma liga a potência da matéria imprimindo-lhe uma determinação, que a domina. E como nos seres sujeitos à corrupção a forma não domina perfeitamente a matéria, não pode ligá-la de modo tão completo que não possa às vezes esta receber, imposta por alguma paixão, uma disposição contrária à forma. Nos santos porém, depois da ressurreição, a alma dominará completamente o corpo; nem pode de nenhum modo ser privada desse domínio, porque estará imutavelmente sujeita a Deus, o que não se deu no estado de inocência. Por isso tais corpos terão a mesma potência para outra forma a que estão presentemente unidos, quanto à substância da potência; mas estará ligada, pela vitória da alma sobre o corpo, de modo que não poderá nunca sofrer nenhuma paixão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ As qualidades elementares são instrumentos da alma, como esta claro em Aristóteles. Porque o calor do fogo no corpo animal é regulado, no ato da nutrição, pela virtude da alma. Mas quando o agente principal é perfeito e nenhum defeito tem o instrumento, nenhum ato deste procede senão por disposição daquele. Por isso, aos corpos dos santos depois da ressurreição, nenhuma ação ou paixão lhes pode resultar das qualidades elementares, em contra-posição à disposição da alma, que visa conservar o corpo.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Segundo Agostinho, a virtude divina pode privar os corpos visíveis e palpáveis deste mundo das qualidades que quiser e lhes deixar as que quiser. Por isso, assim como parcialmente privou o fogo da fornalha dos caldeus do poder de queimar, pois ilesos se conservaram os corpos dos meninos, mas de certo modo permitiu que queimasse porque queimada ficou a lenha, assim também privará os humores da sua passibilidade e deixará subsistir a natureza. E a maneira por que o fará, já dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. ─ As cicatrizes das feridas não existirão nos santos, nem existiram em Cristo, enquanto implicam defeito, mas enquanto sinais da virtude constantíssima, com que sofreram pela justiça e pela fé; e por isso lhes aumentarão a alegria, a si e aos outros. Donde o dizer Agostinho: Não sei por que amorosa afeição, nutrida para com os santos mártires, desejamos, no reino celeste, contemplar-lhes as cicatrizes dos ferimentos que os seus corpos padeceram pelo nome de Cristo. E talvez as contemplemos. Pois, não lhes constituirão eles uma deformidade, mas uma dignidade; e há de lhes fulgir uma grande beleza no corpo, embora não do corpo, mas da virtude. Mas nem por terem tido amputados e arrancados os membros, sem eles aparecerão no ressurgir dos mortos, a eles a quem foi dito: não se perderá um cabelo da vossa cabeça.
O quarto discute-se assim. ─ Parece que os ressurrectos terão a vida animal de modo a exercerem a função nutritiva e a genésica.
1. ─ Pois, a nossa ressurreição será conforme à de Cristo. Ora, segundo os Evangelhos, Cristo se nutriu depois da ressurreição. Logo, todos os homens também hão de nutrir-se depois da ressurreição. E pela mesma razão hão de gerar.
2. Demais. ─ A distinção dos sexos se ordena à geração; e semelhantemente, os órgãos destinados à função nutritiva se ordenam à manducação. Ora, o homem ressurgirá com todos esses órgãos. Logo, exercerá a função genésica e a nutritiva.
3. Demais. ─ O homem será beatificado no seu ser completo ─ alma e corpo. Ora, a beatitude ou felicidade, segundo o Filósofo, consiste numa operação perfeita. Logo, todas as potências da alma e todos os órgãos do corpo dos bem-aventurados exercerão os seus atos, depois da ressurreição. Donde a mesma conclusão que antes.
4. Demais. ─ Os bem-aventurados gozarão depois da ressurreição de uma perfeita e beata felicidade. Ora, essa felicidade inclui todos os prazeres, pois, a beatitude é, segundo Boécio, um estado perfeito pela agregação de todos os bens; e perfeito é ao que nada falta, como ensina Aristóteles. Ora, como o exercício da função genésica e o da nutritiva causam grande prazer, parece que os bem-aventurados praticarão esses atos da vida animal. E com muito maior razão os outros, que tiverem corpos menos espiritualizados.
Mas, em contrário, o Evangelho: Na ressurreição nem as mulheres terão maridos, nem os maridos mulheres.
2. Demais. ─ A geração se ordena a reparar as falhas causadas pela morte e à multiplicação do gênero humano; e a nutrição a reparar as energias perdidas e a produzir o crescimento do corpo. Ora, na ressurreição, já o gênero humano estará constituído em toda a multidão dos indivíduos predeterminada por Deus; porque haverá geração até essa época. Semelhantemente, cada homem ressurgirá com a sua estatura adequada. Nem mais haverá morte nem os órgãos do corpo sofrerão qualquer perda de energia. Logo, inúteis serão as funções genésica e nutritiva.
SOLUÇÃO. ─ A ressurreição não será necessária para o homem atingir a sua perfeição primitiva, consistente na integridade de tudo o pertinente à natureza. Porque a isso podemos chegar no estado da vida presente, pela ação das causas naturais. Mas a ressurreição lhe é necessária para atingir a perfeição última, consistente na consecução do último fim. Por onde, na ressurreição aquelas funções naturais não hão de mais exercer-se que se ordenam a causar ou a conservar a perfeição primitiva da natureza humana. E tais são os atos da vida animal no homem, os atos da natureza nos elementos, e o movimento do céu. Tudo isto portanto cessará na ressurreição. Ora, comer, beber, dormir e gerar são atos da vida animal, ordenados à perfeição primitiva da natureza humana. Logo, tais atos não mais hão de existir na ressurreição.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A nutrição de Cristo não foi premida pela necessidade, como se a sua natureza humana precisasse de alimentar-se depois da ressurreição. Mas foi para manifestar o seu poder, mostrando assim ter verdadeiramente reassumido a natureza humana, que tinha no seu estado anterior, quando com os discípulos comia e bebia. Ora, essa manifestação, por conhecida de todos, não será necessária na ressurreição universal. Por isso se diz, dispensativamente, que Cristo comeu, conforme o modo de falar dos juristas que definem a dispensa como uma suspensão do direito comum; porque Cristo suspendeu, pela razão aduzida, condição comum aos ressurrectos, de não usarem de alimentos. Por onde, a objeção não colhe.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A diferença dos sexos e a variedade dos órgãos será para reintegrar a natureza humana na sua perfeição específica e individual. Donde pois não se segue que sejam inúteis, embora não se exerçam as funções animais.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ As referidas funções não são do homem como tal, segundo o Filósofo. Por isso nelas não consiste a felicidade do corpo; mas o corpo humano será glorificado pela redundância da razão, que torna o homem tal a ela se submetendo.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Os prazeres corpóreos são, como diz o Filósofo, medicinais, concedidos ao homem para lhe tolher o tédio da vida; ou doenças, quando procuradas desordenadamente como se fossem verdadeiros prazeres, assim como quem tem um gosto depravado se deleita com cousas com que não se comprazeria uma pessoa de gosto são. Por onde não é necessário sejam esses prazeres da perfeição da beatitude, como pensam os judeus e os sarracenos, e o ensinaram certos heréticos chamados Quiliastas. Os quais, mesmo segundo a doutrina do Filósofo, não tem senso reto; pois, só os prazeres espirituais, segundo ele, são deleitações, no seu sentido próprio, e são os únicos que devemos buscar por si mesmos. Por onde, só esses são necessários à felicidade.