O primeiro discute-se assim. ─ Parece que depois da ressurreição não conhecerá cada qual todos os pecados que cometeu.
1. ─ Pois, tudo o conhecemos ou o recebemos de uma primeira impressão dos sentidos ou o tiramos do tesouro da memória. Ora, os ressuscitados não terão a percepção sensível dos seus pecados, por serem já passados e os sentidos só perceberem os objetos presentes. Além disso, muitos pecados já foram esquecidos e não poderão mais ser extraídos do tesouro da memória. Logo, o ressuscitado não terá conhecimento de todos os pecados que cometeu.
2. Demais. ─ Como diz o Mestre, nos chamados livros de consciência hão de ler-se os méritos de cada um. Ora, num livro não se podem ler senão os sinais nele escritos. Ora, os pecados deixam certos sinais na consciência, conforme a Glosa, e que outra cousa não são senão o reato ou a mácula. Logo, como a muitos a mácula e o reato de diversos pecados lhes foram delidos pela graça, resulta que não poderão ler na consciência todos os pecados cometidos. Donde a mesma conclusão anterior.
3. Demais. ─ Aumentando a causa aumenta o efeito. Ora, a causa, que nos faz deplorar os pecados presentes à nossa memória, é a caridade. Mas, os santos ressuscitados tem caridade perfeita e, por isso, deplorarão sumamente os pecados cometidos, sempre que à memória se lhes apresentem. O que não é possível, porque não lhes haverá mais choro nem mais gritos, diz a Escritura. Logo, não terão presentes à memória os pecados cometidos.
4. Demais. ─ Assim estão os ressurgidos condenados para o bem que em vida fizeram, como os bem-aventurados para os pecados que em vida cometeram. Ora, os ressurgidos condenados, segundo parece, não terão conhecimento dos bens que outras praticaram; do contrário, muito se lhes aliviaria a pena. Logo, nem os bem-aventurados terão conhecimento dos pecados que cometeram.
Mas, em contrário, diz Agostinho, por um efeito especial do poder divino todos os seus pecados os terão presentes à memória.
2. Demais. ─ Assim está o juízo humano para o testemunho externo como o juízo divino para o testemunho da consciência, conforme aquilo da Escritura: O homem vê o que aparece, mas Deus perscruta o coração. Mas nenhum juízo humano pode ser perfeito sem o depoimento de testemunhas sobre tudo o que deve ser julgado. Logo, sendo o juízo divino perfeitíssimo, há de a consciência deponha fielmente sobre o objeto do juízo. Ora, o juízo recairá sobre todas as obras boas e más, conforme aquilo do Apóstolo: Importa que todos nós compareçamos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba o galardão segundo o que tem feito, ou bom ou mau, estando no próprio corpo. Logo, é necessário a consciência de cada um ter presente todas as obras que praticou, boas ou más.
SOLUÇÃO. ─ Diz o Apóstolo: Naquele dia o Senhor julgará dando testemunho a cada um a sua mesma consciência e os pensamentos de dentro, que umas vezes os acusam e outras os defendem. Ora, em todo juízo, é necessário a testemunha, o acusador e o defensor terem conhecimento do que vai ser debatido em juízo. Logo, como esse juízo universal constituirá o objeto de todas as obras humanas, necessariamente cada um terá conhecimento de tudo o que praticou. Por isso as consciências de todos serão uns como livros contendo todas as obras praticadas, objeto do juízo, É desses livros que diz a Escritura: Foram abertos os livros; e foi aberto outro livro, que é o da vida; e foram julgados os mortos pelas causas que estavam escritas nos livros segundo as suas obras. E tais livros assim abertos, diz Agostinho significarem os santos do Novo e do Velho Testamento, nos quais o Senhor exarou os mandamentos que queria que fossem praticados. Por isso diz Ricardo Vitorino: Os corações deles serão uns como decretos canônicos. Quanto ao livro da vida, de que se fala em seguida, significa as consciências de cada um, chamadas no singular ─ um livro, porque um mesmo poder divino fará todos terem presentes na memória as suas obras. E esse poder, que fará com que cada homem se represente na memória os seus atos, se chama livro da vida. ─ Ou, os primeiros livros significam as consciências; o segundo, a sentença do juiz já proferida na sua providência.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Embora da memória se tenham dissipado muitos méritos e muitos deméritos, nenhum deles contudo haverá que de certo modo não permaneça no seu efeito. Pois os méritos cujo valor se conservou intacto se substituirão pelo prêmio que lhes for devido; e os que foram reduzidos a nada permanecerão no reato de ingratidão, agravada pelo pecado cometido depois de recebida a graça. Também e do mesmo modo, os deméritos não apagados pela penitência permanecem no reato da pena que lhes é devida. E os delidos pela penitência permanecerão na memória mesma dessa penitência, de que terão as almas conhecimento simultâneo com o dos outros méritos. Por onde, todo homem terá meio de tornar as suas obras presentes à memória. ─ Contudo, como diz Agostinho, esse efeito será principalmente devido ao poder divino.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Nas consciências de todos perdurarão certos sinais das obras praticadas. Nem é mister sejam esses sinais só constitutivos do reato, como do sobre dito resulta.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora nesta vida a caridade seja a causa de deplorarmos os nossos pecados, contudo os santos na pátria estarão de modo imersos na felicidade, que não poderão sofrer nenhuma dor. Por isso não terão de deplorar pecados; ao contrário, se regozijarão com a providência divina, que lh'os perdoou; assim como os anjos do céu se comprazem com a justiça divina, que permite que aqueles a quem guardam abandonem ia graça e caiam no pecado; e contudo velam solicitamente pela salvação deles.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Os maus conhecerão todas as boas obras que praticaram, o que, longe de lhes mitigar a pena, a aumenta; porque a dor máxima é ter perdido muitos bens. Donde o dizer Boécio que o sumo gênero de infortúnio é ter sido feliz.