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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 10 – Se podemos merecer os bens temporais.

 (IIª.IIªe, q. 122, a. 5, ad 4; III. Q. 89, a. 6, ad 3; De Pot., q.6, a. 9.)

O décimo discute-se assim. – Parece que podemos merecer os bens temporais
 
1. – Pois, podemos merecer o que nos é prometido como premio da justiça. Ora, a lei antiga promete os bens temporais como recompensa da justiça, conforme está na Escritura. Logo, parece que podemos merecer os bens temporais. 
 
2. Demais. – Parece que podemos merecer o que Deus nos dá em paga de algum serviço feito. Ora, Deus às vezes recompensa com certos bens temporais os que lhe prestaram algum serviço. Assim, diz a Escritura: E porque as parteiras temeram a Deus ele lhes estabeleceu as suas casas. Ao que a Glosa comenta: a recompensa da beneficência delas podia consistir na vida eterna; mas, por causa do pecado da mentira, recebem uma recompensa terrestre. E noutro lugar, a Escritura diz: O rei de Babilônia me rendeu com o seu exército um grande serviço no cerco de Tiro e não se lhe deu nenhuma recompensa; e depois, acrescenta: haverá uma recompensa para o seu exército; eu lhe entregarei a terra do Egito porque ele trabalhou para mim. Logo, podemos merecer os bens temporais.
 
3. Demais. – O bem está para o mérito como o mal para o demérito. Ora, por causa do demérito do pecado, Deus puniu certos homens com penas temporais, como o demonstra claramente o caso dos sodomitas. Logo, também podemos merecer os bens temporais.
 
Mas, em contrário, nem todos recebem igualmente os bens que podem merecer. Mas, ao contrário, os bens temporais e os males os bons e os maus os recebem conforme à mesma medida, segundo a Escritura: Acontecem igualmente todas as coisas ao justo e ao ímpio, ao bom e ao mau, ao puro e ao impuro, ao que sacrifica vítimas e ao que despreza os sacrifícios. Logo, não podemos merecer os bens temporais.
 
SOLUÇÃO. – O que podemos merecer é um premio ou uma recompensa, cujo caráter essencial é ser um bem. Ora, duplo é o bem do homem: o absoluto e o relativo. – O seu bem absoluto é o fim último, conforme à Escritura: Para mim me é bom unir-me a Deus; e por conseqüência, tudo o que se ordena a conduzir para esse fim. E tudo isso podemos, absolutamente, merecer. – O bem relativo e não absoluto do homem é o que lhe é atualmente bem, ou sob um certo aspecto. E esse não podemos merecer absoluta, mas, relativamente.
 
Assim sendo, devemos pois dizer, que os bens temporais, considerados enquanto úteis à pratica da virtude, que nos conduz à vida eterna, podem ser direta e absolutamente objeto de mérito, ao mesmo título que aumento da graça e tudo o que, depois da primeira graça, nos ajuda a chegar à felicidade. Pois Deus dá aos justos os bens temporais, e também aos maus, o quanto lhes basta para alcançarem a vida eterna. E nessa medida esses bens o são absolutamente. Por isso, diz a Escritura: Os que temem ao Senhor não serão privados de bem algum; e, noutro lugar: Não vi o justo desamparado.
 
Considerados, porém, esses bens temporais em si mesmos, são bens do homem, não absolutos, mas relativos. E então não constituem absolutamente matéria de mérito, senão só relativamente, isto é, enquanto os homens são movidos por Deus à prática de certos atos temporais, com os quais, gozando do favor divino, conseguem o que se propuserem. De modo que, assim como a vida eterna é, absolutamente, o premio das obras justas, por causa da moção divina, conforme já dissemos, assim também os bens temporais, considerados em si mesmos, implicam por essência o caráter de recompensa, levando-se em conta a moção divina, que move as vontades humanas a buscá-los, embora, por vezes, ao fazê-lo, os homens não sejam movidos por uma intenção reta.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como diz Agostinho, essas promessas temporais foram figuras dos bens espirituais futuros, que se realizaram em nós. Pois esse povo carnal se apegava às promessas da vida presente; mas não só a língua, como também a vida deles foi profética.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. – Essas retribuições referidas se consideram feitas por Deus por causa da moção divina; não porem em consideração da malícia da vontade, sobretudo no concernente ao rei de Babilônia. Este não combateu contra Tiro por querer servir a Deus, mas antes, para usurpar para si o domínio sobre essa cidade. – Semelhantemente, também as parteiras, embora tivessem boa vontade relativamente à salvação das crianças, contudo essa vontade não foi reta, pois falaram mentirosamente.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os males temporais são afligidos aos ímpios como pena, enquanto que não os ajudam a alcançar a vida eterna. Aos justos, pelo contrário, que são coadjuvados por esses males, não são penas, mas antes, remédios, como já dissemos.
 
RESPOSTA À QUARTA. – Tudo acontece igualmente, tanto para os bons como para os maus, quanto à substância mesma dos bens ou dos males temporais. Mas não, quanto ao fim; pois, ao passo que os bons são conduzidos por eles à felicidade, os maus não o são.
E o que dissemos até aqui, sobre a moral geral, é o bastante.
 

Art. 9 – Se podemos merecer a perseverança.

 O nono discute-se assim. – Parece que podemos merecer a perseverança.

1. – Pois, o que obtemos pedindo podemos merecer quando estamos em estado de graça. Ora, pedindo-a obtemos de Deus a perseverança, do contrário pediríamos em vão a Deus, nas petições da oração dominical, como o nota Agostinho. Logo, tendo a graça, podemos merecer a perseverança.

2. Demais. – É melhor não poder pecar, que simplesmente, de fato, não pecar. Ora, podemos merecer não poder pecar; pois, merecemos a vida eterna que implica, por essência, a impecabilidade. Logo, com maior razão, podemos merecer não pecar, de fato, i. é, perseverar.

3. Demais. – O aumento da graça é mais que a perseverança na graça já obtida. Ora, podemos merecer o aumento da graça, como já se disse. Logo, com maior razão, podemos merecer a perseverança na graça obtida.

Mas, em contrário, tudo o que merecemos recebemos de Deus, se não houver o obstáculo do pecado. Ora, muitos praticam obras meritórias, sem contudo alcançarem a perseverança. Nem se pode dizer que tal se dá por causa do obstáculo do pecado, pois, o fato mesmo de pecar opõe-se à perseverança; de modo que, quem merecer a perseverança a esse Deus não lhe permite cair em pecado. Logo, não podemos merecer a perseverança.

SOLUÇÃO. – Tendo o homem naturalmente o livre arbítrio, capaz de pender para o bem e para o mal, de dois modos pode ele obter de Deus a perseverança no bem. Ou porque, com o auxílio da graça consumada, o livre arbítrio seja determinado no bem, o que se dará na glória; ou, por influência da moção divina, que inclina o homem ao bem, até o fim. Pois, como resulta claro do sobredito, podemos merecer o que se apresenta como um termo à moção do nosso livre arbítrio, movido diretamente por Deus; não porém o que está para essa moção, como princípio. Por onde é claro, a perseverança da glória, o termo do referido movimento, pode ser merecida. Mas a perseverança, nesta vida, não pode ser merecida, por depender somente da moção divina, princípio de todo mérito. Mas aqueles a quem Deus concede o benefício dessa perseverança a recebem gratuitamente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Mesmo o que não merecemos, impetramos nas nossas orações; pois Deus ouve os pecadores que pedem, dos pecados, o perdão que não merecem, como claramente o diz Agostinho, comentando aquilo da Escritura: - Sabemos que Deus não ouve a pecadores. Pois, do contrário, o publicano teria dito em vão: Meu Deus, sê propício a mim pecador, como se lê na Escritura: E semelhantemente, pedindo, obteremos de Deus o dom da perseverança, para nós mesmos ou para outrem, embora não o possamos merecer.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A perseverança da glória está para a moção do livre arbítrio, como um termo; não porém, a perseverança desta vida, pela razão exposta.

O mesmo devemos RESPONDER À TERCEIRA OBJEÇÃO,quanto ao aumento da graça, como resulta claro do que foi dito.

Art. 8 – Se o homem pode merecer o aumento da graça ou da caridade.

 (II Sent., dist. XXVII, a. 5; In Ioan., cap. X, lect. IV).


O oitavo discute-se assim. – Parece que o homem não pode merecer o aumento da graça ou da caridade.

1. – Pois, a quem já recebeu o premio merecido nenhuma outra recompensa é devida, como aqueles de quem diz a Escritura: Receberam a sua recompensa. Se pois pudéssemos merecer o aumento de caridade ou de graça, resultaria que, uma vez aumentada a graça, não poderíamos esperar mais nenhum premio, o que é inadmissível.

2. Demais. – Nenhum ser pode agir além dos limites de ação da sua espécie. Ora, o princípio do mérito é a graça ou a caridade, como do sobredito resulta. Logo, ninguém pode merecer graça ou caridade maior que a que tem.

3. Demais. – O que o homem pode merecer o merece por algum ato procedente da graça ou da caridade; assim como pode merecer a vida eterna por qualquer ato praticado nessas condições. Se pois, o aumento da graça ou da caridade pode ser merecido, resulta que merecemos esse aumento por qualquer ato informado pela caridade. Ora, o que merecemos, infalivelmente recebemos de Deus, se não sobrevier o obstáculo do pecado, conforme a Escritura: Sei a quem tenho crido, e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito para aquele dia. Donde se seguiria que, por qualquer ato meritório, a graça ou a caridade ficaria aumentada. Ora, isto é inadmissível porque às vezes esses atos meritórios não são praticados com muito fervor, de modo a bastarem para causar o aumento da caridade. Logo, o aumento da caridade não pode ser merecido.

Mas, em contrário, diz Agostinho: a caridade merece ser aumentada, para que, aumentada, mereça chegar à perfeição. Logo, o aumento da caridade ou da graça pode ser merecido.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos, pode ser merecido condignamente aquilo a que se estende a moção da graça. Ora, a moção de um motor não se estende só ao último termo do movimento, mas também a todo o desenvolvimento progressivo dele. Ora, o termo do movimento da graça é a vida eterna. E o avanço progressivo desse movimento depende do aumento da caridade ou da graça, conforme aquilo da Escritura: A vereda dos justos, como luz que resplandece, vai adiante e cresce até o dia perfeito, que é o dia da glória. Logo, o aumento da graça pode ser merecido.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O premio é o termo do mérito. Ora, o movimento tem duplo termo: o último e o médio; que constitui ao mesmo tempo um princípio e um termo. A recompensa, consistente no aumento, é um termo desta espécie. Pelo contrário, a recompensa consistente no favor dos homens é como o último termo para os que o consideram como fim. Por isso, esses tais não receberão nenhuma outra recompensa.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O aumento da graça não sobreleva o poder da graça preexistente, embora lhe sobrepuje a grandeza. Assim como uma árvore, de tamanho muito superior à da sua semente, não lhe excede, contudo, a virtude.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Por qualquer ato meritório o homem merece o aumento da graça, bem como a consumação dela, que é a vida eterna. Mas, como esta não é concedida imediatamente, mas em tempo oportuno, assim também a graça não aumenta imediatamente, mas no seu tempo, isto é, quando o sujeito estiver suficientemente disposto a lhe receber o aumento.
 

Art. 7 – Se podemos, por nós mesmos, merecer levantarmo-nos da queda.

 (II Sent., dist. XXVII, a. 4, ad 3; a. 6; Ad Hebr., cap. VI. Lect III).


Parece que podemos, por nós mesmos, merecer levantarmo-nos da queda.

1. – Pois, parece que o homem pode merecer o que justamente pede a Deus. Ora, nada de mais justo, como diz Agostinho, podemos pedir a Deus, do que o levantarmo-nos da queda, conforme aquilo da Escritura: Quando faltar a minha fortaleza, não me desampares, Senhor. Logo, o homem pode merecer levantar-se da queda.

2. Demais. – As nossas obras aproveitam muito mais a nós mesmos que aos outros. Ora, podemos de certo modo, merecer que outrem se levante da queda, assim como merecer-lhe a primeira graça. Logo, com maior razão, podemos merecer para nós mesmos o levantarmo-nos da queda.

3. Demais. – Quem esteve em graça mereceu para si, pelas boas obras praticadas, a vida eterna, como do sobredito resulta. Ora, ninguém pode alcançar a vida eterna senão auxiliada pela graça. Logo, parece que mereceu levantar-se, pela graça.

Mas, em contrário, a Escritura: Se o justo se apartar da sua justiça, e vier a cometer a iniqüidade, de nenhuma das obras de justiça que tiver feito se fará memória. Logo, para levantar-se, de nada lhe valerão as graças precedentes. Por tanto, não podemos de antemão merecer levantarmo-nos do pecado em que tivermos caído.

SOLUÇÃO. – Ninguém pode, por si mesmo, merecer levantar-se do pecado em que vier a cair, nem por mérito condigno, nem por mérito côngruo. – Não o pode por mérito condigno, por este depender por essência, da moção da graça divina, a qual fica impedida pelo pecado sobreveniente. Por onde, todos os benefícios com que Deus gratificar um homem, para lhe operarem a reabilitação, escapam-lhe ao mérito, pois a moção da graça, anteriormente recebida, não se estende até esse ponto. – Por outro lado, o pecado daquele, em favor de quem outrem merece, impede o mérito côngruo, pelo qual este lhe merece a primeira graça, de produzir o seu efeito. Logo, com maior razão, a eficácia desse mérito fica impedida pelo obstáculo existente em que merece e naquele em favor de quem merece; porque então ambos esses obstáculos concorrem na mesma pessoa. Portanto, ninguém pode, de nenhum modo, merecer por si mesmo, levantar-se, depois de ter caído.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Tanto o desejo que temos de nos levantar da queda, como a oração em que o pedimos, consideram-se justos, por tenderem para a justiça. Não porém, que se apóiem na justiça, a modo de mérito, mas só, de misericórdia.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Podemos merecer para outrem congruamente a primeira graça, por não haver obstáculo, ao menos por parte nossa, que merecemos. Mas o obstáculo sobrevém, quando, depois do mérito da graça, nos afastamos da justiça.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Certos disseram que ninguém pode merecer absolutamente, a vida eterna, senão pelo ato da graça final; mas, só com a condição de perseverar. – Esta opinião porem é irracional, pois às vezes o ato da última graça não é mais meritório, mas, menos, que os atos precedentes, por causa do acabrunhamento causado pela doença. – Por onde, devemos dizer que, absolutamente falando, qualquer ato de caridade merece a vida eterna. Mas o pecado sobreveniente impede o mérito precedente de produzir o seu efeito; assim como as causas naturais deixam de produzir os seus efeitos por causa de um obstáculo sobreveniente.

Art. 6 – Se um homem pode merecer para outro a primeira graça.

 ( Art. Seq., ad 2; II Sent., dist. XXVII, a. 6; III, dist. XIX, a. 5, qª, 3 ad 5; IV, dist. XLV, q, 2, a. 1, qª 1; De Verit., q. 29. A. 7; I Tim., cap, IV, lect II).


O sexto discute-se assim. – Parece que um homem pode merecer para outro a primeira graça.

1. – Pois, ao que diz a Escritura – Vendo Jesus à fé deles etc. – diz a Glosa: Que poder tem perante Deus a fé pessoal, pois que junto d’Ele tanto valeu a alheia, que o levou a curar esse homem, interna e externamente1 Ora, a cura interior do homem é operada pela primeira graça. Logo, um homem pode merecê-la para outro.

2. Demais. – As orações dos justos não são vãs, mas eficazes, conforme a Escritura: A oração do justo, sendo assídua, vale muito. Mas no mesmo lugar se diz: orai uns pelos outros, para serdes salvos. Ora, como a salvação do homem não pode vir senão da graça, resulta que um homem pode merecer para outro a primeira graça.

3. Demais. – A Escritura diz: Granjeais amigos com as riquezas da iniqüidade, para que, quando vós vierdes a faltar, vos recebam eles nos tabernáculos eternos. Ora, ninguém é recebido nos tabernáculos eternos senão pela graça, pela qual, só, merecemos a vida eterna, como já se disse. Logo, um homem pode merecer para outro a primeira graça.

Mas, em contrário, a Escritura: Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, não está a minha alma com este povo. Entretanto, eles foram os que mais mereceram perante Deus. Logo, parece que nenhum homem pode merecer para outro a primeira graça.

SOLUÇÃO. – Como do sobredito resulta, as nossas obras podem ser meritórias, por duas razões. Primeiro, em virtude da moção divina, e então, merecemos condignamente. Depois, por procederem do livre arbítrio, pelo qual agimos voluntariamente. E por este lado, o mérito é côngruo; pois é congruente, que o homem, usando bem das suas capacidades, Deus obre mais excelentemente, de conformidade com a sobreexcelência do seu poder.

Por onde é claro que, por mérito condigno, ninguém, salvo Cristo, pode merecer para outrem a primeira graça. Porque todos nós somos movidos por Deus, pelo dom da graça, para chegarmos à vida eterna; e portanto, o mérito condigno não pode ir além dessa moção. A alma de Cristo, porém, recebeu, pela graça, essa moção divina, não só para alcançar a glória da vida eterna, mas também para levar os outros para ela, como cabeça da Igreja e autor da salvação humana, conforme a Escritura: Levou muitos filhos à glória, ele o autor da salvação etc.

Por mérito côngruo, porém, podemos merecer para outrem a primeira graça. Pois, o homem, constituído em graça, cumprindo a vontade de Deus, é congruente que Deus, por uma amizade proporcional, cumpra a vontade de um relativa à salvação de outro. Embora, às vezes, possa advir impedimento por parte daquele a quem esse justo desejava a justificação. Ora, é a um caso dessa espécie que se refere o lugar de Jeremias, ultimamente citado.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A fé de um vale para a salvação de outro, por mérito côngruo e não condigno.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A oração impetra confiando na misericórdia; ao passo que o mérito condigno, na justiça. Por isso, o homem, orando, impetra muitos bens da divina misericórdia que, contudo, por justiça, não merece, conforme aquilo da Escritura: Nós, prostrando-nos em terra diante da tua face não fazemos estas deprecações fundados em alguns merecimentos da nossa justiça, mas, sim, na multidão das tuas misericórdias.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Diz-se que os pobres, recebendo a esmola, recebem os que lha dão nos tabernáculos eternos, ou por lhes pedir o perdão, orando; ou por merecerem, côngruamente, em favor deles, por outras boas ações; ou também, materialmente falando, porque, pelas próprias obras de misericórdia, que praticamos para com os pobres, mereçamos ser recebidos nos tabernáculos eternos.
 

Art. 5 – Se o homem pode merecer por si a primeira graça.

(II Sent., dist. XXVII, a. 4; a. 5, ad 3; III, dist. XVIII, a. 4, qª 1; dist. XIX, a. 1, qª 1; III Cont. Gent., cap. CXLIX; De Verit., q. 29, a. 6; In Ioan., cap. X, lect. IV; Ad Ephes., cap. II, lect III).

O quinto discute-se assim. – Parece que o homem pode merecer por si a primeira graça.

1. – Pois, diz Agostinho, que a fé merece a justificação. Ora, o homem é justificado pela primeira graça. Logo, pode merecê-la por si.

2. Demais. – Deus não dá a graça senão aos dignos. Mas ninguém é digno de um dom senão por tê-lo merecido condignamente. Logo, pode-se merecer condignamente a primeira graça.

3. Demais. – Entre os homens, pode se merecer um dom já recebido. Assim, quem recebeu um cavalo do senhor, pode merecê-lo, usando bem dele no serviço desse mesmo senhor. Ora, Deus é mais liberal que o homem. Logo, com maior razão, este pode merecer de Deus, por obras subseqüentes, a primeira graça, já recebida.

Mas, em contrário, repugna à essência da graça ser recompensa de obras, conforme a Escritura: Ao que obra não se lhe conta o jornal por graça, mas por dívida. Ora, o homem merece o que lhe é imputado como débito, e como sendo uma recompensa da sua obra. Logo, não pode merecer a primeira graça.

SOLUÇÃO. – O dom da graça pode ser considerado à dupla luz; - Primeiro, quanto ao seu caráter de dom gratuito. E então, é manifesto que todo mérito repugna à graça, pois, como diz o Apóstolo, se isto foi por graça, não foi já pelas obras. – Segundo, quanto à natureza mesma do que é dado. E assim, também o dom da graça escapa ao mérito, se trata de alguém que ainda não a possui; quer por exceder ela à capacidade da nossa natureza, quer também porque, antes de recebê-la, o homem, no estado de pecado, está impedido de merecê-la, pelo próprio pecado. Mas depois de havê-la recebido, já não pode merecer a graça possuída. Porque a recompensa é o termo da obra, ao passo que a graça é o princípio de qualquer boa obra nossa, como já dissemos. Outro dom gratuito, porém, que venhamos a merecer, em virtude da graça precedente, já não será a primeira graça. – Por onde, é manifesto que ninguém pode merecer para si a primeira graça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como ele próprio o confessa, Agostinho enganou-se, durante certo tempo, acreditando que o início da fé está em nós, ao passo que Deus no-la dá consumada. Esse erro ele o retrata no lugar que acabamos de citar. Ora, o lugar citado pela objeção, que a fé merece a justificação, parece referir-se a essa opinião retratada. Se, porém, supusermos, como o exige a verdade da fé, que Deus nos dá o início da mesma, então o ato de fé já resulta da primeira graça, e portanto não pode merecê-la. Logo, o homem é justificado pela fé, não porque, crendo, mereça a justificação, mas porque, sendo justificado, crê; pois, a moção da fé é necessária à justificação do ímpio, como já dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Deus não dá a graça senão aos dignos; não porém que, antes, dela já fossem dignos, mas pelos tornar tais, pela graça, Ele que só pode fazer puro ao que foi concebido de imunda semente.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Toda boa obra do homem procede da primeira graça, como do princípio. Não procede, porém, de nenhum dom humano. E portanto, não há semelhança entre o dom da graça e o dom humano.

Art. 4 – Se a graça é o princípio do mérito, mais pela caridade, do que pelas outras virtudes.

 (III Sent., dist. XXX, a. 5; IV, dist. XLIX, q. 1, a. 4, qª 4; q. 5, a. 1; De Verit., q. 14, a. 5, ad 5; De Pot., q. 6, a. 9; Ad Rom., cap. VIII, lect. V; I Tim., cap, lect II; Ad Herb., cap. VI, lect III).


O quarto discute-se assim. – Parece que a graça não é princípio do mérito, mais pela caridade, do que pelas outras virtudes.

1. – Pois, a recompensa é devida à obra, conforme a Escritura: Chama os trabalhadores e paga-lhes o jornal. Ora, toda virtude, sendo um hábito operativo, é princípio de alguma obra, como já dissemos. Logo, todas as virtudes são igualmente princípio de mérito.

2. Demais. – O Apóstolo diz; Cada um receberá a sua recompensa particular segundo o seu trabalho. Ora, a caridade, antes diminui que aumenta o trabalho; pois, como diz Agostinho, tudo o que é duro e cruel o amor o torna fácil e quase o reduz a nada. Logo, a caridade não é, mais que as outras virtudes, o princípio do mérito.

3. Demais. – É o princípio primeiro do mérito a virtude, cujo atos são, por excelência, meritórios. Ora, mais meritórios são os atos de fé, de paciência ou de fortaleza, como bem o demonstraram os mártires que, pela fé, lutaram paciente e fortemente até a morte. Logo, as outras virtudes são, mais que a caridade, o princípio do mérito.

Mas, em contrário, diz o Senhor: Aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei também, e me manifestarei a ele. Ora, a vida eterna consiste no conhecimento claro de Deus, conforme a Escritura: A vida eterna consiste em que eles conheçam por um só verdadeiro Deus e vivo a ti. Logo, o mérito da vida eterna depende principalmente da caridade.

SOLUÇÃO. – Como podemos deduzir do que já foi dito, um ato humano é meritório por duas razões. Primeiro e principalmente, por ordenação divina, pela qual um ato se torna meritório do bem para o qual o homem é divinamente ordenado. Em segundo lugar, pelo livre arbítrio, que torna o homem capaz, diferentemente das outras criaturas, de agir por si mesmo, isto é, voluntariamente. E, em ambos os casos, o mérito depende principalmente da caridade. – Pois, devemos primeiro, considerar, que a vida eterna consiste no gozo de Deus.Ora, a moção da alma humana para gozar do bem divino é o ato próprio da caridade, pela qual todos os atos das outras virtudes, enquanto governadas pela caridade, se ordenam para tal fim. Por onde, o mérito da vida eterna pertence, primeiramente, à caridade e, secundariamente, às outras virtudes, enquanto a caridade lhes governa os atos. – Do mesmo modo, como é manifesto, o que fazemos por amor o fazemos de maneira soberanamente voluntária. Por onde, enquanto o mérito, por essência, exige o ato voluntário, deve ser atribuído principalmente à caridade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A caridade, tendo o fim último como objeto, move as outras virtudes a agirem. Pois, sempre, o hábito concernente ao fim governa os concernentes aos meios, como do sobredito se colhe.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Uma obra pode ser laboriosa e difícil, de dois modos. – Pela sua grandeza; e então a grandeza do trabalho acarreta o aumento do mérito. Por onde, a caridade não diminui o trabalho, antes, faz-nos empreender as maiores obras; pois, como diz Gregório, em certa homília, desde que ela existe, obra grandes coisas. – De outro modo, uma obra pode ser laboriosa e difícil por deficiência do seu autor; pois, o que fazemos sem vontade pronta é laborioso e difícil. E esse labor diminui o mérito, mas a caridade o elimina.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O ato de fé não é meritório, senão quando a fé obra com caridade, como diz a Escritura. – Semelhantemente, os atos de paciência e de fortaleza não são meritórios, se não os fizermos com caridade, conforme aquilo da Escritura: Se entregar o meu corpo para ser queimado, se todavia não tiver caridade, nada disto me aproveita.

Art. 3 – Se o homem, constituído em graça, pode condignamente merecer a vida eterna.

(II Sent., dist. XXVII, a. 3; III, dist. XVIII, a. 2.; Ad Rom., cap. IV, lect. I; cap. VI, lect. IV; cap. VIII, lect. IV).

Parece que o homem, constituído em graça, não pode condignamente merecer a vida eterna.

1. – Pois, diz o Apóstolo: As penalidades da vida presente não tem proporção alguma com a glória vindoura que se manifestará em nós. Ora, dentre as obras meritórias, são predominantes os sofrimentos dos santos. Logo, nenhuma obra humana é condignamente meritória da vida eterna.

2. Demais. – Aquilo da Escritura – A graça de Deus é a vida eterna – diz a Glosa: Podia dizer com exatidão – o estipêndio da justiça é a vida eterna; mas preferiu dizer: a graça de Deus é a vida eterna, para compreendermos que Deus nos conduz à vida eterna pela sua misericórdia e não pelos nossos méritos. Ora, o que alguém merece condignamente não por misericórdia o merece, mas por mérito. Logo, parece que o homem não pode, com o auxílio da graça, merecer condignamente a vida eterna.

3. Demais. – Condigno é o mérito, que é igual à recompensa. Ora, nenhum ato da vida presente pode igualar à vida eterna, que excede o nosso conhecimento e o nosso desejo. Excede também à caridade ou o amor desta vida, assim como excede à natureza. Logo, o homem não pode, com a graça, merecer condignamente a vida eterna.

Mas, em contrário. – O dado em virtude de um justo juízo é recompensa condigna. Ora, a vida eterna Deus no-la dá em virtude de um juízo justo, conforme a Escritura: Pelo mais me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia. Logo, o homem merece condignamente a vida eterna.

SOLUÇÃO. – Podemos considerar de dois modos a obra meritória do homem: enquanto precedente do livre arbítrio, ou da graça do Espírito Santo. – Considerada a substância da obra, enquanto procedente do livre arbítrio, não pode haver nela condignidade, por causa da sua máxima desigualdade; mas lá a congruidade, por causa de uma certa igualdade proporcional. Pois, é congruente que, ao homem, agindo conforme a sua capacidade, Deus o recompense de conformidade com a excelência dela. – Se considerarmos, porém, a obra meritória enquanto procedente da graça do Espírito Santo, então é condignamente meritória da vida eterna. Porque, então, o valor do mérito se funda no poder do Espírito Santo, que nos move para a vida eterna, segundo a Escritura: Virá a ser nele uma fonte de água que solte para a vida eterna. Além disso, o preço dessa ogra depende da dignidade da graça, pela qual o homem, tornado consorte da natureza divina, é adotado como filho de Deus, ao qual é devida a herança em virtude do direito mesmo de adoção, consoante à Escritura: Se somo filhos, também herdeiros.

DONDE A RESPOSTA Á PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Apóstolo se refere aos sofrimentos dos santos, considerados na sua substância.

RESPOSTA À SEGUNDA. – As palavras citadas da Glosa devem entender-se relativamente à primeira causa de alcançarmos a vida eterna, que é a misericórdia de Deus. Ao passo que o nosso mérito é uma causa subseqüente.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A graça do Espírito Santo, que temos durante a vida, embora não seja atualmente igual à glória, o é, contudo, virtualmente; assim, a semente, em que toda a árvore, virtualmente está. Do mesmo modo, pela graça, habita no homem o Espírito Santo, causa suficiente da vida eterna. Por isso, a Escritura diz, que é penhor da nossa herança.

 

Art. 2 – Se, sem a graça, podemos merecer a vida eterna.

 (Supra, q. 109, a. 5, et locis ibi citatis).

O segundo discute-se assim. – Parece que, sem a graça, podemos merecer a vida eterna.

1. – Pois, o homem, merece de Deus aquilo para que ele o ordenou, como se disse. Ora, o homem, por natureza, ordena-se à felicidade, como fim; por isso, mesmo naturalmente, deseja ser feliz. Logo, pelas suas faculdades naturais, sem a graça, pode merecer a felicidade da vida eterna.

2. Demais. – Uma obra é tanto mais meritória quanto menos devida. Ora, menos devido é o bem feito por quem recebeu menores benefícios. Por onde, como quem tem só os bens naturais recebeu menores benefícios de Deus, do que quem, além desses, recebeu os dons gratuitos, parece que as suas obras são mais meritórias, perante Deus. E portanto, se quem tem a graça pode merecer, de certo modo, a vida eterna, com maior razão o pode quem não a tem.

3. Demais. – A misericórdia e a liberalidade de Deus excedem infinitamente a misericórdia e a liberalidade humana. Ora, um homem pode merecer perante outro, mesmo se nunca lhe esteve nas boas graças. Logo, parece que, com maior razão, o homem pode, sem a graça, merecer de Deus a vida eterna.

Mas, em contrário, diz a Escritura: A graça de Deus é a vida eterna.

SOLUÇÃO. – Podemos distingui dois estados do homem, sem a graça, como já dissemos: o de natureza íntegra, qual o de Adão, antes do pecado; e o de natureza corrupta, como o nosso, antes da reparação operada pela graça. – Se pois, considerarmos o homem no seu primeiro estado, não pode ele, só pelas suas faculdades naturais, sem a graça, merecer a vida eterna, pela só razão que o seu mérito depende da preordenação divina. E Deus não ordena o ato de nenhum ser para o que lhe é desproporcionado à capacidade, que é o princípio do ato. Pois, por instituição da Divina Providência, nenhum ser pode agir ultrapassando a sua capacidade. Ora, a vida eterna é um bem excedente à capacidade da natureza criada, porque também lhe excede o conhecimento e o desejo, conforme a Escritura: O olho não viu nem o ouvido ouviu, nem jamais veio ao coração do homem. Donde, nenhuma criatura é princípio suficiente do ato meritório da vida eterna, sem se lhe acrescentar o bem sobrenatural, chamado graça. – Se porém considerarmos o homem no estado de pecado, à razão supra-referida se ajunta outra, fundada no obstáculo do pecado. Pois, sendo este uma ofensa de Deus, que faz perder a vida eterna, como do sobredito resulta, ninguém, estando em pecado, pode merecer a vida eterna, sem primeiro, abandonando-o, reconciliar-se com Deus,; o que se faz pela graça. Pois, ao pecador não se lhe deve a vida, mas a morte, segundo a Escritura: O estipêndio do pecado é a morte.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus ordenou a natureza humana para conseguir o fim da vida eterna, não por virtude própria, mas com o auxílio da graça. E assim, pode o seu ato ser meritório da vida eterna.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O homem, sem a graça, não pode praticar obras iguais às que praticaria auxiliado por ela; porque, quanto mais perfeito é o princípio da ação, tanto mais perfeita é esta. A objeção colheria, suposta, em ambos os casos, a igualdade da ação.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Considerada a objeção à luz da primeira razão exposta (no corpo do artigo), não é possível nenhuma assimilação entre Deus e o homem. Pois, este tem de Deus todo o poder de praticar o bem e não, de algum outro homem. Portanto, não pode ter algum mérito perante Deus, senão por algum dom divino; o que o Apóstolo assinaladamente refere, quando diz: Quem lhe deu alguma coisa primeiro, para esta lhe haver de ser recompensada? Ao passo que, perante outro homem, ele pode merecer, antes de ter recebido, do mesmo, seja o que for, por meio do que recebeu de Deus. – Porém, quanto a segunda razão, fundada no obstáculo do pecado, há semelhança entre Deus e o homem; pois não podemos merecer nada, da parte de quem ofendemos senão nos reconciliarmos com ele, dando-lhe satisfações.

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