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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 2 – Se, para a remissão da culpa, que é a justificação do ímpio, é necessária a graça infusa.

 (II Sent., dist, q. 1, a. 3, qª 1; De Verit., q. 28, a. 2; Ad Ephes., cap. V, lect. V).


O segundo discute-se assim. – Parece que, para a remissão da culpa, que é a justificação do ímpio, não é necessária a graça infusa.

1. – Pois, podemos ser removidos de um contrário, sem por isso sermos levados para o outro, se esses contrários forem mediatos. Ora, o estado da culpa e o da graça são contrários mediatos; pois, no meio, está o estado de inocência, em que o homem não tem a graça nem a culpa. Logo, pode a alguém ser-lhe remitida a culpa sem que alcance a graça.

2. Demais. – A remissão da culpa consiste em Deus não mais no-la imputar, conforme a Escritura: Bem aventurado o homem a quem o Senhor não imputou o pecado. Ora, a infusão da graça produz algum efeito em nós, como já se estabeleceu. Logo, a infusão da graça não é necessária à remissão da culpa.

3. Demais. – Ninguém pode estar sujeito simultaneamente a dons contrários. Ora, certos pecados, como a prodigalidade e a avareza, são contrários. Logo, quem é escravo do pecado da prodigalidade não o é, ao mesmo tempo, da avareza, embora possa acontecer estivesse antes a ela sujeito. Portanto, pecando pelo vício da prodigalidade, livra-se do pecado da avareza e, por conseqüência, algum pecado se remite, sem a graça.

Mas, em contrário, diz a Escritura: Tendo sido justificados gratuitamente por sua graça.

SOLUÇÃO. – O homem, pecando, ofende a Deus, como do sobredito resulta. Ora, a nenhum ofensor se lhe remite a ofensa senão depois de pacificado o seu ofendido. Assim também, se o pecado nos é perdoado, por Deus ter reatado conosco a sua paz, consistente no amor com que nos ama. Ora, o amor de Deus, no tocante ao ato divino, é eterno e imutável; deixa porém às vezes de imprimir em nós o seu efeito, segundo dele nos afastamos ou o recuperamos. E esse efeito do divino amor em nós, excluído pelo pecado, é a graça,que nos torna dignos da vida eterna e que perdemos pelo pecado mortal. Portanto, não se pode conceder a remissão da culpa sem haver a infusão da graça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – É mais difícil, ofendido, remitirmos a ofensa, do que simplesmente não odiar a quem não nos ofendeu. Pois, podemos nem amar nem odiar a outrem. Mas a quem nos ofendeu, só por uma especial benevolência podemos perdoar-lhe a ofensa. Ora, a benevolência de Deus para com o homem é recuperada pelo dom da graça. Por onde, embora, antes de ter pecado, pudesse viver sem graça e sem culpa, contudo, depois do pecado, não pode estar isento de culpa, sem a graça.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O amor de Deus consiste, não só num ato da divina vontade, mas implica ainda um certo efeito da graça, como já dissemos. Assim também, é por um efeito produzido no pecador, que Deus não lhe imputa o seu pecado; e isso Deus o faz por amor.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Como diz Agostinho, se, para sair do estado de pecado, bastasse cessar de cometê-lo, a Escritura não teria feito senão nesta advertência: Filho, pecaste; não recomeces. Mas, como não basta, ela acrescenta:E ora para que te sejam perdoados os pecados passados. Ora, transitório pelo seu ato, o pecado permanece pelo reato, como já dissemos. Por onde, em que passa dos pecados de um vício para os do vício contrário, já não existe atualmente o pecado passado, mas, só o seu reato. E portanto, nessa pessoa existe o reato de um e outro pecado. Logo, não é o afastamento de Deus, fundamento do reato dos pecados, que os torna entre si contrários.

Art. 1 – Se a justificação do ímpio é a remissão dos pecados.

 (Infra, a. 6 ad I; IV Sent., dist. XVII, q. 1, a. 1, qª 1; De Verit., q. 28, a. 1).


O primeiro discute-se assim. – Parece que a justificação do ímpio não é a remissão dos pecados.

1. – Pois, o pecado se opõe não só à justiça, como a todas as virtudes, segundo do sobredito resulta. Ora, a justificação implica um certo movimento para a justiça. Logo, nem toda remissão do pecado é justificação, pois todo movimento se realiza entre dois termos contrários.

2. Demais. – Um objeto tira o seu nome do que tem em si de mais importante, como diz Aristóteles. Ora, a remissão dos pecados se opera, principalmente, pela fé, conforme aquilo da Escritura: a caridade cobre todos os delitos. Logo, a remissão dos pecados devia ser denominada, antes, pela fé ou pela caridade, do que pela justiça.

3. Demais. – A remissão dos pecados parece significar o mesmo que vocação; ora, é chamado quem está distante, e o pecado é que nos torna distante de Deus. Ora, a vocação precede à justificação, conforme a Escritura: Aos que chamou a estes também justificou. Logo, a justificação não é a remissão dos pecados.

Mas, em contrário, aquilo da Escritura: Aos que chamou a estes também justificou – diz a Glosa: pela remissão dos pecados. Logo, esta é a justificação.

SOLUÇÃO. – A justificação,em acepção passiva, implica um movimento para a justiça, assim como a calefação, para o calor. E como a justiça implica, por essência, a retidão da ordem, pode ser tomada em duplo sentido. – Primeiro, enquanto implica a ordem reta no ato mesmo do homem. E então, a justiça é considerada como virtude. Quer seja uma virtude particular, que ordena a retidão dos atos de um homem relativamente aos de outro; quer seja a justiça legal, que ordena essa retidão, relativamente ao bem comum do povo, como está claro em Aristóteles. – Noutro sentido, a justiça implica uma certa retidão da ordem na disposição mesma interna do homem, fazendo com que a sua faculdade suprema se submeta a Deus, e a essa faculdade, i. é, à razão se sujeitem as faculdades inferiores da alma. E a essa disposição o Filósofo dá o nome de justiça metaforicamente dita. Ora, esta justiça pode realizar-se no homem de duplo modo. – Primeiro, como simples geração, que se opera pela passagem da privação para a forma. E neste sentido, a justificação poderia convir mesmo a quem não estivesse em pecado e, nesse estado, recebesse de Deus a justiça. Assim, diz-se que Adão recebeu a justiça original. – De outro modo, essa justiça pode realizar-se no homem, conforme ao movimento da razão, que vai de um termo para o seu contrário. E deste modo, a justificação implica uma certa mudança do estado de injustiça para o da referida justiça. E é neste sentido que se trata agora da justificação do ímpio, conforme aquilo do Apóstolo: Ao que não obra e crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é imputada à justiça, segundo o decreto da graça de Deus. E como um movimento tira a sua denominação, mais do seu termo de origem, do que do de chegada, esse passar do estado de injustiça para o da justiça, pela remissão do pecado, recebe a sua denominação do termo de chegada, e se chama justificação do ímpio.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Todo pecado, por isso mesmo que implica uma certa desordem da mente não sujeita a Deus, pode chamar-se injustiça, contrária à justiça em questão, conforme aquilo da Escritura: Todo o que comete um pecado comete igualmente uma iniqüidade, porque o pecado é uma iniqüidade. E assim, à remoção de qualquer pecado chama-se justificação.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A fé e a caridade implicam uma ordem especial da mente humana para Deus, pelo intelecto e pelo afeto. Ao passo que a justiça implica, em geral, a retidão total da ordem. Por isso, essa mudança tira a sua denominação, antes, da justiça, que da caridade ou da fé.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A vocação depende do auxílio de Deus, que move interiormente e excita a alma a abandonar o pecado. Essa moção de Deus, porém, não é a remissão mesma do pecado, mas a sua causa.

Questão 113: Da justificação do ímpio, que é efeito da graça operante.

Em seguida devemos tratar dos efeitos da graça. E primeiro, da justificação do ímpio, efeito da graça operante. Segundo, do mérito, efeito da graça cooperante.

Na primeira questão discutem-se dez artigos:


Art. 5 – Se o homem pode saber que tem a graça.

 ( I Sent., dist. XVII, a. 4; III, dist. XXXIII, q. 1.a. 2, ad 1; IV, dist. IX, q. 1, a. 3, qª 2; dist. XXI, q. 2, a. 2, ad 2; De Verit., q. 10, a. 10; II Cor., cap. XII, lect. I; cap. XIII, lect. II).

 
O quinto discute-se assim. – O homem pode saber que tem a graça.
 
1. – Pois, a graça está, por sua essência, na alma. Ora, a alma tem conhecimento certíssimo do que nela está, essencialmente, como se vê claro em Agostinho. Logo, a graça pode ser certissimamente conhecida por quem a possui.
 
2. Demais. – Como a ciência, também a graça é dom de Deus. Ora, quem recebeu de Deus a ciência, sabe que a tem conforme a Escritura: O Senhor me deu a verdadeira ciência destas coisas. Logo, por igual razão, quem recebeu de Deus a graça sabe que a tem.
 
3. Demais. – O lume é mais cognoscível que as trevas; porque, segundo o Apóstolo, tudo o que se manifesta é luz. Ora, o pecado, que é a treva espiritual, o pecador pode saber com certeza que o tem. Logo, com maior razão, a graça, que é a luz espiritual.
 
4. Demais. – O Apóstolo diz: Ora, nós não recebemos o espírito deste mundo, mas sim o Espírito que vem de Deus, para sabermos as coisas que por Deus nos foram dadas. Ora, a graça é o primeiro dom de Deus. Logo, quem recebe a graça, pelo Espírito Santo, sabe quem, pelo mesmo, ela lhe foi dada.
 
5. Demais. – Foi dito a Abraão, por parte do Senhor: Agora conheci que temes a Deus, i. é, te fiz 
conhecer. Ora, esse lugar se refere ao temor casto, que não vai sem a graça. Logo, o homem pode saber que a tem.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura: Não sabe o homem se é digno de amor ou de ódio. Ora,a graça santificante torna o homem digno do amor de Deus. Logo, ninguém pode saber se tem a graça santificante.
 
SOLUÇÃO. – De três modos podemos conhecer um objeto. Primeiro, pela revelação. E assim, alguém pode saber se está em graça; pois Deus o revela, às vezes a certos, por um privilégio especial, para já nesta vida, começarem a gozar a alegria da segurança, e prossigam, mas confiante e fortemente, nas suas obras magníficas, e suportem os males da vida presente. Assim, foi dito a Paulo: Basta-te a minha graça.
 
De outro modo, o homem pode conhecer um objeto, por si mesmo e com certeza. E então, ninguém pode saber que tem a graça. Pois, só podemos ter certeza do que podemos julgar pelo seu princípio próprio. Assim, temos certeza das conclusões demonstrativas, pelos princípios indemonstráveis universais; pois ninguém pode saber que tem a ciência de uma conclusão, se ignorar o princípio. Ora, o princípio da graça e o seu objeto é Deus mesmo que, por causa da sua excelência, é-nos desconhecido, conforme aquilo da Escritura: Com efeito, Deus é grande, que sobre excede à nossa ciência. Portanto, não podemos conhecer com certeza a sua presença nem a sua ausência em nós, segundo a Escritura: Se ele vier a mim, eu o não verei; se for eu o não perceberei. Logo, o homem não pode julgar com certeza se tem a graça, consoante à Escritura: Pois, nem ainda eu me julgo a mim mesmo; pois, o Senhor é quem me julga.
 
De terceiro modo, conhecemos um objeto conjecturalmente, por certos sinais. E desta maneira podemos saber que temos a graça, percebendo que pomos em Deus o nosso prazer e desprezamos as coisas mundanas e não tendo consciência de nenhum pecado mortal. E neste sentido, pode-se entender o lugar da Escritura: Eu darei ao vencedor o maná escondido, o qual não conhece senão quem no recebe. Porque, quem o recebe o sabe, por experiência da sua doçura, a qual não a sente quem não o recebe. Mas tal conhecimento é imperfeito. Por isso o Apóstolo diz: De nada me argúi a consciência; mas nem por isso me dou por justificado. Pois, como diz outro lugar da Escritura: Quem é que conhece os seus delitos? Purifica-me dos que me são ocultos, e perdoa ao teu servo os alheios.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O que está essencialmente na alma é conhecido por conhecimento experimental, enquanto o homem descobre, pelos seus atos, os princípios internos que os produzem. Assim, percebemos a vontade, querendo, e a vida, pelos atos vitais.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. – Essencialmente, a ciência dá ao homem a certeza sobre o seu objeto; do mesmo modo, a fé torna-o certo do seu. E isto, porque a certeza pertence à perfeição do intelecto, onde existem os dons referidos. Portanto, quem tem a ciência ou a fé está certo de as ter. Não se dá o mesmo, porém, com a graça, com a caridade e dons semelhantes, que aperfeiçoam a potência apetitiva.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. – O pecado tem, como princípio o objeto, um bem mutável, que nos é conhecido. Ao passo que o objeto ou o fim da graça é-nos desconhecido, por causa da imensidade da sua luz, segundo a Escritura: Habita numa luz inacessível.
 
RESPOSTA À QUARTA. – O Apóstolo, nesse lugar, se refere aos dons da glória que nos são dados em esperança. Ora, nós os conhecemos certissimamente pela fé, embora não saibamos com certeza que temos a graça pela qual podemos merecê-los. – Ou pode-se dizer que se refere a um conhecimento privilegiado, dado pela revelação. Por isso, acrescenta: Porém Deus nos revelou a nós pelo seu Espírito.
 
RESPOSTA À QUINTA. – Essa palavra dita a Abraão pode se referir ao conhecimento experimental, derivado da verificação da obra realizada. Pois, pela obra que fez, Abraão podia conhecer experimentalmente que tinha o temor de Deus. – Ou também pode referir-se à revelação.
 

Art. 4 – Se a graça é maior em um que em outro.

 O quarto discute-se assim. – Parece que a graça não é maior em um que em outro.

1. – Pois a graça é causada em nós pelo amor divino, como já se disse. Ora, a Escritura diz: Ele fez ao pequeno e ao grande e tem igualmente cuidado de todos. Logo, todos recebem a graça igualmente, de Deus.

2. Demais. – O grau supremo não é susceptível de mais nem de menos. Ora, a graça está no grau supremo, pois conduz ao fim último. Logo, não é susceptível de mais nem de menos; e portanto não é maior em um que em outro.

3. Demais. – A graça é a vida da alma, como já se disse. Ora, a vida não é susceptível de mais e de menos. Logo, nem a graça.

Mas, em contrário, diz a Escritura: a cada um de nós foi dada a graça, segundo a medida do dom de Cristo. Ora, o que é dado com medida não o é igualmente a todos. Logo, em todos tem graça igual.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos, o hábito é susceptível de dupla grandeza. Uma, relativa ao fim ou objeto, pelo qual se considera uma virtude mais nobre que outra, enquanto ordenada a um bem maior. Outra, relativa ao sujeito, enquanto que participa mais ou menos desse hábito inerente. – Ora, quanto à primeira grandeza a graça santificante não é susceptível de aumento ou diminuição, pois por natureza a graça une o homem a Deus, sumo bem. – Mas, quanto ao sujeito, é susceptível de mais ou de menos, enquanto um é iluminado por ela mais perfeitamente que outro. Esta diversidade se explica, de certo modo, pelo grau de preparação do sujeito, para a graça; pois quem se prepara melhor recebe a graça mais abundante. Mas esta não pode ser considerada como a razão primeira de tal diversidade; pois a preparação para a graça não depende do homem, senão enquanto o seu livre arbítrio é preparado por Deus. Por onde, a causa primeira dessa diversidade deve ser procurada em Deus mesmo, que dispensa diversamente os dons da sua graça para, dos diversos graus dela, resultar a beleza e a perfeição da Igreja. Assim como estabeleceu os diversos graus dos seres para o universo ser perfeito. Por isso, o Apóstolo, depois de ter dito – A cada um foi dada a graça, segundo a medida do dom de Cristo – e de ter enumerado as diversas graças, acrescenta: Para consumação dos santos, para edificar o corpo de Cristo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O cuidado divino pode ser tomado em duplo sentido. – Primeiro, como o ato mesmo divino, simples e uniforme. E assim, aplica-se igualmente a todos, porque por um ato simples dispensa os dons maiores e os menores. – De outro modo, pode ser considerado relativamente ao que as criaturas dele recebem, e daí as desigualdades. Pois, Deus, cuidando das criaturas, dá a umas maiores dons que a outras.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A objeção procede quanto ao primeiro modo da grandeza da graça. Pois ela não pode ser maior por nos ordenar para um bem maior, mas porque nos ordena mais ou menos, a participar, mais ou menos, do mesmo bem. Porquanto o sujeito pode participar, mais intensa ou remissamente, da graça mesma, ou da glória final.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A vida natural, constituindo a substancia mesma do homem, não é suscetível de mais nem de menos. Ao passo que, da vida da graça o homem participa acidentalmente, e portanto pode tê-la mais ou menos.

Art. 3 – Se é necessariamente dada a graça a quem para ela se prepara, ou faz tudo quanto pode.

(IV Sent., dist. XVII, q. 1, a. 2, qª 3).

O terceiro discute-se assim. – Parece que necessariamente é dada a graça a quem para ela se prepara ou faz tudo quanto pode.

1. – Pois, aquilo da Escritura – Justificados pela fé, tenhamos paz – diz a Glosa: Deus recebe quem junto dele se refugia; do contrário, seria iníquo. Ora, é impossível haver iniqüidade em Deus. Logo, é impossível não receba quem busca refúgio junto d’Êle e, portanto, alcança a graça necessariamente.

2. Demais. – Anselmo diz, que a causa pela qual Deus não concede a graça ao diabo é não ter ele querido recebê-la, nem para ela estar preparado. Ora, removido a causa fica o efeito necessariamente removido. Logo, a quem quiser receber a graça é ela necessariamente concedida.

3. Demais. – O bem é de si mesmo comunicativo, como claramente se vê em Dionísio. Ora, o bem da graça é superior ao da natureza. Por onde, como a forma natural se une necessariamente à matéria para ela disposta, com maior razão a graça há de ser necessariamente dada a quem para ela está preparado.

Mas, em contrário, o homem esta para Deus como o barro, para o oleiro, conforme a Escritura: Como o barro está na mão do oleiro, assim vós estais na minha mão. Ora, o barro não recebe necessariamente a forma que lhe dá o oleiro, por preparado que esteja. Logo, nem o homem, por mais que se prepare, recebe necessariamente a graça, de Deus.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a preparação do homem, para a graça procede de Deus, como o motor; e do livre arbítrio, como do movido. Ora, a preparação pode ser considerada à dupla luz. – Primeiro, enquanto procedente do livre arbítrio. E então, nada tem em si que exija a graça necessariamente; pois, o dom da graça excede toda preparação de que o homem é capaz. – Segundo, enquanto procedente da moção divina. E então, atinge necessariamente aquilo a que Deus a ordenou, não coagida, mas infalivelmente, porque o plano de Deus não pode falhar, conforme Agostinho que diz: todos os que Deus salva, pelos seus benefícios, são certissimamente salvos. E assim, por designo de Deus, que move um homem, cujo coração foi movido, alcança a graça infalivelmente, segundo a Escritura: Todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A Glosa citada se refere ao que se refugia junto de Deus por um ato meritório do livre arbítrio, já informado pela graça. E então, se Deus não o recebesse, iria contra a justiça que Êle próprio estabeleceu. – Ou, se a Glosa se refere ao movimento do livre arbítrio anterior à graça, entende que esse mesmo refugiar-se do homem em Deus provém da moção divina, e por isso é justo não seja vão.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A falta da primeira graça é por culpa nossa; mas, a causa primeira de ser conferida é Deus, conforme a Escritura: A tua perdição, ó Israel, toda vem de ti; só em mim está o teu auxílio.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Mesmo na ordem das coisas naturais, a disposição da matéria não acarreta necessariamente a consecução da forma, salvo, pela virtude do agente causador da disposição.

Art. 2 – Se, da parte do homem, é necessária alguma preparação ou disposição para a graça.

 (Qu. Seq., a. 3; IV Sent., dist. XVII, a. 2, qª 1, 2; In Ion., cap. IV, lect. II; Ad Hebr., cap. XII, lect. III).


O segundo discute-se assim. – Parece que, da parte do homem, não é necessária nenhuma preparação ou disposição para a graça.

1. – Pois, como diz o Apóstolo, ao que obra, não se lhe conta o jornal por graça, mas por dívida. Ora, a preparação do homem pelo livre arbítrio só é possível por alguma operação. Logo, não há lugar para a graça.

2. Demais. – Quem se ataca no pecado não se prepara a receber a graça. Ora, a certos, que nele se atacam, foi dada a graça. Tal é o caso de Paulo, que a alcançou, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor. Logo, da parte do homem, não é necessária nenhuma preparação para a graça.

3. Demais. – Um agente de poder infinito não precisa de matéria predisposta, pois nem dela, em si mesma, precisa, como o demonstra a criação, a que é comparado a infusão da graça, chamada nova criatura. Ora, só Deus, cujo poder é infinito, causa a graça, como se disse. Logo, da parte do homem, não é necessária nenhuma preparação para alcançar a graça.

Mas, em contrário, diz a Escritura: Prepara-te a saíres ao encontro do teu Deus; e: Preparai os vossos corações para o Senhor.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a graça tem duas acepções; ora, significa o dom habitual de Deus; ora, o auxílio de Deus, que move a alma para o bem. – Na primeira acepção, exige de nós uma preparação, porque nenhuma forma pode existir senão na matéria já predisposta. – Na segunda, não exige, da parte do homem, nenhuma preparação, quase preveniente ao auxílio divino; antes, qualquer preparação, que possa existir no homem, provém do auxílio de Deus, que move a alma para o bem. E sendo assim, o próprio bom movimento do livre arbítrio, pelo qual nos preparamos a receber o dom da graça, é um ato procedente da moção divina. E neste sentido, diz-se que o homem se prepara, conforme a Escritura: Da parte do homem está o preparar a sua alma; essa preparação provem principalmente de Deus, que move o livre arbítrio. E em tal acepção, se diz que a vontade humana é preparada por Deus, e que Deus lhe dirige os passos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Certa preparação do homem para ter a graça vai simultaneamente com a infusão mesma dela. E tal operação é, certo, meritória; não, da graça, já possuída, mas da glória, que ainda não o é. Há porem outra preparação, imperfeita, para a graça, que ás vezes precede o dom da graça santificante, e contudo provém da moção divina. Essa preparação, porém, não basta para o mérito, enquanto o homem não foi justificado pela graça; porque nenhum mérito pode provir a não ser dela, como a seguir se dirá.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O homem não pode preparar-se para a graça ele chegue à preparação perfeita, súbita ou paulatinamente. Donde o dizer a Escritura: A Deus é fácil o enriquecer de repente ao pobre. Ora, acontece algumas vezes, que Deus move o homem a algum bem, mas não perfeito; e essa preparação precede á graça. Outras vezes, porém, rápida e perfeitamente, move-o para o bem e ele recebe a graça de súbito, conforme a Escritura: Todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Ora, isto deu-se com Paulo que, de súbito, quando mais se atascava no pecado, teve o coração perfeitamente movido por Deus, que o fez ouvir, aprender e vir; por isso, conseguiu, de súbito, a graça.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Um agente de poder infinito não exige qualquer matéria preexistente ou predisposta, quase um pressuposto, por ação de outra causa. Contudo é necessário, conforme à condição da coisa a ser criada, causar nela tanto a matéria como a disposição devida para a forma. Semelhantemente, para Deus infundir a graça na alma, nenhuma preparação há exigida, que Ele não realize.

 

Art. 1 – Se só Deus é a causa da graça.

(III, q. 62, a. 1; q. 64, a. 1; I Sent., dist. XIV, part, q. 3; dist. XL, q.4, 2, ad 3; II, dist. V, q. 1, a.3, qª 1; DeVerit., q. 27, a. 3; Ad Rom., cap. V, lect. I).

O primeiro discute-se assim. – Parece que não é só Deus a causa da graça.

1. – Pois, diz a Escritura: a graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Ora, o nome de Jesus Cristo designa não só a natureza divina unida à humana, mas também essa natureza humana criada e assumida por Deus. Logo, alguma criatura pode ser causa da graça.

2. Demais. – Os sacramentos da lei nova e os da antiga diferem em aqueles causarem a graça, e estes somente a significarem. Ora, os sacramentos da lei nova são elementos visíveis. Logo, nem só Deus é a causa da graça.

3. Demais. – Segundo Dionísio, os anjos purificam, iluminam e aperfeiçoam, tanto os anjos inferiores, como os homens. Ora, a criatura racional é purificada, iluminada e aperfeiçoada pela graça. Logo, não é só Deus a causa da graça.  

Mas, em contrário, diz a Escritura: O Senhor dará a graça e a glória.

SOLUÇÃO. – Nenhum ser pode agir fora dos limites da sua espécie, pois a causa há de ser sempre superior ao efeito. Ora, o dom da graça excede as faculdades de toda natureza criada, pois a graça não é senão uma participação da natureza divina, que sobrepuja qualquer outra natureza. Por onde, é impossível qualquer criatura causar a graça. E portanto e necessariamente, só Deus pode deificar, comunicando o consórcio da sua natureza, por uma participação de semelhança, assim como só o fogo pode dar a um corpo o estado de combustão.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A humanidade de Cristo é um como instrumento da sua divindade, na expressão de Damasceno. Ora, um instrumento não realiza a ação do agente principal, por virtude própria, mas em virtude daquele. Por onde, a humanidade de Cristo não causa a graça por virtude própria, mas em virtude da divindade adjunta, que torna salutares as obras dessa humanidade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como na pessoa mesma de Cristo a humanidade causa a nossa salvação pela graça, mas sob a ação principal da virtude divina; assim também os sacramentos da lei nova, derivados de Cristo, causam a graça instrumental; mas é a virtude do Espírito Santo, operando neles, que a causa principalmente, conforme a Escritura: Quem não renascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O anjo purifica, ilumina e aperfeiçoa outro anjo ou o homem, instruindo-o, de certo modo; não porém justificando, pela graça. Por isso, Dionísio diz, que essa purificação, iluminação e perfeição não passam de uma recepção da ciência divina.

Questão 112: Da causa da graça

 Em seguida devemos tratar da causa da graça.


E Nesta questão discutem-se cinco artigos:

Art. 8 ─ Se das penas do purgatório um se livra mais cedo que outro.

O oitavo discute-se assim. ─ Parece que da pena do purgatório não pode um livrar-se mais cedo que outro.

1. ─ Pois, quanto mais grave a culpa e o reato, tanto mais acerba será a pena imposta no purgatório. Ora, a proporção entre uma pena mais acerba e uma culpa mais grave é a mesma entre uma pena mais leve e uma culpa mais leve. Logo, ficará um livre ao mesmo tempo que outro.

2. Demais. ─ Méritos desiguais merecem retribuições desiguais na sua duração, tanto no céu como no inferno. Ora, parece que o mesmo deve dar-se no purgatório.

Mas, em contrário, a comparação do Apóstolo, que significou as diferenças entre os pecados veniais, pelas palavras ─ madeira, feno e palha. Ora, é um fato, que a madeira dura mais tempo no fogo que o feno e a palha. Logo, um pecado venial é punido mais longamente no purgatório, que outro.

SOLUÇÃO. ─ Certos pecados veniais aderem mais fortemente à alma que outros, na medida em que o afeto mais intensamente se inclina e mais fortemente se apega. E como os pecados que mais fortemente aderem são purgados num tempo mais longo, por isso certos são torturados no purgatório por mais tempo que outros, na medida em que o afeto mais imerso andou nos pecados veniais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A acerbidade da pena propriamente responde à quantidade da culpa; ao passo que a diuturnidade corresponde à radicação da culpa no sujeito. Por onde, pode acontecer fique no purgatório mais tempo quem sofre menos, e inversamente.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O pecado mortal a que é devido o suplício do inferno, e a caridade a que é devido o prêmio do paraíso depois desta vida, ficam radicados imutavelmente no sujeito. Por isso, tem ambos a mesma duração, no inferno e no céu. Mas o mesmo não se dá com o pecado venial, punido no purgatório, como do sobredito se colhe.

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