Category: Santo Tomás de Aquino
Em seguida devemos tratar da ciência de Cristo em geral. Sobre a qual há duas questões a tratar. A primeira, sobre a ciência que Cristo teve. A segunda, sobre cada uma das suas ciências.
Na primeira questão discutem-se quatro artigos:
Em seguida devemos tratar da graça de Cristo enquanto cabeça da Igreja.
E nesta questão discutem-se oito artigos:
O terceiro discute-se assim. — Parece que mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
1 — Pois, permanecendo a causa, permanece o efeito. Ora, como diz Agostinho, muitas outras causas devemos levar em conta, na Encarnação de Cristo, além do resgate do pecado, do qual já se tratou (a. 2). Logo, mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
2. Demais. — É próprio da onipotência do poder divino levar as suas obras à perfeição, e manifestar-se por algum efeito infinito. Ora, nenhuma pura criatura pode ser considerada um efeito infinito pois, toda criatura é finita por essência. Ora, só na obra da Encarnação, se manifesta por excelência um efeito infinito do poder divino, pois nela se acham unidos seres infinitamente distantes, por ter-se o homem feito Deus. Em cuja obra também em sumo grau se aperfeiçoou o universo, por ter-se a última criatura — o homem, unido ao primeiro principio — Deus. Logo, mesmo se o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
3. Demais. — A natureza humana não se tornou, pelo pecado, mais capaz da graça. Ora, depois do pecado, é capaz da graça da união, que é a graça máxima. Logo, se o homem não tivesse pecado, a natureza humana teria sido capaz dessa graça; nem Deus subtrairia à natureza humana um bem de que ela era capaz. Logo, se o homem não tivesse pecado Deus ter-se-ia encarnado.
4. Demais. — A predestinação de Deus é eterna. Ora o Apóstolo diz, de Cristo (Rom 1, 4): Que foi predestinado Filho de Deus com poder. Logo, mesmo antes do pecado, foi necessário o Filho de Deus encarnar-se para cumprir-se a predestinação de Deus.
5. Demais. — O mistério da Encarnação foi o primeiro revelado ao homem, como se conclui do dito da Escritura (Gn 2, 23): Eis aqui agora o osso de meus ossos, etc., o qual o Apóstolo diz que é um sacramento grande em Cristo e na Igreja (Ef 5, 22). Ora, pela mesma razão porque não o podia o anjo, também o homem não podia ter presciência da sua queda, como o prova Agostinho. Logo, mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus ter-se-ia encarnado.
Mas, em contrário, Agostinho diz expondo aquilo do Evangelho (Lc 19, 10) — O Filho do homem veio buscar e salvar o que tinha perecido: Logo, se o homem não tivesse pecado, o Filho do homem não teria vindo. E àquilo do Apóstolo (1Tm 1, 15) — Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, diz a Glosa: Nenhuma outra causa houve da vinda de Cristo a este mundo senão salvar os pecadores. Elimina as doenças, elimina as chagas: já nenhuma razão há de remédio.
SOLUÇÃO. — São diversas as opiniões sobre esta matéria — Uns dizem que, mesmo sem o pecado do homem, o Filho de Deus ter-se-ia encarnado. Outros afirmam o contrário. E a esta afirmação devemos dar assentimento. Pois, as obras puramente voluntárias de Deus, sem haver nenhum débito para com a criatura, nós não as podemos conhecer, senão enquanto manifestadas pela Sagrada Escritura, que nos torna conhecida a vontade divina. Ora, como a Sagrada Escritura, sempre dá como razão à Encarnação o pecado do primeiro homem, mais convenientemente se diz que a obra da Encarnação foi ordenada por Deus como remédio do pecado, de modo que, se o pecado não existisse, a Encarnação não teria lugar. Embora por aí não fique limitado o poder de Deus; pois, Deus teria podido encarnar-se mesmo sem ter existido o pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Todas as outras causas assinaladas respeitam o remédio do pecado. Pois, se o homem não tivesse pecado, teria infuso em si o lume da sabedoria divina e teria, de Deus, a perfeita retidão da justiça, para conhecer e, praticar todo o necessário. Mas, tendo o homem, pelo abandono de Deus, caído ao nível das coisas corpóreas, foi conveniente que Deus, tendo assumido a carne, também lhe desse o remédio da salvação por meio de coisas corpóreas. Por isso àquilo do Evangelho (Jo 1, 14) — O Verbo se fez carne — Diz Agostinho: A carne te cegou, a carne te cura; pois, Cristo veio para, com a carne, extirpar os vícios da carne.
RESPOSTA À SEGUNDA. — No modo mesmo da produção das coisas, do nada, se manifesta o infinito poder divino. E também à perfeição do universo basta que a criatura se ordene para Deus, de um modo natural, como para o fim. Mas, excede os limites da perfeição da natureza o unir-se criatura pessoalmente a Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Podemos considerar em a natureza humana uma dupla capacidade — Uma, conforme à ordem da potência natural. E esse Deus sempre a satisfaz, pois dá a cada coisa conforme à sua capacidade natural — Outra conforme à ordem do poder divino, a cujo nuto toda criatura obedece. E a esta pertence a capacidade em questão. Pois, Deus não satisfaz toda essa capacidade da natureza, do contrário não poderia fazer na criatura senão o que faz. O que é falso, como já demonstramos na Primeira Parte (q. 25, a. 5; q. 105, a. 6). Pois nada impede que a natureza humana, depois pecado não seja susceptível de maior elevação. Porque Deus permite se faça o mal para dele tirar um bem melhor. Donde o dizer o Apóstolo (Rom 5, 20): Onde abundou o pecado superabundou a graça. E o dizer-se na benção do Círio Pascal: Ó culpa feliz, que mereceu ter um tal e tão grande Redentor.
RESPOSTA À QUARTA. — À predestinação pressupõe a presciência dos futuros. Por onde, assim como Deus predestina que a salvação de um homem deve se cumprir pela oração de outros; assim também predestinou a obra da Encarnação como médio do pecado.
RESPOSTA À QUINTA. — Nada impede que seja revelado um efeito a quem não o é a causa. Por onde, ao primeiro homem podia ser revelado mistério da Encarnação sem que tivesse a presciência da sua queda; pois, quem quer que conheça um efeito não há de por isso conhecer a causa.
O segundo discute-se assim. — Parece que não foi necessário, para a salvação do gênero humano, que o Verbo de Deus se encarnasse.
1. — Pois, o Verbo de Deus, sendo Deus perfeito, como demonstramos (Ia., q. 27, a. 2, ad 2; q. 4, a. 1, 2), nenhuma virtude se lhe acrescentou, por ter assumido a carne. Se, pois, o Verbo encarnado de Deus reparou a natureza humana, podia tê-la reparado mesmo sem ter assumido a carne.
2. Demais. — A reparação da natureza humana, caída no pecado, parece que nada mais exigia senão que o homem satisfizesse pelo seu pecado. Pois, Deus não deve exigir do homem mais do que ele pode fazer. E, sendo antes inclinado a compadecer-se do que punir, assim como imputa ao homem o ato do pecado, assim também parece que lhe há de imputar, para delir o pecado, o ato contrário. Logo, não foi necessário, para a reparação da natureza humana, que o Verbo de Deus se incarnasse.
3. Demais. — Para salvar-se o homem deve sobretudo honrar a Deus; donde o dizer a Escritura (Ml 1, 6): Se eu sou vosso Senhor, onde está o temor que se me deve? Mas, por isso mesmo os homens mais honram a Deus, que o consideram mais elevado que todas as coisas e mais remoto dos sentidos dos homens. Donde o dito da Escritura (Sl 112, 4): Excelso é o Senhor sobre todas as gentes e a sua glória é sobre os céus. E depois acrescenta: Quem há como o Senhor nosso Deus? O que respeita a reverência. Logo, parece que não convinha à salvação humana que Deus se fizesse semelhante a nós pela assunção da carne.
Mas, em contrário. — Aquilo pelo que o gênero humano é livrado da perdição é necessário à salvação humana. Ora, tal é o mistério da divina Encarnação, segundo o Evangelho (Jo 3, 16): Assim amou Deus ao mundo, que lhe deu a seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Logo, foi necessário, para a salvação humana, que Deus se encarnasse.
SOLUÇÃO — De dois modos pode uma coisa ser considerada necessária para um determinado fim. Primeiro, como aquilo sem o que o fim não pode existir; assim, o alimento é necessário à conservação da vida humana. De outro modo, como o meio pelo qual melhor e mais convenientemente se chega ao fim: assim, o cavalo é necessário para viajar. — Do primeiro modo não era necessário, para a reparação da natureza humana, que Deus se encarnasse. Pois, pela sua onipotente virtude, Deus podia reparar por muitos outros modos a natureza humana. — Do segundo, modo, era necessário que Deus se encarnasse, para a reparação da natureza humana. Por isso, Agostinho diz: mostremos que não faltava a Deus nenhum outro modo possível, a cujo poder todas as coisas estão igualmente sujeitas; mas, não existia nenhum outro modo mais conveniente para obviar à nossa miséria.
E isto podemos considerar relativamente à promoção do homem no bem. — Primeiro, quanto à fé, que mais se certifica por crer na palavra mesma de Deus, Donde o dizer Agostinho: Para que o homem mais confiadamente trilhasse o caminho da verdade, a própria Verdade, o Filho de Deus, assumindo a humanidade, constituiu e fundou, a fé — Segundo, quanto à esperança, que assim por excelência se exalça. Donde o dizer Agostinho: Nada foi tão necessário para exalçar a nossa esperança, do que a demonstração de quanto Deus nos ama. Pois, que indício mais manifesto desse amor do que ter-se o Filho de Deus dignado entrar em consórcio com a nossa natureza. — Terceiro, quanto à caridade, que assim sobremaneira se excita. Por isso, diz Agostinho: Que maior causa foi a do advento do Senhor senão mostrar Deus o seu amor para conosco? E depois acrescenta: Se nos custava amá-lo, que ao menos não custe corresponder-lhe ao amor. — Quarto, quanto a orar retamente, do que se nos deu como exemplo. Donde o dizer Agostinho: Não se devia seguir o homem que podia ser visto; devia-se seguir a Deus, que não podia ser visto. Pois, para que se manifestasse ao homem e fosse visto do homem e o seguisse o homem, Deus fez-se homem. — Quinto, quanto à participação da divindade, que é a Verdadeira beatitude do homem e o fim da vida humana. O que nos foi conferido pela humanidade de Cristo; assim, diz Agostinho: Deus se fez homem para o homem fazer-se Deus.
Semelhantemente, também tal foi útil para a remoção do mal. — Primeiro, porque assim o homem é instruído para não preferir o diabo a si nem venerá-lo a ele, o autor do pecado. Por isso diz Agostinho: Pois que a natureza humana pode assim unir-se a Deus, de modo a fazer com ele uma só pessoa, aqueles soberbos espíritos malignos não ousem antepor-se ao homem, pois não têm carne. — Segundo, porque isso nos adverte quão grande seja a dignidade da natureza humana, para não a inquinarmos pelo pecado. Por onde, diz Agostinho: Deus nos mostrou quão excelso lugar tem a natureza humana entre as criaturas, por ter se manifestado aos homens como verdadeiro homem. E Leão Papa diz: Reconhece, ó Cristão, a tua dignidade; e, feito consorte da natureza divina, não queiras por uma volta degenerada tornar à antiga vileza. — Terceiro, porque, para eliminar a presunção humana, a graça de Deus, sem nenhuns méritos precedentes, se nos inculca no homem Cristo. — Quarto, porque a soberba do homem, que é o máximo impedimento para nos unirmos a Deus, pode ser neutralizada e curada pela tão grande humildade de Deus, como no mesmo lugar diz Agostinho. — Quinto, para livrar o homem da servidão do pecado. O que, no dizer de Agostinho, devia realizar-se de modo que o diabo fosse vencido pela justiça do homem Jesus Cristo; e isso se deu por ter Cristo satisfeito por nós. Pois, um puro homem não podia satisfazer por todo o gênero humano; e Deus não devia satisfazer. Por onde era necessário que Jesus Cristo fosse Deus e homem. Por isso diz Leão Papa: A fraqueza é assumida pela força, pela majestade a humildade; de modo que, como convinha ao remédio à nossa salvação, um mesmo mediador entre Deus e os homens pudesse, como homem, nascer, e como Deus, ressurgir. Pois, se não fosse verdadeiro Deus não daria remédio; e se não fosse verdadeiro homem, não daria o exemplo.
E há ainda muitas outras utilidades daí resultantes, superiores à compreensão dos sentidos do homem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção colhe quanto ao necessário, do primeiro modo, sem o qual não se pode alcançar o fim.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Uma satisfação pode ser considerada suficiente de duplo modo. — Primeiro, perfeitamente; quando é condigna por uma certa adequação, para recompensar a culpa cometida. E, assim, uma suficiente satisfação não podia existir da parte do homem; pois, a natureza humana estava corrupta na sua totalidade pelo pecado; nem o bem de nenhuma pessoa, nem ainda o de muitas, podia, por equiparação, recompensar o detrimento de toda a natureza. Quer também porque o pecado. cometido contra Deus implica uma certa infinidade, relativamente à infinidade da majestade divina; pois, tanto mais grave é a ofensa, quanto maior é aquele contra quem se delinqüiu. Por onde, uma satisfação condigna exigia que o ato do satisfaciente tivesse uma eficácia infinita, como dizendo respeito a Deus e ao homem. — Noutro sentido, uma satisfação pode ser considerada suficiente, imperfeitamente; isto é, quanto à aceitação de quem com ela se contenta, embora não seja condigna. E, deste modo, a satisfação do puro homem é suficiente. E como tudo o que é imperfeito pressupõe algo de perfeito, em que se funda, daí vem que toda a satisfação de um puro homem, tira a sua eficácia da satisfação de Cristo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Deus, assumindo a carne, não diminuiu a sua majestade; e por consequência não fica diminuída a razão da reverência para com ele. A qual cresce com o aumento do conhecimento que dele temos. Pois, por ter querido aproximar-se de nós pela assunção da carne, mais nos levou a conhecê-lo.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não foi conveniente que Deus se encarnasse.
1. — Pois, sendo Deus abeterno a mesma bondade essencial, melhor é existir ele como abeterno existiu. Ora, Deus existiu abeterno sem nenhuma carne. Logo, convenientíssimo lhe era não se unir à carne. Portanto, não foi conveniente que Deus se encarnasse.
2. Demais. — Seres infinitamente diferentes inconvenientemente se unem; assim, faria inconveniente junção quem pintasse uma imagem, onde se ligasse a uma cabeça humana um pescoço de cavalo. Ora, Deus e a carne diferem infinitamente; pois, ao passo que Deus é simplicíssimo, a carne é composta, e sobretudo a humana. Logo, foi inconveniente que Deus se tivesse unido à carne humana.
3. Demais. — O corpo dista do sumo espírito tanto quanto a malícia, da suma bondade. Ora, absolutamente inconveniente era que Deus, a suma bondade, assumisse a malícia. Logo, não foi conveniente que o sumo espírito incriado assumisse um corpo.
4. Demais. — É inconveniente estar contido num ser mínimo o que excede os grandes; e que se aplique a coisas pequenas aquele a quem incumbe cuidado das grandes. Ora, toda a universidade das coisas não é suficiente a abranger a Deus, que exerce o governo de todo o mundo. Logo parece inconveniente esconder-se no corpinho de uma criança, a vagir, aquele em cuja comparação é nada o universo; e um tal, rei, abandonar tão longamente as suas moradas e transferir para um corpúsculo o governo de todo o mundo, como Volusiano escreve a Agostinho.
Mas, em contrário. — Convenientíssimo parece que as coisas invisíveis de Deus se manifestem pelas visíveis; pois, para tal foi feito todo o mundo, segundo as palavras do Apóstolo (Rom 1, 20) — As coisas invisíveis de Deus se vêem consideradas pelas obras que foram feitas. Ora, como diz Damasceno, pelo mistério da incarnação se manifesta ao mesmo tempo a bondade, a sabedoria, a justiça e o poder ou virtude de Deus. A bondade, pois não desprezou a fraqueza da sua própria criatura; a justiça porque não deu a outrem senão ao homem o poder de vencer o tirano, nem livrou o homem da morte pela violência; a sabedoria, porque deu a mais cabal solução a um problema dificílimo; o poder enfim ou a virtude infinita, pois nada há de maior ao fato de Deus ter-se feito homem. Logo, foi conveniente Deus ter-se encarnado.
SOLUÇÃO. — A cada coisa é conveniente o que lhe cabe segundo à essência da sua própria natureza; assim, convém ao homem raciocinar por ser de natureza racional. Ora, a natureza mesma de Deus é a bondade, como está claro em Dionísio. Por onde, tudo o que pertence essencialmente ao bem convém a Deus. Ora, pertence essencialmente ao bem o comunicar-se aos outros, como está claro em Dionísio. Por onde, pertence à essência do sumo bem comunicar-se de maneira suma à criatura. O que sobretudo se realiza por ter-se a si mesmo unido a natureza criada, de modo a fazer uma só pessoa dos três o Verbo, a alma e a carne como diz Agostinho. Por onde, é manifesto que foi conveniente que Deus se tivesse encarnado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. O mistério da Encarnação não se realizou porque tivesse Deus, de certo modo, obtido uma mudança do seu estado para outro, em que não existia abeterno; mas, por ter-se unido de um modo novo com a criatura, ou antes, a criatura a si: Pois, é conveniente que a criatura, mutável por natureza, não se apresente sempre do mesmo modo. Por onde, assim como a criatura, que primeiro não existia, foi depois produzida, assim também, não estando desde o princípio unida a Deus, veio depois a lhe ser unida.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Ser unida a Deus, na unidade de pessoa, não era conveniente à carne humana, pela condição da sua natureza, porque isso lhe sobrepujava a dignidade dela. Mas, foi conveniente a Deus, pela infinita excelência da sua bondade uni-la a si, para a salvação humana.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Qualquer outra condição, pela qual cada criatura difere do Criador, foi instituída pela sabedoria de Deus e ordenada à bondade divina. Pois, Deus pela sua bondade, sendo incriado, imutável e incorpóreo, produziu criaturas mutáveis e corpóreas; e semelhantemente o mal da pena foi introduzido pela justiça de Deus em vista da sua glória. Quanto ao mal da culpa, ele procede pelo afastamento da arte da sabedoria divina e da ordem da bondade divina. Por onde, podia ser conveniente a Deus assumir a natureza criada, mutável, corpórea e sujeita à penalidade: mas não lhe era assumir o mal da culpa.
RESPOSTA À QUARTA. — Agostinho responde: A doutrina Cristã não ensina que Deus, por ter-se unido à carne humana, abandonou ou perdeu o exercício do governo universal, ou encerrou-o, como que compresso nesse corpúsculo. Mas são esses pensamentos do homem, só capaz de cogitar no que é corpóreo, Pois, Deus é grande, não como uma mole, mas, pela sua virtude. Por isso, a grandeza da sua virtude não se comprimiu com a exiguidade local. Não é, portanto, incrível ao passo que o verbo transitório do homem, seja total e simultaneamente ouvido por muitos e por cada um, que o Verbo Deus, permanente, esteja total e simultaneamente em toda parte. Por onde, nenhum inconveniente resulta para Deus encarnado.
I. Uma satisfação pode ser considerada suficiente de duplo modo. Primeiro, perfeitamente; quando é condigna por uma certa adequação, para recompensar a culpa cometida. E, assim, uma suficiente satisfação não podia existir da parte do homem; pois, a natureza humana estava corrupta na sua totalidade pelo pecado; nem o bem de nenhuma pessoa, nem ainda o de muitas, podia, por equiparação, recompensar o detrimento de toda a natureza. Quer também porque o pecado. cometido contra Deus implica uma certa infinidade, relativamente à infinidade da majestade divina; pois, tanto mais grave é a ofensa, quanto maior é aquele contra quem se delinqüiu. Por onde, uma satisfação condigna exigia que o ato do satisfaciente tivesse uma eficácia infinita, como dizendo respeito a Deus e ao homem.
Noutro sentido, uma satisfação pode ser considerada suficiente, imperfeitamente; isto é, quanto à aceitação de quem com ela se contenta, embora não seja condigna. E, deste modo, a satisfação do puro homem é suficiente. E como tudo o que é imperfeito pressupõe algo de perfeito, em que se funda, daí vem que toda a satisfação de um puro homem, tira a sua eficácia da satisfação de Cristo.
(IIIa., q. 1, a. 2, ad 2)
II. A Encarnação traz a confiança na remissão do pecado:
Assim como o homem é disposto para a bem-aventurança pela virtude, dela é também impedido pelo pecado. Ora, o pecado contrário à virtude é impedimento para a bem-aventurança, não só porque traz uma certa desordem à alma, enquanto a afasta da ordenação para o devido fim, como também ofendendo a Deus, de quem espera o prêmio da bem-aventurança (...) Além disso, tomando o homem consciência dessa ofensa, pelo pecado perde a confiança de se dirigir para Deus, confiança necessária para a aquisição da bem-aventurança.
É, pois, necessário ao gênero humano, que transborda de pecados, que lhe seja ministrado um remédio contra os pecados. Ora, esse remédio não pode vir senão de Deus, que pode mover a vontade humana para o bem, repondo-a na devida ordem, e pode perdoar a ofensa que recebeu, porque uma ofensa só é perdoada por quem recebe.
Mas, para o homem librar-se de uma ofensa passada, é necessário que ele tenha conhecimento do perdão vindo de Deus. No entanto, só pode ficar certo disso, se Deus certificá-lo.
Por isso, foi conveniente e útil ao gênero humano, para que se conseguisse a bem-aventurança, que Deus se fizesse homem. Desse modo conseguiria de Deus perdão dos pecados e, pelo Deus-homem, a certeza desse perdão.
(Contr. 4, 54)
Foi necessário que Deus se encarnasse não somente para fazer avançar o homem no bem, mas para removê-lo do mal.
1. Porque assim o homem é instruído para não preferir o diabo a si nem venerá-lo a ele, o autor do pecado. Por isso diz Agostinho: Pois que a natureza humana pode assim unir-se a Deus, de modo a fazer com ele uma só pessoa, aqueles soberbos espíritos malignos não ousem antepor-se ao homem, pois não têm carne.
2. Porque isso nos adverte quão grande seja a dignidade da natureza humana, para não a inquinarmos pelo pecado. Por onde, diz Agostinho: Deus nos mostrou quão excelso lugar tem a natureza humana entre as criaturas, por ter se manifestado aos homens como verdadeiro homem. E Leão Papa diz: Reconhece, ó Cristão, a tua dignidade; e, feito consorte da natureza divina, não queiras por uma volta degenerada tornar à antiga vileza.
3. Porque, para eliminar a presunção humana, a graça de Deus, sem nenhuns méritos precedentes, se nos inculca no homem Cristo.
4. Porque a soberba do homem, que é o máximo impedimento para nos unirmos a Deus, pode ser neutralizada e curada pela tão grande humildade de Deus.
5. Para livrar o homem da servidão do pecado. O que, no dizer de Agostinho, devia realizar-se de modo que o diabo fosse vencido pela justiça do homem Jesus Cristo; e isso se deu por ter Cristo satisfeito por nós. Pois, um puro homem não podia satisfazer por todo o gênero humano; e Deus não devia satisfazer. Por onde era necessário que Jesus Cristo fosse Deus e homem. Por isso diz Leão Papa: A fraqueza é assumida pela força, pela majestade a humildade; de modo que, como convinha ao remédio à nossa salvação, um mesmo mediador entre Deus e os homens pudesse, como homem, nascer, e como Deus, ressurgir. Pois, se não fosse verdadeiro Deus não daria remédio; e se não fosse verdadeiro homem, não daria o exemplo.
E há ainda muitas outras utilidades daí resultantes, superiores à compreensão dos sentidos do homem.
De dois modos pode uma coisa ser considerada necessária para um determinado fim. Primeiro, como aquilo sem o que o fim não pode existir; assim, o alimento é necessário à conservação da vida humana. De outro modo, como o meio pelo qual melhor e mais convenientemente se chega ao fim: assim, o cavalo é necessário para viajar. Do primeiro modo não era necessário, para a reparação da natureza humana, que Deus se encarnasse. Pois, pela sua onipotente virtude, Deus podia reparar por muitos outros modos a natureza humana. Do segundo, modo, era necessário que Deus se encarnasse, para a reparação da natureza humana. por isso, Agostinho diz: mostremos que não faltava a Deus nenhum outro modo possível, a cujo poder todas as coisas estão igualmente sujeitas; mas, não existia nenhum outro modo mais conveniente para obviar à nossa miséria. E isto podemos considerar relativamente à promoção do homem no bem:
1. Quanto à fé, que mais se certifica por crer na palavra mesma de Deus, Donde o dizer Agostinho: Para que o homem mais confiadamente trilhasse o caminho da verdade, a própria Verdade, o Filho de Deus, assumindo a humanidade, constituiu e fundou, a fé.
2. Quanto à esperança, que assim por excelência se exalça. Donde o dizer Agostinho: Nada foi tão necessário para exalçar a nossa esperança, do que a demonstração de quanto Deus nos ama. Pois, que indício mais manifesto desse amor do que ter-se o Filho de Deus dignado entrar em consórcio com a nossa natureza.
3. Quanto à caridade, que assim sobremaneira se excita. Por isso, diz Agostinho: Que maior causa do advento do Senhor do que mostrar Deus o seu amor para conosco? E depois acrescenta: Se nos custava amá-lo, que ao menos não custe corresponder-lhe ao amor.
4. Quanto a obrar retamente, do que se nos deu como exemplo. Donde o dizer Agostinho: Não se devia seguir o homem que podia ser visto; devia-se seguir a Deus, que não podia ser visto. Pois, para que se manifestasse ao homem e fosse visto do homem e o seguisse o homem, Deus fez-se homem.
5. Quanto à participação da divindade, que é a Verdadeira beatitude do homem e o fim da vida humana. O que nos foi conferido pela humanidade de Cristo; assim, diz Agostinho: Deus se fez homem para o homem fazer-se Deus.
I. - Convenientíssimo parece que as coisas invisíveis de Deus se manifestem elas visíveis; pois, para tal foi feito todo o mundo, segundo as palavras do Apóstolo (Rom 1, 20): "As coisas invisíveis de Deus se vêem consideradas pelas obras que foram feitas". Ora, como diz Damasceno, pelo mistério da Encarnação se manifesta ao mesmo tempo a bondade, a sabedoria, a justiça e o poder ou virtude de Deus. A bondade, pois não desprezou a fraqueza da sua própria criatura; a justiça porque não deu a outrem senão ao homem o poder de vencer o tirano, nem livrou o homem da morte pela violência; a sabedoria, porque deu a mais cabal solução a um problema dificilimo; o poder enfim ou a virtude infinita, pois nada há de maior ao fato de Deus ter-se feito homem. Logo, foi conveniente Deus ter-se encarnado.
II. - A cada coisa é conveniente o que lhe cabe segundo à essência da sua própria natureza; assim, convém ao homem raciocinar por ser de natureza racional. Ora, a natureza mesma de Deus é a bondade, como está claro em Dionísio. Por onde, tudo o que pertence essencialmente ao bem convém a Deus. Ora pertence essencialmente ao bem o comunicar-se aos outros, como está claro em Dionísio. Por onde, pertence à essência do sumo bem comunicar-se de maneira suma à criatura. O que sobretudo se realiza por ter-se a si mesmo unido a natureza criada, de modo a fazer uma só pessoa dos três, o Verbo, a alma e a carne, como diz Agostinho. Por onde, é manifesto que foi conveniente que Deus se tivesse encarnado.
III. - Ser unida a Deus, na unidade de pessoa, não era conveniente à carne humana, pela condição da sua natureza, porque isso lhe sobrepujava a dignidade dela. Mas, foi conveniente a Deus, pela infinita excelência da sua bondade uní-la a si, para a salvação humana.
Diz Agostinho: "Deus é grande, não como uma mole, mas, pela sua virtude. Por isso, a grandeza da sua virtude não se comprimiu com a exiguidade local. Não é, portanto, incrível ao passo que o verbo transitório do homem, seja total e simultaneamente ouvido por muitos e por cada um, que o Verbo Deus, permanente, esteja total e simultaneamente em toda parte. Por onde, nenhum inconveniente resulta para eus encarnado."
IIIa., q. 1, a. 1
“Porque Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu filho Unigênito, para que todo o que crê nele, não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16)
A causa de todos nosso bens é o Senhor e o amor divino. Amar, propriamente, é querer o bem a alguém. Portanto, por ser a vontade de Deus causa das coisas, e porque Ele nos ama, sobrevem-nos o bem.
O amor de Deus é causa do bem da natureza. Também o é do bem da graça: “Eu amei-te com amor eterno; por isso te atrai” (Jr 31), isto é, pela graça.
Mas, que seja também o que dá o bem da graça, resulta de grande caridade. Demonstra-se aqui ser máxima esta caridade de Deus, por quatro motivos:
- Pela pessoa que ama, pois é Deus quem ama e o faz imensamente. Por isso diz: Porque Deus amou.
- Pela condição de quem é amado, pois é ao homem que se ama, mundano, carnal, isto é, vivendo em pecado. “sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu filho” (Rom 5, 10). Por isso diz: mundo.
- Pela grandeza do dom, pois o amor prova-se pelo que se dá. Como diz Gregório, a prova do amor é a revelação da obra. Ora, de Deus recebemos o maior dos dons, pois deu seu filho Unigênito.
Seu filho, isto é, natural, consubstancial a si, não adotivo. Unigênito, para demonstrar que Deus não dirigiu seu divino amor a múltiplos filhos, mas dirigiu-o todo ao Filho que nos deu como prova de seu imenso amor.
- Pela grandeza do fruto, pois por ele temos a vida eterna. Por isso diz: Para que todo o que crê nele, não pereça, mas tenha a vida eterna, que conquistou para nós morrendo na cruz.
Diz-se de alguém que pereceu porque foi impedido de alcançar o fim ao qual estava ordenado. O homem está ordenado a vida eterna e, quando peca, desvia-se deste mesmo fim. Enquanto vive, não perece de todo, pois pode restaurar; quando morre em pecado, então perece de todo.
Com estas palavras, “tenha a vida eterna”, verifica-se a imensidão do amor divino; pois, ao dar a vida eterna, da-se a si mesmo. Ora, a vida eterna nada mais é do que o gozo de Deus. Dar-se a si mesmo é indício de grande amor.
(In Joan. 3)