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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 7 ─ Se o fogo do purgatório livra do reato da pena.

O sétimo discute-se assim. ─ Parece que o fogo do purgatório não livra do reato da pena.

1. ─ Pois, toda purificação supõe uma impureza. Ora, a pena não implica nenhuma impureza. Logo, o fogo do purgatório não livra da pena.

2. Demais. ─ Um contrário não se purifica senão pelo seu contrário. Ora, pena não contria à pena. Logo, pela pena do purgatório não se purifica nenhum reato penal.

3. Demais. ─ Aquilo do Apóstolo ─ O tal será salvo, se bem, etc. ─ diz a Glosa: O fogo salvífico é a tentação da tribulação, da qual está escrito ─ o forno prova os vasos do oleiro, etc. Logo, expiamos todas as penas pelas deste mundo, ao menos pela morte, que é a maior de todas, e não pelo fogo do purgatório.

Mas, em contrário, a pena do purgatório é mais grave que qualquer pena deste mundo, como se disse. Ora, pela pena satisfatória, que sofrermos neste mundo, ficamos livres do débito penal. Logo, com muito maior razão, pelas penas do purgatório.

SOLUÇÃO. ─ Quem tem uma dívida só dela fica liberado pagando-a. E como o reato não é senão um débito penal, quem sofre a pena devida fica absolvido do reato. Assim a pena do purgatório purifica do reato.

DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O reato, embora em si mesmo não implique nenhuma impureza, contudo supre, na sua causa, alguma impureza.

RESPOSTA A SEGUNDA. ─ Embora uma pena não contrarie a outra, contudo contraria o reato penal; pois, é por não termos expiado a pena devida que ficamos obrigados a ela.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ As mesmas palavras da Sagrada Escritura são susceptíveis de muitos sentidos. Assim, esse fogo pode entender-se como sendo a tribulação presente e a pena subsequente. E por ambas podem ser delidos os pecados veniais. Mas já dissemos que a morte natural não basta para isso.

Art. 6 ─ Se a pena do purgatório expia a culpa do pecado venial.

O sexto discute-se assim. ─ Parece que a pena do purgatório não expia a culpa do pecado venial.

1. ─ Pois, àquilo de João ─ É o seu pecado para morte, etc., diz a Glosa: O pecado não delido nesta vida em vão se lhe pede perdão na outra. Logo, nenhum pecado tem a sua culpa perdoada depois desta vida.

2. Demais. ─ Quem pode cair no pecado é que também pode ser livrado dele. Ora, a alma depois da morte não pode pecar venialmente. Logo, nem ser absolvida do pecado do venial.

3. Demais. ─ Gregório diz, que cada alma se apresentará ao juízo, no estado em que se separou do corpo; porque, como diz a Escritura, a árvore, em qualquer lugar onde cair, aí ficará. Portanto, quem sair desta vida, em estado de pecado venial, no mesmo estado se encontrará quando comparecer ao juízo. Logo, no purgatório ninguém expia a culpa venial.

4. Demais. ─ Como se disse, a culpa atual não se apaga senão pela contrição. Ora, depois desta vida não haverá contrição, que é um ato meritório; porque então não haverá mérito nem demérito, pois, segundo Damasceno, é para os homens a morte o que foi para os anjos a queda. Logo, depois desta vida não será perdoada no purgatório a culpa do pecado venial.

5. Demais. ─ O pecado venial tem a sua raiz na concupiscência. Por isso, no seu primeiro estado, Adão não podia pecar venialmente, como se disse. Ora, depois desta vida, não haverá na alma separada, que sofre no purgatório, nenhuma sensualidade, já desaparecida a concupiscência; pois, esta é chamada a lei da carne. Logo, não haverá no purgatório culpa venial. E portanto não poderá ser expiada pelo fogo do purgatório.

Mas, em contrário, diz Gregório e Agostinho, que certas culpas leves são perdoadas na vida futura. Mas não se pode entender que o sejam quanto à pena; porque então todas as culpas, por graves que fossem quanto ao reato da pena, seriam expiadas pelo fogo do purgatório. Logo, a culpa dos pecados veniais é expiada pelo fogo do purgatório.

2. Demais. ─ Pelas expressões do Apóstolo ─ madeira, feno e palha ─ entendem-se os pecados veniais, como se disse. Ora, a madeira, o feno e a palha consomem-se no purgatório. Logo, também as culpas veniais serão perdoadas depois desta vida

SOLUÇÃO. ─ Certos disseram que depois desta vida não é perdoada a culpa de nenhum pecado. E quem morrer em culpa mortal será condenado, por não ser susceptível de nenhum perdão. Ora, não pode ninguém morrer só com pecado venial, sem mortal, porque a graça final purifica da culpa venial. Pois, o pecado venial resulta de amarmos demasiado os bens temporais, sem nem por isso nos separarmo-nos de Cristo. E esse amor excessivo tem a sua raiz na concupiscência. Por onde, quem estiver de todo isento da corrupção da concupiscência, como a S. S. Virgem, nenhum lugar pode dar ao pecado venial. E portanto, como a morte se extingue e desaparece totalmente essa concupiscência, as potências da alma ficam totalmente sob a ação da graça e isentas do pecado venial.

Mas esta opinião é frívola tanto em si como na sua causa. ─ Em si, porque contraria à doutrina dos santos Padres e dos Evangelistas, que não pode entender-se da remissão da pena dos pecados veniais, como diz o Mestre. Porque, do contrário, tanto os pecados leves como os graves seriam perdoados na vida futura. Ora, diz Gregório que só as culpas leves podem ser perdoadas depois de esta vida. Nem basta dizerem que se os santos Padres se referem especialmente às culpas leves, é para prevenir a opinião que o pecado venial não seria passível na outra vida de nenhuma pena grave; pois, a remissão da pena antes destrói a gravidade das penas do que a determina.

Na sua causa é frívola a referida opinião, porque o abatimento do corpo, nos últimos instantes da vida, não expele a corrupção da concupiscência nem a diminuem na sua raiz senão só quanto ao seu ato; como o demonstram os gravemente enfermos. Nem acalma as potências da alma, sujeitando-as à ação da graça; porque a tranquilidade das potências e a sujeição delas à graça consiste em as potências inferiores obedecerem às superiores que se deleitam na lei de Deus. O que não pode dar-se no estado supra-referido, quando ficam impedidos os atos de todas essas potências. Salvo se se considerar como tranquilidade a ausência da luta, conforme se dá com os adormecidos; mas nem por isso dizemos que o sono diminui a concupiscência, nem que acalma as potências da alma ou as sujeita à ação da graça.

Além disso, dado que esse abatimento diminuísse a concupiscência na sua raiz e sujeitasse as potências da alma à ação da graça, ainda isso não bastaria à purificação da culpa venial já cometida, embora bastasse a evitar os pecados futuros. Porque a, culpa atual, mesmo venial, não fica perdoada sem a cooperação atual da contrição, como se disse, por maior intensidade habitual que tenha essa contrição. Assim, pode um morrer durante o sono, estando em graça, apesar de adormecido com pecado venial; e esse tal não poderia fazer um ato de contrição pelo pecado venial, antes de morto.
 
Nem colhe afirmar, como afirmam, que se esse tal não se arrependeu, atual ou intencionalmente, em geral ou em especial, caiu em pecado mortal, porque a complacência no pecado venial o transforma em mortal. Pois, não é qualquer complacência no pecado venial que o transforma em mortal ─ aliás todo pecado venial seria mortal, porque em todos, como voluntários que são, pomos complacência; mas uma complacência tal que tem em vista o prazer, no qual consiste toda a perversidade humana, quando fruimos do que só deveríamos usar. E assim, a complacência constitutiva do pecado mortal é a atual, porque todo pecado mortal consiste num ato. Ora, pode acontecer que uma pessoa, depois de ter cometido um pecado venial, não pense mais nele, se deve ser perdoado ou não: mas pense, talvez, que um triângulo tem os três ângulos iguais a dois retos e nesse pensamento adormeça e morra. Por onde se vê que a referida opinião é de todo irracional.

Por isso, devemos pensar com outros, que a culpa venial, de quem morre em graça, é perdoada depois desta vida pelo fogo do purgatório; porque essa pena, de certo modo voluntária, por virtude da graça terá a força de expiar totalmente a culpa, que puder coexistir com a graça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A Glosa se refere ao pecado mortal. ─ Ou podemos responder que, embora o pecado não seja apagado nesta vida, em si mesmo, sê-lo-á contudo no seu mérito, por ter o pecador merecido nesta vida que a pena do purgatório lhe seja meritória.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O pecado venial procede da corrupção da concupiscência, que não existirá na alma separada padecente no purgatório; que portanto não poderá pecar venialmente. Mas a remissão da culpa venial resulta da vontade informada pela graça, e esta a terá a alma separada, no purgatório. Logo, não colhe o símil.

RESPOSTA À TERCEIRA. - Os pecados veniais não mudam o estado do homem, porque nem eliminam nem diminuem a caridade, pela qual se mede a bondade que a graça confere à alma. Por onde, perdoados ou sentidos os pecados veniais praticados, a alma permanece tal como era antes.

RESPOSTA À QUARTA. ─ Depois de esta vida não pode haver mérito em relação ao prêmio essencial. Mas o pode em relação a um prêmio acidental, enquanto o homem de certo modo ainda continua viandante. Por onde, no purgatório pode haver ato meritório quanto à remissão da culpa venial.

RESPOSTA À QUINTA. ─ Embora o pecado venial resulte da inclinação da concupiscência, contudo a culpa procede da intenção. Por isso, mesmo desaparecida a concupiscência, ainda pode subsistir a culpa.

Art. 5 ─ Se as almas do purgatório são punidas pelos demônios.

O quinto discute-se assim. ─ Parece que as almas do purgatório são punidas pelos demônios.

1. ─ Pois, como diz o Mestre mais abaixo, os pecadores terão como algozes os que tiveram como tentadores. Ora, os demônios provocam à culpa, não só mortal, mas também venial quando não podem obter a primeira. Logo, também no purgatório atormentarão as almas, pelos pecados veniais que elas cometeram.

2. Demais. ─ Os justos são purificados de seus pecados tanto nesta vida como na outra. Ora, nesta purificam-se pelas penas que lhes infligem os demônios, como se deu com Job. Logo, também depois desta vida terão como castigo serem purificadas pelos demônios.

Mas, em contrário. ─ É injusto seja submetido ao inimigo quem dele triunfou. Ora, os do purgatório triunfaram dos demônios, tendo morrido sem pecado mortal. Logo, não devem ficar sujeitos à punição deles.

SOLUÇÃO. ─ Assim como depois do dia de juízo a justiça divina acenderá o fogo com que os condenados serão perpetuamente punidos, assim também agora só pela justiça divina é que os eleitos serão purificados, depois desta vida; não pelo ministério dos demônios, de que ficaram vencedores; nem pelo dos anjos, que não atormentariam tão veementemente os seus concidadãos. É porém possível que os conduzam ao lugar das penas. E que também os demônios, que se comprazem nas penas dos homens, os acompanhem e lhes assistam a purificação ─ quer para se saciarem com os sofrimentos deles, quer para colherem o que lhes ainda pertencia quando a alma dos eleitos se separou do corpo.

Nesta vida porém, que é o teatro da luta, os homens são punidos, tanto pelos maus anjos, como inimigos ─ tal o caso de Job; como pelos bons, como no caso de Jacob, cujo nervo da coxa logo secou, tocado pelo anjo. E também Dionísio diz expressamente, que os bons anjos algumas vezes punem os homens.

Donde se deduzem as respostas às objeções.

Art. 4 ─ Se as penas do purgatório são voluntárias.

O quarto discute-se assim. ─ Parece que as penas do purgatório são voluntárias.

1. ─ Pois, os do purgatório tem o coração reto. Ora, a retidão do coração consiste em conformarmos a nossa vontade com a de Deus, como diz Agostinho. Logo, querendo Deus puni-las, é voluntariamente que lhe sofrem a pena.

2. Demais. ─ Todo homem sensato, querendo um fim, quer os meios para chegar a ele. Ora, os do purgatório sabem que não podem chegar à glória, antes de sofrerem a pena. Logo, a querem.

Mas, em contrário. ─ Ninguém é liberado de uma pena que sofre voluntariamente. Ora, os do purgatório pedem para se livrar dele, como se conclui de muitas narrativas de Gregório. Logo, não suportam essa pena voluntariamente.

SOLUÇÃO. ─ De dois modos podemos dizer que um ato é voluntário.

De um modo, por vontade absoluta. E então nenhuma pena é voluntária, pois, por natureza a pena é contrária à vontade.

De outro modo, por vontade condicionada; assim sofremos voluntariamente uma queimadura para alcançarmos a saúde. E então, certas penas podem ser voluntárias. ─ Primeiro, porque por ela adquirimos um bem. E assim, a própria vontade assume uma determinada pena, como no caso da satisfação. Ou também quando aceitamos de bom grado uma pena e não quereríamos que ela não se cumprisse; tal o caso do martírio. ─ De outro modo, porque, embora da pena nenhum bem nos resulte, contudo sem ela não podemos alcançar o bem; assim, no caso da morte natural. E então a vontade não assume a pena e quereria livrar-se dela; mas pela suportar, considera-se voluntária. E neste sentido, voluntária é a pena do purgatório.

Certos porém dizem que de nenhum modo é voluntária a pena do purgatório, porque os que lá estão ficam absorvidos por ela, a ponto de não saberem que são purificados e se julgarem condenados. ─ Mas isto é falso, porque se não soubessem que hão de ser libertados, não pediriam, como frequentemente fazem, os sufrágios.

Donde se concluem as respostas às objeções.

Art. 3 ─ Se a pena do purgatório excede todas as penas temporais desta vida.

O terceiro discute-se assim. ─ Parece que a pena do purgatório não excede todas as penas temporais desta vida.

1. - Pois, quanto mais passivo é um ser, tanto mais profundamente pode sofrer, dado que sinta o sofrimento. Ora, o corpo é mais passivo que a alma separada, quer por ser de natureza contrária à do agente ígneo, quer por ter uma matéria capaz de receber a ação do agente ─ o que não se pode dizer da alma. Logo, maior é a pena que o corpo sofre neste mundo, que a purificadora da alma na outra vida.

2. Demais. ─ A pena do purgatório é diretamente ordenada a purificar dos pecados veniais. Ora, aos pecados veniais, sendo os levíssimos dos pecados, é devida uma pena levíssima, se o número dos golpes há de regular-se pela qualidade do pecado. Logo, a pena do purgatório é levíssima.

3. Demais. ─ O reato, sendo um efeito da culpa, não se agrava senão com o agravamento da culpa. Ora, aquele a quem a culpa já foi perdoada, não na pode ter agravada, Logo, aquele a quem foi perdoado um pecado mortal, pelo qual não satisfez plenamente, o reato não lhe aumenta com a morte. Ora, nesta vida, a sua culpabilidade não merecia a mais grave das penas. Logo, a pena que sofrerá depois desta vida, não será mais grave que qualquer uma das dela.

Mas, em contrário, diz Agostinho: O fogo do purgatório será mais doloroso que qualquer pena que possamos sentir, ver ou imaginar neste mundo.

2. Demais. ─ Quanto mais universal é uma pena tanto maior será. Ora, a alma humana, sendo simples, será punida na sua totalidade. Mas o mesmo não se dá com o corpo. Logo, a pena sofrida pela alma separada será mais intensa que toda pena de que o corpo seja susceptível.

SOLUÇÃO. ─ Duas espécies de pena haverá no purgatório: a do dano, que retarda a visão divina; e a do sentido, que pune pelo fogo material. E tanto uma como outra, embora mínima, excede as penas máximas desta vida. ─ Pois, quanto mais desejamos uma cansa tanto mais sofremos com a sua privação. Ora, o desejo com que buscamos o sumo bem, depois desta vida, às almas santas é o intensíssimo de todos, porque não sofrem nenhum obstáculo por parte de um corpo material e também por já ter chegado o momento de fruir do sumo bem, se nada o impedir. Por isso, a dor resultante da privação desse bem é máxima. ─ Além disso e semelhantemente, não consistindo a dor numa lesão, mas na consciência apenas desta, tanto mais um ser sofre a ação de uma causa lesiva, quanto maior for a sua sensibilidade. Por isso, as lesões que nos atingem as partes mais sensíveis são as que causam as dores mais agudas. Ora, como toda a sensibilidade do corpo tem na alma a sua origem, necessariamente o agente lesivo da alma há de por força fazê-la sofrer soberanamente. E supomos, em nossa argumentação, que a alma pode ser cruciada pelo fogo material, como o diremos a seguir. Donde concluímos que necessariamente as penas do purgatório ─ a do dano e a dos sentidos, excedem todas as desta vida. Algumas porém buscam a razão disto no fato de ser a alma punida na sua totalidade, mas não o corpo. ─ Mas não é exato, porque então as penas dos condenados seriam mais brandas depois, que antes da ressurreição. O que é falso.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Embora a alma seja menos passiva que o corpo, contudo sente mais profundamente o sofrimento. Ora, onde se sente mais o sofrimento há maior dor, mesmo se é ele menor.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A acerbidade dessa pena não provém tanto da gravidade do pecado, quanto das disposições do punido; porque o mesmo pecado é punido mais duramente na outra vida, que nesta. Assim como quem é de melhor compleição sofre mais os mesmos sofrimentos que padecem outros; e contudo o juiz, aplicando a todos os mesmos castigos pelas mesmas culpas, procede com justiça. Donde se colhe a resposta à terceira objeção.

Art. 2 ─ Se é o mesmo o lugar onde as almas são purificadas e os condenados punidos.

O segundo discute-se assim. ─ Parece não ser o mesmo o lugar onde as almas são purificadas e os condenados punidos.

1. ─ Pois, a pena dos condenados é eterna, como diz o Evangelho: Estes irão para o fogo eterno. Ora, o fogo do purgatório é temporal, como diz o Mestre. Logo, não podem ser simultaneamente punidos os do inferno e os do purgatório pelo mesmo fogo. E assim, hão de por força ser distintos esses lugares.

2. Demais. ─ A pena do inferno dá a Escritura vários nomes: fogo, enxofre, ventos de tempestade etc. Ora, a pena do purgatório só é designada com o nome de fogo. Logo, os condenados não são punidos no inferno e no purgatório pelo mesmo fogo.

3. Demais. - Hugo Vitorino diz: É provável que os condenados são punidos nos lugares onde cometeram a culpa. E também Gregório narra que Germano, bispo de Cápua, encontrou Pascácio num balneário, onde se purificava. Logo, a pena purgatória não é no inferno, mas neste mundo.

Mas, em contrário, diz Gregório: Assim como o mesmo fogo que torna o ouro rutilante transforma em fumos a palha, assim, o mesmo fogo queima o pecador e purifica o eleito. Logo, o mesmo fogo é o do purgatório e o do inferno. Portanto, os condenados àquele e a este estão no mesmo lugar.

2. Demais. ─ Os Santos Patriarcas, antes do advento de Cristo, estavam num lugar mais nobre que aquele onde se purificam as almas depois da morte; porque não sofriam lá nenhuma pena sensível. Ora, esse lugar estava contíguo ao inferno, ou era o mesmo que o inferno; aliás Cristo, quando desceu ao limbo, não teria dito a Escritura que desceu aos infernos. Logo, o purgatório ocupa o mesmo lugar que o inferno, ou é contíguo a este.

SOLUÇÃO. ─ Do lugar do purgatório nada se encontra expressamente dito na Escritura, nem se podem aduzir razões eficazes que o determinem. Contudo provavelmente, segundo o mais concorde com o ensino dos santos Padres e a revelação feita a muitos, o purgatório ocupa um duplo lugar. Um, consentâneo à lei comum: é o lugar inferior, contíguo ao inferno; e então o mesmo fogo crucia os condenados ao inferno e purifica os justos ao purgatório; embora os condenados, enquanto inferiores pelo mérito também devem ocupar um lugar inferior. ─ Outro lugar do purgatório é o que lhe é destinado por dispensa. E assim sabemos, de certas almas, que cumpriram as suas penas em lugares diversos, quer para instrução dos vivos, quer para socorro dos mortos, a fim de que os vivos, conhecendo-lhes as penas, as mitigassem pelos sufrágios da Igreja.

Mas outros dizem que, segundo a lei comum, o lugar do purgatório é onde o homem peca. ─ O que não parece provável, porque uma alma pode ser punida simultaneamente por pecados que cometeu em lugares diversos.

Outros, ainda, ensinam que, segundo a lei comum, elas são punidas numa região superior à terra, por estarem colocadas num estado médio, entre nós e Deus. ─ Mas isto não é exato. Porque não são punidas pelo que as eleva acima de nós, mas pelo que têm de ínfimo, i. é, o pecado.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O fogo do purgatório é eterno na sua substância, mas temporal no seu efeito purificador.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A pena do inferno tem por fim atormentar as almas; e por isso a designamos com todos aqueles vocábulos nominativos de cousas que nesta vida nos atormentam. Mas o fim principal das penas do purgatório é purificar dos restos do pecado. Por isso, a pena única que a ele se atribui é a do fogo, que tem a propriedade de purificar e consumir.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ A objeção colhe-se se trata, não do lugar determinado pela lei comum ao purgatório, mas do que a justiça divina destina a tal ou tal alma em particular.

Art. 1 ─ Se há purgatório depois desta vida.

O primeiro discute-se assim. ─ Parece que não há purgatório depois desta vida.

1. - Pois, diz a Escritura: Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor. De hoje em diante, diz o Espírito, que descansem dos seus trabalhos. Logo, os que morrem no Senhor não devem sofrer no purgatório, depois desta vida. Nem os que no Senhor não morreram, porque esses não são susceptíveis de purificação. Logo, depois desta vida não há nenhum purgatório.
 
2. Demais. ─ Assim está a caridade para o prêmio eterno como o pecado mortal para o suplício eterno. Ora, os que morrem em pecado mortal entram logo a sofrer o suplício eterno. Logo, também os que morrem na caridade recebem imediatamente o eterno prêmio. Portanto, não devem passar por nenhum purgatório depois desta vida.

3. Demais. ─ Deus, misericórdia suma, é mais inclinado a premiar o bem que a punir o mal. Ora, assim como os que vivem na caridade podem praticar certos atos maus, não merecedores do suplício eterno, assim os que estão em pecado mortal podem praticar certas ações genericamente boas, não dignas do prêmio eterno. Logo, assim como os condenados não recebem depois desta vida nenhum prêmio pelas boas ações referidas, também as más ações, a que aludimos não devem ser punidas depois desta vida. Donde a mesma conclusão que antes.

Mas, em contrário. ─ A Escritura diz: É um santo e saudável pensamento orar pelos mortos, para que sejam livres dos seus pecados. Ora, não devemos orar pelos santos do paraíso, pois em nada precisam das nossas orações. Nem pelos condenados do inferno, que não podem receber perdão dos pecados. Logo, depois desta vida há certos ainda não perdoados de seus pecados e que podem sê-lo. E esses tem a caridade, sem a qual não há remissão de pecados; porque a caridade cobre todos os delitos. Portanto, tais almas não sofrerão a morte eterna, porque, como diz o Senhor, todo o que vive e crê em mim não morrerá eternamente. Mas também não entrarão na glória senão depois de purificados, porque nada de impuro nela entrará como diz a Escritura. Logo, há um purgatório desta vida.

2. Demais. ─ Gregório Nisseno diz: Quem vive na amizade de Jesus Cristo e não pode inteiramente purificar-se do pecado nesta vida, depois da morte purgá-lo-á nas chamas do purgatório. Logo, depois desta vida, há um purgatório.

SOLUÇÃO. ─ Do que já dissemos podemos com segurança concluir a existência de um purgatório, depois desta vida. Pois, se atendermos a que o reato da pena não desaparece totalmente depois de perdoada a culpa pela contrição; que nem sempre são delidos os pecados veniais com o perdão dos mortais; e que além disso, a justiça exige que o pecado seja expiado pela pena devida, havemos necessariamente de concluir que há de ser punido depois desta vida quem morre sem dar a satisfação devida, mesmo depois da contrição dos pecados e da competente absolvição. Portanto, Os que negam o purgatório colidem com a justiça divina e professam uma opinião errônea e alheia à fé: Por isso Gregório Nisseno, depois das palavras supra-citadas acrescenta: Eis o que cremos e pregamos para salvar o dogma da verdade; e assim o ensina a Igreja universal, quando reza para os defuntos ficarem livres dos seus pecados. O que não é possível entender-se senão dos que sofrem no purgatório. Ora, quem se opõe à autoridade da Igreja incorre em heresia.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A autoridade citada se refere às obras que produzem o mérito e não aos sofrimentos que purificam a alma.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O mal não tem uma causalidade perfeita, mas resulta de deficiências particulares; ao passo que o bem procede de uma causa perfeita, como diz Dionísio. Por isso qualquer defeito impede a perfeição do bem; mas qualquer bem não impede a consumação de um mal, porque nunca é o mal desacompanhado de algum bem. Por onde, o pecado venial impede a alma, que tem a caridade, de alcançar o bem perfeito da vida eterna, antes de ser purificada. Enquanto que o pecado mortal não pode impedir, esteja acompanhado do bem que estiver, a alma de sofrer imediatamente depois de separada, o sumo mal.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Quem cai num pecado mortal dá a morte a todas as boas obras antes praticadas, e, mortas são todas as que praticar em estado de pecado mortal; porque, tendo ofendido a Deus, merece perder todos os bens que de Deus recebeu. Portanto, quem morreu em pecado mortal não receberá nenhum prêmio depois desta vida; ao passo que quem morreu na caridade, receberá depois desta vida um prêmio, que nem sempre delirá todo mal existente na alma, mas só o que lhe for contrário.

Art. 2 ─ Se a alma das crianças não batizadas sofrerá uma pena espiritual.

O segundo discute-se assim. ─ Parece que a alma das crianças não batizadas sofrerá uma pena espiritual.

1. ─ Pois, como diz Crisóstomo, para os danados será mais grave a pena de serem privados da visão de Deus que a de serem queimados pelo fogo do inferno. Ora, as crianças ficarão privadas da visão divina. Logo, sofrerão com isso uma pena espiritual.

2. Demais. ─ Ficarmos privados do que queremos ter não pode ser sem algum sofrimento. Ora, as crianças quererão gozar da visão de Deus, do contrário teriam uma vontade atualmente perversa, Logo, não gozando dela, hão de sofrer.

3. Demais. ─ Se se disser que nada sofrerão por saberem que dela não foram privados por culpa própria, objeta-se em contrário. ─ A imunidade da culpa, longe de diminuir, aumenta a dor da pena; pois, não é por ser deserdado ou mutilado sem culpa, que alguém sofrerá menos. Logo, não será por serem privadas sem culpa de um tão grande bem, que as crianças ficarão isentas de dor.

4. Demais. ─ Assim como as crianças batizadas estão para os méritos de Cristo, assim os não-batizados para o demérito de Adão. Ora, as crianças batizadas alcançam, pelo mérito de Cristo, o prêmio da vida eterna. Logo, também as não batizadas sofrem dor por serem privadas da vida eterna, pelo demérito de Adão.

5. Demais. ─ Não é possível separarmo-nos do bem amado sem sofrermos dor. Ora, as crianças terão um conhecimento natural de Deus e, pela mesma razão, o amarão naturalmente. Logo, ficando perpetuamente separados dele, parece que não poderão sem dor sofrer essa separação.

Mas, em contrário. ─ Se as crianças não-batizadas sofrerem interiormente depois da morte, sê-lo-á por culpa ou por pena. ─ Se da culpa, como dessa não poderão mais purificar-se, essa dor lhes será uma causa de desesperação. Ora, essa dor nos condenados é o verme da consciência. Logo, as crianças sofrerão a pena do verme de consciência. E assim, a pena delas não será a mais fraca de todas, como diz o Mestre. ─ Se porém sofressem uma pena, como essa pena lhes teria sido justamente imposta por Deus, a vontade delas se oporia à justiça divina. E então teria uma deformidade atual. O que é inadmissível. Logo, não sentirão nenhuma dor.

2. Demais. ─ A razão reta não sofre que nos perturbemos pelo que não podemos evitar; e assim, como o demonstra Séneca, o sábio não é susceptível de nenhuma turbação. Ora, nas crianças a razão reta não sofreu nenhum desvio pelo pecado atual. Logo, nenhuma perturbação sofrerão por padecerem uma pena que não puderam evitar.

SOLUÇÃO. ─ Nesta matéria há três opiniões.
 
Uns dizem que as referidas crianças não padecerão nenhuma dor, porque de forma lhes estará obscurecida a razão, que não saberão o bem que perderam. ─ Mas não é provável, que a alma, livre do liame do corpo, não conheça aquilo que a razão tem o poder de investigar e ainda muito mais.
 
Por isso outros dizem, que tem um conhecimento perfeito de tudo o que a razão natural pode investigar, conhecem a Deus, sabem estarem privados da contemplação divina, e por isso de certo modo sofrem. Esse sofrimento porém lhes ficará mitigado, por não terem voluntariamente incorrido na culpa pela qual foram condenadas, ─ Mas esta opinião também não parece provável. Porque a dor não pode ser pequena, causada pela perda de um tão grande bem e sem esperança de recuperá-lo. A pena delas não poderá pois ser brandíssima. ─ Além disso, absolutamente pela mesma razão pela qual não serão punidas pelo agente externo da dor sensível, não sentirão também a dor interna. Porque a dor da pena corresponde ao prazer da culpa. Portanto, não sendo a culpa original acompanhada de nenhum prazer, dela ficará excluída toda dor penal.

Por isso outros opinam que terão conhecimento perfeito de tudo o que pode ser alcançado pela razão natural, saberão que estão privados da vida eterna, conhecerão a causa dessa privação, mas isso tudo não lhes causará nenhuma espécie de sofrimento. Vejamos, porém, como isso é possível.

Devemos saber, que ninguém, de razão reta, se afligirá por ficar privado do que lhe excede a capacidade, senão só se o for daquilo a que tem direito. Assim, nenhum homem sensato sofrerá por não poder voar como a ave; nem por não ser rei ou imperador, se a isso não tem direito. Sofreria porém ficando privado do que de certo modo lhe corresponde à capacidade. Ora, afirmo que todo homem dotado de livre arbítrio é capaz de alcançar a vida eterna; pois pode preparar-se para a graça, que o fará merecer. Portanto, perdendo-a, sofrerá a máxima das dores, por ter perdido um bem que poderia ter alcançado. Ora, as crianças não foram nunca de porte a poderem chegar à vida eterna. Pois, esta, excedente à toda capacidade natural, não lhes é devida em virtude do princípio da natureza; nem podem praticar qualquer ato capaz de as fazer alcançar tão grande bem. Por onde, nenhum sofrimento padecerão, por ficarem privadas da visão divina; ao contrário, terão grande gozo por participarem largamente da bondade divina e das suas perfeições naturais.

Nem se pode dizer que fossem proporcionadas à consecução da vida eterna, se não por atos próprios, ao menos mediante atos de outros, que as teriam podido batizar. Assim, muitas crianças nas mesmas condições foram batizadas e ganharam a vida eterna. Pois tal explicação não colhe, porque só por uma graça mui especial poderíamos ser premiados por atos que não praticamos. Por onde, a privação dessa graça não causa às crianças mortas sem batismo maior pena que as que houvesse de sofrer um homem sensato por não ter recebido as mesmas graças conferidas aos seus semelhantes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Os condenados por uma culpa atual, tendo tido o uso do livre arbítrio, tinham também a capacidade de alcançar a vida eterna; mas tal não se dá com as crianças, como dissemos. Logo, não há símil em ambos os casos.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora a vontade possa querer tanto o possível como o impossível, conforme o ensina Aristóteles, contudo uma vontade ordenada e completa não pode querer senão aquilo do que o sujeito é de certo modo ordenado. E quem não puder satisfazer à sua vontade nessas condições, com isso sofrerá; mas não sofrerá não conseguindo o que não lhe era possível obter. E a isto se chamaria antes veleidade que vontade; pois, tal objeto ninguém o quereria absolutamente falando, mas só se fosse possível.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Todos temos a possibilidade de conseguir um patrimônio e de conservar a integridade do nosso corpo. Nada há pois de admirar se sofrermos, perdendo-os, por culpa quer nossa, quer alheia. Por onde é claro que a objeção, fundada em tal símile, não colhe.

RESPOSTA À QUARTA. ─ O dom de Cristo excede ao pecado de Adão, como diz o Apóstolo. Por isso, não é forçoso haja entre uma criança não-batizada, e o mal que sofre, a mesma correlação existente entre a batizada e o bem que frui.

RESPOSTA À QUINTA. ─ Embora as crianças não-batizadas fiquem privadas da união com Deus pela glória, contudo dele não ficam totalmente separadas. Ao contrário, com ele ficam unidas pela participação dos bens naturais. E assim de Deus poderão gozar pelo conhecimento e amor naturais.

Art. 1 ─ Se ao pecado original, em si mesmo considerado, é devida uma pena sensível.

O primeiro discute-se assim. ─ Parece que ao pecado original, em si mesmo considerado, é devida uma pena sensível.

1. ─ Pois, diz Agostinho: Tem firmissimamente e de nenhum modo duvides, que as crianças saídas deste mundo, sem o sacramento do batismo, serão punidas do suplício eterno. Ora, suplício significa uma pena sensível. Logo, as crianças, punidas só pelo pecado original, sofrerão uma pena sensível.

2. Demais. ─ À maior culpa é devida maior pena. Ora, o pecado original é mais grave pecado que o venial, por implicar uma aversão maior, privando da graça; ao passo que o venial pode coexistir com ela. Além disso, o pecado original é punido com pena eterna, ao passo que o venial com pena temporal. Logo, se ao pecado venial é devida a pena do fogo, com muito maior razão, ao original.

3. Demais. ─ Os pecados são mais gravemente punidos depois desta vida, que durante ela, enquanto ainda há lugar para a misericórdia. Ora, nesta vida, o pecado original é punido com uma pena sensível; assim, as crianças, só manchadas do pecado original, sofrem, e não injustamente, muitas penas sensíveis. Logo, também depois de esta vida lhe é devida uma pena sensível.

4. Demais. ─ Assim como o pecado atual implica a aversão e a conversão, assim no pecado original há algo de correspondente à aversão, a saber, a privação da justiça original, e algo de correspondente à conversão, i. é, a concupiscência. Ora, ao pecado atual, em virtude da conversão, é devida a pena do fogo. Logo, também ao original, em razão da concupiscência.

5. Demais. ─ Os corpos das crianças serão, depois da ressurreição, passíveis ou impassíveis. ─ Se impassíveis, como nenhum corpo humano pode ser impassível, senão pelo dom da impassibilidade ─ como se dá com os bem─aventurados; ou em razão da justiça original ─ como no estado de inocência; daí resulta que os corpos das crianças ou terão o dote da impassibilidade e então serão gloriosos e não haverá diferença entre as batizadas e as não-batizadas ─ o que é herético; ou terão a justiça original, e isentos, portanto, do pecado original, por este não serão punidos ─ o que semelhantemente é herético. ─ Se porém forem passíveis, como todo ser passível sofre necessariamente a ação do agente presente, daí resulta que, presentes corpos sensíveis ativos, sofrerão uma pena sensível.

Mas, em contrário. ─ Agostinho diz, que a pena das crianças, só manchadas do pecado original, é a brandíssima de todas. O que não se daria se fossem atormentadas por uma pena sensível.

2. Demais. ─ A acerbidade da pena sensível corresponde ao prazer da culpa, conforme aquilo da Escritura: Quanto se tem glorificado e tem vivido em deleites tanto lhe dai de tormento e de pranto. Ora, o pecado original não implica nenhum prazer e nenhum ato; pois, todo prazer resulta de uma atividade, como ensina Aristóteles. Logo, ao pecado original não é devida nenhuma pena sensível.

SOLUÇÃO. ─ A pena deve ser proporcionada à culpa, conforme a Escritura: Quando ela for rejeitada, tu a julgarás contrapondo uma medida a outra medida. Ora, o detrimento causado pela culpa original, sendo de natureza culposa, não resulta da subtração nem da corrupção de nenhum bem consequente aos princípios mesmos da natureza humana, mas da subtração ou da corrupção de um bem acrescentado a essa natureza. Nem essa é culpa de cada homem em particular, senão enquanto tem cada qual uma natureza que ficou destituída de um bem que lhe era natural ter e possível conservar. Por isso, nenhuma outra pena lhe é devida, senão a privação do fim a que se ordenava o bem de que ficou privado e que a natureza humana por si mesma não pode alcançar. Ora, tal é a visão divina. Por onde, a privação dessa visão é a própria e só pena do pecado original, depois da morte. Se, pois, fosse infligida ao pecado original uma outra pena sensível, depois da morte, não seria este punido, pelo que encerra de culpa; porque a pena sensível é uma pena pessoal, que se cumpre pela dor que impõe. Por onde, assim como a culpa não resultou de um ato pessoal particular, não será também no sofrimento pessoal particular que deverá consistir a expiação da pena; mas só na privação do bem para alcançar, o qual a natureza não é por si mesma capaz. Quanto às outras perfeições e bondades resultantes dos seus princípios naturais, os condenados nenhum detrimento sofrerão por causa do pecado original.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Na autoridade citada, a palavra suplício não designa uma pena sensível, mas só a pena do dano, que é a privação da visão divina. Assim como também frequentemente a Escritura costuma denominar fogo a qualquer pena.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Dentre todos os pecados o original é o mínimo, porque tem o mínimo de voluntário. Pois, não é voluntário pela vontade de uma pessoa em particular, mas só por vontade do princípio da natureza. Ao passo que o pecado atual, mesmo venial, é voluntário pela vontade de quem o cometeu. Por isso menor pena é devida ao original que ao venial. ─ Nem obsta que o original seja incompatível com a graça; pois, a privação da graça não tem natureza de culpa, mas de pena, enquanto procede do voluntário. Por onde, onde é menor o voluntário menor é a culpa. ─ Do mesmo modo, não obsta seja devida uma pena temporal ao pecado venial atual. Porque isto é acidental: enquanto quem morre só com o pecado venial tem a graça, em virtude da qual se purificou da pena. Mas se o pecado venial alguém o tivesse sem a graça, sofreria uma pena perpétua.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Não se dá o mesmo com a pena sensível anterior e a posterior à morte. Porque antes da morte a pena sensível resulta da virtude da natureza agente; quer seja a pena sensível interna, como uma febre ou cousa semelhante, ou ainda uma pena sensível externa, como uma queimadura ou qualquer outra. Mas depois da morte nada age em virtude da natureza, mas só conforme a ordem da justiça divina; quer a ação seja sobre a alma separada, sobre a qual sabemos que o fogo não pode naturalmente agir; quer sobre um corpo ressurrecto, porque então toda atividade natural cessará, cessado o movimento do primeiro móvel, causa de todo movimento e alteração corpórea.

RESPOSTA À QUARTA. ─ A dor sensível responde ao prazer sensível da conversão do pecado atual. Ora, a concupiscência habitual, produzida pelo pecado original, não é acompanhada de nenhum prazer. Por isso a dor sensível não lhe corresponde, como pena.
 
RESPOSTA À QUINTA. ─ Os corpos das crianças não serão impassíveis por incapacidade de sofrerem, mas por falta de um agente exteriormente atuante sobre eles. Porque depois da ressurreição nenhum corpo terá ação sobre outro, sobretudo para alterá-lo ou destruí-lo por um efeito natural; não haverá outra ação senão para punir o pecado por ordem da justiça divina. Por isso nenhuma pena sofrerão aqueles corpos, que não merecem da justiça divina nenhuma pena sensível! Quanto ao corpo dos santos, serão impassíveis, porque não terão a capacidade de sofrer nenhuma ação; por isso terão a impassibilidade como um dom, que não terão as crianças.

Art. 5 ─ Se todos os que praticam as obras de misericórdia serão punidos eternamente, ou se só aqueles que descuraram de praticar essas obras.

O quinto discute-se assim. ─ Parece que todos os que praticam as obras de misericórdia não serão punidos eternamente, mas só aqueles que descuraram de praticar essas obras.

1. ─ Pois, diz a Escritura: Porque se fará juízo sem misericórdia aquele que não usou misericórdia. E noutro lugar: Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.

2. Demais. ─ O Evangelho refere uma discussão do Senhor com os réprobos e os eleitos. Ora, essa discussão não versou senão sobre as obras de misericórdia. Logo, só os que tiverem omitido as obras de misericórdia é que serão punidos eternamente. Donde a mesma conclusão anterior.

3. Demais. ─ O Evangelho diz: Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores. E continua: Se vós perdoardes aos homens as ofensas que tendes deles, também vosso Pai celestial vos perdoará os vossos pecados. Logo, parece que os misericordiosos, que perdoam os pecados aos outros, também alcançarão o perdão dos seus pecados. Portanto, não serão punidos eternamente.

4. Demais. ─ Aquilo do Apóstolo ─ A piedade para tudo é útil, diz a Glosa de Ambrósio: A súmula de toda a doutrina cristã é a misericórdia e a piedade; quem a praticar, embora venha a cair nos laços da carne, será sem dúvida punido, mas nem por isso perecerá; mas quem tiver vivido só a vida do corpo, sofrerá penas eternas. Logo, os que praticam as obras de misericórdia, mas vivem escravos dos pecados da carne, não serão punidos eternamente. Donde, a mesma conclusão anterior.

Mas, em contrário, o Apóstolo: Nem os fornicários nem os adúlteros hão de possuir o reino de Deus. Ora, tais são muitos dos que praticam obras de misericórdia. Logo, nem todos os misericordiosos alcançarão o reino dos céus. Portanto, certos deles serão punidos eternamente.

2. Demais. - Diz a Escritura: Qualquer que tiver guardado toda a lei e faltar em um só ponto fez─se réu de ter violado todos. Logo, quem quer que observe a lei, no concernente às obras de misericórdia, e descure as demais obras, incorrerá na transgressão da lei. E assim, será punido eternamente.

SOLUÇÃO. ─ Como diz Agostinho, na obra citada, certos ensinaram que nem todos os que professam a fé católica hão de livrar-se da pena eterna, mas só os que praticam as obras de misericórdia, embora andem enredados em outros pecados. ─ Mas isto é inadmissível. Porque sem a caridade ninguém pode agradar a Deus, nem sem ela nada aproveita à vida eterna. Ora, podem-se praticar as obras de misericórdia sem contudo ter-se caridade. Por onde, os que assim procederem, elas em nada lhes aproveitam para merecerem à vida eterna nem para se livrarem das eternas penas, conforme ao Apóstolo. O absurdo de se admitir o contrário se vê no caso de ladrões que tivessem exercido largamente o roubo e, contudo, feito obras de misericórdia. ─ Donde devemos concluir que todos os mortos em estado de pecado mortal, nem a fé nem as obras de misericórdia os livrarão da pena eterna, seja depois de que espaço de tempo for.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Aqueles conseguirão misericórdia que a praticaram ordenadamente. Ora, não praticam a misericórdia ordenadamente os que, esquecendo-se de a praticar para consigo mesmos, antes, fazem-se a si mesmo mal com as suas obras. Por isso esses tais não conseguirão uma misericórdia que lhes absolverá totalmente os pecados, mas que apenas a que lhes minorará as penas que deveriam sofrer.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A discussão referida não versa sobre as obras de misericórdia só porque o descurar delas seja a causa única de certos serem punidos eternamente. Mas porque aqueles serão liberados da pena eterna, depois do pecado, que, pelas obras de misericórdia, alcançaram o perdão granjeando para si amigos com as riquezas da iniquidade.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Essas palavras o Senhor as dirige aos que pedem o perdão das suas dividas; mas não aos que perseveram no pecado. Por onde, só os penitentes, pelas obras de misericórdia, alcançarão um perdão plenamente liberatório.

RESPOSTA À QUARTA. ─ A Glosa de Ambrósio se refere ao lapso no pecado venial da carne, do qual o pecador será absolvido, pelas obras de misericórdia, depois das penas purificadoras, a que chama expiação. ─ Ou, se se refere à queda no pecado mortal, deve se entender o lugar citado como significando que aqueles que, nesta vida, caem por fraqueza nos pecados da carne, as obras de misericórdia os disporão à penitência. E esses tais não perecerão, i. é, essas obras os disporão para que não pereçam.

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