(Supra, q. 109, a. 5, et locis ibi citatis).
O segundo discute-se assim. – Parece que, sem a graça, podemos merecer a vida eterna.
1. – Pois, o homem, merece de Deus aquilo para que ele o ordenou, como se disse. Ora, o homem, por natureza, ordena-se à felicidade, como fim; por isso, mesmo naturalmente, deseja ser feliz. Logo, pelas suas faculdades naturais, sem a graça, pode merecer a felicidade da vida eterna.
2. Demais. – Uma obra é tanto mais meritória quanto menos devida. Ora, menos devido é o bem feito por quem recebeu menores benefícios. Por onde, como quem tem só os bens naturais recebeu menores benefícios de Deus, do que quem, além desses, recebeu os dons gratuitos, parece que as suas obras são mais meritórias, perante Deus. E portanto, se quem tem a graça pode merecer, de certo modo, a vida eterna, com maior razão o pode quem não a tem.
3. Demais. – A misericórdia e a liberalidade de Deus excedem infinitamente a misericórdia e a liberalidade humana. Ora, um homem pode merecer perante outro, mesmo se nunca lhe esteve nas boas graças. Logo, parece que, com maior razão, o homem pode, sem a graça, merecer de Deus a vida eterna.
Mas, em contrário, diz a Escritura: A graça de Deus é a vida eterna.
SOLUÇÃO. – Podemos distingui dois estados do homem, sem a graça, como já dissemos: o de natureza íntegra, qual o de Adão, antes do pecado; e o de natureza corrupta, como o nosso, antes da reparação operada pela graça. – Se pois, considerarmos o homem no seu primeiro estado, não pode ele, só pelas suas faculdades naturais, sem a graça, merecer a vida eterna, pela só razão que o seu mérito depende da preordenação divina. E Deus não ordena o ato de nenhum ser para o que lhe é desproporcionado à capacidade, que é o princípio do ato. Pois, por instituição da Divina Providência, nenhum ser pode agir ultrapassando a sua capacidade. Ora, a vida eterna é um bem excedente à capacidade da natureza criada, porque também lhe excede o conhecimento e o desejo, conforme a Escritura: O olho não viu nem o ouvido ouviu, nem jamais veio ao coração do homem. Donde, nenhuma criatura é princípio suficiente do ato meritório da vida eterna, sem se lhe acrescentar o bem sobrenatural, chamado graça. – Se porém considerarmos o homem no estado de pecado, à razão supra-referida se ajunta outra, fundada no obstáculo do pecado. Pois, sendo este uma ofensa de Deus, que faz perder a vida eterna, como do sobredito resulta, ninguém, estando em pecado, pode merecer a vida eterna, sem primeiro, abandonando-o, reconciliar-se com Deus,; o que se faz pela graça. Pois, ao pecador não se lhe deve a vida, mas a morte, segundo a Escritura: O estipêndio do pecado é a morte.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus ordenou a natureza humana para conseguir o fim da vida eterna, não por virtude própria, mas com o auxílio da graça. E assim, pode o seu ato ser meritório da vida eterna.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O homem, sem a graça, não pode praticar obras iguais às que praticaria auxiliado por ela; porque, quanto mais perfeito é o princípio da ação, tanto mais perfeita é esta. A objeção colheria, suposta, em ambos os casos, a igualdade da ação.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Considerada a objeção à luz da primeira razão exposta (no corpo do artigo), não é possível nenhuma assimilação entre Deus e o homem. Pois, este tem de Deus todo o poder de praticar o bem e não, de algum outro homem. Portanto, não pode ter algum mérito perante Deus, senão por algum dom divino; o que o Apóstolo assinaladamente refere, quando diz: Quem lhe deu alguma coisa primeiro, para esta lhe haver de ser recompensada? Ao passo que, perante outro homem, ele pode merecer, antes de ter recebido, do mesmo, seja o que for, por meio do que recebeu de Deus. – Porém, quanto a segunda razão, fundada no obstáculo do pecado, há semelhança entre Deus e o homem; pois não podemos merecer nada, da parte de quem ofendemos senão nos reconciliarmos com ele, dando-lhe satisfações.