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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 1 – Se o homem pode merecer perante Deus.

 (Supra, q. 21, a. 4; III, Sent., dist. XVIII, a. 2).


O primeiro discute-se assim. – Parece que o homem não pode merecer nada de Deus.

1. – Pois, ninguém merece recompensa por pagar o que deve. Ora, nem com todo o bem que fizermos podemos pagar suficientemente o que devemos a Deus, a quem cada vez mais devemos, como o próprio Filósofo o diz. Por isso, está na Escritura: Depois de terdes feito o que vos foi mandado, dizei: Somos uns servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer. Logo, o homem não pode merecer nada de Deus.

2. Demais. – O que fazemos em nosso benefício não nos dá nenhum mérito junto de Deus, a quem isso nada aproveita. Ora, uma ação reta aproveita ao seu próprio autor ou a outro homem, mas não a Deus, conforme a Escritura: Se obrares com justiça, que lhe darás? Ou que receberá ele de tua mão? Logo, o homem não pode merecer nada de Deus.

3. Demais. – Quem merece algo de outrem o tem como seu devedor, pois a recompensa merecida é devida. Ora, Deus não pode ser devedor de ninguém, conforme a Escritura: Quem lhe deu alguma coisa primeiro, para esta lhe haver de ser recompensada? Logo, ninguém pode merecer nada de Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura: Recompensa há para a tua obra. Ora, recompensa é o dado em virtude de um mérito. Logo, parece que o homem pode merecer perante Deus.

SOLUÇÃO. – O mérito e a recompensa têm o mesmo objeto. Pois, recompensa se chama ao dado em retribuição de uma obra ou de um trabalho, como lhe sendo o preço. Por onde, assim como pagar o justo preço pelo que se recebeu de outrem é ato de justiça, assim ato de justiça também é dar a recompensa devida a uma obra ou trabalho. Ora, a justiça implica uma certa igualdade, segundo o Filósofo. Portanto, a justiça absoluta só existe entre os perfeitamente iguais; e onde não há igualdade absoluta não há também justiça absoluta, senão só uma certa espécie dela. Assim, há o chamado direito paterno ou o dominical, como diz o Filósofo no mesmo livro. E por isto, entre os quais há justiça absoluta há também, em absoluto, fundamento ao mérito e à recompensa, Porém onde só há justiça relativa e não, absoluta, também não há mérito, absoluta, senão só relativamente, enquanto isso implica a noção de justiça. Assim, pois, o filho pode merecer perante o pai, e o escravo, junto ao senhor. Ora, é manifesto que, entre Deus e o homem há a máxima desigualdade, pois há entre esses dois seres uma distância infinita, e todo bem do homem vem de Deus. Por isso, entre o homem e Deus não há justiça fundada numa igualdade absoluta, mas apenas proporcional, enquanto cada um age ao seu modo. Ora, o modo e a medida das capacidades humanas é Deus quem os estabelece, Por onde, o homem não pode ter mérito diante de Deus, senão pressuposta uma ordem divina, de maneira que, pela sua ação, ele receba de Deus, como recompensa, por assim dizer, os bens em vista dos quais ele lhe deu o poder de agir. Assim também os seres naturais, pelos seus movimentos próprios e pelas suas operações, alcançam o fim a que Deus os ordenou. Mas de maneira diferente; pois a criatura racional, dotada de livre arbítrio, tem o poder de agir, por si mesma o que lhe dá ao ato caráter meritório. Mas isso não se passa com as outras criaturas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O homem, fazendo por vontade própria o que deve, merece; do contrário, o ato de justiça, pelo qual paga o devido, não seria meritório.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Deus, nas nossas boas obras, não visa nenhuma utilidade, mas a glória, i.e, a manifestação da sua bondade; e isso é o que ele também visa nas suas obras. Pois, de o adorarmos nenhum bem lhe acresce a ele, senão a nós mesmos. E assim, merecemos perante Deus; não que ele tire algum proveito das nossas obras, mas por obrarmos para a sua glória.

RESPOSTA À TERCEIRA. – De os nossos atos não serem meritórios, senão pressupondo-se uma ordem divina, não resulta que Deus se torne, absolutamente, nosso devedor, senão a si mesmo, a quem se deve o fazer cumprir-se a sua ordem.
 

Questão 114: Do mérito, que é efeito da graça cooperante.

 Em seguida devemos tratar do mérito, que é efeito da graça cooperante.

E nesta questão discutem-se dez artigos:

Art. 10 – Se a justificação do ímpio é obra milagrosa.

 (I, q. 105, a. 7, ad 1; II Sent., dist. XVIII, q. 1, a. 3 ad 2; IV, dist. XVII, q. 1, a. 5).


O décimo discute-se assim. – Parece que a justificação do ímpio é obra milagrosa.

1. – Pois, as obras milagrosas são maiores que as não milagrosas. Ora, a justificação do ímpio é maior obra que as outras, que são milagrosas, como claramente o diz Agostinho no lugar referido. Logo, a justificação do ímpio é uma obra milagrosa.

2. Demais. – O movimento da vontade está na alma, como a inclinação natural, nos seres da natureza. E só operando milagrosamente é que Deus age sobre os seres naturais, contra a inclinação da natureza. Assim, quando dá a vista a um cego ou ressuscita um morto. Ora, a vontade do ímpio tende para o mal. Por onde, como Deus, ao justificar o homem, move-o para o bem, parece que a justificação do ímpio é milagrosa.

3. Demais. – Como a sabedoria, também a justiça é um dom de Deus. Ora, por milagre é que alguém subitamente e sem estudo, recebe de Deus a sabedoria. Logo, milagrosamente é o ímpio justificado por Deus.

Mas, em contrário. – As obras milagrosas são superiores ao poder natural. Ora, justificação do ímpio não o é, pois, diz Agostinho: O homem, por natureza, pode ter tanto a fé como a caridade; mas os fiéis, pela graça, é que tem a fé, como a caridade. Logo, a justificação do ímpio não é milagrosa.

SOLUÇÃO. – Costuma-se distinguir três elementos nas obras milagrosas. – Um, dependente do poder do agente, é que só o poder divino pode fazer milagres. Por isso, estes nos surpreendem de todo, como tendo uma causa oculta, conforme já dissemos na Primeira Parte. E assim, tanto a justificação do ímpio, como a criação do mundo e, universalmente, todas as obras que só a Deus cabe fazer, podem chamar-se milagrosas.

Em segundo lugar, em certas obras milagrosas, se dá que a forma impressa é superior ao poder natural da matéria de que se trata. Assim, na ressurreição de um morto, a vida excede o poder natural do corpo ressurreto. E a este respeito, a justificação do ímpio não é milagrosa, por ser naturalmente a alma capaz da graça. Pois, no dizer de Agostinho, por isso mesmo que é feita à imagem de Deus, a graça a torna capaz de ver a Deus.

Em terceiro lugar, há, nas obras milagrosas, algo de contrário à ordem habitual e ordinária, segundo a qual a causa produz o efeito. Assim, quando um doente adquire subitamente a saúde perfeita, contra o curso habitual da cura, operada pela natureza ou pela arte. E então, a justificação do ímpio é, ora, milagrosa e, ora, não. Pois, o curso comum e habitual da justificação é que Deus, movendo interiormente a alma, o homem se lhe converta, primeiro, por uma conversão imperfeita, que, depois, vem a ser perfeita. Pois, a caridade começada merece ser aumentada para que, assim, mereça chegar à perfeição, como diz Agostinho. Outras vezes, porém, Deus move a alma tão veementemente, que ela de pronto chega a uma certa perfeição da justiça. Tal se deu com a conversão de Paulo, em que ele, por milagre, ficou até mesmo exteriormente prostrado; e por isso a sua conversão é comemorada pela Igreja como milagrosa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Embora certas obras milagrosas sejam, quanto ao bem que encerram, menores que a justificação do ímpio, contrariam, contudo, a ordem habitual de tais efeitos. E portanto, constituem, mais que os outros, milagres.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Não há milagre sempre que um ser natural se move, contra a sua inclinação; do contrário, seria milagre o aquecer-se a água ou uma pedra ser atirada para cima. Milagre há quando um efeito se realiza, contra a ordem regular da causa própria, que, por natureza, o produz. Ora, nenhuma outra causa há da justificação do ímpio, senão Deus, assim como só o fogo é a causa do aquecimento da água. Portanto, a esta luz, a justificação do ímpio não é milagrosa.

RESPOSTA À TERCEIRA. – É natural ao homem adquirir a sabedoria e a ciência, de Deus, por meio do seu engenho e estudo próprios. Por isso, há milagre quando, por outro modo, o homem se torna sapiente ou sábio. Ao passo que não lhe é natural adquirir, por operação própria, a graça justificante, senão por ação de Deus. Logo, os casos não são semelhantes.

Art. 9 - Se a justificação do ímpio é a máxima obra de Deus.

 (III, q. 43, a. 4, ad 2; IV Sent., dist. XVII, q. 1, a. 5, qª 1, ad 1, 2; dist. XLVI, q. 2, a. 1, qª 3, ad 2; In Ioan., cap. XIV. Lect. III).


O nono discute-se assim. – Parece que a justificação do ímpio não é a máxima obra de Deus.

1. – Pois, pela justificação, o ímpio consegue a graça nesta vida. Ora, pela glorificação, seguimos a glória da pátria, que é maior. Logo, a glorificação dos anjos ou dos homens é obra maior que a justificação do ímpio.

2. Demais. – A justificação do ímpio ordena-se ao seu bem particular. Ora, o bem do universo é melhor que o de um só homem, como está claro em Aristóteles. Logo, maior obra é a criação do céu e da terra que a justificação do ímpio.

3. Demais. – Fazer algo do nada e sem a cooperação de nenhum agente, é maior obra que fazer uma coisa, de outra, como a cooperação de um paciente. Ora, a obra da criação faz algo do nada, e, portanto, sem a cooperação de nenhum agente. Ao passo que, na justificação do ímpio, Deus faz uma coisa, de outra, i. é, do ímpio, um justo. E há ai uma cooperação por parte do homem, porque há a moção do livre arbítrio, como já se disse. Logo, a justificação do ímpio não é a máxima obra de Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura: as suas misericórdias são sobre todas as suas obras. E a Coleta diz: Deus, que manifestas a tua onipotência sobretudo perdoando e fazendo misericórdia. E Agostinho expondo o lugar da Escritura – Fará outras coisas ainda maiores: - é maior obra fazer do ímpio um justo, que criar o céu e a terra.

SOLUÇÃO. – De dois modos podemos dizer que uma obra é grande. – Quanto ao modo de agir e então a maior obra é a da criação, em que o ser foi feito do nada. – Ou quanto à grandeza da obra. E neste sentido maior obra é a justificação do ímpio, que termina pelo bem eterno da participação divina, do que a criação do céu e da terra, que termina no bem da natureza mutável. Por isso, Agostinho, depois de ter dito, que maior obra é fazer do ímpio um justo, que criar o céu e a terra, acrescenta: O céu e a terra passarão; porém a salvação e a justificação dos predestinados permanecerão.

Mas é preciso não esquecer que há duas espécies de grandeza. – Uma é a de quantidade absoluta. E então, o dom da glória é maior que o da graça, justificava do ímpio. Por isso a glorificação dos justos é maior obra que a justificação do ímpio. – Outra espécie de grandeza é a de quantidade proporcional; assim, dizemos que um monte é pequeno e um grão de milho é grande. E então, o dom da graça justificava do ímpio é maior que o da glória, que beatifica o justo. Porque o dom da graça excede mais à dignidade do ímpio, que era digno da pena, que o dom da glória à dignidade do justo, que pelo fato mesmo de ter sido justificado é digno da glória. Por isso, Agostinho diz no mesmo lugar: Julgue quem puder, se é maior obra criar os anjos justos, que justifica os ímpios. Por certo, se ambos os casos exigem poder igual, o último exige maior misericórdia.

Donde se deduz clara a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O bem do universo é melhor que o do indivíduo, um e outro considerados no mesmo gênero. Mas o bem da graça é, para o indivíduo, melhor que o da natureza, para todo o universo.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção colhe quanto ao modo de agir, pelo qual a criação é a maior obra de Deus.

Art. 8 – Se a infusão da graça é, na ordem da natureza, a primeira das condições exigidas para a justificação do ímpio.

 (IV Sent., dist. XVII, q. 1. A. 4; De Verit., q. 28, a. 7,8).


O oitavo discute-se assim. – Parece que a infusão da graça não é, na ordem da natureza, a primeira das condições exigidas para a justificação do ímpio.

1. – Pois, o afastamento do mal precede à pratica do bem, conforme a Escritura: Desvia-te do mal e faze o bem. Ora, a remissão da culpa implica o afastamento do mal; ao passo que a infusão da graça, a persecução no bem. Logo, a remissão da culpa é naturalmente anterior à infusão da graça.

2. Demais. – A disposição precede naturalmente à forma a que se destina. Ora, a moção do livre arbítrio é uma disposição para receber a graça. Logo, precede naturalmente a infusão dela.

3. Demais. – O pecado impede a alma de tender livremente para Deus. Ora, antes de se realizar um movimento, é preciso remover-lhe os obstáculos. Logo, a remissão da culpa e a moção do livre arbítrio contra o pecado são naturalmente anteriores à moção do livre arbítrio para Deus e à infusão da graça.

Mas, em contrário. – A causa é naturalmente anterior ao seu efeito. Ora, a infusão da graça é a causa de tudo o mais necessário à justificação do ímpio, como já se disse antes. Logo é naturalmente anterior.

SOLUÇÃO. – As quatro condições referidas, para a justificação do ímpio são simultâneas no tempo, pois essa justificação não é sucessiva, como já dissemos; mas, na ordem da natureza, uma é anterior às outras. Assim, nessa ordem, a primeira dentre elas é a infusão da graça; a segunda, a moção do livre arbítrio para Deus; a terceira, a moção do livre arbítrio contra o pecado; a quarta enfim, a remissão da culpa.

E a razão é que, em qualquer movimento vem naturalmente em primeiro lugar, a moção do motor; depois, a disposição da matéria, ou o movimento do móvel; e por último, o fim ou o termo do movimento, em que termina a moção do motor. Ora, a moção de Deus, enquanto motor, é a infusão da graça, como já dissemos; o movimento ou a disposição do móvel é a dupla moção do livre arbítrio; ultimamente, o termo ou o fim do movimento é a remissão da culpa, como do sobredito resulta. Por onde, em ordem natural, a infusão da graça vem em primeiro lugar, na justificação do ímpio. Em segundo, a moção do livre arbítrio para Deus. Em terceiro, a moção do livre arbítrio contra o pecado,; pois quem é justificado detesta o pecado, por ser contrário a Deus. Por isso, a moção do livre arbítrio para Deus procede naturalmente ao do livre arbítrio contra o pecado, pois aquele é a causa e a razão deste. Em quarto e último lugar, está a remissão da culpa, para a qual, como para o fim, se ordena essa transformação, segundo ficou dito.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O afastamento e a aproximação do termo podem-se considerar à dupla luz. – Primeiro, relativamente ao móvel. E assim, naturalmente, o afastamento precede ao aproximar-se do termo. Pois, no móvel, o contrário excluído é anterior ao que o móvel busca, pelo seu movimento. – Quanto ao agente, porém dá-se o inverso. Pois, o agente, pela forma nele preexistente, age afim de remover o contrário. Assim como o sol, pela sua luz, age para remover as trevas; por isso, deve ele, antes de expulsar as trevas, iluminar. O ar iluminado, por seu lado; e segundo a ordem natural deve, antes de receber a luz, purificar-se das trevas, embora esses dois fenômenos sejam temporalmente simultâneos. – E como a infusão da graça e a remissão da culpa dependem de Deus, que justifica, aquela é, na ordem da natureza, anterior a esta. Se porém considerarmos o homem justificado, dá-se o inverso: primeiro, na ordem da natureza, está a libertação da culpa e depois, a consecução da graça justificante. – Ou, pode-se dizer que os termos da justificação – a culpa como origem, e a justiça, como fim. Enquanto que a graça é a causa da remissão da culpa e da obtenção da justiça.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A disposição do sujeito precede, na ordem natural, à recepção da forma; é consecutiva, porém, à ação do agente, pela qual também o sujeito mesmo é disposto. Por onde, a moção do livre arbítrio precede naturalmente à consecução da graça; é consecutivo porém à infusão dela.

RESPOSTA Á TERCEIRA. – Como diz o Filósofo, nos movimentos da alma, o que sobe ao principio da especulação, ou tende ao fim de uma ação, é absolutamente o primeiro. Mas, nos movimentos exteriores, a remoção do obstáculo precede à consecução do fim. E sendo a moção do livre arbítrio uma moção da alma, esta, primeira e naturalmente, há de mover-se para Deus, como para o fim, e depois remover o obstáculo do pecado.
 

Art. 7 – Se a justificação do ímpio é instantânea ou sucessiva.

 (IV Sent., dist. XVII, q. 1, a. 5, qª 2, 3; De Verit., q. 28, a. 2, ad 10: a.9).


O sétimo discute-se assim. – Parece que a justificação do ímpio não é instantânea, mas sucessiva.

1. – Pois, como já se disse, para a justificação do ímpio é necessária a moção do livre arbítrio. Ora, o ato deste é escolher; o que preexige a deliberação do conselho, como já se estabeleceu. Ora, a deliberação, implicando um certo discurso, que supõe a sucessão, parece que a justificação do ímpio é sucessiva.

2. Demais. – O movimento de livre arbítrio suplica uma reflexão atual. Ora, é impossível inteligir muitos objetos simultânea e atualmente, como na Primeira Parte se estabeleceu. E como na justificação do ímpio exigimos a moção do livre arbítrio para objetos diversos, isto é, para Deus e contra o pecado, parece que tal justificação não pode ser instantânea.

3. Demais. – Uma forma susceptível de mais e de menos é recebida sucessivamente pelo sujeito, como bem o demonstra o caso da brancura e da negrura. Ora, a graça é susceptível de mais e de menos, como já se estabeleceu. Logo, não é recebida instantaneamente pelo sujeito. E como, para a justificação do ímpio, é necessária a infusão da graça, parece que ela não pode ser instantânea.

4. Demais. – A moção do livre arbítrio, que concorre para a justificação do ímpio, é meritória; e portanto, há de necessariamente proceder da graça, sem a qual não há nenhum mérito, como a seguir se dirá. Ora, um ser recebe, primeiro, a sua forma, para depois, por meio dela, agir. Logo, primeiro, é infundida a graça, para, depois, o livre arbítrio mover-se para Deus e detestar o pecado. Logo, a justificação é total e simultânea

5. Demais. – Se a graça é infundida na alma, há de necessariamente, haver um momento em que ela aí começou a existir. Semelhantemente, se a culpa é perdoada, há de, por força, haver um último instante em que o homem ainda está no estado da culpa. Ora, não pode ser o mesmo instante para os dois casos, porque, então, dois contrários coexistiriam. Logo, é necessário sejam os dois instantes sucessivos, devendo então haver, entre eles, conforme diz o Filósofo, um tempo médio. Logo, a justificação não é totalmente simultânea, mas sucessiva.

Mas, em contrário, a justificação do ímpio se faz pela graça do Espírito Santo, justificante. Ora, o Espírito Santo advém subitamente ao espírito do homem, conforme a Escritura: E de repente veio do céu um estrondo, como de vento, que assoprava com ímpeto. Ao que diz a Glosa: a graça do Espírito Santo não conhece a lentidão dos grandes esforços. Logo, a justificação do ímpio não é sucessiva, mas instantânea.

SOLUÇÃO. – A justificação do ímpio consiste total e originalmente na infusão da graça, pela qual é movido o livre arbítrio e perdoada a culpa. Ora, essa infusão se dá instantaneamente e sem sucessão. E a razão é a seguinte. Uma forma não se imprime subitamente num sujeito, que para ela não está disposto, precisando, por isso, o agente de tempo para dispor o sujeito. Por onde vemos que, logo que a matéria está disposta, por uma alteração precedente, ela se une à forma substancial. Pela mesma razão, como um corpo diáfano tem, por si mesmo, disposição para receber a luz, é subitamente iluminado por um corpo atualmente lúcido. Ora, segundo já dissemos, Deus, para infundir a graça na alma, não exige outra disposição senão a que Ele mesmo produz. Mas essa disposição, suficiente à recepção da graça. Ele a opera, ora subitamente; ora, paulatina e sucessivamente, como já dissemos. Pois, o que impede um agente natural de dispor a matéria é alguma desproporção entre a resistência da matéria e a virtude do agente. E por isso, vemos que quanto mais forte for a virtude do agente, tanto mais prontamente disporá a matéria. Ora, o poder divino é infinito. Pode, pois, dispor subitamente, para a forma qualquer matéria criada; e com maior razão o livre arbítrio do homem, cuja moção pode, por natureza, ser instantânea. Por onde, a justificação do ímpio Deus a opera instantaneamente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A moção do livre arbítrio, que concorre para a justificação do ímpio, é um consentimento em detestar o pecado e converter-se para Deus; e esse consentimento é dado instantaneamente. Pode, porém, às vezes, preceder alguma deliberação, que não é da substância da justificação, mas via para a mesma; assim como o movimento local é uma via para a iluminação, e a alteração, para a geração.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Como já dissemos na Primeira Parte, nada impede serem atual e simultaneamente pensados dois objetos, que, de certo modo, se unificam. Assim, simultaneamente inteligimos o sujeito e o predicado, enquanto unidos para formar uma só afirmação. Do mesmo modo, o livre arbítrio pode mover-se simultaneamente para dois objetos, sendo um ordenado para o outro. Ora, a moção do livre arbítrio contra o pecado se ordena para o que o leva para Deus; pois o homem detesta o pecado por ser contrário a Deus, com quem quer unir-se. Por onde, o livre arbítrio, na justificação do ímpio, simultaneamente detesta o pecado e se converte para Deus; assim como um corpo, afastando-se de um lugar, aproxima-se, simultaneamente, de outro.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A razão de uma forma não ser recebida, instantaneamente por uma certa matéria, não é ser essa forma susceptível demais e de menos. Pois então, também a luz não seria recebida instantaneamente pelo ar, que pode ser mais ou menos iluminado. Mas se deve buscar a razão na disposição da matéria ou do sujeito, como já dissemos.

RESPOSTA À QUARTA. – No mesmo instante em que recebe a sua forma, o ser começa a agir, de conformidade com ela; assim como o fogo, desde que foi gerado, move-se para cima e, se o seu movimento fosse instantâneo, atingiria o seu lugar imediatamente. Ora, o movimento do livre arbítrio, que é o querer, não é sucessivo, mas instantâneo. Logo, não é necessário seja a justificação do ímpio sucessiva.

RESPOSTA À QUINTA. – A sucessão de dois contrários, no mesmo sujeito, deve ser considerada diferentemente, segundo se trata de seres sujeitos ou não ao tempo. – Assim, pois, nos sujeitos ao tempo, não há lugar para um último instante, em que a forma anterior ainda permanece no sujeito; há porém, para um último tempo e para um primeiro instante em que a forma subseqüente já está presente na matéria ou no sujeito. A razão disso é que, no tempo, não é possível haver um instante imediatamente precedente a outro. Pois, o tempo não se compõe de instantes consecutivos, como de pontos consecutivos não se compõe a linha, segundo o prova Aristóteles. Contudo, o tempo é limitado pelo instante. Por onde, durante todo o tempo precedente, em que um ser se move para uma determinada forma, permanece ligado à forma oposta. Só no último instante desse tempo, que é o primeiro do tempo seguinte, une-se à forma, que constitui o termo do movimento. – Mas, é diferente o caso dos seres fora do tempo. Pois, se há alguma sucessão de sentimento ou de pensamentos, p. ex., nos anjos, ela se mede por um tempo, não contínuo, mas, discreto, porque as realidades mesmas, que são medidas, não são contínuas, conforme estabelecemos na Primeira Parte. Por onde, em tais casos, há lugar para um último instante, em que subsistia o estado anterior e um primeiro em que já existe o estado subseqüente. Nem é necessário haver um tempo médio, por não haver, no caso, continuidade do tempo, que o exigiria. – Ora, a alma humana, justificada, está por essência fora do tempo, embora lhe esteja acidentalmente sujeita, por inteligir em dependência do contínuo e do tempo, por meio dos fantasmas, nos quais considera as espécies inteligíveis, como dissemos na Primeira Parte. Por onde, devemos considerar-lhe as mudanças de acordo com a condição dos movimentos temporais. E então, diremos que não há um último instante, em que a alma ainda se conserve em estado de pecado, mas um último tempo. Ao contrário, há um primeiro instante, em que já está em estado de graça, enquanto que estava, em todo o tempo precedente, em estado de culpa.

Art. 6 – Se a remissão dos pecados deve ser enumerada entre as condições exigidas para a justificação do ímpio.

 (IV. Sent., dist. XVII, q. 1, a. 3, qª 5).


O sexto discute-se assim. – Parece que a remissão dos pecados não deve ser enumerada entre as condições exigidas para a justificação do ímpio.

1. – Pois, a substância de um ser não se inclui entre os elementos necessários à sua existência; assim o homem não deve ser enumerado com a sua alma e o seu corpo. Ora, a justificação mesma do ímpio é a remissão dos seus pecados, como já se disse. Logo, tal remissão não deve enumerada entre as condições exigidas à justificação do ímpio.

2. Demais. – A infusão da graça se identifica com a remissão da culpa, assim como a iluminação, com a exclusão das trevas. Ora, um objeto não deve ser enumerado consigo mesmo. Logo, a remissão da culpa não deve ser enumerada com a infusão da graça. 

3. Demais. – A remissão dos pecados resulta da moção do livre arbítrio para Deus e contra o pecado, como o efeito, da causa; pois, os pecados são perdoados pela fé e pela contrição. Ora, um efeito não deve ser enumerado junto com a sua causa; porque as partes constitutivas de uma determinada enumeração são simultâneas por natureza. Logo, a remissão da culpa não deve fazer parte da mesma enumeração em que entram as condições exigidas para a justificação do ímpio.

Mas, em contrário, na enumeração dos elementos constitutivos de um ser não se deve omitir o fim, que é o mais importante em qualquer ser. Ora, a remissão dos pecados é o fim, na justificação do ímpio, conforme à Escritura: Todo este fruto se reduz a que seja tirado o seu pecado. Logo, a remissão dos pecados deve ser enumerada entre as condições exigidas para a justificação do ímpio.

SOLUÇÃO. – Quatro condições são exigidas para a justificação do ímpio: a infusão da graça, a moção do livre arbítrio para Deus, por meio da fé; a moção do livre arbítrio contra o pecado, e a remissão da culpa. E a razão disto está como já dissemos, em ser a justificação uma moção pela qual a alma é movida por Deus, passando do estado da culpa para o da justiça. Ora, qualquer moção, pela qual um ser move outro, requer as três condições seguintes. Primeiro, a moção do motor; segunda, o movimento do móvel; terceira, a consumação do movimento, i. é, a consecução do fim. Ora, a moção divina é a graça divina. A moção do livre arbítrio é dupla, compreendendo o afastamento do termo de origem e a aproximação do termo de chegada. A consumação, ou a consecução do termo deste movimento, se realiza pela remissão da culpa; e, então se consuma a justificação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Diz-se que a justificação do ímpio é a remissão mesma dos pecados, porque todo movimento se especifica pelo seu termo. Contudo, a consecução desse termo exige muitas outras condições, como do sobredito resulta.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A infusão da graça e a remissão da culpa podem ser consideradas à dupla luz – Primeiro, quanto à substância mesma do ato; e então, identificam-se; pois, pelo mesmo ato porque Deus concede a graça perdoa a culpa. – Segundo, quanto aos seus objetos. E então, a culpa delida difere da graça infusa; assim como, nos seres naturais, a geração e a corrupção diferem, embora o gerar-se de um ser seja o corromper-se de outro.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Não se trata agora da divisão de um gênero em suas espécies, caso em que as partes da divisão hão de existir simultaneamente. Mas da diferença entre os elementos exigidos para um ente ser completo; e nesse caso, podem uns ser anteriores ao outro, porque os elementos e as partes de um composto podem ser anteriores uns aos outros.

Art. 5 – Se, para a justificação do ímpio, é necessária a moção do livre arbítrio contra o pecado.

 (III, q. 86, a. 2; IV Sent., dist. XVII, q. 1, a. 3, qª 4; III Cont., Gent., cap. CLVIII; De Verit., q. 28, a. 5).


O quinto discute-se assim. – Parece que, para a justificação do ímpio, não é necessária a moção do livre arbítrio contra o pecado.

1. – Pois, só a caridade basta para delir o pecado, segundo a Escritura: A caridade cobre todos os delitos. Ora, o objeto da caridade não é o pecado. Logo, não é necessária, contra este, a moção do livre arbítrio, para justificação do ímpio.

2. Quem marcha para a frente não deve olhar para traz, conforme aquilo do Apóstolo: Esquecendo-me, por certo, do que fica para traz, e avançando-me ao que resta para o diante, prossigo, segundo o fim proposto, ao prêmio da soberana vocação. Ora, a quem busca a justiça atrás lhe ficam os pecados passados. Logo, deve esquecê-los, nem deve para eles se voltar, por moção do livre arbítrio.

3. Demais. – Na justificação do ímpio não se remite um pecado sem remitir o outro, pois é ímpio esperar de Deus meio perdão. Se, pois, para justiçar-se, o ímpio tivesse de mover o seu livre arbítrio contra o pecado, será necessário ter presente no espírito todos os seus pecados. Ora, isso é absurdo, quer porque demandaria muito tempo uma tal atividade do pensamento; quer, porque o pecador não poderia obter vênia dos pecados de que se esqueceu. Logo, o movimento do livre arbítrio, contra o pecado, não é necessário, para a justificação do ímpio.

Mas, em contrário, diz a Escritura: Eu disse: Confessarei ao Senhor contra mim a minha injustiça; e tu me perdoaste a impiedade do meu pecado.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a justificação do ímpio é uma moção pela qual a alma humana é levada por Deus, do estado do pecado, para o da justiça. Por onde, há de necessariamente o espírito, pela moção do livre arbítrio, comportar-se, em relação a ambos os extremos, como se comporta um corpo, movido localmente por um motor, em relação aos dois termos do movimento. Ora, é manifesto que, no movimento local, o corpo movido se afasta do termo de origem e se aproxima do termo final. Por onde necessariamente, alma humana, justificada, afasta-se pela moção do livre arbítrio, do pecado e aproxima-se da justiça. Ora, em se tratando da moção do livre arbítrio, o afastamento e a aproximação identificam-se com o detestar e o desejar. Pois, diz Agostinho, expondo aquilo da Escritura – o mercenário, porém foge: - Os nossos afetos são moções da alma; a alegria é uma dilatação da alma; o temor, a sua fuga; aproxima-se a vossa alma, quando desejais; foge, quando temeis. Logo, na justificação do ímpio, há de haver dupla moção do livre arbítrio. Uma, pelo desejo, tende para a justiça de Deus; e outra, pela qual detesta o pecado.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – É próprio de uma mesma virtude buscar um dos opostos e fugir de outro. Por onde, à caridade pertence, tanto amar a Deus, como detestar o pecado, pelo qual a alma se separa de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Ao passado o homem não deve voltar-se com amor. Mas, é melhor esquecê-lo para não se lhe apegar. Deve porém tê-lo presente, afim de detestá-lo; e assim dele se afastar.

RESPOSTA À TERCEIRA. – No tempo precedente à justificação, é preciso o homem detestar cada um dos pecados, que cometeu, e dos quais tenha lembrança. E dessa consideração precedente, resulta, na alma, uma certa moção que detesta universalmente todos os pecados cometidos. Entre os quais também se incluem os caídos no esquecimento. As disposições do pecador são então tais, que teria contrição, mesmo dos pecados de que não se lembra, se eles lhe ocorressem à memória. E esse movimento concorre para a justificação.

Art. 4 – Se, para a justificação do ímpio, é necessária a moção da fé.

 (IV Sent., dist. XVII, q. 1, a. 3, qª 3; De Verit., q. 28, a. 4; Ad Ephes., cap. II, lect. III).


O quarto discute-se assim. – Parece que para a justificação do ímpio não é necessária a moção da fé.

1. – Pois, se o homem é justificado pela fé, pode sê-lo também por outras virtudes, como o temor, do qual diz a Escritura: O temor do Senhor lança fora o pecado; porque aquele que está sem temor não poderá ser justificado. E também pela caridade: Perdoados lhe são seus muitos pecados, porque amou muito. E ainda, pela humildade: Deus resiste aos soberbos e dá a sua graça aos humildes. E enfim, pela misericórdia: Os pecados purificam-se pela misericórdia e pela fé. Logo, para a justificação do ímpio não é mais necessária a moção da fé do que a das virtudes referidas.

2. Demais. – O ato de fé não é necessário para a justificação, senão enquanto, por ela, o homem conhece a Deus. Ora, pode conhecer a Deus também por outros modos, como, pelo conhecimento natural e pelo dom da sabedoria. Logo, não é necessário o ato de fé, para a justificação do ímpio.

3. Demais. – São diversos os artigos da fé. Se pois, o ato de fé fosse necessário à justificação do ímpio, seria necessário o homem ter presente ao espírito todos os artigos da fé, no momento de ser justificado. Ora, isto é impossível, pois tal conhecimento demanda longo tempo. Logo, parece que o ato de fé não é necessário à justificação do ímpio.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura: Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus.
 
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a moção do livre arbítrio é necessária para a justificação do ímpio, pois a alma do homem é movida por Deus. Ora, Deus move a alma humana convertendo-a para si, como diz a Escritura, segundo outra versão: Ó Deus, tu voltado para nós, nos darás vida. Por onde, para a justificação do ímpio, é necessária a moção da alma, que a faz converter-se para Deus. Ora, a conversão para Deus dá-se, primeiramente, pela fé, conforme à Escritura: É necessário que o que se chega a Deus creia que há Deus. Logo, a moção da fé é necessária à justificação do ímpio.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A moção da fé não é perfeita senão informada pela caridade; por isso, na justificação do ímpio essa moção é simultânea com a da caridade. Ora, o livre arbítrio é movido para Deus afim de se lhe sujeitar; e, por isso, também concorre para tal fim o ato do temor filial e o da humildade. Pois, pode se dar que um mesmo ato do livre arbítrio respeita a diversas virtudes, enquanto uma ordena e outra seja ordenada, na medida em que o ato é susceptível de se ordenar para fins diversos. Ora, o ato de misericórdia vai contra o pecado, a modo de satisfação, e assim é consecutivo à justificação; ou a modo de preparação, enquanto que os misericordiosos alcançarão misericórdia; e então pode preceder à justificação. Ou enfim, pode concorrer para esta, de par com as virtudes referidas, enquanto a misericórdia está incluída no amor do próximo.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Pelo conhecimento natural o homem não se converte para Deus, como objeto da beatitude e causa da justificação. Por isso, tal conhecimento não basta para a justificação, Quanto ao dom da sabedoria, ele pressupõe o conhecimento da fé, como do sobredito resulta.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Como diz o Apóstolo, ao que crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é imputada à justiça, segundo o decreto da graça de Deus. Por onde é claro, que, para a justificação do ímpio é necessário o ato de fé, afim de ele crer que Deus justificou o homem pelo mistério de Cristo.

Art. 3 – Se, para a justificação do ímpio, é necessária a moção do livre arbítrio.

(II Sent., dist. XXVII, a. 2, ad 7; IV, dist. XVII, q. 1, a. 3, qª 2; De Verit., q. 28, a. 3,4; In Ioan., cap. IV, lect II; Ad Ephes., cap. V, lect V).

O terceiro discute-se assim. – Parece que, para a justificação do ímpio, não é necessária nenhuma moção do livre arbítrio.

1. – Pois, vemos que o sacramento do batismo justifica as crianças, e, as vezes, mesmo os adultos, sem qualquer moção do livre arbítrio. Pois, diz Agostinho, estando um seu amigo sofrendo de febres: jazia, já havia tempo, sem sentidos e com suores letais; e, desesperado, foi, sem o saber, batizado e regenerou-se; ora, isto se faz pela graça santificante. Porém, Deus não fez depender o seu poder, dos sacramentos. Logo, pode também, sem eles, e sem qualquer moção do livre arbítrio, justificar o homem.

2. Demais. – Dormindo, o homem não tem o uso da razão, sem o qual não pode haver moção do livre arbítrio. Ora, Salomão, dormindo, obteve de Deus o dom da sabedoria, como diz a Escritura. Logo, pela mesma razão, o dom da graça justificante é, às vezes, dado por Deus ao homem, sem haver neste a moção do livre arbítrio.

3. Demais. – A mesma causa, que produz a graça, a conserva. Pois, diz Agostinho: o homem deve converter-se para Deus de modo a ser justificado sempre por ele. Ora, sem a moção do livre arbítrio, o homem conserva a graça. Logo, pode, sem essa moção, ter sido inicialmente infundida.

Mas, em contrário, diz a Escritura: Todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Ora, não é possível aprender sem a moção do livre arbítrio; pois quem aprende aceita a doutrina de quem ensina. Logo, ninguém vai a Deus só pela graça santificante, sem a moção do livre arbítrio.

SOLUÇÃO. – A justificação do ímpio Deus a opera movendo-o para a justiça. Pois, Ele é quem justifica o ímpio, no dizer da Escritura. Ora, os seres todos Deus os move segundo a natureza de cada um. Assim, vemos que, dos seres naturais, move os pesados diferentemente dos leves, segundo as naturezas diversas deles. Assim também move o homem para a justiça, de conformidade com a condição da natureza humana. Ora, por natureza, o homem é dotado do livre arbítrio. Logo, Deus não o move para a justiça, sem a moção do livre arbítrio, de que o homem tem o uso. Mas lhe infunde o dom da graça justificante, movendo, simultaneamente, o livre arbítrio, nos seres capazes dessa moção, para receberem o dom da graça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As crianças, não sendo capazes da moção do livre arbítrio, Deus as move para a justiça, pela só informação da alma delas. Mas isso não se opera sem o sacramento. Pois, como o pecado original, de que são justificadas, não as contaminou por vontade própria delas, mas pela sua origem carnal, por isso a graça de Cristo se lhe infunde por regeneração espiritual. E o mesmo se dá com os furiosos e os loucos, que nunca tiveram o uso do livre arbítrio. Pode, porém uma pessoa ter tido o uso do livre arbítrio, e depois perdê-lo, por doença ou durante o sono. E essa não recebe a graça santificante por meio do batismo exteriormente ministrado, ou por outro qualquer sacramento, sem ter feito, antes, o propósito de recebê-lo; e o que não pé possível sem o uso do livre arbítrio. Foi assim, deste modo, que foi regenerado aquele a quem se refere Agostinho; pois, tendo, antes, consentido no batismo, recebeu-o depois.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Também Salomão, dormindo, não mereceu nem recebeu a sabedoria; somente foi-lhe revelado que, conforme ao seu desejo anterior, Deus lhe infundira. E por isso, diz a Escritura, da pessoa dele; Desejei e foi-me dado o sentido. – Ou se pode dizer que o sono de Salomão não foi natural, mas, profético, consoante à Escritura: Se entre vós se achar algum profeta do Senhor, eu lhe aparecerei em visão ou lhe falarei em sonhos; em cujo caso é possível usar do livre arbítrio. – E contudo, deve saber-se que o dom da sabedoria e o da graça justificante não tem o mesmo fundamento. Pois, aquele ordena principalmente o homem para o bem, objeto da vontade; por isso é movido para tal bem por uma moção da vontade, dependente do livre arbítrio. Ao passo que a sabedoria aperfeiçoa o intelecto, que procede à vontade; por onde, sem o movimento completo do livre arbítrio o intelecto pode ser iluminado pelo dom as sabedoria. Assim também vemos que, durante o sono, recebe o homem certas revelações, como diz a Escritura: Quando cai sopor sobre os homens, e estão dormindo no seu leito, então abre os ouvidos dos homens e, admoestando-os, lhes adverte o que devem fazer.

DONDE A RESPOSTA Á TERCEIRA. – Pela infusão da graça santificante dá-se uma como transformação da alma humana; e portanto, é necessário uma moção própria dela, que a mova de conformidade com a sua natureza. Ao passo que a conservação da graça não precisa de nenhuma transformação, e portanto de nenhuma moção da alma, mas só, da continuidade do influxo divino.

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