Category: Santo Tomás de Aquino
O quarto discute–se assim. – Parece que o homem não é a causa da idolatria.
1. – Pois, o que há no homem é a natureza, ou a virtude, ou a culpa. Ora, a natureza humana não pode ser a causa da idolatria, porque a natureza racional do homem antes ensina que há um só Deus e que não se deve prestar culto divino aos mortos nem aos seres inanimados. Do mesmo modo, a virtude do homem não pode ser causa da idolatria, pois, como diz o Evangelho, não pode a árvore boa dar maus frutos. Também não o pode a culpa, porque, no dizer da Escritura, o vulto dos ídolos abomináveis é a causa, o princípio e o fim de todo o mal. Logo, de nenhum modo o homem é causa da idolatria.
2. Demais. – O que tem a sua causa no homem sempre nele existe. Ora, nem sempre existiu a idolatria, da qual se lê que foi inventada na segunda idade do mundo ou por Nemrod, que, como se conta, obrigava os homens a adorar o fogo; ou por Nino, que fez adorar a imagem de seu pai Belo. E entre os Gregos, como refere Isidoro, Prometeu foi o primeiro que fez imagens humanas, de barro. Mas os Judeus dizem que quem primeiro fez imagem de barro foi lsmael. Portanto, a idolatria cessou, em grande parte, na sexta idade do mundo. Logo, não é o homem a causa dela.
3. Demais. – Agostinho diz: No princípio só pelo ensinamento deles, isto é, dos demônios, que se podia saber o que cada um deles deseja, o que abomina, a que invocação atende e com que outra é atraído; daí vieram as artes mágicas e os autores delas. Ora, a idolatria tem a mesma razão de ser. Logo, não é o homem a causa da idolatria.
Mas, em contrário, a Escritura: A vaidade dos homens foi o que os introduziu no mundo.
SOLUÇÃO. – A idolatria tem dupla causa. Uma, dispositiva, que depende do homem, de três modos. – Primeiro, pelo afeto desordenado, que levou os homens a atribuírem honras divinas aqueles a quem muito amavam ou veneravam. E esta causa assinala a Escritura quando diz: Penetrado um pai de sensível mágoa, fez a imagem de seu filho, que cedo lhe fora arrebatado; e aquele, que então havia falecido como homem, começa agora a adorar como deus. É no mesmo lugar acrescenta–se que os homens, ou pelo afeto, ou servindo os soberanos, impuseram às madeiras e às pedras o nome incomunicável, isto é, da divindade. – Segundo, porque o homem, como diz o Filósofo, naturalmente se deleita com os produtos representativos da imaginação. Por isso, os homens rudes, primitivos, vendo imagens humanas expressivamente feitas por artistas hábeis, prestaram–lhe culto divino. Donde o dizer a Escritura: Se algum artífice hábil cortasse do mato algum tronco direito e pela perícia da sua arte lhe desse figura e o afeiçoasse em forma de homem e, fazendo–lhe votos, o consultasse a respeito da sua fazenda e de seus filhos e de suas bodas. – Terceiro, por desconhecimento do verdadeiro Deus, cuja excelência os homens não considerando, prestaram culto divino a certas criaturas, levados pela beleza ou virtude delas. E por isso diz a Escritura: Nem considerando as suas obras reconheceram quem era o artífice, mas reputaram por deuses governadores do universo, ou ao fogo ou ao espirito ou ao ar comovido ou ao giro das estrelas ou à imensidade das águas ou ao sol e à lua.
Quanto à outra causa, a completiva da idolatria, ela está nos demônios que provocaram para si o culto dos homens transviados, dando respostas por meio dos ídolos e fazendo outras causas tidas pelos homens como miraculosas. Por isso a Escritura diz: Todos os deuses das gentes são demônios.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A causa dispositiva da idolatria, por parte do homem, é a sua natureza deficiente, pela ignorância do intelecto ou pelo afeto desordenado, como se disse. O que também implica a culpa. Mas também se diz ser a idolatria o princípio e o fim de todo o mal, por não haver nenhum gênero de pecado que ela por vezes não produza. Ou por provocação expressa, como causa; ou por dar a ocasião, como princípio; ou como fim, fazendo cometerem–se certos pecados, como as imolações de homens, as mutilações dos membros e outros semelhantes, para cultuar os ídolos. E contudo certos pecados podem preceder a idolatria, predispondo os homens para ela.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Na primeira idade do mundo não havia idolatria; pela memória recente da criação, que ainda fazia perdurar o conhecimento de Deus uno, no espírito dos homens. E, na sexta idade ela foi expulsa pela virtude da doutrina de Cristo, que triunfou do diabo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção colhe quanto à causa completiva da idolatria.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a idolatria não é o mais grave dos pecados.
1. – Pois, o péssimo se opõe ao ótimo, como diz Aristóteles. Ora, o culto interno, que consiste na fé, na esperança e na caridade, é melhor que o externo. Logo, a infidelidade, o desespero e o ódio de Deus, opostos ao culto interno, são pecados mais graves que a idolatria, oposta ao culto externo.
2. Demais. – Tanto mais grave é um pecado quanto mais vai contra Deus. Ora, parece que vai mais diretamente contra Deus quem blasfema ou impugna a fé o que quem presta culto divino à criatura, o que constitui a idolatria. Logo, a blasfémia ou a impugnação da fé é pecado mais grave que a idolatria.
3. Demais. – Parece que os pecados maiores são castigos dos menores. Ora, o pecado de idolatria é punido pelo pecado contrário à natureza, como diz o Apóstolo.
4. Demais. – Agostinho diz: Nem a vós, isto é, aos Maniqueus, vos consideramos pagãos, ou como cismáticos pagãos; mas, como tendo certas semelhanças com eles porque adorais a muitos deuses. Sois, porém muito piores que eles; porque eles prestam culto divino a seres existentes, aos quais não deveriam prestá–lo; enquanto que vós cultuais o que de nenhum modo existe. Logo, o vício da corrupção herética é mais grave que a idolatria.
5. Demais. – Aquilo do Apóstolo – Como tornais outra vez aos rudimentos fracos e pobres – diz a glosa de Jerônimo: A observância da lei a que então eram dados, era pecado quase igual à servidão dos ídolos, a que se entregavam, antes da conversão. Logo, o pecado da idolatria não é o gravíssimo.
Mas, em contrário, àquilo da Escritura sobre a imundície da mulher, que padece de fluxo sanguíneo, diz a Glosa: Todo pecado é imundice da alma; mas, sobretudo, o de idolatria.
SOLUÇÃO. – A dupla luz podemos considerar a gravidade de um pecado. – Relativamente ao próprio pecado. E então o de idolatria é de todos o mais grave. Pois, assim como na república terrena a falta considerada mais grave é atribuir honras reais a outrem que não o verdadeiro rei, porque, como tal, essa falta perturba a ordem de toda a república; assim também, dos pecados mais graves cometidos contra Deus, é considerado gravíssimo o que comete quem presta honras divinas à criatura. Porque, como tal, esse pecado diminui o primado divino, admitindo, no mundo outro Deus. – A outra luz, a gravidade do pecado pode ser considerada relativamente ao pecador; assim, dizemos ser mais grave o pecado cometido com conhecimento do que o por ignorância. E então nada impede pequem mais gravemente os heréticos, que cientemente corrompem a fé que receberam, do que os idólatras, que pecam por ignorância. E do mesmo modo, também certos outros pecados podem ser maiores, pelo maior desprezo com que o pecador os comete.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A idolatria pressupõe a infidelidade interior, à qual acrescenta o culto externo indevido. Se, porém a idolatria for exterior, sem a infidelidade interna, ela acrescenta a culpa da falsidade, como antes dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A idolatria encerra em si uma grande blasfémia, por privar a Deus do seu domínio exclusivo sobre as criaturas. E impugna efetivamente a fé.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Por natureza, a pena contraria a nossa vontade. Por onde, o pecado que serve de punição a outro há de ser mais manifesto, de modo a tornar o pecador detestável a si mesmo e a outrem; mas, não é preciso que seja mais grave. E, assim sendo, o pecado contra a natureza é menos grave que o da idolatria. Mas, por ser mais manifesto, é considerado por assim dizer como uma pena imposta ao pecado de idolatria. De modo que, assim como pela idolatria o homem perverte a ordem da honra divina, assim, pelo pecado contra a natureza, sofre a perversidade que lhe transtorna a própria natureza.
RESPOSTA À QUARTA. – A heresia dos Maniqueus é pecado, mesmo genericamente considerado, mais grave que o pecado dos outros Idólatras. Porque fere mais a honra divina, admitindo dois deuses contrários e muitas imaginações vãs e fabulosas a respeito de Deus. O mesmo não se dá com outros heréticos que creem num só Deus a quem prestam curto.
RESPOSTA À QUINTA. – Observar os preceitos da lei antiga, na vigência da lei da graça, não é um pecado, genericamente considerado, de todo em todo igual à idolatria. Mas, quase igual, porque tanto um como outro são funestas espécies de superstição.
O segundo discute–se assim. – Parece que a idolatria não é pecado.
1. – Pois, não há pecado em nada do que a verdadeira fé aplica ao culto de Deus. Ora, a verdadeira fé usa de certas imagens para o culto divino; assim, no tabernáculo havia imagens dos querubins, como se lê na Escritura; e nas igrejas colocam imagens que os fiéis veneram. Logo, a idolatria ou culto dos ídolos não é pecado.
2. Demais. – Devemos reverenciar a todos os nossos superiores. Ora, os anjos e as almas dos santos são–nos superiores. Logo, não haverá pecado em reverenciá–los, cultuando–os com sacrifícios ou cerimônias semelhantes.
3. Demais. – O Deus sumo deve ser adorado pelo culto interno da mente, segundo àquilo do Evangelho: Em espírito e verdade é que devem adorar a Deus os que o adoram. E Agostinho diz, que nós adoramos a Deus pela fé, pela esperança e pela caridade. Ora, pode alguém cultuar os ídolos exteriormente sem contudo divorciar–se da verdadeira fé interior. Logo, parece que se pode, sem prejuízo do culto divino, prestar culto externo aos ídolos.
Mas, em contrário, a Escritura: Não as adorarás, isto é, exteriormente, nem lhes darás culto, isto é, interior, como expõe a Glosa, referindo–se às figuras e imagens. Logo, é pecado prestar culto externo ou interno aos ídolos.
SOLUÇÃO. – Duas espécies de erros se cometeram nesta matéria. – Assim, uns julgaram devido e em si mesmo bom oferecer sacrifícios e outros atos de latria, não só ao Deus sumo, mas também aos demais seres supra referidos, porque pensavam se deve prestar reverência divina a qualquer natureza superior, como mais próxima de Deus. – Mas esse modo de pensar é irracional. Pois, embora devamos reverenciar a todos os nossos superiores, não devemos fazê–lo a todos do mesmo modo. Assim, ao Deus sumo, que excede por uma excelência singular a todos os seres, é devido o culto especial de latria. Nem vale explicar, como alguns, que esses sacrifícios visíveis convêm aos outros deuses, ao passo que o sumo Deus, melhor que eles, é credor de nossas melhores homenagens, que são as do espírito. Pois, como diz Agostinho, os sacrifícios externos são sinais dos internos, como as palavras pronunciadas são sinais das coisas. Pelo que, assim como quando oramos e louvamos, dirigimos as palavras que pronunciamos aquele a quem oferecemos, no nosso coração, as coisas mesmas que elas significam, assim também, quando sacrificamos pensamos que o sacrifício visível não deve ser oferecido senão aquele a que devemos nos oferecer a nós mesmos, em nosso corações, como sacrifício invisível.
Outros, porém pensaram que o culto exterior de latria não deve ser prestado aos ídolos, como um ato em si mesmo bom ou ótimo, mas como conforme ao costume vulgar. Assim, Agostinho cita o dito seguinte de Séneca: Adoraremos de modo a nos lembrarmos que este culto está de acordo mais com o costume do que com a realidade. E o próprio Agostinho: Não devemos buscar a religião nos filósofos, que professavam as mesmas práticas religiosas que o povo e divulgavam, nas escolas, diversas e contrárias opiniões a respeito da natureza dos seus deuses e da do sumo Deus. E esses mesmos erros também professaram certos heréticos (Helcesaitas) afirmando não andar mal quem, apanhado em tempo de perseguição, prestasse culto externo aos ídolos, contanto que conservasse a fé no coração. Pois, isto é manifestamente falso. Porque, sendo o culto externo o sinal do interno, assim como é mentira perniciosa afirmar com palavras o contrário da verdadeira fé, que professamos de coração, assim também é perniciosa falsidade prestar culto externo a alguém contra o nosso sentimento íntimo. Por isso, Agostinho diz contra Séneca, que tanto mais condenavelmente cultuava os ídolos quanto levava o povo a crer que fazia sinceramente aquilo que mentirosamente praticou.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Nem no tabernáculo ou templo da lei antiga, nem atualmente nas igrejas admitem–se imagens para lhes prestarmos o culto de latria. Mas, pela significação que encerram, isto é, para que, mediante tais imagens, na mente dos homens se imprima e confirme a fé na excelência dos anjos e dos santos. – Salvo a imagem de Cristo à qual, em razão da divindade, é devido o culto de latria, como se dirá na Terceira parte.
RESPOSTA À SEGUNDA E À TERCEIRA. – As respostas resultam claras, daquilo que foi dito.
O primeiro discute–se assim. – Parece inexato considerar a idolatria como uma espécie de superstição.
1. – Pois, como os heréticos, também os idólatras são infiéis. Ora, a heresia é uma espécie de infidelidade, como se estabeleceu. Logo, a idolatria é também urna espécie de infidelidade e não, de superstição.
2. Demais. – A latria respeita à virtude de religião, a que se opõe a superstição. Ora, a idolatria significa univocamente a mesma latria que cultua a verdadeira religião. Pois, assim como o desejo da falsa beatitude tem significação unívoca com o da verdadeira, assim, o culto dos falsos deuses, chamado idolatria. significa univocamente o mesmo que o do verdadeiro Deus, que é a latria da verdadeira religião. Logo, a idolatria não é uma espécie de superstição.
3. Demais. –– O nada não pode ser espécie de nenhum gênero. Ora, a idolatria é nada. Pois, diz o Apóstolo: Sabemos que os ídolos não são nada no mundo. E mais abaixo: Mas que? Digo que o que foi sacrificado aos ídolos é alguma causa? Ou que o ídolo é alguma coisa? Como quem diz: Não. Ora, imolar aos deuses é o que constitui propriamente a idolatria. Logo, a idolatria não sendo, por assim dizer, nada, não pode ser espécie de superstição.
4. Demais. – A superstição consiste em prestar culto divino a quem ele não é devido. Ora, o culto divino, assim como não é devido aos ídolos, também não o é às criaturas; por isso certos são recriminados pelo Apóstolo, que adoraram e serviram à criatura antes que ao Criador. Logo, essa espécie de superstição é impropriamente chamada idolatria, devendo antes chamar–se latria da criatura.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito se sentia comovido em si mesmo vendo a cidade toda entregue à idolatria. Logo, a idolatria faz parte da superstição.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a superstição consiste em prestar culto a Deus de modo indevido. O que principalmente se dá quando o culto é prestado a quem não deveria sê–lo. Pois, deve sê–lo só ao sumo Deus incriado, como estabelecemos quando tratamos da religião. Portanto, o culto divino prestado a qualquer criatura é supersticioso.
Ora, esse culto divino, assim como era prestado às criaturas sensíveis mediante certos sinais sensíveis, como sacrifícios, divertimentos e causas semelhantes, assim também o era à criatura representada por uma forma ou figura sensível, chamada ídolo. Porém, o culto divino era prestado aos ídolos de diversos modos, Certos, com arte nefária, faziam certas imagens que, por virtude dos demônios, produziam determinados efeitos. E isso os levava a atribuir algo de divino a essas imagens e por consequência pensavam ser–lhes devido o culto divino. Tal foi a opinião de Hermes Trimegisto, segundo Agostinho. Outros, porém não prestavam culto divino às imagens mesmo, mas às criaturas que elas representavam. E a ambos estes casos se refere o Apóstolo. Quanto ao primeiro: Mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança de figura de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes e de serpentes. E quanto ao segundo, acrescenta: Adoraram e serviram à criatura antes que ao Criador.
Mas, estes últimos professavam uma tríplice opinião. – Uns pensavam que certos homens eram deuses, cujas imagens adoravam, como Júpiter, Mercúrio e outros tais. – Outros, porém pensavam que todo o mundo é Deus, não por causa da substância corpórea, mas, por causa da alma, que consideravam divina. Assim, diziam que Deus outra causa não é que a alma, governadora do mundo pelo movimento e pela razão; assim como dizemos que o homem é racional pela alma e não, pelo corpo. Por isso ensinavam que se devia prestar culto divino a todo o mundo e às suas partes – ao céu, ao ar, à água e assim por diante. E a elas referiam os nomes e as imagens dos seus deuses, como refere Varrão e Agostinho o confirma, – Outros enfim, e eram os Platônicos, ensinavam que hei um Deus sumo, causa de tudo. E depois dele, certas substâncias espirituais criadas pelo Deus supremo, a que chamavam deuses, por participarem da divindade, e a que nós chamamos anjos. Depois, vinham as almas dos corpos– celestes; abaixo delas, os demônios, que consideravam como uns animais aéreos; e abaixo, as almas humanas que, em virtude do mérito, pensavam haviam de subir à sociedade dos deuses ou dos demónios. E a todos esses seres prestavam o culto divino, como refere Agostinho.
Estas duas últimas opiniões diziam constituir a teologia física, que os filósofos estudavam no mundo e ensinavam nas escolas. – Quanto à outra, a do culto dos homens, diziam pertencer à teologia mitológica, representada nos teatros pelas ficções dos poetas. – E enfim a outra a das imagens, consideravam como pertencente à teologia civil, celebrada pelos pontífices nos templos.
Ora, tudo isto entra na superstição da idolatria. Donde o dizer Agostinho: É supersticioso tudo o que os homens instituíram para fazer e cultuar os ídolos, ou para prestar culto à criatura, ou a qualquer das partes delas, com se fora Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Assim como a religião não é a fé, mas confissão dela, mediante certos sinais externos, assim também a superstição é uma manifestação de infidelidade mediante o culto externo. E essa manifestação é significada pelo nome de idolatria e não, pelo de heresia, que exprime apenas a profissão de uma opinião falsa. Portanto, a heresia é uma espécie de infidelidade; mas, a idolatria, de superstição.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O nome de latria é susceptível de dupla acepção. – Numa, pode significar o ato humano relativo ao culto divino. Então, o nome de latria não varia de significação, seja qual for o seu objeto: porque o ser a que é prestado não se inclui neste sentido, na definição dela. E nesse caso o nome de latria é empregado univocamente, tanto em relação à verdadeira religião como à idolatria. Assim como o pagamento de um tributo é expressão de sentido unívoco, tanto quando pago ao rei verdadeiro como ao falso. – Noutra acepção, latria significa o mesmo que religião. Então, sendo uma virtude, por natureza presta o culto divino ao ser a que deve prestá–la. E nesse sentido, latria é um nome usado equivocamente, tanto a respeito da verdadeira religião como da idolatria; assim como a prudência significa equivocamente tanto a virtude da prudência como a prudência da carne.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Com a expressão – os ídolos não são nada no mundo – o Apóstolo quer dizer que aquelas imagens chamadas ídolos, não eram animadas como ensinava Hermes, nem tinham nenhuma virtude de divindade, como se fossem compostas de espírito e corpo. E o mesmo se deve entender da sua outra expressão – nada foi sacrificado aos ídolos, porque essa imolação em nada santificava as carnes imoladas, como pensavam os gentios, nem as tornava em nada imundas, como julgavam os Judeus.
RESPOSTA À QUARTA. – Do costume comum dos gentios, de prestarem culto a certas imagens de criaturas, derivou o nome de idolatria para significar qualquer culto atribuído à criatura, mesmo sem nenhuma imagem.
O segundo discute–se assim. – Parece que nada pode haver de supérfluo no culto de Deus.
1. – Pois, diz a Escritura: Por mais que glorifiqueis ao Senhor quanto puderdes, nunca lhe dareis a competente glória. Ora, o culto divino se ordena à glorificação de Deus. Logo, nada pode haver nele de supérfluo.
2. Demais. – O culto externo é uma manifestação do culto interno, pelo qual adoramos a Deus com fé, esperança e caridade, como diz Agostinho. Ora, a fé, a esperança e a caridade nada podem ter de supérfluo. Logo, nem o culto divino.
3. Demais. – O culto divino nos leva a dar a Deus o que dele recebemos. Ora, todos os nossos bens nós os recebemos de Deus. Logo, fazendo tudo o que pudermos para reverenciar a Deus nada de supérfluo haverá no culto divino.
Mas, em contrário, Agostinho diz, que o bom cristão e verdadeiro repele as ficções supersticiosas, mesmo das Sagradas Letras. Ora, as Sagradas Letras nos ensinam a cultuar a Deus. Logo, mesmo no culto divino pode haver alguma supérflua superstição.
SOLUÇÃO. – Uma coisa pode ser supérflua de dois modos. – Primeiro considerado na sua quantidade absoluta. E, neste sentido, nada pode ter de supérfluo o culto divino, pois não podemos fazer nada que não seja menos do que devemos a Deus. De outro modo, pode haver supérfluo por quantidade proporcional, quando uma causa não é proporcionada ao seu fim. Ora, o fim do culto divino consiste em o homem cultuar a Deus e se lhe sujeitar de alma e corpo. Portanto, nada terá de supérfluo o culto divino sempre que obrarmos para glorificar a Deus, para lhe sujeitarmos o nosso espírito e também o corpo, refreando as nossas concupiscências, conforme aos mandamentos de Deus e da Igreja, e ao costume daqueles com quem convivemos. Mas podemos também praticar atos, que em si mesmo não contribuem para a glória de Deus, nem para a elevação do nosso espírito para ele, nem para refrear a concupiscência desordenada da carne. Ou que estão em desacordo dos mandamentos de Deus e da Igreja; ou vão contra o costume comum, que, segundo Agostinho, deve ser tido como lei. E então tudo isso deve ser considerado supérfluo e supersticioso; pois, consistindo só em práticas externas, não constitui o culto divino interno. Por isso, Agostinho aplica o dito da Escritura – Está o reino de Deus dentro de vós – aos supersticiosos, que se ocupam principalmente com o exterior.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A glorificação de Deus, em si mesma, implica em trabalharmos para a sua glória: o que exclui a superfluidade ela superstição.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Pela fé, pela esperança e pela caridade, a alma se sujeita a Deus; por isso nada pode haver nelas de supérfluo. Mas o mesmo não se dá com Os atos externos, que às vezes não as incluem.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção colhe quanto ao supérfluo considerado na sua quantidade absoluta.
O primeiro discute–se assim. – Parece que o culto do verdadeiro Deus nada pode encerrar de pernicioso.
1. – Pois, diz a Escritura: Todo o que invocar o nome do Senhor será salvo. Ora, quem cultua a Deus de algum modo lhe invoca o nome. Logo, todo culto que tributamos a Deus contribui para a nossa salvação. Logo, nenhum é pernicioso.
2. Demais. – O Deus cultuado pelos justos foi sempre o mesmo em todas as idades do mundo. Ora, antes de haver lei, os justos cultuavam a Deus como lhes aprazia, sem cometerem por isso pecado mortal. Assim Jacó se obrigou livremente, por voto, a um culto especial, como se lê na Escritura. Logo, ainda agora, nenhum culto de Deus é pernicioso.
3. Demais. – A Igreja não admite nada de pernicioso. Ora, ela admite diversos ritos de cultuar a Deus. Por isso, Gregório escreve a Agostinho, bispo dos ingleses, que propunha os diversos costumes da Igreja de celebrar a missa: Apraz–me que escolhas solicitamente o que achaste que posso mais agradar a Deus onipotente tanto nas igrejas romanas como nas gaulesas ou em quaisquer outras. Logo, não há nenhum modo pernicioso de cultuar a Deus.
Mas, em contrário, Agostinho diz e está na Glosa, que a observância das cerimônias da lei antiga, depois de divulgada a verdade do Evangelho, tornou–se mortal. E, contudo essas cerimônias visavam o culto de Deus. Logo, pode haver algo de mortal no culto de Deus.
SOLUÇÃO. – Como diz Agostinho, a mentira perniciosa por excelência é a que tem por objeto as coisas da religião cristã. Ora, a mentira consiste em exteriorizarmos o pensamento de modo contrário à verdade. Mas, uma causa pode ser expressa tanto por palavras como por atos; e nesse modo de significar pelos atos consiste o culto externo da religião, como do sobredito se colhe. Portanto, será pernicioso o culto externo que significar uma falsidade. Ora, isto pode se dar de dois modos. – De um modo, relativamente à coisa da qual discorda a significação do culto. E então, nos tempos da lei nova uma vez consumados os mistérios de Cristo, é pernicioso fazer as cerimónias da lei antiga, que simbolizavam esses mistérios futuros; assim também seria funesto dizer que Cristo haverá de sofrer. – De outro modo à falsidade do culto pode provir de quem o pratica; e isto, sobretudo se dá com o culto público, que os ministros prestam em nome de toda a igreja. Pois, assim como seria falsário quem propusesse um negócio, em nome de outro, que não lh'o cometeu, assim também incorreria no vício de falsidade quem, em nome da Igreja, prestasse a Deus um culto contrário ao modo que ela com a sua divina autoridade instituiu, e passou a ser costume. Por isso Ambrósio diz: É indigno quem celebra um mistério de modo diferente do pelo qual Cristo o instituiu. E pela mesma razão, também a Glosa diz: a superstição consiste em aplicar o nome de religião à tradição humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus, sendo a verdade, invocam–no os que o cultuam em espírito e verdade, como diz o Evangelho. Portanto, um culto que encerra falsidade não contém propriamente a invocação salvadora de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Antes da lei escrita, os justos eram instruídos pela inspiração interior, quanto ao modo de cultuar a Deus, e a eles os seguiam os outros. Mas depois, os homens foram instruídos nessa matéria por preceitos externos; e desde então é funesto transgredi–los.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os costumes diversos da Igreja em matéria de culto divino em nada repugnam à verdade. Portanto devem ser observados, e é ilícito abandoná–los.
O segundo discute–se assim. – Parece que não há diversas espécies de superstição.
1. – Pois, segundo o Filósofo, se um dos contrários tem muitas significações, também as tem o outro, Ora, a religião, a que se opõe a superstição, não tem diversas espécies, mas a uma só se referem todos os seus atos. Logo, também a superstição não tem espécies diversas.
2. Demais. – Os contrários tem o mesmo objeto. Ora, a religião, a que se opõe a superstição, versa sobre os meios de nos ordenarmos para Deus, como estabelecemos. Logo, certas adivinhações dos acontecimentos humanos ou certas observâncias dos atos dos homens não podem constituir espécies de superstição, que se oponham à religião.
3. Demais. – Aquilo do Apóstolo – As quais tem aparência de sabedoria em culto indevido – diz a Glosa: isto é, com uma religião simulada. Logo, também a simulação deve ser considerada uma espécie de superstição.
Mas, em contrário, Agostinho admite diversas espécies de superstição.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos o vício da superstição consiste em ultrapassar a mediedade da virtude, relativamente a certas circunstâncias. Ora, segundo dissemos, não é qualquer diversidade de circunstâncias indevidamente observadas que varia a espécie do pecado, mas só quando elas se referem a objetos ou fins diversos; pois, é assim que os atos morais se especificam, conforme estabelecemos. Por onde, as espécies de superstição se diversificam, primeiro, pelo modo; segundo, pelo objeto. Pois, o culto divino pode ser prestado a quem deve sê–lo, isto é, ao verdadeiro Deus, mas de modo indevido, e esta é a primeira espécie de superstição. Ou a quem não devia sê–lo, isto é, a uma criatura qualquer; e este é outro género de superstição, que se divide em muitas espécies, conforme aos diversos fins do culto divino.
Ora, o culto divino se ordena, primeiro, a reverenciar a Deus. E então, a primeira espécie desse gênero é a idolatria, que presta reverência divina indebitamente à criatura. – Ele se ordena, em segundo lugar, a fazer o homem instruído de Deus, a quem cultua. E então há lugar para a superstição divinatória, que consulta os demônios, por certos pactos tácitos ou expressos feitos com eles. – Em terceiro lugar, o culto divino se ordena a dar uma certa direção aos atos humanos, conforme aos mandamentos de Deus, objeto do culto. Donde a superstição, cuja matéria são certas observâncias.
E a essas três se refere Agostinho quando diz o seguinte: É supersticioso tudo quanto foi estabelecido pelos homens para fazer ídolos e prestar–lhes culto, o que entra no primeiro gênero de superstição. E depois acrescenta: Ou para obter consultas e realizar certos pactos fundados em acordos e alianças com os demônios para alcançar revelações, o que constitui o segundo género. E logo a seguir: Neste género que é o terceiro, entram todos os amuletos e causas semelhantes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃ0. – Como diz Dionísio, o bem resulta de uma causa una e íntegra; mas, o mal, de qualquer defeito. Por isso, a uma mesma virtude se opõem muitos vícios, como estabelecemos. Quanto às palavras do Filósofo, elas são verdadeiras relativamente aos contrários em que a multiplicação tem o mesmo fundamento.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Certas adivinhações e observâncias constituem superstição por dependerem de determinadas obras dos demónios. E então importam em pactos feitos com eles.
RESPOSTA À TERCEIRA. – No lugar citado, religião simulada significa a aplicação do nome de religião à tradição humana, como diz a Glosa logo a seguir. Por onde, essa religião simulada outra coisa não é que o culto do Deus verdadeiro prestado de modo indevido. Como se alguém, sob a vigência da lei da graça, quisesse cultuar a Deus segundo os ritos da lei antiga. E a isto é a que literalmente se refere à Glosa.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a superstição não é um vício contrário à religião.
1. – Pois, um contrário não entra na definição do outro. Ora, a religião entra na definição da superstição; pois, a Glosa define a superstição como – a prática desregrada da religião quando comenta aquilo do Apóstolo: As quais coisas tem aparência de sabedoria em culto indevido. Logo, a superstição não é um vício oposto à religião.
2. Demais. – Isidoro diz: Cícero ensina que supersticiosos eram chamados os que por dias inteiros deprecavam e imolavam para que os filhos lhes sobrevivessem. Ora, isto também o permite o culto da verdadeira religião. Logo, a superstição não é um vício oposto à religião.
3. Demais. – Parece que a superstição é susceptível de excesso. Ora, na religião não pode haver excesso; pois, como se disse, praticando–a, nunca poderemos pagar a Deus o que realmente lhe devemos. Logo, a superstição não é um vício oposto à religião.
Mas, em contrário, Agostinho: Tanges a primeira corda pela qual cultuamos ao Deus único; e caiu a loucura da superstição, Ora, a religião consiste em prestar culto ao Deus único. Logo, a superstição se opõe à religião.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a religião é uma virtude moral. Ora, toda virtude moral consiste numa mediedade, como estabelecemos. Portanto, um duplo vício se opõe à virtude moral: um, por excesso e outro, por defeito. Pois, pode o vício exceder a mediedade da virtude, não só pela circunstância chamada quantidade, mas também por outras circunstâncias. Por onde, em relação a certas virtudes, como a magnanimidade e a magnificência, o vício excede a mediedade da virtude, não por buscar um alvo superior ao desta, pois tenderá talvez a um fim inferior ao dela; mas, por ultrapassar o meio termo virtuoso, dando alguma coisa a quem ou quando não devia, ou contrariando qualquer outra circunstância semelhante, como está claro no Filósofo. – Assim, pois, a superstição é um vício oposto à religião por excesso; não por prestar maior culto a Deus do que o da religião verdadeira; mas, por prestá–lo a quem não deve ou do modo indevido.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Assim corno aplicamos metaforicamente à palavra bom ao mau, como quando falamos de um bom ladrão, assim também o nome das virtudes às vezes por transposição se torna em mau sentido, como quando tomamos às vezes a prudência pela astúcia, conforme àquilo da Escritura: Os filhos deste século são mais sábios que os filhos da luz. E deste modo dizemos que superstição é religião.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Uma coisa é a etimologia de um nome e outra, a sua significação. A etimologia deriva da origem da significação do nome; ao passo que esta se funda no objeto a que o impomos para significá–lo. E essas duas coisas às vezes são diversas; assim, o nome de pedra nós o usamos como derivado da lesão ou ferimento que causa no pé; mas, não significa essa lesão, porque se a significasse também o ferro seria pedra, por também ferir (lesar) o pé. Do mesmo modo, o nome de superstição não há de forçosamente significar a causa pela qual foi usado.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A religião não é susceptível de excesso quantitativo, absolutamente falando; mas o é, proporcionalmente considerado. Isto é, quando, no culto divino, fazemos o que não devíamos.
O segundo discute–se assim. – Parece que não devemos nos servir do canto para louvar a Deus.
1. – Pois, diz o Apóstolo: Ensinando–nos e admoestando–nos uns aos outros com salmos, hinos e cânticos espirituais. Ora, não devemos usar para o culto divino senão do que nos é permitido pela autoridade da Sagrada Escritura. Logo, parece que não devemos usar, para louvar a Deus, de cânticos vocais, mas só, espirituais.
2. Demais. – Jerónimo, àquilo do Apostolo – Cantando e louvando ao Senhor vossos corações – Diz: Ouçam–me os adolescentes, ouçam–me os que tem na Igreja o dever de cantar salmos: devemos cantar a Deus, não com palavras, mas com o coração; nem deveis efeminar a voz com as vãs afetações da arte teatral, como se faz nas tragédias, de modo a se ouvirem na Igreja modulações e cânticos teatrais. Logo, não devemos usar do canto para louvar a Deus.
3. Demais. – Louvar a Deus é próprio tanto dos pequenos como dos grandes, segundo aquilo da Escritura: Dizei louvor ao nosso Deus, todos os seus servos, e os que o temeis, pequeninos e grandes. Ora, os grandes da Igreja não devem cantar; pois, diz Gregório, num decreto: Ordeno pelo presente decreto que nesta Sé os ministros do sagrado altar não devem cantar. Logo, os cantos não convêm ao louvor divino.
4. Demais. – Na lei antiga Deus era louvado com instrumentos musicais e cânticos humanos, como se lê na Escritura: Louvai ao Senhor com a cítara; cantai–lhe hinos a ele com o saltério de dez cordas; cantai–lhe a ele um novo cântico. Ora, a Igreja não usa de instrumentos musicais, como cítaras e saltérios, para louvar a Deus, para que não pareça voltar aos costumes judaicos. Logo, pela mesma razão não devemos usar de cânticos para louvar a Deus.
5. Demais. – É mais principal o louvor da mente que o da boca. Ora, o louvor da mente fica impedido pelo canto, quer porque a atenção dos cantores deixa de se aplicar ao assunto, preocupados que estão com o canto; quer também porque as palavras cantadas são menos entendidas dos ouvintes do que o seriam se fossem proferidas sem canto. Logo, não devemos usar do canto para louvar a Deus.
Mas, em contrário, Santo Ambrósio instituiu o canto na Igreja de Milão, como refere Agostinho.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, o louvor vocal é necessário para nos despertar o afeto para Deus. Por isso, de tudo o que pode ser útil para esse fim, podemos usar para louvar a Deus. Ora, é manifesto que as diversas melodias sonoras dispõem diversamente as almas humanas, como claramente o ensina o Filósofo e Boécio. Por onde, foi salutarmente instituído que se usasse do canto para louvar a Deus, despertando assim maior devoção nas almas tíbias. Por isso diz Agostinho: Aprovo o costume de cantar na Igreja para que as almas tíbias intensifiquem o afeto do amor, com o prazer de ouvir. E diz de si mesmo: Chorei ouvindo os teus hinos e cânticos e vivamente me comovi aos melodiosos acentos da tua Igreja.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Cânticos espirituais podem chamar–se não só os que cantamos interiormente na alma, mas também os que oralmente cantamos, porque aumentam a devoção espiritual.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Jerônimo não reprovava o canto de maneira absoluta, mas repreende os que cantam na Igreja teatralmente, não com o fim de despertar a devoção, mas por ostentação e para provocar o prazer. Por isso diz Agostinho: Quando me acontece deixar comover–me mais pelo canto do que pelo objeto dele, confesso arrependido que peco e então mais preferiria não ouvir o cantor.
RESPOSTA À TERCEIRA. – É preferível levar os homens à devoção pela doutrina e pela pregação do que pelo canto. Por isso os diáconos e os prelados que devem, ensinando e pregando, atrair as almas para Deus, não hão de dar importância ao canto, deixando de parte obrigações de maior relevo. Por isso, no mesmo lugar Gregório diz: Costume é muito repreensível, que aqueles que receberam a ordem do diaconato e devem se entregar aos deveres da esmola e da pregação, andem a se preocupar com a modulação da voz.
RESPOSTA À QUARTA. – Como diz o Filósofo, para o ensino não se devem usar flautas nem de qualquer instrumento semelhante, como a citara e outros; mas, de tudo o que contribuir para os ouvintes serem bons. Pois, esses instrumentos musicais movem antes a alma ao prazer do que despertam as boas disposições interiores. No antigo Testamento usavam–nos, quer porque, sendo o povo mais duro e carnal, havia necessidade de lhes tocar os sentidos, como também a de lhes fazer promessas terrenas; quer ainda porque esses instrumentos materiais tinham significação figurativa.
RESPOSTA À QUINTA. – A inteligência de quem se aplica a deleitar com o canto perde de vista o sentido das palavras, que vai cantando. Mas, quem canta por devoção nelas reflete com mais atenção, quer por se deter mais demoradamente numa mesma palavra; quer porque, como diz Agostinho, todos os afetos do nosso espírito, conforme a sua diversidade, descobrem modalidades próprias da voz e do canto com que se movem, por uma secreta familiaridade. E o mesmo se dá com os ouvintes que, embora às vezes não entendam o canto, entendem porem que se canta, para louvar a Deus; e isto basta para despertar a devoção.
O primeiro discute–se assim. – Parece que não devemos louvar a Deus oralmente.
1. – Pois, diz o Filósofo: Aos seres ótimos não damos louvor mas, algo de maior e melhor. Ora, Deus é o ótimo dos seres. Logo; não lhe devemos louvor, mas mais que louvor.· Por isso, a Escritura diz que Deus é maior que todo o louvor.
2. Demais. –O louvor de Deus é objeto do culto divino, por ser um ato de religião. Ora, nós cultuamos a Deus mais pela mente do que pela boca; por isso o Senhor aplica a certos aquilo da Escritura: Este povo me glorifica com os seus lábios, mas o seu coração está contudo longe de mim. Logo, devemos louvar a Deus mais com o coração do que com palavras.
3. Demais. – Louvamos os outros com palavras para leva–los a melhores práticas. Pois, assim como os maus se ensoberbecem com os louvores que recebem, assim, os bons tiram partido dos louvores que recebem para serem melhores. Por isso diz a Escritura: Do modo que a prata é provada no vaso de derreter, assim o homem é provado pela boca do que o louva. Ora, as palavras dos homens não podem fazer com que Deus seja melhor, tanto por ser imutável, como porque, sendo o sumo bem, não pode crescer na bondade. Logo, não devemos louvar a Deus oralmente.
Mas, em contrário, a Escritura: Com lábios de júbilo te louvará a minha boca.
SOLUÇÃO. – As nossas palavras não às usamos do mesmo modo para com Deus e para com os homens. Para com estes usamos delas para exprimir ideias que temos em mente, que não poderão conhecer se não as exprimirmos oralmente. Por isso, externamos oralmente o nosso louvor, para saberem, tanto o louvado como os outros, que formamos dele boa opinião. E assim levá–lo a ser melhor, induzir os que nos ouvem o louvá–lo, a terem boa opinião dele, a reverenciá–lo e imitá–lo. Mas, quando falamos a Deus, que vê os corações, não é para lhe manifestar o nosso pensamento, mas, para incitar, tanto a nós mesmos como os que nos ouvem a reverenciá–lo. Daí a necessidade do louvor oral, não por causa de Deus, mas em benefício mesmo nosso; pois, pelo louvor mesmo que lhe damos, despertamos o nosso amor para com ele, segundo aquilo da Escritura: Sacrifício de louvor me louvará: é ali o caminho por onde lhe mostrarei a salvação de Deus. E na medida mesma em que, louvando–o, alcançamos para Deus o nosso amor, nessa mesma afastamo–nos do que lhe é contrário, conforme ao dito da Escritura: Enfrear–te–ei com o meu louvor para que não pereças. E também o louvor oral desperta o afeto dos outros para Deus. Donde o dizer a Escritura: Seu louvor será sempre na minha boca; e depois acrescenta: Ouçam–no os humildes e alegrem–se. Engrandecei comigo ao Senhor.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – De dois modos podemos falar de Deus. Considerando–lhe a essência; e então, por incompreensível e inefável, está acima de todo louvor. Mas, neste ponto de vista, devemos–lhe a reverência e a honra da latria. Por isso diz o saltério de Jerônimo. Em se tratando de ti, ó Deus, todo, louvor se cala – quanto ao primeiro ponto; e quanto ao segundo – a ti se te pagarão os votos. – De outro modo, considerando–lhe o efeito, que se ordena para a nossa utilidade, e então nós lhe devemos louvor. Por isso diz a Escritura: Eu me lembrarei das misericórdias do Senhor, cantarei o louvor do Senhor por todos os bens que o mesmo Senhor nos deu. E Dionísio diz: Verás que todos os hinos, dos santos teólogos, isto é, os divinos louvores, distinguem os nomes de Deus, segundo as participações que ele na sua bondade permite, da tearquia, isto é, da sua divindade, pelas criaturas para lhe manifestarem as perfeições e cantarem–lhe os louvores.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O louvor oral é inútil para quem o dá se não for acompanhado do louvor do coração, que glorifica a Deus pensando com amor nas maravilhas das suas obras. Contudo, o louvor externo da boca serve para nos despertar o afeto interior e levar os outros a louvarem a Deus, como se disse.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Louvamos a Deus, não para utilidade sua mas, nossa, como se disse.