Category: Santo Tomás de Aquino
O quarto discute–se assim. – A virtude da verdade parece que não tende antes para diminuir a realidade.
1. – Pois, assim como incorre em falsidade quem exagera, assim também quem diz menos do que a realidade é, porque não é mais falso afirmar a igualdade entre quatro e cinco, do que entre quatro e três. Ora, toda falsidade é má em si mesma e deve ser evitada, como diz o Filósofo. Logo, a virtude da verdade não exagera nem diminui a realidade.
2. Demais. – Uma virtude tende mais para um extremo do que para outro, por ser a sua mediedade mais próxima de um, do que do outro extremo; assim, a coragem está mais próxima da temeridade do que da timidez. Mas, o meio termo da virtude não está mais próximo de um do que de outro extremo; porque, sendo uma igualdade, tem o ponto como meio termo. Logo, a virtude da verdade não pende, antes, para o menos.
3. Demais. – Parece que peca contra a verdade, por defeito, quem a nega, e por excesso, quem lhe acrescenta. Ora contraria mais a verdade quem a nega, que quem lhe acrescenta, porque ela não se compadece com a negação de si mesma, mas, se compadece com o acréscimo. Logo, parece que a verdade deve pender, antes para o mais, que para o menos.
Mas, em contrário, o Filósofo diz que, contra essa virtude nós antes pecamos por defeito.
SOLUÇÃO. – De dois modos podemos diminuir a verdade a nosso respeito. – Primeiro, afirmando; quando, por exemplo, não manifestamos todo o bem que há em nós, como, a ciência, a santidade ou outro semelhante. O que se dá sem detrimento da verdade, porque o mais inclui o menos. Por onde, neste sentido, a virtude de que tratamos diminui a realidade, Pois, como ensino o Filósofo no mesmo lugar, quem assim procede é mais prudente, porque todo exagero é – odioso. Pois os que dizem de si mais, do que na realidade são, tornam–se odiosos aos outros, por como que pretenderem assim lhes ser superiores; ao passo que os que ocultam a verdade a seu respeito como que, pela sua moderação, condescendem com os outros. Por isso diz o Apóstolo: Ainda quando me quiser gloriar não serei insipiente, porque direi a verdade; mas deixo isto para que nenhum cuide de mim fora do que vê em mim e ouve de mim. – De outro modo, podemos ocultar a verdade, negando a realidade que em nós há. E nesse caso essa virtude propriamente não diminui a realidade porque então incorreria numa falsidade. E, contudo, isso em si mesmo, lhe repugnaria menos à virtude de que tratamos, não quanto à sua essência própria, mas, quanto à prudência. em si mesma considerada, que deve levar em conta todas as virtudes. Pois, mais repugna à prudência, por ser mais perigoso e odioso aos outros, pensarmos que temos o que não temos e disso nos jactarmos, do que pensarmos ou dizermos que não temos o que temos.
Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a verdade não faz parte da justiça.
1. – Pois, é próprio da justiça dar a outrem o que lhe é devido. Ora, parece que quem fala verdade nem por isso atribui a outrem o que lhe pertence, como se dá com todas às referidas partes da justiça. Logo, a verdade não faz parte da justiça.
2. Demais. – A verdade é o objeto elo intelecto. Ora, a justiça tem na vontade o seu sujeito, como se estabeleceu. Logo, a verdade não faz parte da justiça.
3. Demais. – Segundo Jerônimo, a verdade é susceptível de tríplice distinção: a verdade da vida, a da justiça e a da doutrina. Ora, nenhuma delas faz parte da justiça. Pois, a verdade da vida contém em si todas as virtudes, como se disse. Por seu lado, a verdade da justiça é o mesmo que a justiça e, portanto não faz parte dela. E enfim a verdade da doutrina constitui antes matéria das virtudes intelectuais. Logo, a verdade de nenhum modo faz parte da justiça.
Mas, em contrário, Túlio coloca a verdade entre as partes da justiça.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, é anexa à justiça, como uma virtude secundária à principal toda virtude que em parte convém com ela e em parte aparta–se–lhe da noção perfeita. Ora, a virtude da verdade convém com a justiça de dois modos. Primeiro, por ser relativa a outrem; pois, a manifestação do nosso pensamento, que dissemos ser um ato de verdade, é relativa a outrem, por manifestarmos a outrem aquilo que nos concerne. Segundo, porque a justiça estabelece uma certa igualdade real; o que também o faz a virtude da verdade, pois, adota os sinais às causas existentes, no concernente a cada um. Mas, não realiza a noção própria da justiça, quanto à ideia de débito. Pois, o objeto dessa virtude não é o débito legal, como o é da justiça, mas antes, o débito moral; enquanto que a honorabilidade de cada um de nós obriga–nos a falar verdade. Por onde, a verdade faz parte da justiça e lhe está anexa como virtude secundária à principal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Sendo o homem um animal social, naturalmente tem um homem os deveres para com outro sem os quais não pode a sociedade humana subsistir. Pois, os homens não poderiam conviver em sociedade se não acreditassem uns nas palavras· dos outros, como manifestativas da verdade do pensamento. Por onde, a virtude da verdade de certo modo implica a noção de débito.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A verdade, quando conhecida, é objeto do intelecto. Ora, o homem pela mesma vontade com que usa dos seus hábitos e dos seus membros, emprega sinais externos para manifestar a verdade. E sendo assim, a manifestação da verdade é ato da vontade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A verdade de que agora tratamos difere da verdade da vida, como se disse. – E quanto à verdade da justiça, ela é susceptível de dupla acepção. A primeira, no sentido em que a justiça, em si mesma considerada, é de certo modo uma retidão regulada pela regra da lei divina. E neste sentido, a verdade da justiça difere da verdade da vida, pois, ao passo que esta é a que nos faz viver com retidão, relativamente a nós mesmos, a da justiça é a que nos leva a observar a retidão da lei ao julgar os outros. E, a esta luz, a verdade da justiça nada tem que ver com a verdade de que agora tratamos, como não o tem a verdade da vida. Noutro sentido, podemos entender a verdade da justiça, enquanto que, movidos pela justiça, manifestamos aos outros a verdade; por exemplo, quando confessamos a verdade em juízo ou depomos um testemunho verdadeiro. E a verdade neste sentido, é um ato particular de justiça. E não concerne diretamente à verdade de que agora tratamos, porque, nessa manifestação da verdade o que sobretudo visamos é dar a outrem o seu direito. Por isso o Filósofo, tratando dessa virtude diz: Não nos referimos ao que confessa verdade, nem ao que, em juízo, concerne à justiça ou à injustiça. – Quanto à verdade da doutrina, ela consiste, de certo modo, na manifestação da verdade que é objeto da ciência. Por isso, a verdade, neste sentido, constitui diretamente objeto dia virtude de que agora tratamos, mas só aquele pela qual nos manifestamos tais quais somos, em nossa vida e nossas palavras, não dizendo nem mais nem menos do que realmente somos. Contudo, como a verdade cognocível, quando por nós conhecida, nos concerne e nos diz respeito, por isso, a verdade da doutrina pode ser o objeto da verdade de que agora tratamos como o pode qualquer outra verdade pela qual manifestamos o que conhecemos, por palavras ou por obras.
O segundo discute–se assim. – Parece que a verdade não é uma virtude especial.
1. – Pois, a verdade e o bem entre si se convertem. Ora, a bondade não é uma virtude especial; ao contrário, todas as virtudes a supõem porque tornam bom quem as tem. Logo, a verdade não é uma virtude especial.
2. Demais. – Revelar o que nos concerne é um ato próprio da verdade, no sentido em que agora ela é considerada. Ora, qualquer outra virtude faz o mesmo, pois, todo ato virtuoso se manifesta pelo seu ato próprio. Logo, a verdade não é urna virtude especial.
3. Demais. – Chama–se verdade da vida a que nos leva a viver retamente; e ela diz a Escritura: Lembra–te, eu t'o peço, de como tenho andado diante de ti em verdade e com um coração perfeito. Ora, qualquer virtude nos leva a viver retamente, como o demonstra a definição supra referida da virtude. Logo, a verdade não é uma virtude especial.
4. Demais. – A verdade parece ser o mesmo que a simplicidade, pois, a uma e outra se opõe a simulação. Ora, a simplicidade não é uma virtude especial, porque torna a intenção reta, o que toda virtude supõe. Logo, também a verdade não é uma virtude especial.
Mas, em contrário, Aristóteles a enumera entre as outras virtudes.
SOLUÇÃO. – É da essência da virtude tornar bom o ato humano. Portanto, para praticar um ato bom, por uma bondade especial, há de o homem necessariamente ser disposto por uma virtude especial. E, o bem consistindo na ordem, como diz Agostinho, necessariamente a uma bondade de natureza especial corresponde uma ordem determinada. Ora, há uma ordem especial pela qual ordenamos as nossas palavras ou ações exteriores a um fim, como o sinal se ordena ao assinalado. E isso o alcançamos completamente pela virtude da verdade. Por onde é manifesto que a verdade é uma virtude especial.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A verdade e o bem convertem–se, quanto ao seu sujeito; pois, toda verdade é bem e todo bem é verdade. Mas, pelas suas noções, mutuamente se excedem, assim como o intelecto e a Vontade mutuamente se incluem; pois, o intelecto intelige a vontade e muitas outras coisas, e a vontade deseja o objeto do intelecto, e muito mais. Por onde, a verdade, na sua noção própria, que é a perfeição do intelecto, é um bem particular, enquanto um certo apetível. E, semelhantemente, o bem, na sua noção própria, enquanto fim do apetite é de algum modo verdade, enquanto um certo inteligível. Mas, a virtude, incluindo a noção de bondade, pode a verdade ser uma virtude especial, como o verdadeiro é um bem especial. Mas não pode ser a bondade uma virtude especial, pois é, antes, racionalmente, um gênero de virtude.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os hábitos virtuosos e viciosos se especificam pelos objetos, em si mesmos, buscados intencionalmente; mas, não pelo que é acidental e estranho à nossa intenção. Ora, o manifestarmos o que nos concerne supõe por certo a virtude da verdade, como o objeto principal da nossa intenção; mas, pode ser matéria de outras virtudes, por consequência, fora da intenção principal. Assim, o forte tem a intenção de agir fortemente; mas se, agindo fortemente, manifesta a força que tem, é isso uma consequência que não lhe constitui o principal da intenção.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A verdade da vida é a do objeto verdadeiro e não a que nos leva a falar verdade. Pois, como qualquer outra realidade, chama–se verdadeira a vida que obedece à sua regra e à sua medida, isto é, à lei divina, da conformidade com a qual tira a sua retidão. E tal verdade ou retidão é comum a qualquer virtude.
RESPOSTA À QUARTA. – A simplicidade é assim chamada por oposição à duplicidade, pela qual temos uma intenção e manifestamos outra. E assim a simplicidade se inclui na Virtude de que tratamos. Pois, ela nos torna reta a intenção, não diretamente, porque esse é o papel de todas as virtudes, mas, por excluir a duplicidade, pela qual temos uma intenção e manifestamos outra.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a verdade não é uma virtude.
1. – Pois, a primeira das virtudes é a fé, cujo objeto é a verdade. Ora, sendo o objeto anterior ao hábito e ao ato, parece que a verdade não é uma virtude, mas, algo de anterior a ela.
2. Demais. – Como diz o Filósofo, a verdade consiste em afirmarmos a realidade a respeito de nós mesmos, nem mais nem menos. Ora, isto nem sempre é louvável, tanto em relação aos nossos bons atos, como diz a Escritura – Seja um estranho o que te louve e não, a tua boca; quanto relativamente aos maus, pois, contra certos diz ainda a Escritura – Fizeram, como os de Sodoma, pública ostentação do seu pecado e não no encobriram. Logo, a verdade não é uma virtude.
3. Demais. – Toda virtude é teologal, intelectual ou moral. Ora, a verdade não é uma virtude teologal, porque tem corno objeto, não, Deus, mas os bens temporais. Pois, segundo Túlio, pela verdade diremos, sem nenhuma alteração. o que é, o que foi ou o que será. Nem tão pouco é uma das virtudes intelectuais, mas, o fim delas. E enfim não é uma virtude moral, por não ser uma mediedade entre um excesso e um defeito; pois, quanto mais dissermos a verdade tanto melhores seremos. Logo, a verdade não é uma virtude.
Mas, em contrário, o Filósofo a coloca entre as outras virtudes.
SOLUÇÃO. – A verdade pode ser tomada em duplo sentido. Primeiro, enquanto torna um dito verdadeiro. E então não é virtude, mas, o objeto ou o fim da virtude; pois, tomada nesse sentido, a verdade não é hábito, que é um gênero de virtude, mas, uma relação de igualdade entre o intelecto, ou o sinal, e a coisa interligada, ou a significada; ou ainda, entre a coisa e a sua regra, como dissemos na Primeira Parte. – Noutro sentido, pode chamar–se verdade o que nos leva a falar verdade, e faz com que nos chamem veraz. E tal verdade, ou veracidade, necessariamente é uma virtude; pois; o mesmo falar verdade é uma boa ação, porque a virtude nos tornam bons e boas as nossas obras.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A objeção colhe quanto à verdade tomada no primeiro sentido.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A confissão da verdade, a nosso respeito, corno tal, é um ato genericamente bom. Mas, isto não basta para esse ato ser virtuoso, que, além disso, deve revestir–se das circunstâncias devidas, a falta das quais torná–la–á vicioso. E, assim sendo, é mau louvarmo–nos a nós mesmos sem causa justa, mesmo se for verdade o que dissermos. E também o é manifestarmos o nosso pecado, como para nos gabarmos dele, ou de qualquer modo revelá–lo inutilmente.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem fala verdade usa de certos sinais – palavras, atos ou quaisquer manifestações exteriores conforme à realidade. Ora, tudo isso é objeto das virtudes morais, a que é próprio usar dos membros, em obediência ao império da vontade. Por onde, a verdade não é uma virtude teologal, nem intelectual, mas, moral. Pois, é uma mediedade entre um excesso e um defeito, de dois modos: quanto ao objeto e quanto ao ato. Em relação ao objeto, porque a verdade, por natureza, implica uma certa igualdade. Ora, esta é uma mediedade entre o mais e o menos. Por onde pelo fato mesmo de falarmos verdade, a nosso respeito, estamos num meio termo entre os que a dizem de si mesmo, mais e menos do que o deveriam. Quanto ao ato, estamos num meio termo, dizendo a verdade quando e como devemos. No excesso cai quem manifesta os seus atos inoportunamente: e peca por defeito quem os oculta quando devia manifestá–los.
O quarto discute–se assim. – Parece que se deve exercer a vingança contra os que pecaram involuntariamente.
1. – Pois, a vontade de um não resulta da de outro, conforme aquilo da Escritura: Eu sou o Senhor Deus forte e zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração. Por isso, pelo pecado de Cam foi–lhe amaldiçoado o filho Canaan. E também Giezi, por ter pecado, transmitiu a lepra aos seus descendentes. E o sangue de Cristo caiu como pena sobre os sucessores dos Judeus, que disseram: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos. E ainda na mesma Escritura se lê, que, por causa de Acar, todo o povo de Israel foi entregue na mão de seus inimigos; e pelo pecado dos filhos de Heli o mesmo povo fugiu à vista dos Filisteus. Logo, pode alguém ser punido, que agiu contra a sua vontade.
2. Demais. – Só é voluntário o que depende de nós. Ora, às vezes somos punidos pelo que não depende de nós. Assim, não pode administrar uma igreja quem está contaminado de lepra; e por causa da pobreza ou da malícia dos cidadãos, uma igreja pode perder a cátedra episcopal. Logo, a pena é infligida não somente pelo pecado voluntário.
3. Demais. – A ignorância causa o involuntário, Ora, às vezes a vingança é exercida contra certos, que o ignoram; assim, os filhos dos Sodomitas, embora inocentes e em estado de ignorância invencível, pereceram com os pais, como se lê na Escritura. Onde também se lê que crianças inocentes foram consumidas juntos com Datan e Abiron, por causa do pecado deles; e que até brutos, privados de razão, foram mandados matar por causa do pecado dos Amalecitas. Logo, a vindita às vezes se exerce contra os que agem involuntariamente.
4. Demais, – A coação repugna por excelência ao voluntário. Ora, quem, coagido pelo temor, comete um pecado, nem por isso escapa ao reato da pena. Logo, a vingança é às vezes exercida contra os que pecaram involuntariamente.
5. Demais. Comentando o Evangelho, diz Ambrósio: A embarcação onde estava Judas era violentamente agitada, e Pedro seguro nos seus méritos, tremia por causa do crime alheio. Ora, Pedro não queria o pecado de Judas. Logo, às vezes somos punidos tendo agido involuntariamente.
Mas, em contrário, a pena é devida ao pecado. Ora, todo pecado é voluntário, como diz Agostinho. Logo, a vingança só se exerce contra aqueles que agiram voluntariamente.
SOLUÇÃO. – A pena pode ser entendida de dois modos. – Primeiro, quanto à sua natureza. E, nesse sentido, só é devida ao pecado; porque ela restaura a igualdade da justiça fazendo com que sofra, sem o querer, aquele que, pecando, cedeu demasiado à sua vontade. Por onde, sendo todo pecado voluntário, mesmo o original, como estabelecemos, resulta consequentemente, que ninguém pode ser punido, no caso vertente, senão pelo que voluntariamente fez. – De outro modo, pode–se considerar a pena como remédio, não só reparador dos pecados passados, mas também preservativo dos futuros, bem como promotora do bem. E então pode alguém ser punido sem culpa, mas não, sem causa. É mister porém saber–se que um remédio nunca priva de um maior bem pata promover um menor; assim, Um remédio para o corpo nunca cega um olho, para curar o calcâneo. Mas, às vezes, causa um dano menor para promover um maior bem. Ora, sendo os bens espirituais máximos e os materiais, mínimos, às vezes somos punidos, sem culpa, nos bens temporais, como o fazem muitas penas da vida presente, infligi das por Deus, para nos humilhar e provar. Mas nunca somos punidos nos bens espirituais sem culpa nossa, nem na vida presente nem na futura; porque, as penas desta última não visam sanar, mas resultam da condenação espiritual.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Ninguém sofre nunca uma pena espiritual pelo pecado alheio; porque a pena espiritual atinge a alma, que nos torna a cada um de nós senhor de si. Mas, às vezes, pela pena temporal, um é punido em lugar de outro, por três razões. Primeiro, quando, na ordem temporal, um homem pertence a outro. E por isso, sofre a pena devida a este; assim, o corpo do filho é de certo modo propriedade do pai, e os escravos, do senhor. – Segundo, quando o pecado de um contamina outro. Ou por imitação; assim, os filhos imitam os pecados dos pais e os escravos, os do senhor para pecarem com maior ousadia. Ou como mérito; assim, os pecados dos súbditos fazem–lhes merecer um prelado pecador, segundo aquilo da Escritura: ele é o que faz reinar o homem hipócrita por causa dos pecados do povo. E por Davi ter pecado, pelo tato de fazer a resenha do seu povo, todo o povo de Israel foi punido. Ou por qualquer consentimento ou dissimulação; assim, às vezes os bons são punidos juntamente com os maus, por algum castigo temporal, por não terem reprovado os pecados destes, como diz Agostinho. – Terceiro, para pôr em evidência a unidade da sociedade humana, da qual um deve velar pelos outros para que não pequem; e para fazer detestar o pecado, enquanto que a pena de um redunda na de todos, como se todos constituíssem um só corpo, como diz Agostinho, do pecado de Acar. – Quanto ao dito do Senhor: Que vinga a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e a quarta geração, ele antes visa a misericórdia que a severidade; pois, não–tira vingança imediata, mas, ao contrário, espera pelos descendentes, para que esses ao menos se emendem. Mas, se a malícia destes aumenta, vê–se como obrigado a castiga–Ias com a sua vingança.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como diz Agostinho, o juízo humano deve imitar os juízos divinos, quando manifestamente condenam os pecadores na ordem espiritual. Mas, o juízo humano não pode imitar os juízos ocultos de Deus, que o levam a punir a certos, na ordem temporal, sem culpa deles; porque não podemos compreender as razões desses juízos, de modo a saber o que a cada um convém. Por onde, o juízo humano nunca deve punir ninguém, sem culpa, com a pena de flagelação, matando, mutilando ou açoitando. Pode, porém infligir a pena de condenação, mesmo sem culpa do punido, mas, não sem causa. E isto em três casos. – Primeiro, quando a pessoa se tornou incapaz de, sem culpa própria, adquirir ou conservar um certo bem; tal o leproso privado de administrar uma igreja, o bígamo ou o que aplicou a pena de morte, impedidos por isso de receberem as ordens sagradas. – Segundo, quando o bem de que um fica privado não é próprio, mas, comum; assim, é para o bem de toda a cidade que uma igreja tem o episcopado e não só para o bem do clero. – Terceiro, quando o bem de um depende do bem de outro; assim, no crime de lesa majestade, o filho perde a herança por causa do pecado do pai.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O juízo divino pune as crianças inocentes, na ordem temporal, juntamente com os pais, quer porque, sendo partes destes, nelas também eles são punidos; quer, por essa pena redundar em bem delas, pois, se não fossem punidas, viriam a imitar a malícia paterna e assim se tornariam merecedoras de penas mais graves. A vingança também se exerce sobre os brutos e quaisquer outras criaturas irracionais, porque, além de assim lhes serem punidos os donos, essa punição faz detestar o pecado.
RESPOSTA À QUARTA. – A coação do temor não produz o involuntário pura e simplesmente, mas deixa subsistir o voluntário misto, como dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. – Os outros Apóstolos se alarmaram com o pecado de Judas, do mesmo modo porque a multidão é punida pelo pecado de um só, para pôr em evidência a solidariedade humana, como dissemos.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a vingança não deve ser exercida por meio das penas habituais entre os homens.
1. – Pois, matar um homem é arrancá–lo à vida. Ora, o Senhor mandou que não se arrancasse a cizânia, símbolo do mau filho. Logo, não se deve impor a pena de morte aos pecadores.
2. Demais. – Todos os que pecam mortalmente parece que merecem a mesma pena. Logo, se certos que pecam mortalmente são punidos de morte, parece que todos os que assim pecam deveriam sofrer a mesma pena, o que é evidentemente falso.
3. Demais. – A punição manifesta imposta a um pecador revela–lhe o pecado; o que é mau para o povo, que, do exemplo do pecado tira ocasião de pecar. Logo, parece que não se deve infligir a pena de morte a nenhum pecado.
Mas, em contrário, a lei divina determina tais penas aos pecados, como do sobredito resulta.
SOLUÇÃO. – A vingança é lícita e virtuosa na medida em que visa coíbir os maus– Ora, os que não têm amor pela virtude são coibidos de pecar pelo temor de perderem certos bens que amam mais que os adquiridos pelo seu pecado; do contrário, o temor não faria evitar o pecado. Por onde, devemos vingar os pecados, subtraindo aos homens os bens que eles mais amam. Ora, os bens que mais eles prezam são: a vida, a integridade do corpo, a liberdade própria e os bens exteriores, como as riquezas, a pátria e a glória. Por isso, como diz Agostinho, Túlio escreve que as leis cominam oito gêneros de penas, a saber: a morte, que priva da vida; os açoites e o talião, pelo qual se dá olho por olho, e que destrói a integridade do corpo; a servidão e os grilhões, que privam de liberdade; o exílio, que priva da pátria; a condenação, que faz perder as riquezas; e a ignomínia, que priva da glória.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O senhor proíbe arrancar a cizânia, quando há perigo de com ela arrancarmos também o trigo. Ora, às vezes podemos eliminar os maus, pela morte, não só sem perigo, mas ainda, com grande utilidade para os bons. Por onde, em tal caso, a pena de morte pode ser infligida aos pecadores.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Todos os que pecam mortalmente são dignos da morte eterna, como retribuição futura, dada pela verdade infalível do juízo divino. Mas, as penas desta vida visam antes sanar. Por isso, só é infligida a pena de morte aos pecadores cujos pecados podem redundar em grave mal para os outros.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quando ao mesmo tempo que da culpa de outrem, temos conhecimento da pena, da morte que sofreu ou de outras consequências quaisquer, que nos causam horror, por isso mesmo a nossa vontade se aparta do pecado. Porque, o temor da pena mais nos aterra, do que nos alicia o exemplo da culpa.
O segundo discute–se assim. – Parece que a vingança não é uma virtude especial distinta das outras.
1. – Pois, assim como os bons são recompensados pelo bem que fazem, assim, pelo mal que cometem os maus são punidos. Ora, a remuneração dos bons não é objeto de nenhuma virtude especial, mas, é um ato de justiça comutativa. Logo, pela mesma razão, vingar o mal não constitui nenhuma virtude especial.
2. Demais. – Não é preciso nenhuma virtude especial para ordenar o homem à prática de atos a que ele já se acha ordenado suficientemente por outras virtudes. Ora, para vingar o mal já suficientemente o dispõe a virtude da fortaleza e a do zelo. Logo, a vingança não deve ser considerada uma virtude especial.
3. Demais. – A toda virtude especial se opõe um vício especial. Ora, parece que a vingança não se opõe nenhum vício especial. Logo, não é uma virtude especial.
Mas, em contrário, Túlio a considera parte da justiça.
SOLUÇÃO. – Como diz o Filósofo, nós temos por natureza a aptidão para a virtude, embora ela se complete pelo costume ou por alguma outra causa. Por onde, é claro que as virtudes nos aperfeiçoam, fazendo–nos seguir, do modo devido, as inclinações naturais compreendidas no direito natural Por onde, a cada inclinação natural determinada se ordena uma virtude especial. Ora a natureza tende, por essência, a remover o que lhe é nocivo: por isso tem os animais a potência irascível além da concupiscível. Ora, removemos o que nos danifica evitando que os outros nos injuriem ou vingando as injúrias feitas. Não com a intenção de fazer mal a outrem, mas com a de removermos o dano. Mas, esse é o objeto da vingança. Pois, diz Túlio: Pela vingança repelimos, defendendo–nos ou vingando, a violência, a injúria e sobretudo o que é desonroso, isto é, ignominioso.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Pagar o débito legal é o objeto da justiça comutativa; e pagar o débito moral, oriundo de um benefício particular recebido, é o objeto da virtude da gratidão. Assim também a punição dos pecados, como função da justiça pública, é um ato de justiça comutativa : mas, quando respeita à imunidade de um particular, que repele a ,injuria, constitui o objeto da virtude da vingança.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A fortaleza dispõe para a vingança, removendo o obstáculo, que é o temor de um perigo iminente. Ao passo que o zelo, implicando o devotamento do amor, é primariamente a raiz da vingança, levando–no, a vingar as injúrias feitas, a Deus e aos próximos, as quais a caridade nos faz considerar como nossas. Pois, a raiz de toda virtude é a caridade; porque, como diz Gregório, numa homília, o ramo das boas obras perde toda a perdura se não permanece unido à raiz da caridade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – À vingança se opõem dois vícios. Um, por excesso, a saber, o pecado de crueldade ou de sevícia, que excede a medida, no punir. Outro se lhe opõe por defeito, como quando somos muito remissos no punir; donde o dito da Escritura: Aquele que poupa a vara aborrece seu filho. Ora, a virtude da vingança consiste – em conservarmos, em todas as circunstâncias, a moderação devida, ao castigar.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a vingança não é lícita.
1. – Pois, quem para si usurpa o que é de Deus, peca. Ora, a vingança pertence a Deus, como diz a Escritura, conforme outra letra: Minha é a vingança e eu lhes darei o pago. Logo, toda vingança é ilícita.
2. Demais. – Não toleramos aquele de quem nos vingamos. Ora, devemos tolerar os maus; pois, àquilo da Escritura – Bem como o lírio entre os espinhos, diz a Glosa: Não foi bom quem não pode tolerar os maus. Logo, não devemos nos vingar dos maus.
3. Demais. – A vingança aplica castigos que causam um temor servil. Ora, a Lei Evangélica não é uma lei de temor, mas de amor, como diz Agostinho. Logo, pelo menos o Novo Testamento não permite nenhuma vingança.
4. Demais. – Vinga–se quem tira desforço das injúrias sofridas. Ora, segundo parece, não é lícito, mesmo ao juiz, punir os que delinquem contra ele. Pois, diz Crisóstomo: Aprendamos, ao exemplo de Cristo, a suportar com magnanimidade as nossas injúrias; mas, injúrias a Deus não consintamos nem mesmo em as ouvir. Logo, a vingança parece ilícita.
5. Demais. – O pecado da multidão é mais nocivo que o de um só; pois, diz a Escritura: De três cousas se receou o meu coração: da delação duma cidade, do levantamento dum povo mancomunado e da calúnia mentirosa. Ora, do pecado da multidão não se deve tirar vingança; pois, àquilo do Evangelho – Para que talvez não suceda que arranqueis o trigo, deixai crescer uma e outra – diz a Glosa: nem a multidão nem o príncipe devem ser excomungados. Logo, também não é licita qualquer outra vingança.
Mas, em contrário. – De Deus só devemos esperar o que e bom e lícito. Ora, devemos esperar de Deus a vingança dos nossos inimigos, conforme ao Evangelho. Deus não fará justiça aos seus escolhidos que estão clamando a ele de dia e de noite? E como se respondesse: Por certo a fará. Logo, em si mesma a vingança não é má e ilícita.
SOLUÇÃO. – A vingança se consuma infligindo ao que pecou, uma pena, como um mal. Logo, devemos levar em conta na vingança, o ânimo com que age quem a exerce. Se, pois, a sua intenção principalmente está no mal daquele de quem tirou vingança e nela se compraz, a vingança é absolutamente ilícita. Porque o nos comprazermos com o mal de outrem supõe o ódio, contrário à caridade, que nos manda amar a todos os homens. Nem pode escusar–se ninguém dizendo que quer o mal de quem injustamente lh'o fez, assim como não seria escusado quem odiasse ao que o odeia. Pois, não devemos pecar contra outrem por ter este antes pecado contra nós, o que seria deixarmo–nos vencer do mal, procedimento proibido pelo Apóstolo, quando diz: Não te deixes vencer do mal, mas, vence o mal com o bem. – Mas. se a intenção de quem se vinga visa principalmente um bem, que obteria punindo o pecador – por exemplo, fazendo–o emendar–se ou pelo menos coibindo–o, dando paz aos outros, salvando a justiça e a honra de Deus – nesse caso a vingança pode ser lícita, uma vez observadas as circunstâncias devidas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quem, conforme o grau da sua posição exerce a vingança contra os maus, não usurpa para si o que é de Deus, mas usa do poder que Deus lhe conferiu, conforme o diz o Apóstolo, do príncipe temporal: O ministro de Deus é vingador em ira contra aquele que obra mal. Mas, quem exerce a vingança fora ria ordem instituída por Deus usurpa o que é de Deus e portanto peca.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os maus são tolerados pelos bons por sofrerem estes pacientemente, como devem as injúrias que aqueles lhes as sacam; mas não os toleram para suportarem as injúrias feitas a Deus e ao próximo. Pois, diz Crisóstomo: É louvável sofrer pacientemente injúrias feitas a nós; mas, é tudo quanto há de ímpio dissimular as– feitas a Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A lei do Evangelho é uma lei de amor. Por isso, aos que fazem o bem por amor, único que vivem propriamente sob a lei evangélica, não se lhes deve incutir o temor, por meio de penas; mas, só aqueles que não se deixam persuadir pelo amor à prática de boas obras e que, embora façam parte do número dos filhos da Igreja, não lhe pertencem porém pelo merecimento.
RESPOSTA À QUARTA. – A injúria assacada contra outrem redunda às vezes contra Deus e a Igreja. E então devemos vingar a injúria que sofremos, como se deu com Elias, que fez descer o fogo do céu sobre os que vieram prendê–lo, como se lê na Escritura. E do mesmo modo Eliseu amaldiçoou os meninos que zombavam dele, como também narra a Escritura; e o Papa Silvestre excomungou os que o mandaram ao exílio. – Mas, quando a injúria só nos fere a nossa própria pessoa, devemos tolerá–la pacientemente, se nos for possível. Pois, esse preceito da paciência deve ser entendido relativamente à disposição da nossa alma, como diz Agostinho.
RESPOSTA À QUINTA. – Quando todo o povo peca, deve–se tirar vingança dele, ou totalmente, como no caso dos Egípcios que, perseguindo os filhos de Israel, ficaram submersos no Mar Vermelho; e também no dos Sodomitas, que todos pereceram – o que tudo se lê na Escritura. Ou, em grande parte do povo, como no caso dos que adoraram o bezerro. Outras vezes porém se há lugar de esperar que o povo venha a corrigir–se, a severidade da vingança deve recair sobre os cabeças que, uma vez punidos, infundirão terror aos outros; assim, o Senhor mandou enforcar os príncipes do povo, por causa. do pecado da multidão. – Se não foi porém toda a multidão, mas só parte dela, a que pecou, então a vingança deve exercer–se sobre os maus, se puderem ser separados dos bons; mas, se puder sê–lo sem escândalo dos outros, pois, do contrário, deve–se ter compadecimento da multidão e pôr de lado a severidade. E o mesmo se deve dizer do chefe, a quem a multidão obedece. Assim, deve–se lhe tolerar o pecado se não puder ser punido sem escândalo da multidão; salvo se o seu pecado fosse tal que prejudicasse ao povo, espiritual ou temporalmente mais do que o escândalo resultante da punição.
O quarto discute–se assim. – Parece que elevemos privar os ingratos, dos benefícios.
1. – Pois, diz a Escritura: A esperança do ingrato se derreterá com o gelo do inverno. Ora, essa esperança não se lhe derreteria se não o privássemos dos benefícios. Logo, devemos privá–lo deles.
2. Demais. – Ninguém deve dar a outrem ocasião de pecar. Ora, o ingrato tem uma ocasião de praticava ingratidão, no benefício, que recebe. Logo, não devemos fazer benefício ao ingrato.
3. Demais. – Diz a Escritura: Pelas coisas em que alguém peca por essas é também atormentado. Ora, o ingrato, em relação ao benefício recebido, peca contra esse benefício. Logo, deve ser privado dele.
Mas, em contrário, o Evangelho diz que o Altíssimo faz bem aos mesmos que lhe são ingratos e maus. Ora, é necessário que nos tornemos seus filhos, pela imitação, como no mesmo lugar se lê. Logo, não devemos privar os ingratos, dos nossos benefícios.
SOLUÇÃO. – Em relação ao ingrato, duas coisas temos de considerar. – A primeira, o que é digno de sofrer. E, então, é certo que merece ser privado do benefício. – A segunda, o que deve o benfeitor fazer. Pois, antes de tudo, não deve facilmente prejulgar a ingratidão; porque frequentemente, como diz Séneca, quem não retribui o benefício é grato, por não ter talvez a faculdade ou a ocasião oportuna de fazê–lo. Em segundo lugar, deve procurar fazer do ingrato um agradecido; e, se não o conseguir com um primeiro benefício, talvez o conseguirá com um segundo. Se, porém a ingratidão aumentar, com a multiplicação dos benefícios, e o ingrato tornar–se pior, devemos cessar de lhos fazer.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A autoridade citada refere–se ao que o ingrato merece sofrer.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Quem faz benefício a um ingrato não lhe dá ocasião de pecar, mas antes, de gratidão e de amor. Mas, se quem recebe o benefício tira dele ocasião de pecar, não devemos imputá–la ao benfeitor.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem faz um benefício não deve logo fazer–se vingador da ingratidão, mas antes, um médico bondoso, de modo a curá–la, com benefícios reiterados.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a ingratidão sempre é pecado mortal.
1. – Pois, a Deus devemos a gratidão por excelência. Ora, pecando venialmente não somos ingratos para com Deus; do contrário todos se–Io–iam. Logo, nenhuma ingratidão é pecado venial.
2. Demais. – Pecado mortal é o que contraria à caridade, como se disse. Ora, a ingratidão contraria à caridade, como se disse. Logo, a ingratidão é sempre pecado mortal.
3. Demais. – Séneca diz: Em matéria de beneficência a fórmula do dever recíproco é a seguinte: um deve logo esquecer o que deu; o outro, nunca esquecer o recebido. Ora, parece que, se devemos esquecer, é para encobrir o pecado de quem nos recebeu o benefício, se vier a ser ingrato; o que não deveríamos fazer se a ingratidão fosse um pecado leve. Logo, a ingratidão é sempre pecado mortal.
Mas, em contrário, a ninguém devemos dar ocasião de pecar mortalmente. Ora, como Séneca diz no mesmo lugar, às vezes o beneficiado mesmo deve ser despistado, a ponto de ignorar quem lhe fez o benefício; o que implica em lhe dar ocasião de pecar. Logo, a ingratidão nem sempre é pecado mortal.
SOLUÇÃO. – Como do sobredito resulta, uma pessoa pode ser ingrata de dois modos. – Primeiro só por omissão; por exemplo, não reconhecendo, não louvando ou não retribuindo, por sua vez, o benefício recebido. O que nem sempre é pecado mortal. Pois, como dissemos o dever de gratidão consiste em fazermos, mesmo uma retribuição liberal, a mais do que estamos obrigados; e portanto, deixando de o fazer, não pecamos mortalmente. Mas, cometemos um pecado venial, porque assim procedemos por negligência ou por uma certa indisposição para a virtude. Pode porém acontecer que essa ingratidão também seja pecado mortal, ou pelo desprezo interior; ou ainda pela natureza do bem de que privamos o benfeitor e que lhe era necessariamente devido pelo benefício feito, quer absolutamente, quer pela situação de necessidade em que se encontre. De outro modo é ingrato quem, além de não cumprir o dever de gratidão, procede ainda contrariamente, E também este modo de proceder, conforme à natureza do ato, que é, ora, pecado mortal e ora, venial. Devemos porém saber, que a ingratidão proveniente do pecado mortal é a ingratidão na sua essência perfeita; mas, a proveniente do pecado venial, o é de essência imperfeita.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O pecado venial não nos torna ingratos para com Deus por uma ingratidão essencialmente completa. Mas, por impedir algum ato de virtude pelo qual serviríamos a Deus, tem algo de ingratidão.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A ingratidão, pecado venial, não é contrária à caridade, mas está fora dela; porque, não fazendo desaparecer o hábito da caridade exclui um certo ato da mesma.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Diz Séneca, na mesma obra: Erra quem pensa que quando dizemos que o autor de um benefício deve esquece–la, pretendemos privá–lo brutalmente do direito de lembrar–se, de lembrar–se sobretudo de um ato honroso por excelência. Quando, pois, dizemos – não deve lembrar–se – queremos significar: Não deve gabar–se nem jactar–se.
RESPOSTA À QUARTA. – Quem, ignorando o benefício, não o retribui, não é ingrato, contanto que esteja pronto a fazê–lo desde que o conheça. Mas, é às vezes recomendável deixarmos o beneficiado na ignorância do benefício que lhe fizemos. Quer para evitarmos a vanglória, como o fez S. Nicolau quando, atirando uma certa quantidade de ouro para dentro de uma casa, às ocultas, quis assim evitar o reconhecimento humano pelo seu benefício. Quer também porque, evitando ferir o pudor do beneficiado, por isso mesmo tornamos maior o nosso benefício.