Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute–se assim. – Parece que o uso do vinho é totalmente ilícito.
1. – Pois, sem sabedoria não pode ninguém trilhar o caminho da salvação; assim, diz a Escritura: Deus a ninguém ama senão ao que habita com a sabedoria; e mais abaixo: Pela sabedoria é que foram sarados todos quantos te agradariam, Senhor, desde o princípio. Ora, o uso do vinho impede a sabedoria; assim diz a Escritura: Pensei dentro no meu coração apartar do vinho a minha carne afim de passar o meu ânimo à sabedoria. Logo, beber vinho é absolutamente ilícito.
2. Demais. – O Apóstolo diz: Bom é não comer carne nem beber vinho, nem coisa em que teu irmão acha tropeço ou se escandaliza ou se enfraquece. Ora, abandonar o bem da virtude é vicioso e semelhantemente escandalizar o próximo. Logo, usar do vinho é ilícito.
3. Demais. – Jerônimo diz, que o vinho com a carne foi permitido depois do dilúvio; Cristo porém veio no fim dos séculos para restabelecer as coisas como eram no princípio. Logo, na vigência da lei cristã parece ilícito o vinho.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo: Não bebas mais água só; mas usa pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades. E noutra parte diz a Escritura: O vinho bebido moderadamente é júbilo da alma e do coração.
SOLUÇÃO – Nenhuma comida ou bebida em si mesma considerada é ilícita, segundo o dito do Senhor, no Evangelho: Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem. Logo, beber vinho, não é, em si mesmo, ilícito. Mas pode tornar–se ilícito por acidente. Ora, pela condição de quem bebe que facilmente se deixa prejudicar pelo vinho, ou por se ter obrigado, por um voto especial a não beber vinho. Ora, pelo modo de beber, se, nesse ponto, exceder a medida. Ora, ainda, no que respeita aos outros, que com isso se escandalizem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A sabedoria podemos vê–Ia de dois modos. Primeiro, geralmente, enquanto baste para a salvação. E, então, não é preciso, para conseguirmos a sabedoria, que nos abstenhamos completamente do vinho, senão só do uso imoderado dele. – De outro modo, relativamente ao grau de perfeição. E então é necessário para certos, afim de conseguirem a sabedoria, que se abstenham totalmente do vinho, conforme as condições de pessoas e de lugares.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O Apóstolo não diz que, absolutamente falando, é bom abstermo–nos do vinho; mas no caso em que o uso dele escandaliza a outrem.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Cristo nos proíbe certas coisas como absolutamente ilícitas; certas outras, porém, como impedimento à perfeição; e deste modo proíbe a certos, em busca da perfeição, o uso do vinho, como das riquezas e de coisas semelhantes.
O segundo discute–se assim. Parece que a sobriedade não é em si mesma uma virtude especial.
1. – Pois, a abstinência tem como matéria a comida e a bebida: Ora, nenhuma virtude tem especialmente como objeto a comida. Logo, nem a sobriedade, que tem como matéria a bebida, é uma virtude especial.
2. Demais. – A abstinência e a gula têm como matéria os prazeres do tato, enquanto sentido da alimentação. Ora, tanto a comida como a bebida simultaneamente revertem em alimento; pois, o animal precisa simultaneamente nutrir–se de coisas úmidas e secas. Logo, a sobriedade, que tem por objeto a bebida. não é uma virtude especial.
3. Demais. – Assim como, em matéria de nutrição, distingue–se a comida da bebida, assim também distinguem–se diversos géneros de comida e diversos géneros de bebidas. Se, pois, a sobriedade fosse em si mesma uma virtude especial, resultaria a existência de tantas virtudes especiais quantas as diferenças em comida ou de bebida, o que é inadmissível. Logo, não parece que seja a sobriedade uma virtude especial.
Mas, em contrário, Macróbio considera a sobriedade como uma parte especial da temperança.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, é a função da virtude moral conservar o bem da razão contra os obstáculos que se lhes podem opor. Portanto, a cada impedimento especial da razão necessariamente corresponde uma virtude especial para removê–lo. Ora, a bebida inebriante impede, de modo especial, o uso da razão, porque perturba o cérebro com a sua fumosidade. Por onde, para remover esse impedimento da razão, é necessária uma virtude especial, que é a sobriedade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A comida e a bebida podem geralmente impedir o bem da razão, absorvendo–a, com o prazer imoderado. Por isso, há a virtude geral da abstinência, cujo objeto é a comida e a bebida. Ora, a bebida capaz de inebriar o impede de um modo especial, como dissemos. Por isso, exige uma virtude especial.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A virtude da abstinência não tem como matéria a comida e a bebida, enquanto nutritivas, mas enquanto impedem o uso da razão. Por isso, não há necessidade de uma virtude especial tendo como matéria a nutrição.
RESPOSTA À TERCEIRA – Todas as bebidas capazes de embriagar impedem, pelo mesmo motivo, o uso da razão. Por isso, essa diversidade de bebidas tem uma relação acidental com a virtude. Donde o não diversificarem as virtudes essas diversidades. E o mesmo se dá com as diversidades de comida.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a matéria própria da sobriedade não é a bebida.
1. – Pois, diz o Apóstolo: Não saibam mais do que convém saber, mas que saibam com sobriedade. Logo, a sobriedade também tem como matéria a sabedoria e não somente a bebida.
2. Demais. – A Escritura diz, que a sabedoria de Deus ensina a temperança e a prudência, a justiça e a fortaleza; onde a sobriedade é tomada pela temperança. Ora, a temperança tem como objeto não só a bebida, mas também a comida e os atos venéreos. Logo, a sobriedade não tem como matéria só a bebida.
3. Demais. – O nome de sobriedade parece derivado de medida. Ora, em tudo o que nos concerne, devemos observar a medida, como diz o Apóstolo: Vivamos neste século sóbrio, justa e piamente; ao que diz a Glosa: Sobriamente, no que nos concerne. E noutro lugar, ainda o Apóstolo: As mulheres em traje honesto, ataviando–se com modéstia e sobriedade; e assim, parece que a sobriedade concerne não só ao nosso interior, mas também ao que respeita ao habito exterior. Logo, a matéria própria da sobriedade não é a bebida.
Mas, em contrário, a Escritura: O vinho bebido com sobriedade é uma segunda vida para os homens.
SOLUÇÃO. – As virtudes, que recebem o nome de alguma condição geral da virtude, têm como objeto especial aquilo em que é muito difícil e ótimo observar essa condição; assim, a fortaleza, , os perigos mortais; e a temperança, os prazeres do tato. Ora, o nome de sobriedade é derivado de medida; pois, chama–se sóbrio quem observa a medida (em latim, bria). Por onde, a sobriedade tem especialmente como matéria aquilo em que é por excelência louvável observar a medida. Ora, tal é a bebida, capaz de embriagar; pois ao passo que o seu uso comedido aproveita muito, em pequeno excesso muito prejudica, porque impede o uso da razão, mais ainda que o uso dos alimentos. Por isso diz a Escritura: A bebida sóbria é a saúde da alma e do corpo. O vinho bebido com excesso traz consigo irritação e ira e muitas ruínas. Por onde, a sobriedade tem por objeto especialmente a bebida, não qualquer, mas aquela que pela sua fumosidade é de natureza a conturbar a cabeça, como o vinho e tudo o que pode embriagar. –– Mas, tomado em geral, o nome de sobriedade pode se aplicar a qualquer matéria, como dissemos acima, ao tratarmos da coragem e da temperança.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Assim como o vinho, embriaga o corpo, materialmente falando, assim também, em sentido metafórico, a contemplação da sabedoria é comparada à bebida inebriante, por nos atrair a alma com o seu prazer, conforme à Escritura: O meu cálice que embriaga, quão precioso é! Por isso por uma certa semelhança, a contemplação da sabedoria chama–se sobriedade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Tudo o que propriamente respeita à temperança é necessário à vida presente e todo excesso é nocivo. Por isso, a tudo é preciso impor uma medida, sendo esse o papel da sobriedade. Daí o designar–se com o nome de sobriedade, a temperança. Mas, um pequeno excesso na bebida prejudica mais do que em outras matérias. Por onde, a sobriedade tem especialmente como objeto a bebida.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora a medida seja necessária em tudo, entretanto, não é em relação a tudo que tem propriamente lugar a sabedoria, mas, em matéria em que a medida é sobretudo, necessária.
O sexto discute–se assim. – Parece que foram inconvenientemente determinados os cinco derivados da gula, a saber: a alegria inepta, a escurrilidade, a imundice, o multilóquio, a cegueira mental, concernente à inteligência.
1. – Pois, a alegria inepta resulta de todos os pecados, conforme a Escritura: Que se alegram depois de terem feito o mal e triunfam de prazer nas piores causas. Do mesmo modo, de todos os pecados resulta a cegueira mental, segundo a Escritura: Os que obram mal erram. Logo, foram considerados inconvenientemente como derivados da gula.
2. Demais. – A imundície, que sobretudo resulta da gula, parece dizer respeito ao vomito, segundo a Escritura: Todas as mesas se encheram de vômito e de asquerosidades. Ora, parece que isto é, antes, pena do pecado, que pecado; ou mesmo, uma utilidade resultante da deliberação, conforme aquilo da Escritura: Se fores obrigado a comer muito, levanta–te do meio, vai despejar o teu estômago e esta descarga te aliviará. Logo, não devem ser considerados derivados da gula.
3. Demais. – Isidoro considera a escurrilidade como filha da luxúria. Logo, não deve ser enumerada entre os derivados da gula.
Mas, em contrário, Gregório os assinala como derivados da gula.
SOLUÇÃO. – Como dissemos a gula própriamente consiste no prazer imoderado da comida e da bebida. Portanto, têm–se como filhos da gula os vícios consequentes ao prazer imoderado da comida e da bebida. Os quais podem ser considerados relativamente à alma ou relativamente ao corpo.
Relativamente à alma, de quatro modos. – Primeiro, no que respeita à razão, cuja acuidade se em bota com o uso imoderado da comida e da bebida. E, então, considera–se como filha da gula a cegueira do sentido da inteligência, causada pelas fumosidades produzidas pela comida, que perturbam a cabeça. Assim como, ao contrário. a abstinência facilita a aquisição da sabedoria, conforme à Escritura: Pensei dentro no meu coração apartar do vinho a minha
carne, afim de passar o meu ânimo à sabedoria. – Segundo, no concernente ao apetite, que de muitos modos se desordena com a comida e a bebida imoderadas, que por assim dizer travam o leme da razão. E por isso, a enumeração fala na alegria inepta, porque todas as outras paixões desordenadas ordenam–se à alegria e à tristeza, como ensina Aristóteles. E a isto se refere a Escritura quando diz, que o vinho dá à inteligência a segurança e a alegria. – Terceiro, relativamente à palavra desordenada. E então, é a vez do multilóquio; pois, como diz Gregório, se a loquacidade imoderada não invadisse os que se entregam à gula, o rico do Evangelho, que comia todos os dias esplendidamente não teria que sofrer duramente na língua. – Quarto, quanto ao ato desordenado; o que dá lugar para a escurrilidade, isto é, a uma certa jovialidade proveniente da falta de razão, que, assim como não pode coibir as palavras, assim também não pode coibir os gestos exteriores. Por isso, àquilo do Apóstolo – Nem palavras loucas nem chocarrices – diz a Glosa: As escurrilidades proferidas pelos estultos, isto é, a jovialidade, que costuma a mover o riso. – Embora possam ambos esses vícios referir–se às palavras com as quais podemos pecar ou por excesso, o que constitui o multicolóquio, ou por desonestidade, o que constitui a escurrilidade.
Relativamente ao corpo, há lugar para a imundície, que pode ser considerada relativamente à emissão de quaisquer superfluidades: ou, em especial, quanto à emissão do semen. Por isso àquilo do Apóstolo – A fornicação e toda impureza, etc. – diz a Glosa: isto é, a incontinência, pertinente de qualquer modo à sensualidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A alegria com o ato do pecado ou com o fim é resultante de todos os pecados; sobretudo com o que procede do hábito. Mas, a alegria vaga e descomposta, aqui chamada inepta, nasce sobretudo, de se tomar imoderadamente a comida ou a bebida. E semelhantemente devemos dizer que o embotamento do sentido, para de liberar, resulta comumente de todos os pecados: mas a cegueira da mente, para a especulação, nasce sobretudo da gula, pela razão já apresentada.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Embora o vômito seja útil depois de uma refeição excessiva, contudo, é vicioso quem se sujeita a essa necessidade por ter comido ou bebido imoderadamente. Contudo o vômito pode ser provocado, sem culpa, por conselho médico, para curar alguma doença.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A escurrilidade procede certamente do ato da gula; não porém do ato de luxúria, mas, da vontade dele. Por isso, pode resultar de um e de outro vício.
O quinto discute–se assim. – Parece que a gula não é um vício capital.
1. – Pois, chamam–se vícios capitais os de que nascem os outros, em razão da causa final. Ora, a comida, objeto da gula, não exerce a função de fim; pois, não a buscamos em si mesma, mas, para a nutrição do corpo. Logo, a gula não é um vício capital.
2. Demais. – O vício capital parece ter uma certa preeminência em razão do pecado. Ora, tal não se dá com a gula, pois, parece que é, no seu gênero, o mínimo dos pecados, por se aproximar mais do que é natural. Logo, não deve a gula ser considerada um vício capital.
3. Demais. – O pecado consiste em abandonarmos o bem honesto por causa de alguma utilidade para a vida presente ou por causa de algum prazer sensível. Ora, só há um vício capital, a avareza, cujo objeto são os bens úteis. Logo, também os prazeres sensíveis parece deverem constituir o objeto de um só vício capital. E este é a luxúria, vício maior que a gula e que tem por objeto prazeres mais intensos. Logo, a gula não é um vício capital.
Mas, em contrário, Gregório enumera a gula entre os vícios capitais.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, chama–se vício capital aquele de que nascem outros vícios, em razão da causa final; isto é, aqueles cujo fim é muito desejável e cujo deseja provoca os homens a pecarem muitas vezes. Pois, um fim tornase muito desejável desde que realiza uma das condições da felicidade, que naturalmente desejamos. – Ora, a felicidade por natureza implica o prazer, como está claro em Aristóteles. Por onde o vício da gula, cujo objeto são os prazeres do tato, os mais intensos dos prazeres sensíveis. foi convenientemente enumerado entre os vícios capitais.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A comida, em si mesma se ordena a algum fim; mas, como esse fim, que é a conservação da vida, é sumamente desejável, e ela não pode se sustentar sem a comida, daí vem o ser esta última sumamente desejável; e a ela se ordena quase todo o trabalho da vida humana, conforme aquilo da Escritura: Todo o trabalho do homem é para a sua boca. E contudo, a gula tem como objeto, antes, os prazeres do corpo, do que a comida. Por isso, como diz Agostinho, os que têm em pouco a saúde do corpo, querem antes alimentar–se, no que consiste o prazer, do que saciar–se; pois, o fim de todo esse prazer é não termos fome nem sede.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O fim, no pecado, funda–se na conversão, ao passo que a sua gravidade, na aversão. Por onde, o vício capital, cujo fim é sumamente desejável, não há de necessariamente ter a grande gravidade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O deleitável é o desejável em si mesmo considerado. Por isso, à sua diversidade correspondem dois vícios capitais: a gula e a luxúria. Ao passo que o útil não é, por natureza, desejável, senão só enquanto ordenado para outro fim. Por isso, todos os bens úteis o são por uma mesma razão de apetibilidade. Donde vem que só há um vício capital que lhes concerne.
O quarto discute–se assim. – Parece que não foram convenientemente distinguidos por Gregório as espécies de gula, quando disse: De cinco modos nos tenta o vício da gula; pois, umas vezes, adiantamos, por necessidade, o tempo de comer; outras, buscamos comidas mais suculentas; outras, desejamos seja mais acuradamente preparado o que vamos comer; outras ainda, excedemos, pela quantidade que tornamos, a medida da refeição; e outras enfim, pecamos pela avidez mesma do nosso imenso desejo. O que tudo está expresso no seguinte verso latino:
Praepropere (apressadamente), laute (suculentamente), nimis (excessivamente), ardenter (avidamente), studiose (avidamente) .
1. – Pois, as referidas espécies se diversificam pelas diversas circunstâncias. Ora, as circunstâncias, sendo acidentes dos atos, não lhes diversificam a espécie. Logo, as circunstâncias referidas não diversificam as espécies de gula.
2. Demais. – Como o tempo, também o lugar é uma circunstância. Logo, se o tempo diversifica as espécies de gula, parece que pela mesma razão, o lugar e as outras circunstâncias hão de diversificá–las.
3. Demais. – Como a temperança, também as outras virtudes morais levam em conta as circunstâncias devidas. Ora, nos vícios opostos à outras virtudes morais, as espécies não se distinguem pelas diversas circunstâncias. Logo, nem na gula.
Mas, em contrário, as palavras citadas, de Gregório.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a gula implica a desordem da concupiscência no comer. Ora, na comida, duas coisas devemos considerar: a comida mesma, que tomamos, e o ato de a comermos. Por onde, haverá lugar, de dois modos, para a desordem da concupiscência. – Primeiro, quanto à comida que tomamos. E assim, considerada a sua substância ou a espécie, certos buscam alimentos suculentos, isto é, preciosos, e, quanto à qualidade, preparados acuradamente, isto é, com delicadeza; e quanto à quantidade, excedem por comerem demais. – De outro modo, a desordem da concupiscência se manifesta pelo ato de comermos: ou por adiantarmos o tempo próprio de comer, o que é proceder apressadamente; ou por não observarmos o modo conveniente ao comermos, o que é proceder avidamente. – Mas Isidoro faz da primeira uma só circunstância com a segunda, dizendo que o guloso se excede no comer, considerada a substância (quid) e a quantidade do alimento, bem como o modo (quo–modo) e o tempo em que come.
DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A corrupção das diversas circunstâncias faz as diversas espécies de gula, por causa dos diversos motivos, que diversificam as espécies dos atos morais. Assim, a. espécie mesma da comida excita a concupiscência do que busca alimentos suculentos; a impaciência pela demora desordena a concupiscência de quem adiante o tempo de comer; e o mesmo se dá com as outras circunstâncias.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O lugar e as outras circunstâncias em nada diferenciam o motivo relativo ao uso da comida, de modo a dar lugar a uma nova espécie de gula.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Em todos os demais vícios, em que as circunstâncias diversas implicam motivos diversos, essas diversas circunstâncias dão necessariamente lugar a espécies diversas de vícios. Mas, isto não se dá com todos, como dissemos.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a gula é o máximo dos pecados.
1. – Pois, a grandeza de um pecado depende da grandeza da sua pena. Ora, o pecado da gula é o mais gravissimamente punido; assim, diz. Crisóstomo: A intemperança do ventre expulsou Adão do Paraíso e causou o dilúvio, nos tempos de Noé, segundo aquilo da Escritura: Eis aqui a iniquidade de Sodoma, tua irmã, a tortura de pão, etc. Logo, o pecado da gula é o máximo dos pecados.
2. Demais. – Em cada gênero, a causa tem o primeiro lugar. Ora, a gula é tida como a causa dos outros pecados; pois, àquilo da Escritura – O que feriu ao Egito com os seus primogénitos – diz a Glosa: A luxúria, a concupiscência, a soberba, são o que o ventre antes de tudo gera. Logo, a gula é o gravíssimo dos pecados,
3. Demais. – Depois de Deus, é a si mesmo que o homem deve sobretudo amar–se, como se estabeleceu. Ora, pelo vicio da gula ele se danifica a si mesmo, conforme a Escritura: Muitos morreram pelos excessos da gula. Logo, a gula é o máximo dos pecados, ao menos depois dos pecados contra Deus.
Mas, em contrário, os vícios carnais, entre os quais se conta a gula, segundo Gregório, são os de menor culpa.
SOLUÇÃO. – A gravidade de um pecado pode ser considerada em tríplice ponto de vista. Primeiro e principalmente, quanto à sua matéria. E, por aí, os pecados, que ofendem as coisas divinas, são os máximos. Por onde, a esta luz o vício da gula não é o máximo, pois, respeita aquilo com que o corpo se sustenta. Segundo, no concernente ao pecador. E então, o pecado da gula antes diminui, que aumenta de gravidade, quer pela necessidade que temos de tomar alimento, quer também pela dificuldade em discernir e moderar o que, em tais casos, convém. – Terceiro, no concernente ao efeito consequente. E, por aí, o vício da gula tem uma certa grandeza, enquanto dá ocasião a diversos pecados.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As referidas penas se referem mais aos vícios consequentes à gula, ou aos fundamentos dela, do que à gula em si mesma. Pois, o primeiro homem foi expulso do paraíso por causa da soberba, que o fez cair na prática da gula. E quanto ao dilúvio e à pena dos sodomitas, foram castigos cominados aos pecados procedentes de luxúria, ocasionados da gula.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A objeção colhe relativamente aos pecados oriundos da gula. Pois, não há de necessariamente uma causa ter a preeminência, salvo as causas que por si mesmas o são. Ora, a gula não é por si mesma causa dos referidos vícios, senão só acidental e ocasionalmente.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O guloso não tem a intenção de causar dano ao seu corpo mas de deleitar–se com a comida. E se algum dano daí se lhe seguir, será só por acidente. O que portanto não respeita diretamente à gravidade da gula. Contudo a sua culpa se agrava, quando sofrermos algum detrimento corporal causado da imoderação em tomarmos os alimentos.
O segundo discute–se assim. – Parece que a gula não é pecado mortal.
1. – Pois, todo pecado mortal contraria a algum preceito do Decálogo; o que não se dá com a gula. Logo, não é a gula pecado mortal.
2. Demais. – Todo pecado mortal contraria à caridade, como do sobredito resulta. Ora, a gula não se opõe à caridade, nem quanto ao amor de Deus, nem quanto ao do próximo. Logo, nunca é a gula pecado mortal.
3. Demais. – Agostinho diz: Sempre que comemos ou bebemos mais que o necessário, saibamos que cometemos pequenos pecados. Ora, a gula é um desses pequenos pecados. Logo, está computada entre pecados veniais.
Mas, em contrário, diz Gregório: Se nos deixamos dominar do vício tia gula. perdemos tudo o que varonilmente fizemos; e se não mortificarmos o ventre, destruiremos simultaneamente todas as virtudes. Ora, a virtude não a perdemos senão pelo pecado mortal. Logo é a gula um pecado mortal.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, o vício da gula propriamente consiste na concupiscência desordenada. Ora, a ordem da razão, que rege a concupiscência, pode ser subvertida de dois modos. De um modo, quando os meios não são ajustados de maneira a serem proporcionados ao fim; de outro, quando a concupiscência desvia o homem do fim devido. Se, pois, a desordem da concupiscência causada pela gula for considerada enquanto nos desvia do fim último, então a gula será pecado mortal. O que se dá quando o homem se entrega aos prazeres da gula como ao fim, pelo qual despreza a Deus, disposto a agir contra os seus preceitos, para se dar a esses deleites. Se porém, pelo vício da gula entendermos a desordem da concupiscência, que somente corrompe os meios, fazendo–nos desejar demasiado os prazeres da mesa, sem que isso nos leve a agir contra a lei de Deus, então a gula será pecado venial.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O vício da gula constitui pecado mortal quando nos desvia do último fim. E, assim sendo, opõese por uma certa redução, ao preceito da santificação do sábado, que preceitua o repouso no fim último. Pois, nem todos os pecados mortais contrariam diretamente os preceitos do Decálogo, senão só aqueles que implicam uma injustiça ; porque os preceitos do Decálogo respeitam especialmente à justiça e às suas partes. como se estabeleceu.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Enquanto nos desvia do fim último, a gula contraria ao amor de Deus, que, como fim último, deve ser amado sobre todas as causas. E só então a gula é pecado mortal.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As palavras citadas de Agostinho entendem–se da gula, quando ela implica uma desordem da concupiscência sómente em relação aos meios.
RESPOSTA À QUARTA. – Diz–se que a gula destrói as virtudes, não tanto por si mesma como pelos vícios a que dá lugar. Assim, diz Gregório: Quando o ventre está excitado pela gula, a luxúria destrói as virtudes da alma.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a gula não é pecado.
1. – Pois, diz o Senhor: Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem, – Ora, a gula concerne à comida, que nos entra pela boca. Logo, como todo pecado torna imundo o homem, parece que a gula não é pecado.
2. Demais. – Ninguém peca fazendo o que não pode evitar. Pois, diz Gregório: No comer o prazer se mistura com a necessidade, e não sabemos com certeza o que a necessidade pede e o que o prazer sugere. E Agostinho: Quem há Senhor, que por vezes não tenha comido mais do que o exige a necessidade? Logo, a gula não é pecado.
3. Demais. – Em todo gênero de pecado o primeiro movimento é pecado. Ora, o primeiro movimento, que nos leva a tomar comida, não é pecado; do contrário, a fome e a sede o seriam. Logo, a gula não é pecado.
Mas, em contrário, Gregório diz, que não podemos empreender o combate espiritual, se primeiro não domarmos o nosso inimigo interior, o apetite da gula. Ora, o nosso inimigo interior é o pecado. Logo, a gula é pecado.
SOLUÇÃO. – A gula não designa senão o apetite desordenado de comer e de beber. Ora, chama–se apetite desordenado o que se afasta da razão reta, no qual consiste o bem da virtude moral. Pois, denomina–se pecado o que contraria à virtude. Por onde, é claro que a gula é um pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O que nos entra pela boca como alimento, não nos torna imundo, espiritualmente, pela sua substância e natureza. Mas os Judeus, contra quem fala o Senhor, e os Maniqueus opinavam, que certos alimentos nos tornam imundos, não em sentido figurado, mas, pela natureza mesma deles. Contudo, a concupiscência desordenada de comer nos torna imundos espiritualmente.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como dissemos, o vício da gula não consiste na substância do alimento, mas, na concupiscência não regulada pela razão. Por onde, quem se exceder na quantidade do alimento, não por concupiscência dele, mas por julgar que isso lhe é necessário, não cai em a gula, mas apenas numa inexperiência. Pois, só constitui gula o excedermos cientemente a medida no comer, pela concupiscência da alimentação agradável.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Há duas espécies de apetite. – Um, natural, concernente às potências da alma vegetativa; aí não pode haver virtude nem vício, porque elas não podem sujeitar–se à razão. Por isso, a virtude apetitiva se divide em retentiva, digestiva e expulsiva. E a esse apetite pertencem a fome e a sede. – Mas, há outro apetite sensitivo, na concupiscência do qual consiste o vício da gula. Por isso, o primeiro movimento da gula implica a desordenação do apetite sensitivo, o que não vai sem pecado.
O oitavo discute–se assim. – Parece que não foi convenientemente imposta aos que jejuam a abstinência de carnes, de ovos e de laticínios.
1. – Pois, como se disse, o jejum foi instituído para refrear as concupiscências da carne. Ora, beber vinho provoca mais a concupiscência do que comer carne, conforme àquilo da Escritura: O vinho é uma causa luxuriosa; e o Apóstolo: Não vos deis com excesso ao pinho, donde nasce a luxúria. Ora, não sendo proibido aos que jejuam beber vinho, parece que também não lhes deve ser interdito comer carnes.
2. Demais. – Certos comem peixe com tanto prazer como comeriam carne. Ora, a concupiscência é o apetite do deleitável, como se estabeleceu. Logo, no jejum, instituído para refrear a concupiscência, assim como não é proibido comer peixe, assim, também não devia ser proibido comer carnes.
3. Demais. – Em certos dias de jejum certos usam de ovos e de queijo. Logo, pela mesma razão, no jejum quaresmal podemos usar desses alimentos.
Mas, em contrário, o costume geral dos fiéis.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, o jejum foi instituído pela Igreja para reprimir as concupiscências da carne, que têm por objeto os prazeres sensíveis da mesa e os venéreos. Por isso, ela proíbe aos que jejuam os alimentos com que mais nos comprazemos e mais nos provocam aos prazeres sexuais. E tal é a carne dos animais, que vivem c respiram sobre a terra e os produtos deles procedentes, como os laticínios, dos quadrúpedes, e os ovos, das aves. Pois, como esses alimentos são melhor assimilados pelo corpo humano, mais nos aprazem e mais contribuem para no–lo nutrir; e assim, o uso deles produz mais matéria supérflua que se transforma em matéria seminal, cujo aumento é a maior excitação à luxúria. Por isso, a Igreja ordenou aos que jejuam absterem–se sobretudo desses alimentos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Três elementos concorrem para a geração: o calor, os espíritos e o humor. Para o calor cooperam sobretudo o vinho e outros corpos que aquecem; para excitar os espíritos contribuem os alimentos, que produzem o vento; e para provocar o humor coopera principalmente o uso das carnes, que geram muitas matérias alimentícias. Ora, a alteração do calor e a multiplicação dos espíritos logo desaparecem; ao contrário, a substância do humor permanece por longo tempo. Por isso, aos que jejuam é proibido o uso das carnes mais que o do vinho ou o dos legumes, que são inflativos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A Igreja, instituindo o jejum, visa o que mais geralmente acontece. Ora, comer carne é geralmente mais deleitável que comer peixe, embora para certos tal não se dê. Por isso, a Igreja proíbe aos que jejuam, antes, comer carne, que peixe.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os ovos e os laticínios são proibidos aos que jejuam, por serem produtos de animais de carne. Por isso, primeiro são proibidas as carnes, que os ovos ou os laticínios. Do mesmo modo e semelhantemente, o jejum quaresmal é o mais solene, dos jejuns, quer pelo observarmos, por imitação de Cristo, quer também, porque, por ele, nos dispomos a celebrar devotamente os mistérios da nossa redenção. Por isso, em qualquer jejum é proibido comer carne; mas, no jejum quaresmal são universalmente proibidos também os ovos e os laticínios. Na abstinência dos quais, nos outros jejuns, variam os costumes com os lugares, costumes esses que devemos observar conforme procedem aqueles com quem convivemos. Por isso, Jerónimo, falando dos jejuns, diz: Cada província abunde no seu sentido e considere os preceitos elos antepassados como leis Apostólicas.