Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute–se assim. – Parece que a simples fornicação não é pecado mortal.
1. – Pois, as partes de uma mesma enumeração devem ser da mesma natureza. Ora, a fornicação é enumerada com outros atos que não são pecados mortais; assim, diz a Escritura: Que se abstenham das contaminações dos ídolos, e do sangue e da fornicação e das carnes sufocadas. Ora, a prática de tais atos não é pecado mortal, segundo o Apóstolo: Não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças. Logo, a fornicação não é pecado mortal.
2. Demais. – Nenhum pecado mortal pode ser objeto de preceito divino. Ora, o Senhor ordena a Oseas: Vai, toma por tua mulher a uma pública meretriz e tem dela filhos que te nasçam duma mulher que foi meretriz, Logo, a fornicação não é pecado mortal.
3. Demais. – Nenhum pecado mortal é mencionado na Escritura Santa, sem censura. Ora, a Escritura Sagrada menciona a simples fornicação dos Patriarcas Antigos, sem a censurar. Assim, lê–se nela que Abraão teve relações com Agar, sua escrava; e que Jacó teve conjunção com as escravas das suas mulheres Balam e Zelfa; e ainda, que Judas coabitou com Samar, que sabia ser meretriz. Logo, a simples fornicação não é pecado mortal.
4. Demais. – Todo pecado mortal contraria a caridade. Ora, a fornicação simples não contraria à caridade, nem quanto ao amor de Deus, por não ser um pecado diretamente contra Deus, nem quanto ao amor do próximo, porque, cometendo–a, a ninguém se faz injustiça. Logo, a fornicação simples não é pecado mortal.
5. Demais. – Todo pecado mortal leva à perdição eterna. Ora, tal não faz a fornicação simples; pois, àquilo do Apóstolo – A piedade para tudo é útil – diz a Glosa do Ambrósio: O resumo de toda disciplina cristã é a misericórdia e a piedade; se lhe formas fiéis, poderemos sem dúvida ser punidos se cairmos em alguma fraqueza da carne, mas nem por isso pereceremos. Logo, a fornicação simples não é pecado mortal.
6. Demais. – Como diz Agostinho, o que é a comida para a vida do indivíduo, é a união dos sexos para a do gênero humano. Ora, nem todo usar desordenadamente da comida é pecado mortal. Logo, nem toda união sexual desordenada; o qual sobretudo é o caso da fornicação simples, a menos importante entre as espécies enumeradas.
Mas, em contrário, a Escritura: Preserva–te de toda impureza e fora de tua mulher nunca consintas em conhecer o crime. Ora, crime importa em pecado mortal. Logo, a fornicação e toda união sexual sem ser com a esposa, é pecado mortal.
Demais. – Só o pecado mortal exclui do reino de Deus. Ora, a fornicação exclui dele; assim o Apóstolo, depois de se ter referido a ela e a certos outros vícios, acrescenta: Os que tais causas cometem não possuirão o reino de Deus. Logo, a simples fornicação é pecado mortal.
Demais. – Uma Decretal diz: Devem saber que ao perjúrio deve–se impor a mesma penitência que ao adultério, à fornicação, ao homicídio livremente perpetrado e aos demais vícios criminosos. Logo, simples fornicação é um pecado criminal ou mortal.
SOLUÇÃO. – Sem nenhuma dúvida devemos afirmar que a fornicação simples é pecado mortal, embora àquilo da Escritura: Não haverá meretriz, diga a Glosa: Proíbe ter relações com meretrizes, o que constitui uma desonestidade venial. Pois, não se deve ler a venial, mas, venal, o que é próprio às meretrizes.
Para provar o que afirmamos devemos considerar que pecado mortal é todo pecado cometido diretamente contra a vida do homem. Ora, a fornicação simples importa uma desordem, que redunda em dano da vida do que nascerá dessa união sexual. Pois, vemos que todos os animais, que precisam dos cuidados do macho e da fêmea para criarem os filhos, não praticam o concúbito vago, mas o de um macho com uma determinada fêmea, uma ou várias, como bem o mostram todas as aves. Vago concúbito, ao contrário, exercem certos animais, como os cães e outros, curas fêmeas só por si são capazes de criar os filhos. Ora, é manifesto, que para a criação dos filhos, na espécie humana, não bastam só os cuidados da mãe, que os amamenta; mas muito mais, os do pai que deve educa–los, defendê–los e dotá–los de bens tanto internos como externos. Por onde, é contra a natureza do homem praticar o concubito vago, mas é necessário a união de um varão com uma determinada mulher, com a qual conviva, não por pouco tempo, mas diuturnamente e mesmo por toda a vida. E daí vem para a espécie–humana a solicitude natural do varão pela certeza da sua paternidade, porque lhe incumbe a educação da prole. Ora, essa certeza desapareceria com o concúbito vago. E essa vida com uma determinada mulher é o que se denomina matrimónio, que, por isso, é considerado de direito natural. Mas, como a união dos sexos se ordena ao bem comum de todo o gênero humano, e o bem comum é o objeto da lei, como estabelecemos, resulta por consequência, que essa conjunção do homem e da mulher, chamada matrimónio, há de ser regulada por lei. E como essa matéria é entre nós determinada, na Terceira Parte desta obra o diremos, quando tratarmos do sacramento do matrimónio. Portanto, sendo a fornicação um concúbito vago e fora das regras do matrimónio, vai contra o bem da prole a ser criada. Logo, é pecado mortal. – Nem o impede o caso de quem, praticando a união sexual fora do matrimônio, provê apesar disso à educação da prole, porque os preceitos legais se apreciam pelo que geralmente se dá e não pelo que pode ocorrer num caso particular.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. A fornicação vem, no texto citado, enumerada com esses outros pecados, não por ter a mesma culpa que eles, mas porque, como eles, podia gerar dissídios entre os Judeus e os Gentios e impedir–lhe a mútua união. Pois, os Gentios pela corrupção da razão natural, não reputavam ilícita a simples fornicação; mas os Judeus, instruídos pela lei divina, consideravam–na ilícita. Quanto ao mais, que na objeção se enumerou, os Judeus o abominavam, por causa dos seus hábitos derivados da lei. E por isso os Apóstolos o proibiram aos Gentios, não por se tratar de coisas em si mesmas ilícitas, mas por serem abomináveis aos Judeus, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz–se que a fornicação é pecado por ser contrária à razão reta. Ora, a nossa razão é reta quando regulada pela vontade divina, que é a primeira e a suma regra. Portanto, o que fazemos por vontade de Deus, obedecendo–lhe à ordem, não é contra a razão reta, embora possa contrariar a ordem comum da razão; assim como também não é contra a natureza o que se faz milagrosamente, por virtude divina, embora seja contrário ao curso comum da natureza. E portanto, assim como não pecou Abraão, querendo matar o filho inocente, por obediência a Deus, embora esse ato, em si mesmo considerado e em geral, vá contra a retidão da razão humana, assim também Oseas não pecou, fornicando por ordem divina. Nem se pode propriamente chamar fornicação a esse concúbito, embora seja assim denominado conforme o uso comum de falar. Por isso diz Agostinho: Quando Deus dá uma ordem contrária aos costumes ou às leis, devemos cumpri–la, embora antes nunca se fizesse nada de tal. E depois acrescenta: Assim como, na ordem social humana, o poder maior é preposto ao menor, que lhe deve obedecer, assim Deus deve ser obedecido por todos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Abraão e Jacó tiveram relações com escravas, não por um concúbito fornicário, como a seguir se verá, quando tratarmos do matrimónio. E quanto a Judas, não é necessário escusá–Io de pecado, a ele que também foi o vendedor de José.
RESPOSTA À QUARTA. – A fornicação simples contraria ao amor do próximo, porque repugna ao bem da prole nascitura, como se mostrou; isto é, porque dá lugar a uma geração como não convém à referida prole.
RESPOSTA À QUINTA. – As obras de piedade livram da perdição eterna a quem praticou atos carnais, enquanto que essas obras dispõem para a consecução da graça, que leva ao arrependimento; e enquanto elas levam a satisfazer pela lubricidade carnal cometida. Mas não que livrem quem ficou impenitente até a morte, na prática de tais atos.
RESPOSTA À SEXTA. – Um só concúbito pode dar lugar à geração. Portanto, o concúbito desordenado, que impede o bem da prole nascitura é, pelo gênero mesmo desse ato, pecado mortal, e não só por causa da concupiscência desordenada. Mas, um só ato de comer não impede o bem da vida total de um homem. Por isso, um ato de gula não é genericamente pecado mortal; se–Io–ia porém se alguém tomasse uma comida cientemente, de modo tal que lhe transformasse toda a condição da vida, como se deu com Adão. Nem, contudo, a fornicação é o menor dos pecados, que a luxúria inclui; pois, o concúbito libidinoso com a esposa é menor.
O primeiro discute–se assim. – Parece que foram inconvenientemente assinaladas seis espécies de luxúria, a saber a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e o vício contra a natureza.
1. – Pois, a diversidade de matéria não diversifica a espécie. Ora, a referida divisão se funda na diversidade de matéria, pois, distingue se a conjunção foi com casada, com virgem ou com mulher de outra condição. Logo, parece que por si não se podem diversificar as espécies de luxuria.
2. Demais. – Um vício não se diversifica pelo que pertence a outro. Ora, o adultério não difere da simples fornicação senão porque o adúltero, tendo relações com a mulher de outrem, comete uma injustiça. Logo, parece que o adultério não deve ser considerado espécie da luxúria.
3. Demais. – Assim como pode alguém ter relações com a mulher ligada a outro homem pelo matrimónio, assim também pode tê–la com a que está consagrada a Deus pelo voto. Se, portanto, o adultério é considerado espécie de luxúria, também espécie de luxúria deve ser o sacrilégio.
4. Demais. – Quem está unido em matrimónio não somente peca se tiver relações com a mulher de outro, mas também se usar da sua indebitamente. Ora, este pecado está compreendido na luxúria. Logo, deve ser tido como uma espécie dela.
5. Demais. – O Apóstolo diz: Para que não suceda que, quando eu vier outra vez, me humilhe Deus entre vós, e que chore a muitos daqueles, que antes pecaram e não fizeram penitência da imundícia e fornicação e desonestidade, que cometeram. Logo, parece que também a imundícia e a desonestidade devem ser consideradas, como a fornicação, espécies de luxúria.
6. Demais. – O género não pode fazer parte da espécie. Ora, a luxúria, é uma espécie como o são os outros membros da enumeração supra segundo aquilo do Apóstolo: As obras da carne estão patentes, como são a fornicação, a impureza, a desonestidade, a luxúria. Logo, a fornicação foi inconvenientemente considerada espécie de luxúria.
Mas, em contrário, a referida divisão está nas Decretais.
SOLUÇÃO. – Como dissemos o pecado da luxúria consiste em se gozar do prazer venéreo contrariamente à razão reta. O que de dois modos pode dar–se: quanto à matéria em que se busca esse prazer, e quanto à não observância das outras condições relativas ao uso da matéria devida. E como as circunstâncias, como tais, não especificam os atos morais, que só tiram a sua espécie do objeto, que é a matéria deles, por isso as espécies de luxúria devem se deduzir da matéria ou do objeto. E este pode não convir com a razão reta de dois modos. Primeiro, por repugnar ao fim do ato venéreo. E assim, quando impede a geração da prole, há lugar para o vício contra a natureza, sempre que do ato venéreo não resulta a geração. E há fornicação simples, de solteiro com solteira, quando fica impedida a educação devida e a criação da prole nascida.
De outro modo, a matéria sobre que se exerce o ato venéreo pode não convir com a razão reta, relativamente aos outros homens. E isto duplamente. – Primeiro, quanto à mulher mesma para com a qual quem, tendo com ela relação, não lhe conservou a devida honorabilidade. E então se dá o incesto, que consiste no abuso de uma mulher ligada ao incestuoso pelos laços da consanguinidade ou da afinidade. – Segundo, relativamente àquele de quem a mulher depende. Se depende de um marido, há o adultério; se do pai, o estupro, não havendo violência, e o rapto, se houver.
Estas espécies porém se diversificam mais pelo lado da mulher do que pelo do varão; porque, no ato venéreo, a mulher se comporta como paciente e a modo de matéria, ao passo que o homem, como agente; pois, dissemos que as referidas espécies se fundam na diferença de matéria.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A referida diversidade de matéria vai junta com a diversidade formal do objeto, fundada nos diversos modos por que repugna à razão reta, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Nada impede que um mesmo ato implique as deformidades concorrentes de dois vícios, como dissemos. E, neste sentido, o adultério está incluído na luxúria e na injustiça. Nem a deformidade da injustiça se relaciona acidentalmente com a luxúria, absolutamente falando; pois, mostra ser a luxúria tanto mais grave quanto segue a concupiscência a ponto de ser levada até a injustiça.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A mulher, fazendo voto de continência, contraiu de certo modo matrimônio espiritual com Deus. Por onde, o sacrilégio cometido pela violação dessa mulher é, de certo modo, um adultério espiritual. E semelhantemente as outras formas de sacrilégio, em matéria libidinosa, reduzem–se às demais espécies de luxúria.
RESPOSTA À QUARTA. – O pecado cometido pelo casado com a sua própria esposa não o é por ter matéria indébita, mas, pelas outras circunstâncias, que não especificam o ato moral, como dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. – Como diz a Glosa no mesmo lugar, a imundícia é tomada pela luxúria contra a natureza. E desonestidade é a cometida pelo varão com mulheres solteiras, o que implica, pois, o estupro. – Ou pode–se dizer que a desonestidade implica certos atos circunstantes aos atos venéreos, como, beijos, contatos e outros semelhantes.
RESPOSTA À SEXTA. – A luxúria é tomada, no lugar aduzido, no sentido de qualquer excesso, como diz a Glosa.
O quinto discute–se assim. – Parece que se consideram inconvenientemente como nascidos da luxúria: a cegueira do espírito, a inconsideração, a precipitação, a inconstância, o amor de si, o ódio de Deus, o apego à vida presente, o horror ou o desespero da futura.
1. – Pois, a cegueira do espírito, a inconsideração e a precipitação se compreendem na imprudência, que implicam todos os pecados, como todas as virtudes supõem a prudência. Logo, não devem ser consideradas filhas especialmente da luxúria.
2. Demais. – A constância é considerada parte da fortaleza, como se estabeleceu. Ora, a luxúria não se opõe à fortaleza, mas, à temperança. Logo, a inconstância não é filha da luxúria.
3. Demais. – O amor de si até o desprezo de Deus, é o principio de todo pecado, como claramente o diz Agostinho. Logo, o amor de si não deve ser considerado filho da luxúria.
4. Demais. – Isidoro, enumera quatro filhos da luxúria: o turpilóquio, a escurrilidade, a ludicridade e o estutilôquio. Logo, a referida enumeração parece supérflua.
Mas, em contrário, a autoridade de Gregório.
SOLUÇÃO. – Quando as potências inferiores aderem veementemente aos seus objetos, as potências superiores hão de por consequência ficar impedidas e desordenadas na prática dos seus atos. Ora, pelo vício da luxúria, sobretudo o apetite inferior, isto é, o concupiscível, veementemente adere ao seu objeto, que é o prazer, por causa da veemência da paixão e do deleite. Por onde e consequentemente, pela luxúria, sobretudo, as potências superiores, isto é, a razão e a vontade, ficam desordenadas.
Ora, são quatro os atos da razão, na ordem prática. – Primeiro, a simples inteligência, que apreende um fim como bem. E este ato fica impedido pela luxúria, como diz a Escritura: A formosura te seduziu e a concupiscência te perverteu o coração. E é o que na enumeração se chama a cegueira do espírito. – O segundo ato é o conselho sobre os meios que devemos aplicar para a consecução do fim. E este também fica impedido pela concupiscência da luxúria. Por isso, Terêncio, falando do amor sensual: O que em si é a negação de todo conselho e é de todo desregrado não o poderás submeter ao conselho. E é o que a enumeração denomina precipitação, que implica a ausência do conselho, como provamos. – O terceiro ato é o juízo sobre o que devemos fazer que também fica impedido pela luxúria. Por isso, diz a Escritura, dos velhos luxuriosos: Perverteram o seu sentido sem se lembrarem dos justos juízos. É o que a enumeração denomina inconsideração. – Enfim, o quarto ato é a ordem da razão sobre o que se deve fazer que também fica impedido pela luxúria; porque o ímpeto da concupiscência impede–nos executar o que a razão decretou que deveríamos fazer. E é o que, na enumeração, se chama inconstância. Por isso, diz Terêncio de um tal que assegurava haver de separar–se da amiga: Estas palavras uma falsa lagrimazinha as extinguirá. Relativamente à vontade, dela resultam dois atos desordenados. – Um é o desejo do fim. E é o que se chama o amor de si, no atinente ao prazer que desordenadamente se deseja: e por oposição, o ódio de Deus, por proibir Deus o prazer desejado. – O outro é o desejo do meios conducentes ao fim. E a este se refere o apego à vida presente, durante a qual queremos gozar do prazer; e, ao contrário, enumera–se o desespero da vida futura, porque, quem se apega demasiado aos prazeres carnais não cuida de conseguir os espirituais, mas aborrece–os.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Como diz o Filósofo, a intemperança destrói sobretudo a prudência. Por isso principalmente os vicies opostos à prudência é que nascem da luxuria, que é a parte precípua da intemperança.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A constância nas causas difíceis e terríveis é considerada parte da fortaleza. Mas, a constância em nos abstermos dos prazeres faz parte da continência, considerada como inclusa na temperança, como se disse. Por onde, a inconstância, que se lhe opõe, é considerada filha da luxúria. E contudo também a primeira inconstância é causada pela luxúria por amolecer o coração do homem e torna–lo efeminado, segundo a Escritura: A fornicação, o vinho e a embriaguez endurecem o coração. E Vegécio diz, que teme a morte menos quem menos se dá aos prazeres nesta vida. Nem é necessário, como dissemos, que os vícios nascidos do vício capital tenham matéria idêntica à dele.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O amor de si, no atinente a quaisquer bens que desejemos, é o princípio comum dos pecados. Mas, o amor é considerado como filho da luxúria, especialmente, quando é o pelo qual desejamos os prazeres da carne.
RESPOSTA À QUARTA. – Os vícios que Isidoro enumera, são certos atos exteriores desordenados e sobretudo ligados às palavras, que podem dar lugar a quatro desordens. – Primeiro, pela matéria. Por isso enumera o turpilóquio; porque a boca fala da abundância do coração, como diz o Evangelho, os luxuriosos, cujo coração anda cheio de torpes concupiscências, prorrompem facilmente em turpilóquios. – Segundo, pela causa. Pois, como a luxúria causa a inconsideração e a precipitação há de por consequência fazer prorromper em palavras levianas e inconsideradas, o que constitui a escurrilidade – Terceiro, pelo fim. Pois, como os luxuriosos buscam o prazer, ordenam ao prazer até as suas palavras e então prorrompem em vocábulos lúdicros. – Quarto, pelo valor das palavras, que a luxúria perverte, por causa da cegueira do espírito, que produz. E por isso, prorrompe em estultilóquios, preferindo assim, com suas palavras, os prazeres que deseja, a quaisquer outras coisas.
O quarto discute–se assim. – Parece que a luxúria não é um vício capital.
1. – Pois, parece que a luxúria é idêntica à imundície, como está na Glosa. Ora, a imundície é filha da gula, segundo Gregório. Logo, a luxúria não é vício capital.
2. Demais. – Isidoro diz, que assim como pela soberba, a alma se prostitui ao prazer, assim, pela humildade do espírito conserva a castidade do corpo. Ora, por natureza, um vício capital não pode nascer de outro. Logo, a luxúria não é uma vida capital.
3. Demais. – A luxúria é causada pelo desespero, conforme o diz o Apóstolo: Que, se entregaram a si mesmos à dissolução. Ora, o desespero não é um vício capital; antes, é considerado filho da acédia, como se estabeleceu. Logo, e muito menos, a luxúria é vício capital.
Mas, em contrário, Gregório enumera a luxúria entre os vícios capitais.
SOLUÇÃO. – Como do sobre dito resulta, vício capital é aquele cujo fim é muito desejável, a ponto de esse desejo levar o homem a perpetrar muitos pecados, que todos se consideram nascidos desse vício, como do principal. Ora, o fim da luxúria é o prazer venéreo, que é o máximo. Por onde, esse prazer é o mais desejável pelo apetite sensitivo, quer pela sua veemência, quer também pela conaturalidade dessa concupiscência. Portanto, é manifesto que a luxúria é um vício capital.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Para certos, a imundície considerada filha da gula é uma certa imundície corpórea, como dissemos; e assim a objeção não vem a propósito. Se, porém, a considerarmos como a imundície da luxúria, então, devemos admitir que é causada materialmente pela gula, pois que esta lhe ministra a matéria corporal; mas não quanto à ideia da causa final, em relação à qual a origem dos outros vícios está nos vícios capitais.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como dissemos, quando tratamos da vanglória, a soberba é tida em geral como a mãe de todos os pecados; por isso também os vícios capitais nascem da soberba.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Dos prazeres da luxúria muitos se abstêm sobretudo pela esperança da glória futura, de que o desespero priva. Por isso, causa a luxúria porque lhe remove o obstáculo; mas não como causa, em si, dela, o que exigem os vícios capitais.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a luxúria relativa aos atos venéreos, não pode constituir nenhum pecado.
1. – Pois, todo ato venéreo implica a emissão do sémen, que é uma superfluidade do alimento, como está claro no Filósofo. Ora, não há nenhum pecado na emissão das outras superfluidades. Logo, também não pode haver nenhum pecado na prática dos atos venéreos.
2. Demais. – Cada um pode usar licitamente do que lhe pertence. Ora, no ato venéreo, o homem não usa senão do que é seu, salvo no adultério e no rapto. Logo, na pratica dos atos venéreos não pode haver pecado. E assim, não será pecado a luxúria.
3. Demais. – Todo pecado se opõe a outro. Ora, parece que a nenhum se opõe a luxúria. Logo, a luxúria não é pecado.
Mas, em contrário, a causa tem prioridade sobre o efeito. Ora, o vinho é proibido por causa da luxúria, como diz o Apóstolo: E não vos deis com excesso do vinho, donde nasce a luxúria. Logo, a luxúria é proibida.
Ademais. – O Apóstolo o enumera entre as obras da carne.
SOLUÇÃO. – Quanto mais necessária for uma coisa, tanto mais deve ser governada pela regra da razão; e portanto será tanto mais viciosa quanto mais preterir a ordem racional. Ora, a prática dos atos venéreos é sumamente necessária ao bem comum, que é a conservação do género humano. Por isso, deve ser sumamente regulada pela ordem da razão. E por consequência será vicioso o que, nessa matéria, se fizer contra tal ordem. Ora, a luxúria por natureza excede o modo racional na prática dos atos venéreos. Logo e sem dúvida, a luxúria é pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Como diz o Filósofo, o sémen é uma superfluidade de que necessitamos; pois, embora se considere supérfluo por ser um resíduo da operação da virtude nutritiva, contudo é necessário para os fins da função gerativa. Mas, há outras superfluidades do corpo humano, que não são necessárias e por isso não importa como sejam excretadas, salvas, as conveniências da convivência humana. Mas, não se dá o mesmo com a emissão do sémen, que deve se operar de modo a satisfazer ao fim para o qual é necessário.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz o Apóstolo, falando contra a luxúria: Fostes comprados por um grande preço: glorificai pois, e trazei a Deus no vosso corpo. Ora, quem usa desordenadamente do seu corpo pela luxúria faz injúria a Deus que é o Senhor principal do nosso corpo. Por isso, diz Agostinho: O Senhor, que governa os seus servos para a utilidade deles e não para a sua, mandou não destruíres, pelos prazeres ilícitos, o seu templo, que começaste a ser.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Para a maior parte não há vício oposto à luxúria, porque os homens são inclinados aos prazeres. E contudo, o vício oposto está contido na insensibilidade. E este vício é o daqueles que detestam o uso da mulher, a ponto de não cumprirem o dever com a própria esposa.
O segundo discute–se assim. – Parece que nenhum ato venéreo pode–se praticar sem pecado.
1. – Pois, só o pecado é obstáculo à virtude. Ora, todo ato venéreo é por excelência obstáculo à virtude; assim, diz Agostinho: Penso que nada é mais capaz de expulsar a alma viril da sua fortaleza do que as blandícias femininas e o contato sexual. Logo, parece que nenhum ato venéreo pode praticar–se sem pecado.
2. Demais. – Todo excesso é vicioso, que nos priva do bem da razão, pois, tanto o excesso como o defeito destroem a virtude, diz Aristóteles. Ora, todo ato venéreo implica um excesso de prazer, que absorve a razão a ponto de ela não poder exercer–se, como ensina o Filósofo; e, adverte Jerônimo, no momento desse ato o espírito de profecia ausentava–se do coração dos profetas. Logo, nenhum ato venéreo pode deixar de ser pecado.
3. Demais. – A causa é superior ao efeito. Ora, o pecado original se transmite às crianças pela concupiscência, sem a qual não pode existir o ato venéreo, como claramente o diz Agostinho. Logo, nenhum ato venéreo pode existir sem pecado.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Respondemos suficientemente aos heréticos, se contudo compreenderem não ser pecado o ato que não colide com a natureza, nem contra os costumes, nem contra a lei. E se refere ao ato venéreo, pelo qual os antigos Patriarcas usavam de várias mulheres. Logo, nem todo ato venéreo é pecado.
SOLUÇÃO. – É pecado o ato humano contrario à ordem da razão era, a ordem racional exige, que tudo se ordene convenientemente para o fim. Logo, não há pecado quando racionalmente o homem usa de certas coisas, de acordo com o fim para o qual existem, de modo e em ordem convenientes, contanto que esse fim seja verdadeiramente bom. Ora, como é um verdadeiro bem conservar a natureza corporal de cada indivíduo, assim também é um bem excelente conservar–se a natureza da espécie humana. Ora, assim como para a conservação da vida individual é ordenado o uso da comida, assim, para a de todo o gênero humano a prática do ato venéreo. Donde o dizer Agostinho: O que é a comida para a vida individual é o ato venéreo para a vida do gênero humano. Portanto, como pode não haver pecado no uso dos alimentos, se procedermos do modo e na ordem devidos, como o exige a vida do corpo, também pode não haver pecado na prática dos atos venéreos se o fizermos do modo e na ordem convenientes, como o exige o fim da geração humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – De dois modos pode à virtude se opor um obstáculo. – Primeiro, quanto ao estado geral da virtude. E, então, só o pecado é obstáculo à virtude. – De outro modo, quanto ao perfeito estado virtuoso. E, então, o ato virtuoso pode ficar impedido por um ato, que não é pecado, mas é menos bom. E, neste sentido, o uso da mulher, nos priva a alma, não da virtude, mas da fortaleza, isto é, da perfeição virtuosa. Por isso diz Agostinho: Assim como era bom o que Marta fazia, ocupada no ministério dos santos, melhor porém procedia Maria, ouvindo a palavra de Deus; assim, louvamos o bem de Susana, na castidade conjugal, mas lhe antepomos o bem da viúva Ana e muito mais o de Maria Virgem.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como dissemos, a mediedade virtuosa não se funda na quantidade mas, na conveniência com a razão reta. Por onde, a veemência do prazer, que existe no ato venéreo, ordenado pela razão reta, não contraria o meio termo da virtude. E, além disso, à virtude não concerne o quanto do prazer, que goza o sentido exterior, resultante da disposição do corpo, mas o quanto o sentido interior se apega aos prazeres. Nem o fato de a razão não poder coexistir e considerar as coisas espirituais, com os prazeres da carne, prova que esses prazeres contrariem à virtude. Pois, não é contrário à virtude deixarmo–nos às vezes nos privar do ato da razão por causa de outro ato que praticamos racionalmente; do contrário, quem se entregasse ao sono iria contra a virtude. E o não sujeitarem–se a concupiscência e os prazeres venéreos ao império e ao governo da razão, provém da pena do primeiro pecado: pois, a razão rebelando–se contra Deus, mereceu que a carne se rebelasse contra ela, como está claro em Agostinho.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como diz Agostinho no mesmo lugar, da concupiscência da carne, que aos regenerados não se lhes impute como pecado nasce, como filha dele, a prole, sujeita ao pecado original. Donde não se segue que o referido ato seja pecado nosso, mas que há nele algo de penal, derivado do primeiro pecado.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a matéria da luxúria não são apenas as concupiscências e os prazeres venéreos.
1. – Pois, diz Agostinho, que à luxúria aprazlhe chamar–se saciedade e abundância. Ora, a saciedade diz respeito à comida e à bebida; e a abundância, às riquezas. Logo, a luxúria não respeita propriamente às concupiscências e aos prazeres venéreos.
2, Demais. – A Escritura diz: O vinho é uma coisa luxuriosa. Ora, o vinho é matéria incluída no prazer de comer e de beber. Logo, a matéria da luxúria são, sobretudo esses prazeres.
3. Demais. – A luxúria consiste no desejo do prazer sensual. Ora, o prazer sensual não é constituído só pelos prazeres venéreos, mas por muitos outros. Logo, a matéria da luxúria não são apenas as concupiscências e os prazeres venéreos.
Mas, em contrário: Foi dito aos luxuriosos, que quem semeia na carne colhe a corrupção da carne. Ora, o semear da carne é pelos prazeres venéreos. Logo, estes são o objeto deles.
SOLUÇÃO. – Como diz Isidoro, chama–se luxurioso quem por assim dizer se dissolve nos prazeres. Ora, os prazeres venéreos são os que mais dissolvem a alma do homem. Logo, a luxúria é considerada como tendo por objeto, sobretudo os prazeres venéreos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como a temperança versa principal e propriamente sobre os prazeres do tato, mas, por consequência e por semelhança também versa sobre outras matérias; assim também a luxúria tem como objeto principal os prazeres veneremos, que máxima e precipuamente tornam dissoluta a alma da homem; mas, secundariamente, versa sobre certos outros excessos. Por isso, diz a Glosa, que a luxúria é um certo excesso.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O vinho é considerado uma causa luxuriosa, ou no sentido em que, em qualquer matéria, a abundância conduz à luxúria; ou porque o uso excessivo do vinho dá incentivo ao prazer venéreo.
RESPOSTA A TERCEIRA. – Embora o prazer sensual também o seja, em relação a outras matérias, contudo esse nome, sobretudo se aplica aos prazeres venéreos, aos quais se refere uma sensualidade especial, como diz Agostinho.
O quinto discute–se assim. – Parece que a virgindade é a maior das virtudes.
1. – Pois, diz Cipriano: Agora devemos falar às virgens, cuja glória, por ser tanto mais sublime, merece tanto mais os nossos cuidados; elas são a flor da igreja, a honra e o ornato da graça espiritual, a porção mais ilustre da grei de Cristo.
2. Demais. – Maior prêmio é devido à maior virtude. Ora, à virgindade é devido o maior prêmio, a saber, o centésimo fruto, de que fala a Glosa. Logo, a virgindade é a maior das virtudes.
3. Demais. – Uma virtude é tanto maior quanto mais nos torna semelhantes a Cristo. Ora, pela virgindade é que, sobretudo nos assemelhamos a Cristo; assim, diz o Apocalipse, que os virgens seguem o cordeiro para onde quer que ele vá: e cantam um cântico novo, que mais ninguém podia cantar. Logo, a virgindade é a maior das virtudes.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Ninguém, que eu saiba, ousou preferir a virgindade ao estado religioso. E no mesmo livro: A autoridade eclesiástica, com o seu preclaríssimo testemunho, dá a saber aos fiéis que lugar ocupam, na dignidade dos altares, os que morreram mártires e religiosos. Pelo que dá a entender, que o martírio é preferível à virgindade, bem como o é o estado religioso.
SOLUÇÃO. – De dois modos pode uma coisa ser dita excelentíssima. – Primeiro, genericamente. E, assim, a virgindade é excelentíssima, isto é, no gênero da castidade; pois, sobrepuja a castidade da viuvez e a conjugal. E como se atribui antonomasticamente a beleza à castidade, por consequente se há de atribuir à virgindade uma beleza excelentíssima. Por isso, diz Ambrósio: Quem pode encontrar maior beleza que a da virgem, amada pelo rei, aprovada pelo Juiz, dedicada ao Senhor, consagrada a Deus? – De outro modo, podemos considerar o que é excelentíssimo, em absoluto. E então a virgindade não é a excelentíssima das virtudes. Pois, sempre o fim é mais excelente do que os meios; e quanto mais eficazmente um meio se ordena ao fim, tanto melhor é. Ora, o fim, que torna louvável a virgindade, é o vacar às coisas divinas, como dissemos. Por onde, as próprias virtudes teologais, e ainda a da religião, cujo ato é a ocupação mesma com as coisas divinas, são preferíveis à virgindade. Semelhantemente também, mais ardorosamente operam, para se unirem a Deus, os mártires, que para tal desprezam a própria vida; e os que, vivendo num mosteiro, desprezam a vontade própria e tudo quanto podem possuir, do que os virgens que, para o mesmo fim, se privam dos prazeres venéreos. Logo, a virgindade não é, absolutamente falando, a maior das virtudes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As virgens são a porção mais ilustre. da lei de Cristo, e tem uma glória mais sublime, por comparação com as viúvas e as casadas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O centésimo fruto é atribuído à virgindade, segundo Jerônimo, por causa da excelência, que tem sobre a viuvez, a que é atribuído o sexagésimo fruto; – e sobre o matrimônio, ao qual é atribuído o trigésimo. Mas, como diz Agostinho, o centésimo fruto é o dos mártires; o sexagésimo, o das virgens; o trigésimo, o dos casados. Donde se não segue que a virgindade seja, absolutamente falando, a maior das virtudes, mas o é somente em relação aos outros graus da castidade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os virgens seguirão o cordeiro para onde quer que vá, por imitarem a Cristo, não só pela integridade espiritual, mas ainda pela carnal, como diz Agostinho; e por isso seguem o Cordeiro em muitas coisas. Mas, Isso não implica que dele estejam mais perto; porque as outras virtudes nos unem a Deus mais estritamente, pela imitação espiritual. Quanto ao cântico novo, que só as virgens cantam, significa a alegria, que tem, pela conservação da integridade carnal.
O terceiro discute–se assim. – Parece que não é uma virtude a virgindade.
1. – Pois, nenhuma virtude existe em a nossa natureza como tal, como diz Aristóteles, Ora, a virgindade existe em nós por natureza mesma nossa; pois, todos são virgens logo depois de nascerem. Logo, a virgindade não é uma virtude.
2. – Demais. – Quem possui uma virtude as tem todas, como se disse. Ora, certos tem as outras virtudes, que não tem a virgindade; do contrário, como ninguém pode sem virtude chegar ao reino dos céus, ninguém poderia também chegar a ele, sem a virgindade; o que seria condenar o matrimônio. Logo, a virgindade não é uma virtude.
3. Demais. – Toda virtude se recupera pela penitência. Ora, a virgindade não se repara pela penitência e por isso diz Jerônimo: Deus, que tudo pode, não pode restituir a quem perdeu a virgindade ao seu estado anterior. Logo, parece que a virgindade não é uma virtude.
4. Demais. – Nenhuma virtude se perde sem pecado. Ora, a virgindade se perde sem pecado, isto é, pelo matrimônio. Logo, a virgindade não é uma virtude.
5. Demais. – A virgindade entra na mesma divisão que a viuvez e a pudicicia conjugal. Ora, nenhuma delas é considerada virtude. Logo, a virgindade não é uma virtude.
Mas, em contrário, diz Ambrósio: A integridade do amor nos exorta a dizer alguma coisa sobre a virgindade, de modo que não toquemos apenas de passagem na que é a virtude principal para a vida do gênero humano.
SOLUÇÃO. – Como o demonstra Jerônimo, erro foi de Joviniano ensinar que a virgindade não deve ser preferida ao matrimônio. E esse erro é principalmente eliminado tanto pelo exemplo de Cristo, que escolheu mãe virgem e conservou ele próprio a virgindade, como pela doutrina do Apóstolo, que aconselhou a virgindade como um bem melhor. E ainda pela razão; quer porque, o bem divino é superior ao humano; quer porque o bem da vida contemplativa é superior ao da ativa. Ora, a virgindade se ordena ao bem da alma, segundo a vida contemplativa, que consiste em estarmos cuidadosos das coisas que são de Deus. Ao passo que o casamento se ordena ao bem do corpo, que é a multiplicação corporal do gênero humano e pertence à vida ativa; porque o homem e a mulher, vivendo em matrimônio hão de necessariamente cuidar das coisas que são do mundo, como está claro no Apóstolo. Por onde e indubitavelmente a virgindade é preferível à continência conjugal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O mérito não se funda só no gênero do ato mas sobretudo, no ânimo de quem age. Ora, Abraão tinha o ânimo disposto a conservar a virgindade, se o fosse em tempo conveniente; por isso, o mérito da continência conjugal nele se equipara ao da continência virginal em João, quanto ao prêmio essencial; mas não, quanto ao acidental. Por isso diz Agostinho, que S. João combateu por Cristo no celibato e Abraão, no casamento, conforme as diferenças de tempo; mas, ao passo que S. João tinha em ato a virtude da continência, Abraão só em hábito a possuía.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Embora a virgindade seja melhor que a continência conjugal, pode contudo, o casado ser melhor que o virgem por duas razões. – Primeiro, relativamente à castidade mesma; isto é, se o casado tiver o ânimo mais disposto a guardar a virgindade, se for necessário, do que o atualmente virgem. Por isso Agostinho instrui o virgem para que diga: Eu não sou melhor que Abraão, mas é melhor a castidade do solteiro que a do casado. E logo depois dá a razão: O que eu agora faço ele melhor o faria se o tivesse de fazer; e o que eles fizeram também eu agora faria se o devesse. – Segundo, porque talvez o que não é virgem tenha uma virtude mais excelente. Donde o dizer Agostinho: Como sabe a virgem, embora cuidadosa das coisas de Deus, que está madura para o martírio e se não tem alguma fraqueza da alma que dele o afaste? Ao passo que a mulher a que se julgava preferível, talvez já possa beber o cálice da paixão do Senhor.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O bem comum é superior ao bem privado, se forem do mesmo gênero; mas, o bem privado pode ser superior, no seu gênero. E, deste modo, a virgindade dedicada a Deus é preferível à fecundidade carnal. Por isso diz Agostinho, que a fecundidade da carne, mesmo a daquelas que, neste mundo, não tem outro fim, no casamento, senão o de dar filhos a Cristo, não pode compensar, segundo se deve crer, a perda da virgindade.
O segundo discute–se assim. – Parece que a virgindade é ilícita.
1. – Pois, tudo o que contraria um preceito da lei natural é ilícito. Ora, assim como é um preceito da lei natural o que visa à conservação do indivíduo o que determina a Escritura – Come de todos os frutos de todas as árvores do paraíso, assim também é preceito da lei da natureza o que a Escritura preceitua noutro lugar: Crescei e multiplicai–vos e enchei a terra. Logo, assim como pecaria quem se abstivesse de toda comida, por agir contra o seu bem individual, assim também peca quem se abstém completamente do ato da geração, porque agiria contra o bem da espécie.
2. Demais. – Tudo o que se afasta do justo meio da virtude parece que é vicioso. Ora, a virgindade se afasta da mediedade virtuosa, por se abster de todos os prazeres venéreos; pois, como diz o Filósofo, quem se entrega a todos os prazeres, sem exceção, é intemperante; mas, quem foge de todos é agreste e insensível. Logo, a virgindade é algo de vicioso.
3. Demais. – A pena só é devida ao vício. Ora, os antigos, nas suas leis, puniam os que viviam em celibato perpétuo, como diz Valéria Máximo. Por isso, como refere Agostinho, dizia–se que Platão sacrificou à natureza para eximirse, como de um pecado, da sua perpétua continência. Logo, a virgindade é um pecado.
Mas, em contrário, nenhum pecado pode constituir verdadeiro objeto de conselho. Ora, a virgindade constitui verdadeiramente objeto de conselho; assim, diz o Apóstolo: Quanto porem às virgens, não tenho mandamento do Senhor; mas dou conselho. Logo, a virgindade nada tem de ilícito.
SOLUÇÃO. – Nos atos humanos é vicioso o que é contra a razão reta. Ora, a razão ordena que usemos dos meios na medida em que são conducentes ao fim. Mas, o bem do homem é tríplice, como diz Aristóteles: ou consiste nos bens exteriores, como as riquezas, ou nos do corpo, ou nos da alma; e destes, os bens da vida contempIativa são superiores aos da vida ativa, segundo o Filósofo o prova, e o diz o Senhor: Maria escolheu a melhor parte. Ora, os bens exteriores se ordenam aos do corpo; os do corpo, aos da alma; e por fim, os da vida ativa, aos da vida contemplativa.
Por onde, a retidão racional exige que usemos dos bens exteriores na medida em que convêm ao corpo; e assim, dos outros. Portanto, quem se abstiver de possuir o que em si mesmo é bom, para obviar à saúde ou ainda à contemplação da verdade, não procede viciosamente mas de acordo com a razão reta. E do mesmo modo, quem se abstiver dos prazeres do corpo para mais livremente vacar à contemplação da verdade, procederá segundo a razão reta. Ora, a virgindade religiosa se abstém de todo prazer da carne para vacar mais livremente à contemplação divina, conforme ao Apóstolo: A mulher solteira e a virgem cuida nas coisas que são do Senhor, por ser santa no corpo e no espírito; mas a que é casada cuida nas coisas que são do mundo, de como agradará ao marido. Donde se conclui, que, longe de ser viciosa, a virgindade é meritória.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Um preceito implica um dever, como dissemos. Ora, de dois modos podemos estar sujeitos a um dever. Primeiro, como tendo a obrigação de cumpri–lo individualmente, e então não podemos omiti–lo sem pecado. Mas outro é o dever que a multidão deve cumprir, ao qual não está obrigado em particular nenhum membro dela; pois, há muitas coisas necessárias à multidão, que um só não pode realizar, mas que o pode ela, porque um dos seus membros realiza uma parte e outro, outra. Ora, o preceito de comer, que a lei natural impõe ao homem há de necessariamente de ser cumprido por cada um, do contrário, ninguém poderia viver. Mas, o preceito da geração respeita toda a multidão dos homens, à qual é necessário não só a multiplicação corporal mas também o progresso espiritual. Por onde, a multidão humana fica suficientemente provida se certos dos seus membros se derem à obra da geração carnal, enquanto que outros, dela se abstendo, vaquem à contemplação das causas divinas, para honra e salvação de todo o gênero humano. Assim como também, num exército, certos guardam os acampamentos, outros dão sinais e ainda outros combatem com a espada; o que tudo entretanto é necessário à multidão, embora não possa ser feito por um só.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Quem se abstém, contra a razão reta, de todos os prazeres, e por assim dizer os aborrece em si mesmo, é insensível, como agreste. Ora, o virgem não se priva de todos os prazeres, mas só dos venéreos, dos quais se abstém de acordo com a razão reta, como se disse. Pois, a mediedade virtuosa não é quantitativa, mas se funda na razão reta, como diz Aristóteles. Por isso, ensina ele, o magnânimo ocupa um extremo, na grandeza; mas esta no meio termo por ser grande quando o deve.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As leis se fazem para regular os casos que comumente se dão. Ora, era raro, entre os antigos, que alguém, por amor da contemplação da verdade, se abstivesse de todos os prazeres venéreos; o que se conta só de Platão. Por isso, sacrificou–o, não pelo reputar pecado, mas cedendo à perversa opinião dos cidadãos, como no mesmo lugar diz Agostinho.