Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute–se assim. – Parece que o honesto não difere do útil e do deleitável.
1. – Pois, chama–se honesto ao que é desejado por si mesmo. Ora, o prazer é por si mesmo desejável; porquanto, seria ridículo perguntar a alguém por que quer gozar, como diz o Filósofo. Logo. o honesto não difere do deleitável.
2. Demais. – As riquezas estão contidas no bem útil; pois, diz Túlio, que há uma, causa desejável, não pela sua própria virtude e natureza, mas, pelo seu fruto e pela sua utilidade, e é o dinheiro. Ora, as riquezas têm a mesma natureza da honestidade, conforme à Escritura: a pobreza e a honestidade, isto é, as riquezas, vêm de Deus; e, noutro lugar: Tomará sobre si uma pesada carga o que tem comunicação com outro mais poderoso, isto é, mais rico, que ele. Logo, o honesto não difere do útil.
3. Demais. – Túlio prova que nada pode ser útil, que não seja honesto. E o mesmo diz Ambrósio. Logo, o útil não difere do honesto.
Mas, em contrário, diz Agostinho: chamase honesto ao que é por si mesmo desejável; e útil, o referido a um outro bem.
SOLUÇÃO. – O honesto tem o mesmo sujeito que o útil e o deleitável; mas, deste difere racionalmente. Pois, como dissemos, chama–se honesto ao que tem uma certa beleza subordinada à razão. Ora, o ordenado segundo a razão é naturalmente conveniente ao homem. Pois, cada um naturalmente se deleita com o que lhe é conveniente. Por isso, o honesto é naturalmente deleitável ao homem, como o prova o Filósofo ao tratar dos atos de virtude. Mas, nem todo o deleitável é honesto; porque um bem pode ser conveniente aos sentidos e não, à razão. Mas, é deleitável, segundo a razão do homem, o que lhe aperfeiçoa a natureza. E também a virtude, honesta em si mesma, se refere a outro bem como ao fim. a saber, a felicidade. E, a esta luz. o honesto, o útil e o deleitável têm o mesmo sujeito. Mas, diferem racionalmente. Pois, chama–se honesto ao que tem uma certa excelência digna de honra, por causa da sua beleza espiritual; deleitável, enquanto aquieta o apetite; e útil, enquanto relativo a outro bem. Mas, o deIeitável tem maior extensão que o útil e o honesto; pois, ao passo que todo o útil e todo honesto é de algum modo deleitável, o inverso não se dá, como diz Aristóteles.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. – Chama–se honesto ao desejável por si mesmo, por um apetite racional, que busca o conveniente à razão. Ao passo que o deleitável é desejado. em si mesmo, por um apetite sensitivo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Às riquezas damos o nome de honestidade, de conformidade com a opinião geral, que as honra; ou enquanto organicamente se ordenam aos atos de virtude, como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A intenção de Túlio e Ambrósio é dizer que nada pode ser simples e verdadeiramente útil, que repugne à honestidade, porque haveria também de repugnar ao último fim do homem, que é o bem racional; embora possa talvez ser útil, a certos respeitos, em relação a um fim particular. Mas, não tem a intenção de dizer que tudo o que é útil, em si mesmo considerado, seja por natureza honesto.
O segundo discute–se assim. – Parece que o honesto não é o mesmo que o belo.
1. – Pois, a ideia de honesto é deduzida do apetite; porquanto, honesto é o desejado, por si mesmo. Ora, o belo respeita antes a vista, a que agrada. Logo, o belo não é o mesmo que o honesto.
2. Demais. – O belo implica um certo esplendor, o que constitui, na sua natureza mesma. a glória; ao passo que o honesto implica a honra. Ora, a honra e a glória, diferindo entre si, como se disse, parece que também o honesto difere do belo.
3. Demais. – O honesto é o mesmo que a virtude, como se disse. Ora, há um certo belo contrário à virtude; donde a expressão da Escritura: Pondo a tua confiança na tua beleza, entregaste–te à fornicação em teu nome. Logo, o honesto não é o mesmo que o belo.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo: E os que temos por mais vis membros do corpo, a esses cobrimos com mais decoro; porque os que em nós são mais honestos não têm necessidade de nada. E ao que nesse lugar chama membros visão os vergonhosos: e os honestos, os belos. Logo, honesto e belo parece identificarem–se.
SOLUÇÃO. – Como podemos concluir das palavras de Dionísio, o pulcro ou o belo, por natureza, implicam e esplendor e a proporção devida. Assim, diz que Deus é belo como a causa da harmonia e do esplendor de todas as causas. Por isso, a beleza do corpo consiste em termos os membros bem proporcionados e dotados de um certo e devido esplendor de cores. E, do mesmo modo, a beleza espiritual consiste em a atividade do homem, isto é, as suas ações serem bem proporcionadas segundo o esplendor espiritual da razão. Ora, isto constitui o honesto, na sua natureza mesma, o qual, como dissemos, é o mesmo que a virtude, que introduz em todas as coisas humanas a regra racional. Por onde, o honesto é o mesmo que a beleza espiritual. Donde o dizer Agostinho: Chamo honesto à beleza intelectual, a que damos propriamente o nome de espiritual. E depois acrescenta haverem muitas belezas visíveis, a que cabe menos propriamente a denominação de honestos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. O objeto que move o apetite é o bem apreendido. Ora, o que na apreensão mesma aparece como belo é considerado como conveniente e bom; por isso diz Dionísio, que para todos é amável o belo e o bem. Por onde, o honesto mesmo, enquanto dotado de beleza espiritual, torna–se desejável. Por isso, diz Túlio: Vês a forma mesma e a como face do honesto; a qual, se com os olhos fosse vista, excitaria em nós, como diz Platão, o admirável amor da sabedoria.
RESPOSTA A SEGUNDA. – Como dissemos, a glória é o efeito da honra; pois, por ser louvada e honrada é que uma pessoa se torna ilustre aos olhos dos outros. Por onde, assim como o honorífico se identifica com o glorioso, assim também, o honesto, com o belo.
RESPOSTA A TERCEIRA. – A objeção colhe, se se trata da beleza do corpo. Embora se possa dizer que é possível fornicar espiritualmente por causa da beleza espiritual; assim, quando nos ensoberbecemos com a nossa própria beleza. Donde o dizer a Escritura: E o seu coração se elevou no teu esplendor; tu perdeste a tua sabedoria na tua formosura.
O primeiro discute–se assim. –– Parece que a honestidade não é o mesmo que a virtude.
1. – Pois, como diz Túlio, honesto é o desejado em si mesmo. Ora, a virtude não é desejada em si mesma, mas, por causa da felicidade; pois, no dizer do Filósofo, a felicidade é o prémio e o fim da virtude. Logo, o honesto não é o mesmo que a virtude.
2. Demais. – Segundo Isidoro, a honestidade é chamada como que o estado de honra. Ora há muitas outras coisas a que é devida a honra, além da virtude; pois, à virtude é propriamente devido o louvor, como diz Aristóteles. Logo, a honestidade não é o mesmo que a virtude.
3. Demais. – A virtude consiste principalmente na eleição interior, como diz o Filósofo. Ora, a honestidade parece pertencer sobretudo à convivência exterior, segundo o Apóstolo: Façase tudo com decência e com ordem. Logo, a honestidade não é o mesmo que a virtude.
4. Demais. – Parece que a honestidade consiste nas riquezas exteriores, segundo a Escritura: Os bens e os males, a via e a morte, a pobreza e as riquezas, tudo isto vem de Deus. Ora, a virtude não consiste nas riquezas exteriores. Logo, a honestidade não é o mesmo que a virtude.
Mas, em contrário, Túlio divide o honesto nas quatro virtudes principais, em que também se divide a virtude. Logo, o honesto é o mesmo que a virtude.
SOLUÇÃO. – Como diz Isidoro, a honestidade é assim chamada por ser como o estado da honra. Por onde, chama–se honesto o que é digno de honra. Ora, a honra, como dissemos, é devida à excelência. Mas, a excelência do homem é considerada sobretudo segundo a virtude, pois, é a disposição do perfeito para o que é ótimo, no dizer de Aristóteles. Portanto. o honesto, propriamente falando, identifica–se com a virtude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. – Como diz o Filósofo das coisas desejadas, em si mesmas, umas só por si mesmas o são, e nunca por causa de outras; tal a felicidade, que é o fim último. Outras, porém são desejadas, por si mesmas, enquanto por si mesmas são de natureza boa, embora nenhum outro bem nos possam proporcionar; e contudo são desejadas por causa de outros bens, por nos conduzirem a um bem mais perfeito. E, neste sentido, as virtudes são desejáveis, em si mesmas. Por isso Túlio diz que certos bens, como a virtude, a verdade e a ciência nos aliciam pela sua própria força e nos atraem pela sua própria dignidade. E isto basta para a realização da ideia de honesto,
RESPOSTA À SEGUNDA. – Dos bens honrados, superiores à virtude, há uns mais excelentes que ela, a saber, Deus e a felicidade. E esses não nos são conhecidos pela experiência, como o são as virtudes, de acordo com as quais agimos todos os dias. Por isso à virtude cabe melhor a designação de honesto. Mas, os outros bens, que lhe são inferiores, são honrados, enquanto lhe coadjuvam a atividade; tais são a nobreza, o poder e as riquezas. Por isso, o Filósofo diz que esses bens são honrados por certo; mas, só a bem merece verdadeiramente honrado. Ora, bons o somos pela virtude. Portanto, à virtude devido o louvor, enquanto um bem desejável por causa de outro; e lhe é devida a honra, enquanto em si mesma desejável. E, a esta luz, tem a natureza de honesto,
RESPOSTA A TERCEIRA. – Como dissemos, o honesto implica a honra devida. Ora a honra é o testemunho, que damos da excelência de alguém, como provámos. Ora, só damos testemunho do que conhecemos. Mas, a eleição interior de outrem não a conhecemos senão pelos atos externos. Logo, a convivência exterior é de natureza honesta, enquanto demonstrativa da retidão interior. E por isto, a honestidade consiste, fundamentalmente, na eleição interior; e aparentemente na convivência externa.
RESPOSTA À QUARTA. – Na opinião vulgar, a excelência das riquezas torna o homem digno das honras; donde vem que, às vezes, o nome de honestidade é empregado para designar a prosperidade exterior.
O quarto discute–se assim. – Parece que também nos homens virtuosos pode haver vergonha.
1. – Pois, os contrários produzem efeitos contrários. Ora, os que superabundam na malícia não se envergonham, como diz a Escritura: Tens a face de uma meretriz, não sabes te enrubescer, Logo, os virtuosos são os que mais se envergonham.
2. Demais. – O Filósofo diz que os homens se envergonham não só dos vícios, mas ainda dos sinais deles. O que se dá também com os virtuosos. Logo, nos virtuosos pode haver vergonha.
3. Demais. – A vergonha é o temor da confusão. Ora, uma pessoa virtuosa pode vir a cair em confusão; por exemplo, quando falsamente difamada ou quando sofre opróbrios indignos. Logo, pode ha ver vergonha nos homens virtuosos.
4. Demais. – A vergonha faz parte da temperança, como se disse. Ora, a parte não se separa do todo. E, como há temperança no homem virtuoso, parece que também há vergonha.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que o homem virtuoso não é susceptível de vergonha.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a vergonha é o temor de um ato desonesto. Ora, por dupla razão podemos não temer um mal: pelo não considerarmos tal ou pelo não considerarmos possível para nós ou difícil de evitar. E, a esta luz. pode alguém não ser susceptível de vergonha, de dois modos. – Primeiro, por não apreender como torpes as coisas vergonhosas. E assim, carecem de vergonha os homens submersos no pecado, aos quais os seus pecados não desagradam, mas antes deles se gloriam. – Segundo, por não apreender a desonestidade como possível para si, ou como não facilmente evitável. E, deste modo, os velhos e os virtuosos não são susceptíveis de vergonha. Mas, têm uma disposição tal, que, se neles existisse alguma desonestidade, dela se envergonhariam; por isso. diz o Filósofo, que por suposição é atribuível a vergonha ao virtuoso.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. De não envergonhar–se podem ser susceptíveis os homens péssimos e os melhores, por diversas causas, como dissemos. Mas, também o podem os medíocres, enquanto têm um certo amor pelo bem, sem serem de todo imunes ao mal.
RESPOSTA À SEGUNDA. – É próprio do virtuoso não só evitar o vício, mas ainda a aparência mesma dele, segundo aquilo do Apóstolo: Guardai–vos ele toda a aparência do mal. E o Filósofo diz, o virtuoso deve evitar não só o verdadeiramente mau, mas também o que o é, na opinião dos homens.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O virtuoso despreza as difamações e os opróbrios, como dissemos, como coisas de que, por assim dizer, não é digno. Por isso não se envergonha muito com essas coisas. Há porém certos movimentos de vergonha, que surpreendem a razão, como o há das outras paixões.
RESPOSTA À QUARTA. – A vergonha não faz parte da temperança, como se lhe pertencesse à essência; mas, como sendo uma disposição para ela. Por isso Ambrósio diz que a vergonha lança os primeiros fundamentos da temperança, por incutir o horror da desonestidade.
O terceiro discute–se assim. – Parece que não nos envergonhamos mais das pessoas que nos são mais chegadas.
1. – Pois, diz Aristóteles, que os homens se envergonham mais daqueles por quem querem ser mais admirados. Ora, isso mais o desejamos dos melhores, que às vezes não nos são os mais chegados. Logo, não é dos que nos são mais chegados que mais nos envergonhamos.
2. Demais. – Mais chegados a nós parecem os Que fazem atos semelhantes aos nossos. Ora, não nos envergonhamos daqueles Que vivem no mesmo pecado que nós; pois, como diz Aristóteles, o que nós mesmos fazemos não o proibimos aos outros. Logo, não é dos mais chegados a nós que, sobretudo nos envergonhamos.
3. Demais. – O Filósofo diz que mais nos envergonhamos dos que propalam a muitos o que sabem, como são os zombeteiros e os inventores de histórias. Ora, os que nos são mais chegados não costumam propalar os seus vícios. Logo, não é deles que devemos sobretudo nos envergonhar.
4. Demais. – O Filósofo diz, no mesmo lugar, que mais nos envergonhamos daqueles em presença dos quais não calmos nunca em nenhuma falta, e daqueles aos quais pela primeira vez jazemos um pedido e dos que queremos começar a ser amigo. Ora, esses nos são menos chegados. Logo, não é dos mais chegados que mais nos envergonhamos.
Mas, em contrário, diz Aristóteles, que mais nos envergonhemos daqueles que sempre estarão presentes.
SOLUÇÃO. – O vitupério, opondo–se à honra, assim como a honra implica um certo testemunho da excelência de alguém, e sobretudo da excelência na virtude; assim também o opróbio, o temor do qual é a vergonha, importa o testemunho da falta de outrem e sobretudo da que é culposo. E, portanto, quanto maior for o peso atribuído ao testemunho de outrem, tanto mais nos envergonharemos dele, Ora, o testemunho de outrem pode ser considerado de maior peso, quer pela certeza da verdade, que dá, quer, pelo seu efeito.
Ora, a certeza da verdade é implicada no testemunho de outrem por duas razões. – Primeiro, pela retidão do juízo, como bem o mostram os sábios e os virtuosos, de quem sobretudo desejamos ser honrados e de quem mais nos envergonhamos. Por isso, ninguém se envergonha das crianças e dos animais, pela falta de juízo reto que neles há. – Segundo, pelo conhecimento dos que dão o testemunho; pois, cada um julga bem do que conhece. E assim, mais nos envergonhamos das pessoas chegadas, que melhor apreciam os nossos atos. Ao contrário, dos estranhos e dos que nos são de todo desconhecidos, de nenhum modo nos envergonhamos.
Quanto ao seu efeito, de maior peso é o testemunho que pode nos causar maior proveito ou maior dano. Por isso, desejamos ser mais honrados dos que nos podem mais ajudar e mais nos envergonhamos dos que podem causar maior dano. E daí vem que, sob certo aspecto, mais nos envergonhamos dos que nos são mais chegados, com os quais havemos sempre de conviver, como se daí nos proviesse um perpétuo detrimento. Ao contrário, o que provém dos estranhos e dos que mantém conosco relações efémeras, isso passa como que rapidamente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. – Por semelhante razão nós nos envergonhamos dos melhores e dos que nos são mais chegados. Porque, sendo o testemunho dos melhores reputado mais eficaz, pelo conhecimento universal que têm das causas, e por estarem firmemente apoiados na verdade, assim também o testemunho as pessoas familiares é considerado mais eficaz, por conhecerem mais particularidades, que nos tocam.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O testemunho das que nos são chegados pela semelhança do pecado nós não o tememos, por não pensarmos que considerem a nossa falta como algo de desonesto.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Nós nos envergonhamos dos que propalam o que sabem, pelo dano daí proveniente, a saber, a nossa difamação perante muitos.
RESPOSTA À QUARTA. – Também daqueles, entre os quais não fazemos nenhum mal, mas nos envergonhamos, por causa do dano subsequente; isto é, por perdermos assim a boa opinião, que de nós faziam. E ainda, porque julgamos maior o que temos como contrário, quando diretamente o consideramos; por isso, quando subitamente percebemos em outrem, que julgávamos bom, alguma desonestidade, nós a consideramos como sendo pior. Quanto aos que pela primeira vez pedimos alguma coisa, deles mais nos envergonhamos, por causa do dano daí proveniente, que é o impedimento de se satisfazer ao que pedimos e de se consumar a amizade.
O segundo discute–se assim. – Parece que o objeto da vergonha não é o ato desonesto.
1. – Pois, diz o Filósofo, que a vergonha é o temor da confusão. Ora, às vezes, os que não praticaram nenhum ato desonesto sofrem confusão, segundo aquilo da Escritura: Por tua causa tenho sofrido afronta, foi coberto de confusão o meu rosto. Logo, a vergonha não tem propriamente por objeto o ato desonesto
2. Demais. – Só se considera desonesto o que inclui pecado. Ora, nós nos envergonhamos de certas coisas, por exemplo, de praticar obras servis, que não são pecados. Logo, parece que a vergonha não tem propriamente por objeto o ato desonesto.
3. Demais. – As obras virtuosas, longe de serem desonestas, são as mais belas, como diz Aristóteles. Ora, às vezes nos envergonhamos de praticar certas obras virtuosas, como diz o Evangelho: Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará a ele, etc. Logo, o objeto da vergonha não é o ato desonesto.
4. Demais. – Se a vergonha tivesse propriamente como objeto os atos desonestos, deveríamos nos envergonhar mais dos atos mais desonestos. Ora, às vezes, envergonhamo–nos mais de pecados menores e nos gloriamos de outros, que são gravíssimos, conforme a Escritura: Porque te glorias na malícia? Logo a vergonha não tem propriamente por objeto os atos desonestos,
Mas, em contrário, diz Damasceno, que a vergonha é o temor causado por um ato desonesto ou por uma desonestidade perpetua.
SOLUÇÃO, – Como dissemos, quando tratamos da paixão do temor, o temor tem propriamente por objeto um mal árduo, isto é, dificilmente evitável. Ora, há duas sortes de desonestidade. – Uma, viciosa, e é a que consiste na deformidade de um ato voluntário e esta, propriamente falando, não é por natureza um mal difícil; pois, o que depende só da vontade não o consideramos difícil e superior às nossas forças; e por isso não é apreendido sob a noção de terrível. Donde o dizer o Filósofo, que c temor não tem por objeto esses males. Mas, há outra sorte de desonestidade, que é quase penal e consiste na censura dos outros do mesmo modo que uma certa refulgência da glória está em sermos honrados pelos outros. E como essa censura é, por natureza, um mal difícil, como a honra é por natureza um bem árduo, a vergonha, que é o temor da desonestidade, respeita primária e principalmente ao vitupério ou opróbrio. Ora, o vitupério, sendo propriamente devido ao vício, como a honra o é à virtude, daí resulta, por consequência, que a vergonha respeita à desonestidade viciosa. Por isso, Giz o Filósofo, nós nos envergonhamos menos dos defeitos que temos, sem culpa nossa.
Ora, a vergonha se relaciona com a culpa de dois modos. Primeiro, por deixarmos de agir viciosamente por temor da censura. Segundo, por evitarmos, ao praticar ações desonestas, de sermos vistos publicamente, por temor da censura. Dessas duas relações, a primeira é, segundo Gregório Nisseno, a enrubescência; a segunda, a vergonha. Por isso, esse mesmo autor diz, que quem se envergonha oculta–se para agir; mas, quem enrubesce teme cair em confusão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A vergonha diz respeito propriamente à confusão, enquanto esta é devida à culpa, que é uma deficiência voluntária. Por isso o Filósofo diz, que nós não envergonhamos sobretudo daquilo de que somos a causa. Ora, as censuras feitas aos virtuosos, por causa da sua virtude, ele as despreza, por lhe serem irrogadas indignamente, como do magnânimo o diz Aristóteles e dos Apóstolos, a Escritura: Saíam os Apóstolos gozosos de diante do conselho, por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus. Mas, é a imperfeição da virtude, que nos leva a nos envergonharmos das censuras, que nos são feitas, pela nossa virtude; pois, quanto mais virtuosos formos, tanto mais desprezaremos os bens ou males exteriores. Por isso, diz a Escritura: Não temais o opróbrio dos homens.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como a honra, segundo dissemos, embora não seja devida verdadeiramente senão à virtude, implica uma certa excelência; assim também o vitupério, embora devido propriamente só à culpa, contudo implica, ao menos na opinião dos homens, um certo defeito. Por isso, certos se envergonham da pobreza, da ignobilidade, da escravidão e de cousas semelhantes.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Só por acidente é que nos envergonhamos das obras virtuosas, que, em si mesmas consideradas, não podem constituir objeto de vergonha. E nos envergonhamos delas ou pelos termos como viciosas, segundo a opinião dos homens; ou por querermos evitar praticando obras virtuosas, a nota de presunção ou também a de simulação.
RESPOSTA À QUARTA. – As vezes acontece, que certos pecados mais graves são menos dignos de vergonha. Ou porque são, por natureza, menos desonestos e, assim, os pecados espirituais, menos que os carnais; ou por consistirem num certo excesso de bens temporais e, assim, mais nos envergonhamos da timidez, que da audácia; e do furto, que do roubo – por uma certa espécie de poder. E o mesmo se dá em casos semelhantes.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a vergonha é uma virtude.
1. – Pois, ser uma mediedade, segundo a determinação da razão, é próprio da virtude, como resulta da definição de virtude dada por Aristóteles. Ora, a vergonha constitui tal mediedade, como está claro no Filósofo. Logo, a vergonha é uma virtude.
2. Demais. – Todo o louvável ou é virtude ou pertence à virtude. Ora, a vergonha é algo de louvável. Mas, não faz parte de nenhuma virtude. Assim, não faz parte da prudência, porque tem a sua sede, não na razão, mas, no apetite. Também não faz parte da justiça, porque implica certa paixão, ao passo que a justiça não respeita às paixões. Semelhantemente, não faz parte da fortaleza, a que é próprio enfrentar e atacar as dificuldades; ao passo que fugir delas é o próprio da vergonha. Nem faz parte da temperança; pois, ao passo que esta modera as concupiscências, a vergonha é um certo temor, como está claro no Filósofo e em Damasceno. Donde se conclui, que a vergonha é uma virtude.
3. Demais. – O honesto se identifica com a virtude, como está claro em Túlio. Ora, a vergonha é uma parte da honestidade; pois, diz Ambrósio, que a vergonha é companheira e amiga da paz do espírito, foge da protérvia, alheia–se a toda luxúria, ama a sobriedade, promove a honestidade e exige o acordo. Logo a vergonha é uma virtude.
4. Demais. – Todo vício se opõe a alguma virtude. Ora, certos vicias, a saber, a inverecúndia e a insensibilidade desordenada se opõem à vergonha. Logo, a vergonha é uma virtude.
5. Demais. – Dós atos geram–se os hábitos semelhantes, como diz Aristóteles. Ora, a vergonha implica um ato louvável. Logo, tais atos, sendo frequentes, causam um hábito. Ora, o hábito de boas obras é uma virtude, como está claro no Filósofo. Logo, a vergonha é uma virtude.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a vergonha não é uma virtude.
SOLUÇÃO. – A virtude pode ser considerada em duplo sentido: próprio e comum. – Em sentido próprio, a virtude é uma determinada perfeição, como diz Aristóteles. Portanto, tudo o que repugna à perfeição, mesmo se for um bem, contraria à ideia de virtude. Ora, a vergonha repugna à perfeição. – Pois, é o temor de uma desonestidade, que é digna de censura por isso, Damasceno diz, que a vergonha é o temor de praticar um ato desonesto. Pois, assim como a esperança refere a um bem possível e árduo, como estabelecemos, assim, o temor supõe um mal possível e árduo, como provamos quando tratamos das paixões. Ora, quem é perfeito, por ter o hábito da virtude não concebe a prática de nenhum ato censurável e desonesto, nem nenhum ato possível e árduo, isto é, difícil, a evitar; nem pratica realmente nada de torpe donde venha a temer o opróbrio. Por onde, a vergonha, propriamente ralando, não é uma virtude, pois, não lhe realiza a perfeição. – Mas, em sentido comum, chama–se virtude a tudo o que têm de bom e de louvável os atos humanos ou as paixões. E, neste sentido, a vergonha às vezes se chama virtude, por ser uma paixão digna de louvor.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Ser uma mediedade não constitui só por si li virtude, na sua natureza mesma, embora seja uma das partes compreendidas na definição dela; mas, a virtude há de ser, ulteriormente, um hábito eletivo, isto é, que obra por eleição. Ora, a vergonha não designa nenhum hábito, mas uma paixão; nem o seu movimento provém da eleição, mas, de um certo ímpeto da paixão. Por isso, não realiza a ideia de virtude.
RESPOSTA A SEGUNDA. – Como dissemos, a vergonha é o temor da desonestidade e da censura. Pois, como já foi dito, o vicio da intemperança é o torpíssimo e o mais censurável. Por isso, a vergonha mais principalmente respeita à temperança que a qualquer outra virtude, em razão do motivo, que é desonesto; mas, não pela espécie de paixão, que é o temor. Mas, por serem desonestos e censuráveis os vícios opostos às outras virtudes, a vergonha pode também fazer parte das outras virtudes.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A vergonha promove a honestidade, afastando o que lhe é contrário; não porém porque realize a ideia perfeita da honestidade.
RESPOSTA À QUARTA. – Qualquer defeito causa um vício; mas, nem qualquer bem é capaz de realizar a ideia da virtude. Por onde, não há de necessariamente ser virtude tudo o que diretamente se opõe a um vício. Embora todo vício se oponha a alguma virtude, pela sua origem. E assim, a inverecúndia, enquanto proveniente do demasiado amor dos atos desonestos, opõe–se à temperança.
RESPOSTA À QUINTA. – O nos envergonharmos muitas vezes causa o hábito da virtude adquirida, que nos faz evitar certos atos desonestos, objeto da vergonha; mas, esse hábito não faz com que continuemos a nos envergonhar. O resultado desse hábito da virtude adquirida é fazer tão somente com que nos envergonhemos, quando houver matéria para tal.
O primeiro discute–se assim. – Parece que Túlio enumera inconvenientemente as partes da temperança, dizendo serem a continência, a clemência e a modéstia.
1. – Pois, a continência entra, por oposição, na mesma divisão que a virtude. Ora, a temperança está incluída na virtude. Logo, a continência não faz parte da temperança.
2. Demais. – Parece que a clemência mitiga o ódio ou a ira. Ora, a tal não respeita a temperança, cujo objeto são os prazeres do tato, como se disse. Logo, a clemência não faz parte da temperança.
3. Demais. – A modéstia supõe atos exteriores; por isso diz o Apóstolo: A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens. Ora, os atos exteriores são matéria da justiça, como se estabeleceu. Logo, a modéstia é, antes, parte da justiça do que da temperança.
4. Demais. – Macróbio enumera muitas mais partes da temperança; assim, diz, que da temperança resultam a modéstia, a vergonha a abstinência, a castidade, a honestidade, a moderação, a parcimónia, a sobriedade, a pudicícia. E Andronico também diz que são próximas da temperança a austeridade, a continência, a humildade, a simplicidade, a boa ordem e a auto–suficiência. Logo, Túlio enumerou insuficientemente as partes da temperança.
SOLUÇÁO. – Como dissemos, qualquer virtude cardeal pode ter três partes: integrantes, subjetivas e potenciais.
Partes integrantes de uma virtude se chamam as condições, que devem concorrer para a existência dela. E, assim sendo, são duas as partes integrantes da temperança, a saber a vergonha, que nos faz evitar a desonestidade, contrária à temperança: e a honestidade, pela qual amamos a beleza da temperança. Pois, como do sobredito resulta, a temperança, dentre as outras virtudes, é sobretudo, a que exige uma refulgência particular; e os vícios dá intemperança são particularmente desonestos.
As partes subjetivas de uma virtude são as suas espécies. E, as espécies das virtudes hão de necessariamente diversificar–se pela diversidade da matéria ou do objeto. Ora, o objeto da temperança são os prazeres do tato, divididos em dois gêneros. Assim, uns se ordenam à nutrição. E destes, os que respeitam à comida são regulados pela abstinência; os que respeitam à bebida, propriamente, pela sobriedade. Outros se ordenam à potência geradora. E destes, o que se refere ao prazer principal do coito, em si mesmo, é regulado pela castidade; os que se referem às deleitações circunstantes, por exemplo, às consistentes na vista, nos contatos e nos abraços, são regulados pela pudicícia.
As partes potenciais de uma virtude principal se chamam virtudes secundárias, que observam, em certas outras matérias, que não oferecem dificuldade, o mesmo modo, que a virtude principal observa relativamente a uma principal matéria. Ora, é próprio da temperança moderar os prazeres do tacto, dificílimos
de o serem. Por onde, qualquer virtude, que introduz uma certa moderação, numa determinada matéria, e refreia o apetite tendente a um certo objeto, pode ser considerada parte da temperança, como virtude que lhe é adjunta.
O que de três modos pode dar–se: de um modo, quanto aos movimentos exteriores da alma; de outro, quanto aos movimentos exteriores e atos do corpo; de terceiro modo, quanto às causas exteriores.
Mas, além do movimento da concupiscência, refreado e moderado pela temperança, há na alma três movimentos com tendências determinadas. – O primeiro é o movimento da vontade impeli da pelo ímpeto da paixão. E esse movimento o refreia a continência; donde resulta que, embora o homem sofra concupiscências imoderadas, a vontade, contudo não é vencida. – O outro movimento interior com uma determinada tendência, é o da esperança e da audácia, dela resultante. E esse movimento o modera ou refreia a humildade. – O terceiro movimento é o da ira, que tende para a vindicta; e esse o refreia a mansidão ou a clemência.
Quanto aos movimentos ou atos corpóreos é a modéstia, que os modera e refreia. A qual Andronico divide em três partes. –– A primeira, delas é próprio discernir o que deve ser feito e o que não o deve; e a ordem em que devemos agir e a firme persistência no ato. E a isto chama a boa ordem. – A outra é a pela qual observamos a conveniência no que agimos. E a essa chama ornato. A terceira enfim é a que respeita à nossa sociedade com os amigos ou com quaisquer outros. E a essa chama austeridade.
Quanto às coisas exteriores devem elas ser reguladas por uma dupla moderação. – A primeira faz–nos não buscar o supérfluo. E a essa parte, chamada por Macróbio parcimónia, o é auto–suficiência, por Andronico. – A segunda faz–nos não buscar coisas demasiado esquisitas. – E a essa Macróbio chama–lhe moderação e Andronico, simplicidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A continência difere da virtude, como o imperfeito, do perfeito, segundo a seguir se dirá. E, deste modo, entra na mesma divisão que a virtude. Mas, convém com a temperança pela matéria, porque versa sobre os prazeres do tato; e pelo modo, porque consiste em refreá–los. Por isso, é considerada convenientemente como parte da temperança.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A clemência ou mansidão não é considerada parte da temperança, pela conveniência de matéria, mas, por convir com ela no modo de refrear e moderar, como se disse.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Nos atos exteriores, a virtude considera o devido a outrem. O que a modéstia não considera, senão só uma determinada moderação. Por isso não é tida como parte da justiça, mas, da temperança.
RESPOSTA À QUARTA. – Túlio compreende na modéstia tudo o que pertence à moderação dos movimentos corporais e das coisas exteriores; e também à moderação da esperança, que dissemos pertencer à humildade.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a timidez é maior vício que a intemperança.
1. – Pois, um vício é censurado, por ser contrário ao bem da virtude. Ora, a timidez se opõe à fortaleza, virtude mais nobre que a temperança, à qual se opõe a intemperança, como do sobredito resulta. Logo, a timidez é maior vício que a, intemperança.
2. Demais. – Menos repreensíveis somos quando sucumbimos ao que é difícil de vencer. Por isso diz o Filósofo, que quem é vencido por prazeres ou por sofrimentos fortes e muito intensos não é digno de admiração, mas, de perdão. Ora, parece mais difícil vencer os prazeres sensíveis do que as outras paixões: donde o dizer Aristóteles, que é mais difícil lutar contra o prazer do que contra a ira, considerada mais forte que o temor. Logo, a intemperança, que é superada pelo prazer, é menor pecado que a timidez, que é vencida pela ira.
3. Demais. – É da natureza do pecado ser voluntário. Ora, a timidez é mais voluntária que a intemperança; pois, ao passo que ninguém deseja ser intemperante, certos desejam fugir ao perigo da morte, o que constitui a timidez. Logo, a timidez é mais grave pecado que a intemperança.
Mas, em contrário, diz o Filósofo, que há mais de voluntário na intemperança que na timidez. Logo, constitui mais naturalmente um pecado.
SOLUÇÃO. – Um vício pode ser comparado com outro de dois modos: relativamente à sua matéria mesma ou ao seu objeto, e relativamente ao pecador. E de ambos os modos a intemperança é mais grave pecado que a timidez.
Assim, primeiro, quanto à matéria. Pois, a timidez evita os perigos mortais, ao que a induz a necessidade máxima de conservar a vida. Ora, a intemperança tem por objeto os prazeres, o desejo dos quais não é do mesmo modo necessário à conservação da vida; pois, como já dissemos, a intemperança tem como objeto, antes, certas deleitações ou concupiscências acrescentadas, do que as concupiscências ou deleites naturais. Ora, quanto mais o incitamento ao pecado é mais necessário, tanto mais leve é o pecado. Por onde, a intemperança é mais grave vício que a timidez, quanto ao objeto ou à matéria, que a provoca.
E o mesmo se dá se considerarmos o pecador. E isso por três razões.
A primeira é que quanto mais o pecador tem consciência do seu pecado, tanto mais gravemente peca; por isso os alienados não se consideram pecadores. Ora, os temores e as tristezas graves, sobretudo se há perigo de morte, travam a razão do homem. O que não produz o prazer, que provoca à intemperança.
A segunda é que quanto mais voluntário o pecado tanto mais grave. Ora, a intemperança tem mais de voluntário, que a timidez. E isto por duas razões. – Primeiro, porque o princípio das ações· que praticamos por temor vem de um impulso externo; por isso tais ações não são voluntárias, absolutamente falando, mas, mistas, como diz Aristóteles. Ao passo que as ações praticadas por prazer são absolutamente voluntárias. – Segundo, porque os atos do intemperante são mais voluntários, em particular, e menos, em geral. Pois, ninguém quer ser intemperante; porém, somos aliciados por prazeres particulares, que nos tornam intemperante. Por isso o melhor remédio para evitarmos a intemperança é não nos demorarmos na consideração de particularidades. Ora, o contrário se dá com a timidez. Pois, um ato particular, que somos levados inopinadamente a praticar, é menos voluntário, como o de lançarmos de nós o escudo e outras semelhantes; ao contrário; o ato considerado em geral, como por exemplo, o de nos salvarmos fugindo, é mais voluntário. Ora, é absolutamente mais voluntário o que o é em particular, pois, cada ato é particular. Logo, a intemperança, sendo absolutamente mais voluntária que a timidez, é um vício maior.
A terceira é que a intemperança podemos mais facilmente remediar que a timidez; pois, aos prazeres da mesa e do sexo, objeto da intemperança, somos provocados durante toda a nossa vida e podemos, sem perigo, nos exercitar para sermos temperante, em relação a eles: ao contrário; os perigos de morte ocorrem mais raramente e é mais perigoso nos exercitarmos neles, para fugirmos à timidez.
Logo, a intemperança é absolutamente, um pecado maior que a timidez.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A excelência da fortaleza sobre a timidez pode ser considerada a dupla luz. – Primeiro; quanto ao fim, que implica a noção de bem; pois, a fortaleza se ordena, mais que a temperança, à ideia do bem comum. E também por esse lado a timidez tem uma certa excelência sobre a intemperança; pois, a timidez leva certos a deixarem· de agir em benefício do bem comum. – Segundo, quanto à dificuldade; por ser mais difícil arrostarmos os perigos de morte do que nos abstermos de certos prazeres. E, por aqui, não há de forçosamente a timidez superar a intemperança. Pois, assim como é necessária uma virtude maior para não nos deixarmos vencer de um obstáculo mais forte, assim também, ao contrário, um vício menor só pode ser superado por uma oposição mais forte, e um maior, por uma oposição mais fraca.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O amor pela conservação da vida, que nos leva a evitarmos os perigos de morte, é–nos muito mais conatural que quaisquer prazeres da: mesa ou do sexo, ordenados à essa conservação. Por isso, é mais difícil vencer o temor dos perigos de morte, que o desejo dos prazeres proporcionados pela mesa e pelo sexo. Aos quais, porém é mais difícil resistir do que à ira; à tristeza e ao temor de quaisquer outros males.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Na timidez consideramos o voluntário, mais em universal, e menos, em particular. Por isso ela implica o voluntário, mais relativamente do que absolutamente.
O segundo discute–se assim. – Parece que a intemperança não é um pecado pueril.
1. – Pois, àquilo do Evangelho – Se vos não converterdes e não vos fizerdes como meninos – diz Jerônimo, que a criança não persevera na tracúndia; ofendida, não guarda rancor; nem se compraz na vista de uma mulher bela o que é contrário à intemperança. Logo, a intemperança não é um pecado pueril.
2. Demais. – A criança só tem a concupiscência natural; ora, poucos pecam por intemperança no tocante à essa concupiscência, como diz o Filósofo. Logo, a intemperança, não é um pecado pueril.
3. Demais. – As crianças devem ser criadas e nutridas. Ora, a concupiscência e o prazer, sobre os quais versa a intemperança, devemos sempre diminui–los e extirpa–Ios, conforme o Apóstolo: Mortificai os vossos membros, que estão sobre a terra, a concupiscência, etc. Logo, a intemperança não é um pecado pueril.
Mas, em contrário, diz o Filósofo que a denominação de intemperança nós a aplicamos aos pecados pueris.
SOLUÇÃO. – A palavra – pueril é susceptível de dupla significação. Num sentido, significa o conveniente à criança. E, nesse, o Filósofo não quer dizer que a intemperança seja um pecado pueril. – Noutro, implica uma certa semelhança. E, neste, os pecados da intemperança se chamam pueris. Pois, o pecado da intemperança é um pecado de concupiscência supérflua, que é comparável ao proceder da criança, de três modos.
Primeiro, pelo que uma e outra desejam; pois, como a criança, assim também a concupiscência deseja o desonesto. E a razão é que, o belo, nas coisas humanas, consiste em ser ordenado segundo a razão. Por isso, Túlio diz, o belo é o consentâneo com a excelência do homem, por onde a sua natureza difere da dos brutos. Ora, a criança não atende à ordem da razão. E, do mesmo modo, a concupiscência não ouve a razão, como diz o Filósofo.
Segundo, quanto às consequências. Pois, a criança a que se lhe faz a vontade, quer que lha façamos cada vez mais; donde o dito da Escritura: Um cavalo indómito faz–se intratável e um filho deixado à sua vontade sairá precipitado. Assim também a concupiscência; a que satisfazemos cada vez mais se fortalece; donde o dizer Agostinho: A concupiscência a que cedemos transforma–se em costume; e o costume a que não resistimos, faz–se necessidade.
Terceiro, quanto ao remédio que a ambos se aplica. Assim, a criança se emenda, quando castigada, conforme àquilo da Escritura: Não queiras subtrair a correção ao menino; tu o o fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno. Do mesmo modo, resistindo à concupiscência, reduzimo–Ia aos limites devidos, Por isso, diz Agostinho, que o espírito afeito às coisas espirituais e nelas permanentemente fixo quebra o ímpeto do costume, isto é, da concupiscência carnal, o qual aos poucos reprimido, se extingue; pois, mais forte, quando lhe obedecíamos, já é certamente menor, embora não de todo nulo, quando o refreamos. Donde o dizer o Filósofo, que assim como a criança deve viver segundo as prescrições do mestre, assim o concupiscível deve estar em consonância com a razão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. – A objecção colhe se considerarmos pueril o que é próprio da criança. Mas, neste sentido, não chamamos pueril ao pecado da intemperança, senão só por semelhança, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Qualquer concupiscência pode chamar–se natural de dois modos. – De um modo, genericamente. E, então, a temperança e a intemperança são relativas às concupiscências naturais: pois, regulam as concupiscências do comer e do sexo, ordenadas à conservação da natureza. Noutro sentido, podemos considerar–se a concupiscência natural, especificamente, como á que tem por objeto o que a natureza exige para a sua própria conservação. E, nesse sentido, não é fácil pecarmos nessa matéria, da concupiscência naturais. Pois, a natureza não exige senão o necessário à sua subsistência; e não há lugar para o pecado se agirmos de acordo com essas exigências, salvo se houver excesso na quantidade; que é o único meio de pecarmos em matéria da concupiscência natural, como diz o Filósofo. Mas, o que dá muitas ocasiões ao pecado são certas provocações à concupiscência, procuradas pela indústria humana; assim, os alimentos refinadamente preparados e as mulheres ornadas. E embora, de ordinário, as crianças não busquem tais coisas, contudo, chamamos à intemperança pecado pueril pela razão já exarada.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O que é próprio da natureza, devemos favorecer e promover, na criança. Mas, o que têm elas de irracional, isso não lhe devemos favorecer mas emendar, como dissemos.