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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 2 – Se tanto a clemência como a mansidão são virtudes.

O segundo discute–se assim. – Parece que nem a clemência nem a mansidão são virtudes.

1. – Pois, nenhuma virtude se opõe a outra. Ora, ambas se opõem à severidade, que é uma virtude. Logo, nem a clemência nem a mansidão são virtudes.

2. Demais. – A virtude se corrompe por excesso e por defeito. Ora, tanto a clemência como a mansidão implicam um certo defeito; pois, a clemência diminui a pena e a mansidão, a ira. Logo, nem a clemência nem a mansidão são virtudes.

3. Demais. – A mansidão ou a doçura se conta entre as bem–aventuranças e entre os frutos. Ora, as virtudes diferem das bem–aventuranças e dos frutos. Logo, não constitui a mansidão uma virtude.

Mas, em contrário, diz Séneca: Todos os varões virtuosos praticarão a clemência e a mansidão. Ora, a virtude é propriamente reguladora dos bons costumes; pois, a virtude torna bom quem a tem e boas as suas obras, como ensina Aristóteles. Logo, a clemência e a mansidão são virtudes.

SOLUÇÃO. – A virtude moral essencialmente consiste na submissão do apetite à razão, como está claro no Filósofo. Ora, isso tanto o faz a clemência como a mansidão. Pois, a clemência diminuindo as penas, é levada pela razão, como diz Séneca. Semelhantemente, a mansidão, fundada na razão reta, modera a ira, como ensina o Filósofo. Por onde é manifesto, que tanto à clemência como a mansidão são virtudes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ­ A mansidão diretamente não se opõe à severidade; pois, o seu objeto é a ira, ao passo que o da última é a pena exteriormente infligida. Por onde, assim sendo, pareceria opor–se, antes, à clemência, que também versa sobre a punição exterior, como se disse. Mas, não se lhe opõe, porque ambas se fundam na razão reta. Pois, a severidade é inflexível no infligir a pena, quando a razão assim o exige; ao contrário, a Clemência a diminui, também de acordo com a razão reta, isto é, quando for necessário e nos casos necessários. Logo, essas virtudes, tendo o mesmo objeto, não são opostas.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Segundo o Filósofo, o hábito que observa o meio termo, tratando–se da ira, não tem denominação; por isso, a virtude é denominada pela diminuição da ira o que constitui a mansidão. Pois, a virtude está mais próxima da diminuição do que do excesso, por nos ser mais natural desejar a vindicta das injúrias que nos foram feitas, do que deixar de o fazer; porque, como diz Salústio, apenas alguém haverá que julgue muito pequenas as injúrias que lhe foram feitas. A clemência, porém, diminui as penas, não certo pelo que é segundo a lei comum; objeto da justiça legal; mas, levada pela consideração de determinadas particularidades, ela assim procede, quase estabelecendo que o homem não deve continuar a ser mais punido. Por isso diz Séneca: A clemência antes de tudo declara, que aqueles a quem perdoa não devem continuar a. sofrer; pois, o perdão da pena devida é a remissão dela. Donde, é claro que a clemência está para a severidade como a epiquéia, para a justiça legal, da qual a severidade faz parte quanto a inflicção da pena segundo a lei. Mas, difere a clemência da epiquéia, como a seguir se dirá.

RESPOSTA À TERCEIRA. – As beatitudes são atos de virtude; enquanto que os frutos são o prazer resultante desses atos. Por isso, nada impede a mansidão ser considerada virtude, bem–aventurança e fruto, a um tempo.

Art. 1 – Se clemência e mansidão de todo se identificam.

O primeiro discute–se assim. – Parece que clemência e mansidão de todo se identificam. 

1. – Pois, a mansidão é a que modera a ira, como diz o Filósofo. Ora, a ira é o desejo da vindicta. Logo, sendo a clemência a brandura com que o superior impõe uma pena ao inferior, no dizer de Séneca, e exercendo–se a vindicta pela pena, resulta serem idênticas a clemência e a mansidão.

2. Demais. – Túlio diz, a clemência é a virtude pela qual a alma, temerariamente concitada pelo ódio contra alguém, deixa–se conter pela benignidade. Ora, o ódio, como diz Agostinho, é causado da ira, matéria também da mansidão e da clemência. Logo, parece de todo se identificarem a clemência e a mansidão.

3. Demais. – Um mesmo vício não é contrariado por diversas virtudes. Ora, um mesmo vício, o da crueldade, se opõe à mansidão e à clemência. Logo, parece de todo se identificarem mansidão e clemência.

Mas, em contrário, segundo a referida definição de Séneca, a clemência é a brandura do superior para com o inferior. Ora, a mansidão não é própria só do superior para com o inferior, mas pode qualquer praticá–la para com qualquer. Logo, mansidão e clemência não se identificam de todo.

SOLUÇÃO. – Como diz Aristóteles, a matéria das virtudes morais são os atos e as paixões. Ora, as paixões interiores são os princípios ou os impedimentos dos atos externos. Por onde, as virtudes moderadoras das paixões, de certo modo concorrem, em relação ao mesmo efeito, com as virtudes que regulam os atos, embora delas difiram pela espécie. Assim, à justiça propriamente pertence coibir o homem do furto, ao que o inclina o amor desordenado ou a cobiça do dinheiro, o qual é governado pela liberalidade; por onde, a liberalidade concorre com a justiça nesse efeito que é fazer–nos abster do furto. E isto também devemos considerar no nosso caso. Pois, a paixão da ira é a que nos provoca a aplicar a outrem uma pena grave. À clemência, porém, pertence, diretamente, diminuir as penas, o que poderia ficar impedido pelo excesso de ira. Portanto, a mansidão, enquanto refreia o ímpeto da ira, concorre no mesmo efeito com a clemência. Difere, porém uma da outra, porque a clemência modera o castigo interno, e a mansidão propriamente diminui a paixão da ira.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A mansidão tem como objeto próprio o desejo mesmo da vingança. Ao passo que a clemencia visa as penas, em si mesmas, aplicadas exteriormente à vingança.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os nossos afetos inclinam–nos a diminuir o que nos desagrada. Ora, do fato de amarmos a outrem resulta que a pena que ele sofre em si mesma, nos desagrada; e só a admitimos ordenadamente a um fim, por exemplo, para a justiça ou correção do punido. Por onde, o amor nos torna prontos a diminuir as penas, o que constitui a clemência; enquanto que o ódio impede essa diminuição. Por isso, Túlio diz, que a alma concitada pelo ódio, isto é, a punir duramente, deixa–se conter pela clemência, para não impor uma pena mais forte; não que a. clemência nos faça moderar diretamente o ódio, mas sim, a pena.

RESPOSTA À TERCEIRA. – À mansidão, cujo objeto direto é a ira, se opõe propriamente o vício da iracúndia, que implica um excesso de ira. Ao passo que a crueldade implica um excesso no punir. Por isso Séneca diz, que cruas se chamam os que tendo causa para punir, contudo, não têm, no fazê–lo, moderação. – Os que porem se deleitam em punir os outros, mesmo sem causa, podem chamar–se sevos ou ferozes, quase sem o afeto humano, pelo qual o homem ama o homem.

Art. 4 – Se a incontinência da ira é pior que a da concupiscência.

O quarto discute–se assim. – Parece que a incontinência da ira é pior que a da concupiscência.

1. – Pois, parece que tanto menos grave é a incontinência quanto mais difícil é resistir à paixão. Por isso diz o Filósofo: Não devemos nos espantar que alguém se deixa dominar por prazeres ou por sofrimentos fortes e violentos, mas antes, devemos lhe perdoar. Ora, como disse Heráclito, é mais difícil lutar contra a concupiscência do que contra a ira. Logo, mais leve é a incontinência da concupiscência que a da ira.

2. Demais. – Quando uma paixão veemente priva do juízo da razão, ficamos de todo escusado do pecado; tal é o caso de quem fica furioso por paixão. Ora, o de ira incontinente conserva mais o juízo da razão do que o incontinente por concupiscência pois, como está claro no Filósofo, o irado obedece de certo modo à razão, não porém o concupiscente. Logo, a incontinência da ira é pior que a da concupiscência.

3. Demais. – Tanto mais grave é um pecado quanto mais perigoso é. Ora, parece que a incontinência da ira é mais perigosa; pois, leva o homem a um pecado maior, que é o do homicídio, mais grave que o adultério, ao qual conduz a incontinência da concupiscência. Logo, a incontinência da ira é mais grave que a da concupiscência.

Mas, em contrário, diz o Filósofo, que menos má é a incontinência da ira que a da concupiscência.

SOLUÇÃO. – O pecado da incontinência pode ser considerado a dupla luz. Primeiro, relativamente à paixão que vence a razão. E neste caso, a incontinência da concupiscência é pior que a da ira, porque o movimento da concupiscência é mais desordenado que o da ira. E isto por quatro razões, que dá o Filósofo. – Primeiro, porque o movimento da ira participa de algum modo da razão; pois, o irado visa vingar–se da injúria que lhe foi feita, coisa às vezes ditada pela razão; mas não o faz perfeitamente, porque a sua vindicta não observa o modo devido. Ao contrário, o movimento da concupiscência provém totalmente do sentido e de nenhum modo obedece à razão. – Segundo, porque o movimento da ira resulta mais da compleição do corpo, por causa da rapidez desse movimento, que na ira se resolve. Donde vem que quem, por compleição corpórea, é disposto a irar–se, mais prontamente o faz do que cede à concupiscência quem a ela é predisposto. Por isso mais frequentemente de iracundos nascem iracundos, do que de concupiscentes, concupiscentes. Ora, o que provém da natural disposição do corpo considera–se mais digno de perdão. – Terceiro, porque a ira nos leva a agir às claras; ao contrário, a concupiscência busca esconderijos e em nós desperta subrepticiamente. ­ Quarto, porque o concupiscente goza com o seu ato, ao passo que o irado é como coagido por um sofrimento precedente.

De outro modo, podemos considerar o pecado da incontinência quanto ao mal em que caí quem se desvia da razão. E, então, a incontinência da ira é quase sempre mais grave, por conduzir a atos que danificam o próximo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – É mais difícil lutar perseverantemente contra os prazeres que contra a ira, porque a concupiscência é mais contínua. Mas, no momento, é mais difícil resistir à ira, por causa da sua impetuosidade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz–se que a concupiscência não participa da razão, não porque nos prive totalmente do juízo dela, mas porque nenhum ato pratica levada por esse juízo. E por isso é pior.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção colhe relativamente aos atos a que o incontinente é levado.

Art. 3 – Se o incontinente peca mais que o intemperante.

O terceiro discute–se assim. – Parece que o incontinente peca mais que o intemperante.

1. – Pois, peca alguém tanto mais gravemente quanto mais age contra a consciência, conforme o Evangelho: Aquele servo que soube a vontade de seu senhor e não obrou conforme a sua vontade, dar–se–lhe–hão muitos açoites. Ora, parece que o incontinente age contra a consciência própria, mais que o intemperante; pois, como diz Aristóteles, o incontinente, apesar de saber que é o mau o que deseja, contudo age levado pela paixão; ao passo que o intemperante julga bom o que deseja. Logo o incontinente peca mais gravemente que o intemperante.

2. Demais. – Quanto mais grave é um pecado parece tanto menos facilmente remediável; por isso, os pecados contra o Espírito Santo, que são os gravíssimos, consideram–se irremissíveis. Ora, o pecado da incontinência parece mais incurável que o da intemperança. Pois, um pecado se sana pela advertência e correção do pecador: Ora, isto de nada adianta ao incontinente que, apesar de saber que procede mal, continua a fazê–lo; ao contrário, ao intemperante, como lhe parece que procede bem, a advertência pode–lhe produzir algum bom resultado. Logo, parece que o incontinente peca mais gravemente que o intemperante.

3. Demais. – Quanto maior for a lascívia com que alguém pecar, tanto mais gravemente terá pecado. Ora, o incontinente peca com maior lascívia que o intemperante; pois, aquele nutre concupiscências veementes, as quais nem sempre existem no último. Logo o incontinente peca mais que o intemperante.

Mas, em contrário, a impenitência agrava todos os pecados, por isso Agostinho diz, que ela é um pecado contra o Espírito Santo. Ora, como diz o Filósofo, o intemperante não é susceptível de arrependimento, pois persevera na sua eleição; ao passo que todo incontinente é capaz de arrependimento. Logo, o intemperante peca mais gravemente que o incontinente.

SOLUÇÃO. – O pecado, segundo Agostinho, depende sobretudo da vontade; pois, pela vontade é que pecamos e vivemos retamente. Logo, onde houver maior inclinação da vontade para pecar, aí haverá mais grave pecado. Ora, a vontade do intemperante se inclina ao pecado pela sua eleição própria, procedente de um hábito adquirido pelo costume; ao passo que a vontade do incontinente inclina–se a pecar levada por uma paixão. E como a paixão logo passa, enquanto que o hábito é uma qualidade, dificilmente removível, daí resulta que o incontinente logo se arrepende desde que a paixão se desvaneceu; o que se não dá com o intemperante, o qual, ao contrário, regozija–se por ter pecado, porque a prática do pecado se lhe tornou conatural, pelo hábito. Por isso, dele diz a Escritura: Que se alegram depois de terem feito o mal e triunfam de prazer nas piores coisas. Por onde é claro, que o intemperante é muito pior que o incontinente, como também diz o Filósofo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A ignorância da inteligência às vezes precede à inclinação do apetite e a causa. E então, quanto maior for a ignorância, tanto mais diminui o pecado, ou ti escusa totalmente, se causar o involuntário. De outro modo e inversamente, a ignorância da razão resulta da inclinação do apetite. E essa ignorância, quanto maior for, tanto mais grave tornará o pecado; porque mostra o quanto maior é a inclinação do apetite. A ignorância, porém, tanto do incontinente como do intemperante, provém da inclinação do apetite para um certo objeto, quer por paixão, como no incontinente, quer por hábito como no intemperante. Mas, isso causa ignorância maior no intemperante que no incontinente, – E, primeiro, quanto à duração. Porque, essa ignorância do incontinente só dura enquanto dura a paixão; assim como um acesso de febre terçã dura enquanto dura a comoção do humor. Ao passo que a ignorância do inteperante perdura tenazmente, por causa da permanência do hábito; por isso, o Filósofo a compara à tísica ou a uma doença crônica. – Mas, de outro modo, é maior a ignorância do intemperante, relativamente ao que ele ignora. Pois, a ignorância do incontinente recai sobre um bem particular elegível; por exemplo, quando se trata de saber se deve fazer, em tal caso, tal eleição. Ao passo que o intemperante ignora o fim mesmo, pois, julga um bem deixar–se levar pelas concupiscências sem freio. Donde o dizer o Filósofo, que o incontinente é menor  que o intemperante, pois nele se salva o princípio por excelência, isto é, a reta estimação do fim.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Para a emenda do incontinente não basta só o conhecimento, mas é lhe ainda necessário o auxílio interior da graça, que mitiga a concupiscência. Ao que ainda se lhe acrescenta o remédio exterior da advertência e da correção, que o leva a resistir à concupiscência, tornando–a assim fraca, como dissemos. E por esses mesmos modos pode também emendar–se o intemperante.– Mas, a sua emenda é mais difícil, por duas razões. – Primeiro, por causa da sua razão transviada na estimação do fim último, que exerce a função do principio, nas ciências demonstrativas. Pois, mais dificilmente se reduz à verdade quem erra quanto ao princípio; e, semelhantemente, na ordem operativa, quem erra relativamente ao fim. – Depois, por causa da inclinação do apetite, que, no intemperante, sendo habitual, dificilmente se domina; ao passo que a inclinação do incontinente vem da paixão, de mais fácil repressão.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A lascívia da vontade, que aumenta o pecado, é maior no intemperante que no incontinente, como do sobredito resulta. Mas, a lascívia da concupiscência do apetite sensitivo é às vezes maior no incontinente; pois ao passo que este não peca senão arrastado por uma intensa concupiscência, o intemperante também peca levado por uma débil concupiscência, e mesmo às vezes a previne. Por isso, o Filósofo diz, que mais censurável é o intemperante, que sem concupiscência e calmamente, isto é, com fraca concupiscência, corre na busca dos prazeres. Pois, que faria se nele estuasse a concupiscência juvenil!

Art. 2 – Se a incontinência é pecado.

O segundo discute–se assim. – Parece que a incontinência não é pecado.

1. – Pois, como diz Agostinho, ninguém peca pelo que não pode evitar. Ora, ninguém pode por si mesmo evitar a incontinência, conforme aquilo da Escritura: Sei que doutra maneira não possa ter continência; se Deus ma não der. Logo, a incontinência não é pecado.

2. Demais. – Todo pecado parece fundar–se na razão. Ora, no incontinente o juízo da razão fica paralisado. Logo, a incontinência não é pecado

3· Demais. – Ninguém peca por amar veementemente a Deus. Ora, a veemência do amor divino pode nos tornar incontinente; assim, segundo Dionísio, Paulo, por incontinência do amor divino exclamou: Vivo eu, mas já não eu. Logo, a incontinência não é pecado.

Mas, em contrário, o Apóstolo enumera a incontinência entre os pecados, quando diz: Caluniadores, incontinentes, desumanos, etc. Logo, a incontinência é pecado.

SOLUÇÃO. – A incontinência pode ser considerada sob tríplice aspecto. – Primeiro, em sentido próprio e absoluto. E assim, a incontinência tem como matéria a concupiscência dos prazeres do tato, como a intemperança, segundo já dissemos ao tratarmos da continência. E, neste sentido, a incontinência é pecado, por duas razões: Primeiro, porque o incontinente infringe regra racional; e depois, porque se rebolca em certos prazeres torpes. Donde o dizer o Filósofo, que a incontinência é censurável não só como pecado, isto é, por infringir a regra racional, mas também como uma certa malícia, porque o incontinente se deixa levar por baixas concupiscências. – De outro modo, a incontinência pode ser considerada em sentido próprio, como a que faz o homem afastar–se da razão reta, não porém absolutamente falando. Por exemplo, quando não observamos o modo racional no desejar as honras, as riquezas e bens semelhantes, bons, em si mesmos considerados, e que não constituem por si matéria de incontinência, senão só relativamente, como dissemos, ao tratar da continência. E então a incontinência é pecado, não porque nos entreguemos às baixas concupiscências, mas por não termos observado o modo racional devido, ao desejarmos coisas em si mesmas desejáveis. – Num terceiro sentido o objeto da incontinência não o é propriamente, mas só por semelhança, como quando, por exemplo, consiste na concupiscência de coisas de que o não podemos usar mal, como por exemplo, a das virtudes. Pois, em relação a estas, podemos dizer que alguém é incontinente por semelhança; porque, assim como o incontinente é totalmente levado pela má concupiscência, assim pode alguém ser totalmente levado pela boa concupiscência, cuja regra é a razão. E, uma tal incontinência não é pecado, mas está incluída na perfeição da virtude.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O homem pode evitar o pecado e fazer o bem, não contudo sem o auxílio divino, conforme àquilo do Evangelho: Sem mim não podeis fazer nada. Por onde, o facto de precisarmos do auxílio divino, para sermos continente, não impede que a incontinência seja pecado; pois, como diz Aristóteles, o que podemos por meio dos amigos podemos, de certo modo, por nós mesmos.

RESPOSTA À SEGUNDA. – No incontinente o juízo da razão fica paralisado; não necessariamente, o que escusaria do pecado, mas por uma certa negligência do sujeito, não de todo firme a resistir à paixão, em obediência ao juízo da sua razão.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção colhe, quando se trata da incontinência por semelhança e não da propriamente dita.

Art. 1 – Se a incontinência pertence à alma ou ao corpo.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a incontinência não pertence à alma, mas, no corpo.

1. – Pois, a diversidade dos sexos não pertence à alma, mas, ao corpo. Ora, na diversidade dos sexos funda–se a diversidade da incontinência; pois, no dizer do Filósofo, as mulheres não se consideram continentes nem incontinentes. Logo, a incontinência não pertence à alma, mas, ao corpo.

2. Demais. – O que respeita a alma não depende da compleição do corpo. Ora, a incontinência depende da compleição do corpo; pois, como diz o Filósofo, os mais agudos, isto é, coléricos, e os mais melancólicos, por deixarem desenfreada a. concupiscência, são os incontinentes. Logo, a incontinência pertence ao corpo.

3. A vitória é mais do vencedor do que do vencido. Ora, incontinente se chama quem deixa a carne concupiscente se avantajar ao espírito. Logo, a incontinência não mais pertence à alma que ao corpo.

Mas, em contrário, principalmente pela alma é que nos diferenciamos dos animais. Ora, é pela razão que a continência difere da incontinência; pois, não dizemos dos animais, que sejam continentes ou incontinentes, como o ensina o Filósofo. Logo, a incontinência pertence, sobretudo, à alma.

SOLUÇÃO. – Um efeito se atribui mais à sua causa própria que à sua causa acidental. Ora, o corpo é apenas causa ocasional da incontinência; pois, a disposição do corpo pode ser causa de surgirem paixões veementes no apetite sensitivo, que é uma potência do corpo orgânico. Ora, essas paixões, por mais veementes que sejam, não são a causa eficiente da incontinência, mas só a causa ocasional; porque, enquanto está no uso da razão, o homem sempre pode resistir às paixões. Se estas, porém, crescerem a ponto de privar totalmente do uso da razão, como acontece com aqueles que uma paixão veemente faz enlouquecer já não haverá possibilidade de se falar em continência nem em incontinência, por não conservarem esses tais o juízo racional, a que a continente obedece e que o incontinente transgride. Donde se conclui que a causa própria da continência está na alma, que não resiste, pela razão, às paixões. O que de dois modos pode–se dar, como diz o Filósofo. Primeiro, quando a alma cede às paixões, antes da razão deliberar, o que se chama continência irreprimida ou antecipação. Segundo, quando não perseveramos no que deliberamos por estarmos fracamente firmados no que a razão julgou, chamando–se por isso essa incontinência fraqueza. Por onde é claro que a incontinência pertence principalmente à alma.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A alma humana é a forma do corpo e tem certas potências que se servem de órgãos corpóreos. E os atos delas afetam também aquelas operações da alma que não dependem do instrumento do corpo, isto é os atos do intelecto e da vontade; e isso porque o intelecto recebe a influência dos sentidos, e a vontade é impelida pelas paixões do apetite sensitivo. Ora, sendo assim, e por ter a mulher– de certo modo, uma fraca compleição corpórea, na maior parte das vezes ela adere fracamente ao que adere, embora em certos e raros casos tal não se dê, conforme aquilo da Escritura: Quem achará uma mulher forte? E o pequeno ou fraco sendo reputado como por não existente, daí vem que o Filósofo fala das mulheres como se não tivessem juízo firme da razão, embora com certas mulheres se dê o contrário. E por isso diz, que não chamamos às mulheres continentes, porque não dirigem, como quem tem uma razão sólida, mas são dirigidas, como que facilmente obedientes às paixões.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Do ímpeto da paixão resulta o nos deixarmos logo arrastar por ela antes de a razão deliberar. Ora, o ímpeto da paixão costuma provir, ou da sua velocidade, como se dá com os coléricos; ou da veemência, como nos casos dos melancólicos, que por causa da sua compleição térrea se inflamam veementissimamente. Assim como, ao contrário, acontece não perseverarmos naquilo a que fracamente aderimos, por causa da fraqueza da compleição, como é o caso das mulheres, segundo dissemos. O que também se dá com os fleugmáticos, pela mesma causa que nas mulheres. Pois, tal se dá, pela ocasião que, de certo modo, oferece à incontinência a compleição corpórea, a qual porem não é daquela uma causa suficiente, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A concupiscência da carne, no incontinente, sobreleva o espírito, não necessariamente, mas por uma certa negligência deste, que não resistiu fortemente.

Art. 4 – Se a continência tem preeminência sobre a temperança.

O quarto discute–se assim. – Parece que a temperança tem preeminência sobre a temperança.

1. – Pois, diz a Escritura: Pois, todo preço é nada em comparação duma alma continente. Logo, nenhuma virtude pode equiparar–se à continência.

2. Demais. – Quanto maior é o prémio que uma virtude merece, tanto melhor ela é. Ora, parece que o maior prémio é o merecido pela continência, conforme o Apóstolo: Não será coroado senão aquele que combate conforme a lei. Mas, o continente, que sofre o ataque de paixões veementes e de baixas concupiscências, combate mais que o temperante, que não as sofre veementes. Logo, a continência tem preeminência sobre a. virtude da temperança.

3. Demais. – A vontade é uma potência mais digna que a potência concupiscível. Ora, ao passo que o sujeito da continência é a vontade, o da temperança é a potência concupiscível, como o sobredito resulta. Logo, a continência é uma virtude com preeminência sobre a temperança.

Mas, em contrário, Túlio e Andronico, consideram a continência uma virtude anexa à temperança, como à virtude principal.

SOLUÇÃO. – Como dissemos a denominação de continência é susceptível de dupla acepção. – Numa, implica a abstenção de todos os prazeres venéreos. E então é superior à temperança propriamente dita, como resulta do que dissemos sobre a preeminência da virgindade sobre a castidade propriamente dita. – Noutra  acepção, implica a resistência da razão às baixas concupiscências, que são veementes no homem. E então, a temperança é muito mais preeminente que a continência, porque o bem da virtude é meritório por ser conforme à razão. Pois, o bem racional tem maior vigor no temperante, no qual mesmo o apetite sensitivo está sujeito à razão e é como dominado por ela, do que no continente, no qual o apetite sensitivo veementemente resiste à razão, por meio das baixas concupiscências. Por onde, à continência está para a temperança como o imperfeito, para o perfeito.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O lugar citado é susceptível de dupla interpretação. – Numa, em que a continência significa a abstinência de todos os prazeres venéreos. E, neste sentido, é que a Escritura considera que todo preço é nada em comparação duma alma continente, no gênero da castidade. Pois, nem mesmo a fecundidade da carne, fim do matrimônio, se equipara à continência virginal ou à da viuvez, como dissemos. – Noutro sentido, o lugar pode ser entendido no sentido em que a continência é tomada geralmente, pela abstenção de todas as causas ilícitas. E então, a Escritura diz, que todo preço é nada em comparação duma alma continente, por não ser susceptível de avaliação em ouro nem em prata, que se comutam pelo peso.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A força ou a fraqueza da concupiscência pode proceder de dupla causa. –  As vezes procede de uma causa corporal; assim, certos, pela sua compleição natural, são mais inclinados à concupiscência, que outros. E ainda há pessoas a quem se apresentam mais prontamente as ocasiões dos prazeres, que inflamam a concupiscência. Ora, ao passo que a fraqueza da concupiscência diminui o mérito, a forca dela o aumenta. – Outras vezes, porém, a fraqueza ou a força da concupiscência provém de uma causa espiritual louvável, por exemplo, da veemência da caridade ou da força da razão, como se dá com o homem temperante. E, deste modo, a fraqueza da concupiscência aumenta o mérito, em razão da sua causa, ao passo que a grandeza dela o diminui.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A vontade está mais próxima da razão do que a potência concupiscível. Por onde, o bem da razão, que torna a virtude louvável, mostra–se maior por atingir não só a vontade, mas também a potência concupiscível – o que se dá com o temperante – do que quando só atinge a vontade, como é o caso do continente.

Art. 3 – Se o sujeito da continência é a potência concupiscível.

O terceiro discute–se assim. – Parece que o sujeito da continência é a potência concupiscível.

1. – Pois, o sujeito de uma virtude deve ser proporcionado à sua matéria. Ora, a matéria da continência, como se disse, são as concupiscências dos prazeres do tacto, que pertencem à potência concupiscível. Logo, o sujeito da concupiscência é a potência concupiscível.

2. Demais. – Os contrários têm o mesmo objeto. Ora, a continência tem como sujeito o concupiscível, cuja paixões sobrelevam a razão. Pois, como diz Andronico, a incontinência é a malícia do concupiscível pela qual elegemos os baixos prazeres, proibidos pela razão. Logo e por igual razão, a concupiscência tem a sua sede no concupiscível.

3. Demais. – O sujeito da virtude humana ou é a razão, ou a potência apetitiva, que se divide em vontade, concupiscível e irascível. Ora, a continência não tem sua sede na razão, porque então seria uma virtude intelectual: nem tão pouco na vontade, porque a continência versa sobre as paixões, e estas não existem na vontade; nem também no irascível, porque não versa propriamente sobre as paixões do irascível, como se disse. Logo, resta que tenha no concupiscível o seu sujeito.

Mas, em contrário. – Toda virtude existente numa potência, priva do ato mau essa potência. Mas a continência não priva do ato mau o concupiscível, pois, diz o Filosofo, o continente possui concupiscências más. Portanto a continência não está na potência concupiscível.

SOLUÇÃO. – Toda virtude faz o seu sujeito tomar uma disposição diferente da que tinha quando sujeito ao vício oposto. Ora, o concupiscível, tanto do continente como do incontinente, se comporta do mesmo modo; pois, tanto num como noutro, é a fonte de concupiscências baixas e veementes. Por onde, é manifesto, que a continência não tem no concupiscível o seu sujeito. – Semelhantemente, também a razão se comporta do mesmo modo em ambos os casos; pois, tanto no continente como no incontinente, a razão é reta; e tanto um corno outro nutrem, quando fora do império da paixão, o propósito de não seguir as concupiscências ilícitas. Mas, a primeira diferença entre eles está na eleição; pois, o continente, embora seja presa de veementes concupiscências, contudo elege não se deixar levar por elas, por obedecer à razão; ao passo que o incontinente elege segui–las, não obstante se oporem à razão. Por onde e necessariamente, a continência há de ter o seu sujeito naquela potência da alma, cujo ato é a eleição. E esta é a vontade, como estabelecemos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A continência tem como matéria as concupiscências dos prazeres do tato; não pelas moderar, o que é o papel da temperança, pertencente ao concupiscível; mas, por lhes resistir, de certo modo. Por onde, há de ter o seu sujeito em outra potência, porque a resistência se faz de um agente contra outro.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A vontade ocupa uma posição média, entre a razão e a concupiscência, e pode ser movida por uma e pela outra. Assim, a vontade do continente é movida pela razão; e a do incontinente, pelo concupiscível. Por onde, a continência pode ser atribuída à razão, como ao primeiro motor, e a incontinência, ao concupiscível; embora, tanto uma causa como outra tenha na vontade o seu sujeito próprio.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora as paixões não tenham na vontade o seu sujeito, está contudo no poder desta resistir–lhes. E, deste modo, a vontade do continente resiste às concupiscências.

Art. 2 – Se a matéria da continência são as concupiscências dos prazeres do tato.

O segundo discute–se assim. – Parece que a matéria da continência não são as concupiscências dos prazeres do tato.

1. – Pois, como diz Ambrósio, o belo em geral consiste em nos contermos em todos os nossos atos para observarmos em tudo a equidade e a honestidade. Ora, nem todos os atos humanos dizem respeito aos prazeres do tato. Logo, a matéria da concupiscência não são somente os prazeres do tato.

2. Demais. – O nome de continência deriva de nos contermos nos limites do bem da razão reta, como se disse. Ora, há certas paixões, que, mais veementemente que as concupiscências dos prazeres do tato, nos desviam da razão reta. Assim o temor dos perigos de morte, que estupidifica o homem; e a ira, semelhante à insânia, na expressão de Séneca. Logo, a matéria própria da continência não são as concupiscências dos prazeres do tato.

3. Demais. – Túlio diz, a continência é a que rege a cobiça pelo governo do conselho. Ora, a cobiça é assim chamada quando tem por objeto as riquezas, mais que as deleitações do tato, conforme aquilo do Apóstolo: A raiz de todos os males é a cobiça. Logo, a continência não tem como sua matéria própria as concupiscências dos prazeres do tato.

4. Demais. – Os prazeres do tato não recaem só sobre matéria venérea, mas também, sobre o uso dos alimentos. Ora, costuma–se chamar continência só o que versa sobre a prática dos atos venéreos. Logo, a sua matéria própria não é a concupiscência dos prazeres do tato.

5. Demais. – Dentre os prazeres do tato, uns são, não humanos, mas bestiais: Tal o caso de quem se deleitasse comendo carne humana, como o de quem praticasse atos venéreos pervertidos, com animais ou com meninos. Ora, esses vícios não constituem matéria da continência, como diz Aristóteles. Logo, a matéria própria da continência são as concupiscências dos prazeres do tato.

Mas, em contrário, diz o Filósofo, que a continência e a incontinência têm o mesmo objeto que a temperança e a intemperança. Ora, a temperança e intemperança têm como sua matéria a concupiscência dos prazeres do tato segundo se demonstrou. Logo, também essa mesma é a matéria da continência e da incontinência.

SOLUÇÃO. – A continência, pela sua própria denominação, implica em, de certo modo, refrearmos as paixões, para não nos deixarmos arrastar por elas. Por onde, a matéria própria da continência são aquelas paixões que nos impelem a buscar certos prazeres, que em obediência à razão e meritoriamente, não devíamos buscar. Mas, ela não tem como matéria própria as paixões que operam de certa maneira em nós uma retração, como o temor e outras semelhantes; pois, em tais casos, é meritório buscar com firmeza o que a razão ordena que busquemos, segundo estabelecemos. Ora, devemos considerar, que as inclinações naturais são os princípios de todas as nossas ações, como dissemos Por onde, as paixões tanto mais veementemente nos arrastam quanto mais seguem a inclinação da natureza. Ora, esta, sobretudo nos inclina ao que lhe é necessário, isto é, à conservação do indivíduo, pela alimentação, ou à da espécie, pelos atos venéreos. E estes prazeres pertencem ao tato. Portanto, a continência e a incontinência versam propriamente sobre as concupiscências dos prazeres do tato.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A denominação de temperança pode, em geral, se aplicar a qualquer matéria, embora tenha como Sua matéria própria, aquela na qual é excelente nos refrearmos. Assim também, a continência tem como sua matéria própria aquela em que é excelente e dificílimo nos contermos, isto é, as concupiscências dos prazeres do tato. Mas, em geral e relativamente, pode recair sobre qualquer outra matéria. E neste sentido é que Ambrósio emprega a palavra continência.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A continência, em matéria de temor não é propriamente louvável, pois, o temor exige, antes, a firmeza de ânimo, que a coragem. A ira, por seu lado, imprime–nos um ímpeto em vista de um certo fim; esse ímpeto, porém, resulta, antes, da apreensão da alma de que fomos ofendidos por outrem, do que da inclinação natural. Por isso, quem se contém e não cede à ira, chama–se continente, de certo modo, mas não, absolutamente falando.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Esses bens exteriores, como as honras, as riquezas e outros são, no dizer do Filósofo, em si mesmos elegíveis, não porem como necessários à conservação da natureza. E por isso, em relação a eles, não consideramos ninguém continente ou incontinente, absolutamente falando, mas, relativamente, acrescentando–se, que são continentes ou incontinentes em matéria de ganho, de honras ou de coisas semelhantes. Por onde, ou Túlio usou em sentido comum da denominação de continência, como compreendendo em si também a continência em sentido relativo; ou tomou a cobiça em sentido estrito como a concupiscência dos prazeres do tacto.

RESPOSTA À QUARTA. – Os prazeres venéreos são mais veementes que os da mesa. Por isso, consideramos a continência e a incontinência como os tendo por matéria; mais do que os prazeres da mesa; embora, segundo o Filósofo, possam elas ter como matéria tanto uns corno outros.

RESPOSTA À QUINTA. – A continência é um bem da razão humana e por isso versa sobre as paixões, que podem ser conaturais ao homem. Por isso, diz o Filósofo, que não se considera continente, propriamente falando, senão só em sentido relativo, aquele que, tendo em seu poder um menor, deseje comê–lo ou abusar dele torpemente, quer realize o seu desejo, quer não.

Art. 1 – Se a continência é virtude.

O primeiro discute–se assim. – Parece que a continência não é virtude.

1. – Pois, a espécie se convide com o gênero. Ora, a continência se condivide com a virtude, como está claro no Filósofo. Logo, a continência não é virtude.

2. Demais. – Ninguém peca praticando a virtude; porque, segundo Agostinho, ninguém pode usar mal da virtude. Ora, é possível pecar­se por continência; por exemplo, no caso de desejarmos fazer um bem e nos contivermos e deixarmos de o praticar. Logo, a continência não é virtude.

3. Demais. – Nenhuma virtude nos afasta do lícito, mas só, do ilícito. Ora, a continência retrai o homem da prática de atos lícitos; assim, como diz a Glosa, pela continência nós nos abstemos também das coisas lícitas. Logo, a continência não é virtude.

Mas, em contrário. – Todo hábito meritório é virtude. Ora, tal e a continência; pois, como diz Andronico, a continência é um hábito, que não se deixa vencer do prazer. Logo, a continência é uma virtude.

SOLUÇÃO. – A denominação de continência vários a tomam em sentidos diversos. – Uns assim chamam a abstinência de todos os prazeres venéreos; e por isso o Apóstolo a une à castidade. E então a continência perfeita e, primariamente, a virgindade; e secundariamente, a viuvez. Por onde, o que se diz da continência também se diz da virgindade, da qual provamos acima ser virtude. – Outros denominam continência à resistência, que opomos às baixas concupiscências, que nos atacam com veemência. E neste sentido o Filósofo considera a continência; assim também as Conferências dos Padres. Neste sentido, a continência participa da natureza da virtude, pois, fortalece a razão contra as paixões, afim de não ser arrastada por elas; mas, não realiza perfeitamente a essência da virtude moral, que subordina à razão o apetite sensitivo de modo que nele não surjam paixões veementes contrárias à razão. E por isso o Filósofo diz, que a continência não é uma virtude, mas, um misto dela, por participar da virtude, de certo modo e, de certo outro, não. –­ Mas, em sentido mais lato, podemos tomar o nome de virtude no significado de qualquer princípio de obras meritórias; e então podemos considerar virtude a continência.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Filósofo condivide a continência com a virtude, no sentido em que ela não realiza a noção desta última.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O homem é propriamente o que racionalmente é. Por isso dizemos que alguém se contém em si mesmo, quando se contém na obediência à razão. Ora, o que implica perversão da razão a esta não convém. Por onde, verdadeiramente continente só se chama quem se contém nos limites da razão reta; não quem se deixa levar por uma razão pervertida. Ora, à razão reta se opõem as baixas concupiscências; assim como à razão pervertida as boas. Por isso, o continente, própria é verdadeiramente falando, é o que persiste na razão reta e abstém–se das baixas concupiscências; não, porém o que persevera na razão pervertida e se abstém das boas concupiscências; pois, este poderá, antes, ser considerado como obstinado no mal.

RESPOSTA À TERCEIRA, – A Glosa, no lugar citado, se refere à concupiscência no primeiro sentido, no qual ela designa uma certa e perfeita virtude, pela qual nós nos abstemos não só dos bens ilícitos, mas ainda de todos os, embora lícitos, bens menores, afim de nos darmos totalmente aos bens mais perfeitos.

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