Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. – Parece que podemos, pelo dinheiro mutuado, exigir uma outra vantagem.
1. – Pois, cada qual pode tomar as suas precauções para evitar uma perda. Ora, às vezes, sofremos um dano por ter mutuado o dinheiro. Logo, é lícito, além do dinheiro mutuado, pedir ou mesmo exigir alguma outra vantagem em recompensa do dano.
2. Demais. – Todos estamos obrigados, por um dever de honestidade, a dar uma recompensa a quem nos fez um benefício, como diz Aristóteles. Ora, quem empresta dinheiro ao que está dele necessitado; presta-lhe um benefício; logo, torna-se credor de uma recompensa. Portanto, o beneficiado tem o dever natural de recompensar. Ora, não é ilícito nos obrigarmos ao que constitui uma exigência do direito natural. Logo, parece não ser ilícito constituirmo-nos na obrigação de recompensar a quem nos mutuou dinheiro.
3. Demais. – Assim como há certos presentes de que a mão é o instrumento, assim há outros que se fazem por palavras e por obséquio, conforme a Glosa aquilo da Escritura Feliz daquele que sacode as suas mãos de todo o presente. Ora, podemos receber um serviço ou ainda um louvor, daquele a quem mutuamos dinheiro. Logo, pela mesma razão, podemos receber qualquer outra espécie de presente.
4. Demais. – A mesma relação há entre um dom e outro dom, que entre um mútuo e outro mútuo. Ora, podemos receber dinheiro pelo dinheiro que demos. Logo, também podemos receber a retribuição de outro mútuo pelo dinheiro que mutuámos.
5. Demais. – Aliena mais de si o dinheiro quem, dando-o em mútuo, transfere-lhe o domínio, do que quem o entrega a um negociante ou a um artífice. Ora, é lícito auferir lucro pelo dinheiro dado a um negociante ou a um artífice. Logo, também o é pelo dinheiro mutuado.
6. Demais – Pelo dinheiro mutuado podemos receber um penhor, cujo uso poderíamos vender por um determinado preço: tal se dá quando é penhorado um campo ou a casa habitada. Logo, também podemos auferir um lucro pelo dinheiro mutuado.
7. Demais. – Acontece às vezes vendermos as nossa coisas mais caro, em razão do mútuo; ou comprarmos mais barato o que é de outro; ou ainda, aumentarmos o preço por causa da demora no pagamento, ou o diminuirmos por causa da presteza com que este é feito. E em todos esses casos há uma como que retribuição pelo dinheiro mutuado. Ora, não parece que isso seja manifestamente ilícito. Logo, parece lícito esperar ou mesmo exigir alguma vantagem pelo dinheiro mutuado.
Mas, em contrário, a Escritura enumera entre as outras condições para um homem ser justo: Não receber usura nem mais do que emprestou.
SOLUÇÃO. – Segundo o Filósofo, tudo aquilo deve ser considerado como dinheiro cujo valor pode ser medido pelo dinheiro. Portanto, quem, por contrato tácito ou expresso, receber dinheiro pelo dinheiro emprestado ou pelo empréstimo de qualquer outra coisa, que se consome pelo próprio uso, peca contra a justiça, como já dissemos. Do mesmo modo, quem, por contrato tácito ou expresso, receber qualquer outra coisa, cujo valor possa ser medido pelo dinheiro, incorre no mesmo pecado. Se porém receber uma coisa desse gênero, não pela exigir nem por uma como obrigação tácita ou expressa, mas, como dom gratuito, não peca. Pois, mesmo antes de ter mutuado o dinheiro podia licitamente receber um dom gratuito, nem piora de condição por ter mutuado. - Mas, é lícito exigir, como recompensa do mútuo, o que não se mede pelo dinheiro, como, a benevolência, o amor do mutuado ou retribuições semelhantes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quem mutua pode sem pecado contratar com o mutuado uma recompensa pelo dano que sofre por se ver privado de um bem que lhe pertence; o que não é vender o uso do dinheiro, mas, evitar um dano. E pode acontecer que o mutuado evite maior dano do que aquele a que se expõe o mutuante; por onde, o mutuado recompensa, com a utilidade que aufere do mútuo, o dano do mutuante. - Mas não pode fazer objeto do contrato a retribuição pelo dano consistente em não auferir lucro do dinheiro; pois, não deve o mutuante vender o que ainda não tem e que pode ser impedido de muitos modos de vir a ter.
RESPOSTA À SEGUNDA. – De dois modos podese recompensar um benefício. - Por um dever de justiça; ao qual podemos nos obrigar por um contrato estipulado. E esse débito depende da quantidade do benefício recebido. Por onde, quem recebeu dinheiro mutuado, ou qualquer coisa semelhante, cujo uso consiste na consumpção, não está obrigado a dar maior retribuição que o valor do mútuo recebido. Logo, será contra a justiça se for obrigado a restituir mais. - De outro modo, estamos obrigados a recompensar um benefício por dever de amizade, no qual mais se considera o afeto com que nos foi feito o benefício, do que a quantidade do objeto dele. E esse dever não pode constituir matéria de uma obrigação civil, que impõe uma determinada necessidade, de modo que a retribuição já não é espontânea.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem espera ou exige, pelo dinheiro mutuado, e por uma como obrigação fundada num contrato tácito ou expresso, a recompensa de um obséquio ou de palavras, estaria na mesma situação de quem esperasse ou exigisse um serviço manual. Porque, em ambos os casos pode-se fazer uma estimativa em dinheiro, como o demonstram os que alugam o trabalho manual ou o consistente em palavras. Mas se o presente manual ou verbal foi feito, não por obrigação, mas por benevolência, que não é susceptível de avaliação pecuniária, podemos então não só recebê-lo, como exigí-lo e esperá-lo.
RESPOSTA À QUARTA. – A quantia de dinheiro mutuado e que deve ser restituído não pode ser vendida por maior soma do que a que lhe corresponde. Nem há outra coisa mais a ser exigida ou esperada, nesse caso, além do sentimento de benevolência. não susceptível de avaliação pecuniária; donde pode resultar, como retribuição, um mútuo. Mas repugna ao mutuado a obrigação de fazer, por sua vez, no futuro, um mútuo, porque essa obrigação seria susceptível de avaliação pecuniária. Portanto, embora mutuante e mutuado o sejam simultânea e reciprocamente, não pode o mutuado ser obrigado a fazer, no futuro, um mútuo ao mutuante.
RESPOSTA À QUINTA. – Quem mutua dinheiro transfere o domínio deste ao mutuado; portanto, o mutuado guarda o dinheiro, respondendo pelo perigo de perdê-lo, e está obrigado a restituí-lo integralmente. Por isso, o mutuante não pode exigir mais do que o emprestado. Mas, quem entrega o seu dinheiro a um negociante ou a um artífice a título de sociedade, não lhe transfere, mas permanece seu; de modo que, respondendo pelo perigo de perdê-lo, o negociante e o artífice o empregam. Portanto, pode o dono licitamente esperar parte do lucro dele proveniente, como de coisa sua.
RESPOSTA À SEXTA. – Se pelo dinheiro for empenhada uma coisa, cujo uso é susceptível de avaliação pecuniária, o mutuante está obrigado a computar o uso dessa coisa ao ser-lhe restituído o dinheiro mutuado. Do contrário, se quisesse que o uso da coisa lhe fosse dado a mais, a título gratuito, equivaleria isso a receber dinheiro pelo mútuo, o que é usura. Salvo se a coisa for daquelas cujo uso costuma ser concedido aos amigos, sem retribuição, como é o caso de um livro dado em comodato.
RESPOSTA À SÉTIMA. – Quem quiser vender as suas coisas mais caro do que pelo justo preço, com a condição de o comprador ter prazo para pagar, manifestamente pratica a usura. Porque, esse pagamento a prazo tem a natureza de mútuo. Por onde, tudo o que, a pretexto desse prazo for exigido ,além do justo preço, é um como pagamento pelo mútuo, o que implica a usura por essência. Semelhantemente, o comprador que quiser comprar uma coisa por preço inferior ao justo, porque deu o dinheiro antes de a coisa lhe poder ser entregue, comete o pecado de usura. Porque também essa antecipação de pagamento é por natureza um mútuo, cuja retribuição estaria no abatimento feito no justo preço da coisa comprada. Mas quem quiser diminuir o justo preço para receber mais cedo o seu dinheiro, não comete pecado de usura.
O primeiro discute-se assim. – Parece que receber usura pelo dinheiro mutuado não é pecado.
1. – Pois, ninguém peca seguindo o exemplo de Cristo. Ora, o Senhor diz de si mesmo: Quando viesse o recebesse eu então com os seus lucros, isto é, o dinheiro mutuado. Logo, não é pecado receber usura pelo dinheiro mutuado.
2. Demais. – Como diz a Escritura, a lei do Senhor é imaculada, isto é, por proibir o pecado. Ora, a lei divina permite uma certa usura, conforme o que nela se lê: Não emprestarás com usura a teu irmão nem dinheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja, mas somente ao estrangeiro. E, o que mais é, a promete como prêmio pela observância da lei: Emprestarás a muitas gentes e de nenhum receberás emprestado. Logo, receber usura não é pecado.
3. Demais. – Nas coisas humanas a justiça é determinada pelas leis civis. Ora, elas permitem receber usuras. Logo, parece ser isso lícito.
4. Demais. – Preterir os conselhos não constitui pecado. Ora, o Evangelho, entre outros conselhos, dá este: Emprestei sem daí esperardes nada. Logo, receber usura não é pecado.
5. Demais. – Receber um pagamento pelo que não estamos obrigados a fazer parece que não é, em si mesmo considerado, pecado. Ora, quem tem dinheiro não está obrigado em qualquer caso a mutuá-lo ao próximo. Logo, é lhe lícito às vezes receber uma retribuição pelo mútuo.
6. Demais. – A prata moedada e a de que se fizeram vasos não diferem especificamente. Ora, e lícito receber retribuição por vasos de prata dados em comodato. Logo, também o é pelo mútuo de dinheiro amoedado. Portanto, a usura não é em si mesma pecado.
7. Demais. – Qualquer pode licitamente receber uma coisa que o dono voluntariamente lhe dá. Ora, quem recebe um mútuo, cede voluntariamente a usura. Logo, quem mutúa pode licitamente recebê-la.
Mas, em contrário, a Escritura. Se emprestares algum dinheiro ao necessitado do meu povo que habita contigo, não o apertarás como um exactor nem o oprimirás com usuras.
SOLUÇÃO. – Receber usura pelo dinheiro mutuado é, em si mesmo, injusto, porque se vende o que não se tem; donde nasce manifestamente uma desigualdade contrária à justiça.
Para evidenciá-lo devemos saber, que de certas coisas, o uso consiste na consumição delas. Assim, o vinho consumimo-lo usando-o para beber; o trigo, empregando-o como comida. Ora, o uso de tais coisas não deve ser separado delas em si mesmas; mas, se a alguém concedemos o uso delas, por isso mesmo também as concedemos a elas. Portanto, o mútuo dessas coisas também transfere o domínio sobre as mesmas. Por onde, quem quisesse vender o vinho separadamente do uso dele, venderia a mesma coisa duas vezes ou venderia o que não existe. Portanto e manifestamente pecaria por injustiça. E, por semelhante razão, comete injustiça, quem mutúa vinho ou trigo, exigindo duas restituições: uma equivalente a aquele e a este; outra, o preço do uso, chamado usura.
Outras coisas há porém cujo uso não se confunde com a consumpção delas; assim, o uso de uma casa é a sua habitação e não, a destruição. Logo, pode o uso ser concedido separadamente da consumpção das mesmas. Tal o caso de quem transmite a outrem o domínio da sua casa, reservando para si o uso durante algum tempo; ou inversamente, o de quem conceder o uso dela, reservando para si o domínio. E por isso, pode licitamente receber o preço do uso da casa e, além disso, exigila, dada que foi em comodato. Tal é o que se dá com a locação e condução de uma casa.
Mas, o dinheiro foi principalmente inventado, segundo o Filósofo para se fazerem as trocas; por onde, o uso próprio e principal dele é ser consumido ou gasto, por ser despendido nas trocas. E por isso é, em si mesmo, ilícito receber um preço pelo uso do dinheiro mutuado, o que se chama usura. E, como tudo o que foi recebido injustamente, está obrigado a restituir o dinheiro quem o recebeu como usura.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A usura, no lugar citado, é tomada metaforicamente pelo aumento cada vez maior dos bens espirituais, que Deus exige, querendo que progridamos sempre nos bens que dele recebemos. O que redunda em utilidade nossa e não sua.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Aos Judeus foi proibido receber usura dos seus irmãos, isto é, dos Judeus. Por onde se dá a entender que receber usura de quem quer que seja é sempre mau; pois, devemos considerar a todos os homens como próximos e irmãos. Sobretudo, na lei do Evangelho, sob a qual todos são chamados a viver. Por isso a Escritura diz em sentido absoluto: O que não deu à usura o seu dinheiro; e noutro lugar: Aquele que não receber usura. E se receberam usura dos estranhos, isso não lhes foi concedido como lícito, mas, permitido, para evitar mal maior, isto é, para que não recebessem usura dos mesmos Judeus, adoradores de Deus, por causa da avareza a que eram dados, quando a Escritura diz - Emprestarás a muitas gentes etc., - empréstimo aí se entende por mútuo, como num outro lugar que reza. Muitos deixarão de emprestar não por desumanidade, isto é, não mutuaram. Por isso, promete aos Judeus como prêmio a abundância de riquezas, donde vinha que podiam mutuar aos outros.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As leis humanas deixam certos pecados impunes, por causa da condição de certos homens imperfeitos, que perderiam muitas vantagens se todos os pecados fossem absolutamente proibidos por penas correspondentes. Por isso, a lei humana permitiu as usuras, não pelas julgar justas, mas para não eliminar as vantagens de muitos. Por onde, o próprio direito civil dispõe que as causas consumíveis pelo uso não são susceptíveis de usufruto, nem em virtude da razão natural nem da civil; e que o Senado não constituiu usufruto dessas causas, nem podia fazê-lo; mas constituiu um quase usufruto, isto é, permitindo as usuras. E o Filósofo, levado pela razão natural, diz que a aquisição usurária do dinheiro é o que há de mais contrário à natureza.
RESPOSTA À QUARTA. – Nem sempre estamos obrigados a dar um mútuo; por isso, neste ponto de vista, o mútuo é considerado um conselho. Mas, não tirar lucro do mútuo é objeto de um preceito. - Pode porém ser considerado conselho, por comparação com o dito dos Fariseus, que consideravam uma certa usura como lícita; assim como conselho também é o amor dos inimigos. - Ou, no lugar citado, se trata não da esperança do lucro usurário, mas da esperança posta no homem; pois, não devemos mutuar nem fazer nenhum bem, por esperança no homem, mas, sim, em Deus.
RESPOSTA À QUINTA. – Quem não está obrigado a mutuar pode receber uma compensação pelo que fez; mas não deve exigir mais. É recompensado pela igualdade da justiça se lhe derem tanto quanto mutuou. Por onde, se exigir mais, pelo usufruto da coisa, que outro uso não tem senão o que consiste na consumpção da sua substância, exige uma retribuição que não existe. E assim seu ato será injusto.
RESPOSTA À SEXTA. – O uso principal dos vasos de prata não é a sua consumpção e portanto o uso de que são o objeto pode ser vendido licitamente, reservado o domínio deles. Ao passo que o uso principal da prata amoedada é ser gasta nas trocas; por isso não é lícito vender o uso ao mesmo tempo que exigir a restituição da que foi dada em mútuo. Devemos porém, saber que o uso secundário dos vasos de prata poderia ser a comutação. E então não seria lícito vender-lhes o uso. Semelhantemente, pode haver algum outro uso secundário do dinheiro de prata, por exemplo, se alguém cedesse esse dinheiro amoedado por ostentação ou para colocá-lo em penhor. E tal uso do dinheiro podese licitamente vender.
RESPOSTA À SÉTIMA. – Quem dá a usura não a dá de maneira absolutamente voluntária; mas levado por alguma necessidade, isto é, por precisar de tomar dinheiro mutuado, que quem o possui não quer mutuar sem usura.
O quarto discute-se assim. – Parece que não é lícito, negociando uma coisa, vende-la mais caro do que custou.
1. – Pois, diz Crisóstomo. Todo aquele que compra uma causa para lucrar, vendendo-a inteira e tal qual a comprou, é um negociante que será expulso do templo de Deus. E aquilo da Escritura - Porque não conheci a literatura, ou a negociação, segundo outra letra - diz o mesmo Cassiodoro: Que outra causa é a negociação senão comprar mais barato e querer vender mais caro? E acrescenta: Tais negociadores Deus os expulsa do templo. Ora, ninguém é expulso do templo senão por algum pecado. Logo, tal negociação é pecado.
2. Demais. – É contra a justiça vender uma coisa mais cara ou comprá-la mais barata do que vale, como do sobredito resulta. Ora, quem, negociando, vende uma coisa mais cara do que comprou, necessariamente ou a comprou mais barata ou a vende mais caro do que vale. Logo, tal não se pode dar sem pecado.
3. Demais. – Jerônimo diz: Do clérigo negociante que de pobre se tornou rico e de obscuro, orgulhoso, foge como de peste. Ora, parece que só por causa de pecado é a negociação interdita aos clérigos. Logo, é pecado, negociando, comprar uma coisa mais barata e vendê-la mais cara do que vale.
Mas, em contrário, aquilo da Escritura - Não conheci a literatura - diz Agostinho: O negociante ávido de ganhar blasfema quando danificado, mente no preço das causas e perjura. Mas esses são vícios do homem e não, da arte, que pode ser exercido sem eles. Logo, negociar não é em si mesmo ilícito.
SOLUÇÃO. – É próprio dos negociantes praticar a troca das coisas. Mas como diz o Filósofo há duas espécies de troca. - Uma, como que natural e necessária, pela qual se troca uma coisa por outra; ou uma coisa por dinheiro, conforme às necessidades da vida. E essa não pertence propriamente aos negociantes, mas antes, aos ecônomos ou políticos, que devem prover a casa ou a cidade, das coisas necessárias à vida. - Outra espécie de troca é a de dinheiro por dinheiro ou de quaisquer coisas por dinheiro, não pelas necessidades da vida, mas para auferir lucro. E este é o negócio próprio dos negociantes.
Ora, segundo o Filósofo, a primeira espécie de troca é louvável porque vem satisfazer a uma necessidade natural. A segunda porém é justamente condenada por que, pela sua natureza, serve à cobiça do lucro, que não conhece limite e tende ao infinito. Por onde, a negociação, em si mesma considerada, não visando nenhum fim honesto ou necessário, implica uma certa vileza. - Quanto ao lucro, que é o fim do negócio, embora não implique por natureza nada de honesto ou necessário, também nada implica de vicioso ou de contrário à virtude. Por onde, nada impede um lucro ordenar-se a um fim necessário ou mesmo honesto. E desse modo a negociação se torna lícita. Assim, quando buscamos, num negócio, um lucro moderado, empregando-o no sustento da casa ou mesmo em socorrer os necessitados. Ou ainda quando fazemos um negócio visando a utilidade pública, para não faltarem à pátria as coisas necessárias à vida; e buscamos o lucro, não como fim, mas como paga do trabalho.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As palavras de Crisóstomo devem entender-se do negócio que tem como último fim o lucro. O que sobretudo é o caso de quem vende mais caro uma coisa, no mesmo estado em que a comprou; pois, assim agindo, visa receber um prêmio pelo trabalho. Embora possamos licitamente visar um lucro, não como fim último, mas, mediante outro fim necessário ou honesto, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Todo aquele que vende mais caro que comprou é negociante mas só quem comprou com o fim de vender mais caro. Quem porém comprou uma coisa, não para vendê-la mas, para conservá-la e, depois, por alguma causa quer vendê-la, não faz negócio, embora a venda mais caro. Pois, pode fazê-lo licitamente, quer por ter melhorado a coisa, ou porque o preço dela mudou, conforme à diversidade de lugar ou de tempo; ou pelo perigo a que se expõe transportando-a de um lugar para outro ou fazendo-a transportar. E nesse caso não é injusta nem a compra nem a venda.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os clérigos devem abster-se não só do mal em si mesmo, mas ainda do que tem a aparência dele. O que se dá com o negócio, quer por se ordenar ao lucro terreno, que os clérigos devem desprezar; quer também pelos vícios frequentes nos negociantes, pois, dificultosamente o que negocia se isentará dos pecados de seus lábios, como diz a Escritura: Mas há outra causa, e é que o negócio enreda demasiado o espírito nos negócios seculares, retraindo-o por consequência das coisas espirituais. Donde o dizer o Apóstolo: Ninguém que milita para Deus se embaraça com negócios do século. Embora seja lícito aos clérigos fazer a primeira espécie de troca, que se ordena às necessidades da vida, comprando ou vendendo.
O terceiro discute-se assim. – Parece que o vendedor não está obrigado a revelar o vício da coisa vendida.
1. – Pois, o vendedor, não obrigando o comprador a comprar, submete-lhe ao juízo o que lhe vai vender. Ora, a quem cabe julgar de uma coisa também cabe conhecê-la. Logo, não se deve imputar como culpa ao vendedor se o comprador enganou-se no seu juizo, comprando com precipitação, sem fazer um exame diligente das condições em que se achava a coisa.
2. Demais. – É estulto proceder de modo tal que o nosso ato fique impedido. Ora, quem revelar o defeito daquilo que quer vender, fica impedido de vendê-lo. Por isso, Túlio introduz um certo, que diz: Haverá nada mais absurdo que o dono mandar fazer pregão seguinte - vendo uma casa empestada? Logo, o vendedor não está obrigado a revelar o vício da coisa vendida.
3. Demais. –- É mais necessário ao homem conhecer o caminho da virtude do que os vícios das coisas que vende. Ora, ninguém está obrigado a dar conselho a quem quer que seja e dizer a verdade sobre o concernente à virtude, embora a ninguém deva dizer falsidades. Logo, muito menos esta obrigado o vendedor a revelar os vícios da coisa vendida, como para dar conselho ao comprador.
4. Demais. – Se estamos obrigados a revelar o vício da coisa vendida será só com o fim de lhe diminuir o preço. Ora, às vezes, esse preço diminuiria mesmo sem nenhum vício da coisa. Por exemplo, se o vendedor que leva trigo a um lugar onde há carestia dele souber que muitos outros vendedores poderão fazer o mesmo. O que, se os compradores o soubessem, pagariam preço menor. Ora, isso não está o vendedor obrigado a dize-lo, segundo parece. Logo, pela mesma razão, nem os vícios da coisa vendida.
Mas, em contrário, Ambrósio: Nos contratos devem-se revelar os vícios das causas vendidas; e se o vendedor não o fizer, embora tenha transmitido todos os seus direitos ao comprador, a venda pode ser anulada por uma ação de dolo.
SOLUÇÃO. – Expor outrem à ocasião de perigo ou de dano sempre é ilícito, embora não seja necessário lhe darmos auxílio ou conselho conducente a qualquer vantagem sua. O que só o é em casos determinados; por exemplo, se alguém está entregue aos nossos cuidados ou se não pudermos auxilia-lo de outro modo. Ora, o vendedor que oferece uma coisa à venda expõe por isso mesmo o comprador à ocasião de dano ou de perigo, dando-lhe uma coisa viciosa, se, por causa desse vício, puder ele sofrer um dano ou perigo. Dano se, por causa de vício, a coisa proposta à venda for de menor preço; ao passo que, por causa desse vício, o vendedor nada lhe abateu do preço. Perigo se o vício impedir o uso da coisa ou torná-lo nocivo, como, por exemplo, se vendermos um cavalo manco por veloz, uma casa arruinada por sólida, ou um alimento corrupto ou venenoso por bom. Por onde, se tais vícios forem ocultos, e o vendedor não os descobrir, a venda será ilícita e dolosa e ele fica obrigado a reparar o dano.
Mas, sendo o vício manifesto, por exemplo, se um cavalo for cego de um dos olhos, ou se o uso da coisa, embora não sirva ao vendedor, puder contudo servir a outros, e se ele, por causa de tais vícios, abater devidamente o preço, não está obrigado a revelar o vício da coisa. Porque talvez, por causa desse vício, o comprador quereria que se abaixasse o preço mais do que devia sê-lo. Por onde, o vendedor pode licitamente calar o vício da coisa para evitar uma perda.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Podemos julgar só o que é manifesto; pois, como diz Aristóteles, cada um julga o que conhece. Por onde, sendo oculto os vícios da coisa proposta à venda, o comprador não poderá fazer dela um juízo suficiente, a menos que o vendedor não os declare. O contrário porém se daria se os vícios fossem manifestos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Não é necessário que façamos apregoar os vícios da coisa que queremos vender. Porque, se o fizessemos, os compradores ficariam com medo de comprar, ignorando por outro lado as condições de bondade e utilidade da coisa, Mas, devemos em particular revelar o vício da coisa a quem vem comprá-la, que pode ao mesmo tempo comprar todas as condições dela entre si, as boas e as más. Pois, nada impede seja uma coisa viciosa por um lado e útil, por muitos outros.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Embora não estejamos obrigados a dizer a verdade a todos, absolutamente falando, a respeito do que pertence às virtudes, contudo estamos obrigados a dizê-la quando, num caso particular, de um ato, que praticamos, resultasse um perigo iminente, em detrimento da virtude - que não resultaria se dissessemos a verdade. Ora, tal é o que se dá no caso proposto.
RESPOSTA À QUARTA. – O vício de uma coisa fá-la atualmente de menor valor que o aparente, porém, no caso proposto, a coisa é considerada de menor valor, mas no futuro, pela superveniência de negociantes, o que os compradores ignoram. Por onde, o vendedor que vende a sua coisa pelo preço que encontra, não é considerado como agindo contra a justiça, se não revela o que haverá de acontecer. Se porém, o revelasse e abatesse no preço, mostraria maior virtude, embora a isso não o obrigue um dever de justiça.
O segundo discute-se assim. – Parece que a venda não se torna injusta por causa de um defeito da coisa vendida.
1. – Pois, a espécie substancial de uma coisa deve ser levada mais em conta que outros atributos dela. Ora, parece que por defeito da espécie substancial a venda de uma coisa não se torna ilícita. Por exemplo, se alguém vende prata ou ouro alquímicos por verdadeiros, que, tanto quanto estes, servem para todas as utilidades humanas, como vasos e utensílios semelhantes. Logo, muito menos será ilícita a venda se houver defeito nos outros atríbutos.
2. Demais. – O defeito na quantidade da coisa parece sobretudo contrário à justiça, que consiste numa igualdade. Ora, a quantidade se conhece pela medida. Mas, as medidas das coisas que servem ao uso humano não são determinadas, sendo, umas maiores e outras, menores, como está claro no Filósofo. Logo, não se podem evitar os defeitos da coisa vendida. Por onde, parece que, por causa deles, a venda não se torna ilícita.
3. Demais. – É um defeito da causa vendida o não ter a qualidade conveniente. Ora, para conhecermos a qualidade de uma causa é necessária grande ciência, que falta ao maior número dos vendedores. Logo, a venda não se torna ilícita por causa de um defeito da coisa.
Mas, em contrário, Ambrósio: A regra da justiça é manifesta e dela não pode desviar-se o varão bom, nem causar injustamente dano a outrem, nem viciar pelo dolo o que é seu.
SOLUÇÃO. – Numa coisa à venda podemos distinguir tríplice defeito. - Um diz-lhe respeito à espécie, o qual, se o vendedor o reconhecer na coisa que vai vender, faz venda fraudulenta que, por isso, se torna ilícita. E é isto o que a Escritura diz de certos: A tua prata se mudou em escória, o teu vinho se misturou com água. Pois, o que é misturado tem um defeito específico. Outro defeito é o - quantitativo, conhecido pela medida. Por onde, quem usa cientemente de uma medida deficiente, ao vender, comete fraude e a venda é ilícita. Donde o dizer a Escritura: Não terás no teu saco diversos pesos, maior e menor; nem haverá em tua casa um alqueire maior e outro mais pequeno. E a seguir acrescenta: Porque o Senhor abomina ao que faz estas causas e aborrece toda injustiça. - O terceiro defeito diz respeito à qualidade; por exemplo, se se vender um animal enfermo por são. Quem o fizer cientemente comete fraude na venda, sendo portanto esta ilícita.
Ora, em todos esses casos além de pecar, quem fizer uma venda injusta está ainda obrigado a restituir. Se, porém houver na coisa vendida um dos referidos defeitos, com ignorância do vendedor, este não peca, por cometer uma injustiça material, nem o seu ato é injusto, como do sobredito resulta: Mas, quando o souber, está obrigado a reparar o dano causado ao comprador.
E o que foi dito do vendedor também se deve entender do comprador. Pois, pode acontecer que aquele tenha a sua coisa por especificamente menos preciosa, como no caso de quem vende ouro por latão. O que, se o comprador o souber, compra injustamente e está obrigado a restituir. E o mesmo se deve dizer do defeito qualitativo e quantitativo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O ouro e a prata não são caros só pela utilidade dos vasos ou outros objetos que deles se fabricam, mas também pela valia e pureza das suas substâncias. Portanto, se o ouro ou a prata feitas pelos alquímicos não sejam específicamente verdadeiros, a venda será fraudulenta e injusta. - Sobretudo que há certas utilidades do ouro e da prata verdadeiros, pelo modo natural de atuarem, que não convêm ao ouro falsificado pela alquimia. Tal a propriedade de causar alegria e de servir de remédio a determinadas doenças. Também a ação do ouro verdadeiro dura mais e permanece mais longamente na sua pureza, do que o ouro falsificado. Se porém a alquimia fizer ouro verdadeiro não será ilícito vendê-lo por tal; pois, nada impede a arte usar de certas causas naturais para produzir efeitos naturais e verdadeiros, como diz Agostinho: a respeito dos produtos da arte dos demônios.
RESPOSTA À SEGUNDA. – As medidas das coisas venais hão de necessariamente variar com a diversidades dos lugares, por causa da diversidade da abundância e da carência das coisas. Assim, onde estas são mais abundantes costumam ser maiores as medidas. Ao governador de cada cidade porém compete determinar as medidas justas das coisas venais, pesadas as circunstâncias de lugar e das coisas. Por onde, não é lícito abandonar essas medidas instituídas pela autoridade pública ou pelo costume.
RSPOSTA À TERCEIRA. – Como diz Agostinho, o preço das coisas venais não é considerado pelo grau de natureza, pois, às vezes, um cavalo é vendido mais caro que um escravo; mas, pela utilidade que oferecem ao homem. Por onde, não é necessário o vendedor ou o comprador conhecer as qualidades ocultas das coisas vendidas, mas só as que as tornam acomodadas ao uso humano. Por exemplo, um cavalo há de ser forte e correr bem, e assim por diante. Ora, tais qualidades o vendedor e o comprador podem reconhecê-las facilmente.
O primeiro discute-se assim. – Parece que podemos vender uma coisa por mais do que ela vale.
1. – Pois, o justo, nas comutações humanas, é determinado pelas leis civis. Ora, elas permitem que comprador e vendedor mutuamente se enganem; o que se dá quando o vendedor vende a coisa por mais do que vale, e o comprador, por menos. Logo, é lícito vender uma coisa por mais do que ela vale.
2. Demais. – O que é comum a todos parece que é natural e que não é pecado. Ora, como refere Agostinho: foi aplaudido por todos o dito de um certo comediante: Quereis comprar por vil preço e vender caro. Com o que concorda o dito da Escritura: Isto não vale nada, isto não vale nada, diz todo o comprador e depois de se retirar ele então se gloriará. Logo, é lícito vender uma coisa mais caro e comprá-la mais barato do que ela vale.
3. Demais. – Não parecer ser ilícito fazer numa convenção, o que deve feito segundo às exigências da honestidade. Ora, segundo o Filosofo, na amizade por utilidade deve se dar uma compensação equivalente à utilidade auferida por quem recebeu o benefício. E essa compensação às vezes excede o valor da coisa dada; como acontece quando alguém necessita muito de uma coisa para evitar um perigo ou conseguir alguma vantagem. Logo, é lícito, no contrato de compra e venda, dar uma coisa por preço maior do que ela vale.
Mas, em contrário, a Escritura: Tudo o que vós quereis que vos façam os homens, fazei-o também vós a eles. Ora, ninguém quer que uma coisa lhe seja vendida mais cara do que vale. Logo, ninguém deve vender a outrem nada mais caro do que vale.
SOLUÇÃO. – Empregar fraude para vender uma coisa por mais do que o seu justo preço, é absolutamente pecado, porque enganamos o próximo causando-lhe dano. Por isso diz Túlio: Não devemos, pois, usar de nenhuma mentira ao fazer contratos, nem o vendedor nem o comprador devem fazer intervir um licitante que finja querer adquirir a causa.
Se, pois, não há fraude, então podemos tratar da compra e venda à dupla luz. - Primeiro em si mesmas. E então, elas foram inventadas para utilidade comum das duas partes, por precisar uma da coisa da outra e inversamente, como está claro no Filósofo. Ora, o que foi inventado para a utilidade comum não deve vir impor um gravame mais a um que a outro. Por isso devem fazer entre si um contrato baseado na igualdade da coisa. Ora, a quantidade das coisas que servem ao uso do homem mede-se pelo preço dado; para o que se inventou a moeda como diz Aristóteles. Portanto, se o preço exceder a quantidade do valor da coisa ou se, inversamente, a coisa exceder o preço, desaparece a igualdade da justiça. Por onde, vender mais caro ou comprar mais barato do que a coisa vale é em si mesmo injusto e ilícito.
De outro modo, podemos tratar da compra e venda enquanto acidentalmente dela resulta a utilidade de um e o detrimento de outro. Por exemplo, quando um tem grande necessidade de uma coisa e o outro fica lesado se for privado dela. E em tal caso o justo preço consistirá em se considerar não somente a coisa vendida, mas também o dano que pela venda sofre o vendedor. E então, pode licitamente uma coisa ser vendida por mais do que vale para o seu dono.
Quando porém o comprador tire grande vantagem da coisa comprada e o vendedor nenhum dano sofra por se ver privado dela, não lhe deve aumentar o preço. Porque a utilidade que acresce ao comprador não vem do vendedor, mas da condição do comprador. Pois, ninguém deve vender o que não é seu, embora possa vender o dano que sofreu. Contudo, o que tirou grande vantagem da coisa comprada pode espontaneamente dar algum dinheiro mais ao vendedor; o que será proceder com honestidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como já dissemos, a lei humana é feita para o povo, em que muitos são de virtude falha, e não é dada só para os virtuosos. Por onde, ela não pode proibir o que é contrário à virtude; bastandolhe fazê-lo relativamente ao que viria destruir a sociedade dos homens. E quanto ao mais, há de considerá-lo lícito, não pelo aprovar, mas pelo não punir. Por isso, tem como lícito, não cominando nenhuma pena, que o vendedor venda, sem fraude, o que é seu, por preço maior do que o seu valor, ou o comprador assim também o compre. Salvo se houver excessos; porque então a lei, embora humana, obriga a restituir; por exemplo, se alguém foi enganado em mais da metade do justo preço. A lei divina, porém não deixa impune nada do que é contra a virtude. Por onde, pela lei divina, considera-se ilícito não observar a igualdade da justiça na compra e venda. E então quem recebeu de mais está obrigado a recompensar o que ficou danificado, se o dano for considerável. O que assim digo por não ser o justo preço das coisas rigorosamente determinado, mas consistir antes numa certa estimativa tal, que um pequeno acréscimo ou uma pequena diminuição não basta para destruir a igualdade da justiça.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como no mesmo lugar diz Agostinho, o referido comediante, considerando-se a si mesmo, ou querendo experimentar os outros, acreditava ser comum a todos querer comprar barato e vender caro. Mas, como isso é sem dúvida nenhuma um vício, pode cada um alcançar a verdadeira justiça com que o resista e o vença. E dá o exemplo de um certo, que pagou o justo preço de um livro, podendo, por ignorância do vendedor, pagar um preço inferior. Por onde, é claro que esse desejo geral não é natural, mas, vicioso; e por isso é comum aos muitos, que trilham a larga estrada dos vícios.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Na justiça comutativa considera-se principalmente a igualdade da coisa. Mas, na amizade por utilidade leva-se em conta a equivalência desta. Por isso, deve-se dar uma recompensa conforme à utilidade auferida. Na compra, porém, conforme à igualdade da coisa. substancial a venda de uma coisa não se torna ilícita. Por exemplo, se alguém vende prata ou ouro alquímicos por verdadeiros, que, tanto quanto estes, servem para todas as utilidades humanas, como vasos e utensílios semelhantes. Logo, muito menos será ilícita a venda se houver defeito nos outros atríbutos.
2. Demais. – O defeito na quantidade da coisa parece sobretudo contrário à justiça, que consiste numa igualdade. Ora, a quantidade se conhece pela medida. Mas, as medidas das coisas que servem ao uso humano não são determinadas, sendo, umas maiores e outras, menores, como está claro no Filósofo. Logo, não se podem evitar os defeitos da coisa vendida. Por onde, parece que, por causa deles, a venda não se torna ilícita.
3. Demais. – É um defeito da causa vendida o não ter a qualidade conveniente. Ora, para conhecermos a qualidade de uma causa é necessária grande ciência, que falta ao maior número dos vendedores. Logo, a venda não se torna ilícita por causa de um defeito da coisa.
Mas, em contrário, Ambrósio: A regra da justiça é manifesta e dela não pode desviar-se o varão bom, nem causar injustamente dano a outrem, nem viciar pelo dolo o que é seu.
SOLUÇÃO. – Numa coisa à venda podemos distinguir tríplice defeito. - Um diz-lhe respeito à espécie, o qual, se o vendedor o reconhecer na coisa que vai vender, faz venda fraudulenta que, por isso, se torna ilícita. E é isto o que a Escritura diz de certos: A tua prata se mudou em escória, o teu vinho se misturou com água. Pois, o que é misturado tem um defeito específico. Outro defeito é o - quantitativo, conhecido pela medida. Por onde, quem usa cientemente de uma medida deficiente, ao vender, comete fraude e a venda é ilícita. Donde o dizer a Escritura: Não terás no teu saco diversos pesos, maior e menor; nem haverá em tua casa um alqueire maior e outro mais pequeno. E a seguir acrescenta: Porque o Senhor abomina ao que faz estas causas e aborrece toda injustiça. - O terceiro defeito diz respeito à qualidade; por exemplo, se se vender um animal enfermo por são. Quem o fizer cientemente comete fraude na venda, sendo portanto esta ilícita.
Ora, em todos esses casos além de pecar, quem fizer uma venda injusta está ainda obrigado a restituir. Se, porém houver na coisa vendida um dos referidos defeitos, com ignorância do vendedor, este não peca, por cometer uma injustiça material, nem o seu ato é injusto, como do sobredito resulta: Mas, quando o souber, está obrigado a reparar o dano causado ao comprador.
E o que foi dito do vendedor também se deve entender do comprador. Pois, pode acontecer que aquele tenha a sua coisa por especificamente menos preciosa, como no caso de quem vende ouro por latão. O que, se o comprador o souber, compra injustamente e está obrigado a restituir. E o mesmo se deve dizer do defeito qualitativo e quantitativo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O ouro e a prata não são caros só pela utilidade dos vasos ou outros objetos que deles se fabricam, mas também pela valia e pureza das suas substâncias. Portanto, se o ouro ou a prata feitas pelos alquímicos não sejam específicamente verdadeiros, a venda será fraudulenta e injusta. - Sobretudo que há certas utilidades do ouro e da prata verdadeiros, pelo modo natural de atuarem, que não convêm ao ouro falsificado pela alquimia. Tal a propriedade de causar alegria e de servir de remédio a determinadas doenças. Também a ação do ouro verdadeiro dura mais e permanece mais longamente na sua pureza, do que o ouro falsificado. Se porém a alquimia fizer ouro verdadeiro não será ilícito vendê-lo por tal; pois, nada impede a arte usar de certas causas naturais para produzir efeitos naturais e verdadeiros, como diz Agostinho: a respeito dos produtos da arte dos demônios.
RESPOSTA À SEGUNDA. – As medidas das coisas venais hão de necessariamente variar com a diversidades dos lugares, por causa da diversidade da abundância e da carência das coisas. Assim, onde estas são mais abundantes costumam ser maiores as medidas. Ao governador de cada cidade porém compete determinar as medidas justas das coisas venais, pesadas as circunstâncias de lugar e das coisas. Por onde, não é lícito abandonar essas medidas instituídas pela autoridade pública ou pelo costume.
RSPOSTA À TERCEIRA. – Como diz Agostinho, o preço das coisas venais não é considerado pelo grau de natureza, pois, às vezes, um cavalo é vendido mais caro que um escravo; mas, pela utilidade que oferecem ao homem. Por onde, não é necessário o vendedor ou o comprador conhecer as qualidades ocultas das coisas vendidas, mas só as que as tornam acomodadas ao uso humano. Por exemplo, um cavalo há de ser forte e correr bem, e assim por diante. Ora, tais qualidades o vendedor e o comprador podem reconhecê-las facilmente.
O quarto discute-se assim. – Parece que a maldição é pecado mais grave que a detração.
1. – Pois, a maldição é considerada blasfêmia, conforme àquilo da Escritura. Quando o arcanjo Miguel, disputando com o diabo, altercava sobre o corpo de Moisés, não se atreveu a fulminarlhe a sentença de blasfemo. E aí se toma a blasfêmia pela maldição, segundo a Glosa. Ora, a blasfêmia é pecado mais grave que adetração. Logo, a maldição é mais grave que a detração.
2. Demais. – O homicídio é mais grave que a detração, como se disse: Ora, a maldição é um pecado igual ao de homicídio; pois, diz Crisóstomo. Se disseres - amaldiçoa-o; destroi-lhe a casa e faze perecerem todos os seus bens; não diferirás em nada do homicida. Logo, a maldição é mais grave que a detração.
3. Demais. – A causa tem preeminência sobre o sinal. Ora, quem maldiz causa o mal, pela sua ordem; mas quem detrai só exprime o mal já existente. Logo, peca mais gravemente quem amaldiçoa, do que o detrator.
Mas, em contrário, a detração não pode ser tomada em bom sentido; ao passo que a maldição o pode, tanto em bom como em mau, como do sobredito se colhe. Logo, mais grave é a detração que a maldição.
SOLUÇÃO. – Como já estabelecemos na Primeira Parte, há um duplo mal - o da culpa e o da pena. Ora, o mal da culpa é o pior, como aí se demonstrou. Logo, dizer um mal que implica uma culpa é pior que dizer o que implica uma pena, dado que o modo de dizer seja o mesmo. Por onde, é próprio do contumelioso, do murmurador, do detrator e também do escarnecedor dizer o mal que implica uma culpa; mas, do que maldiz, no sentido de que agora tratamos, é próprio dizer o mal que implica uma pena, e não o que importa em culpa, salvo talvez sob a ideia de pena. Mas, o modo pelo qual uns e outros dizem esse mal não é o mesmo. Pois, dos quatro vícios primeiro referidos, é próprio somente o enunciar o mal da culpa; ao passo que quem amaldiçoa diz um mal que implica uma pena ou pelo causar, a modo de ordem, ou pelo desejar. Ora, o fato mesmo de enunciar a culpa já é pecado, por causar um certo dano ao próximo; mas é mais grave causar do que desejar a outrem um dano, se todas as demais circunstâncias forem iguais. Por onde, a detração, em sentido geral, é pecado mais grave que a maldição que somente exprime um simples desejo. Mas, a maldição pronunciada como um mandado; tendo a natureza de causa, pode ser mais grave que a detração, se causar um dano maior do que o denegrimento do bom nome; ou mais leve, se menor for o dano. E isto é assim considerado levando-se em conta o que pertence à natureza desses dois vícios. Mas, podem-se considerar outras circunstâncias acidentais, que os aumentam ou diminuem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A maldição da criatura como tal redunda em maldição de Deus; e então e por acidente tem a natureza - de blasfêmia; o que porém, não se dá se amaldiçoarmos a criatura por causa de uma culpa. Foi o mesmo se diga da detração.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como já dissemos a maldição, num dos sentidos assinalados, inclui o desejo do mal. Por onde, se quem amaldiçoou quiser o mal da morte de outrem, não diferirá, pelo seu desejo, do homicida. Mas, dele difere na medida em que o ato externo acrescenta algo à vontade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção procede em se tratando da maldição, enquanto implica uma ordem.
O terceiro discute-se assim. – Parece que amaldiçoar não é pecado mortal.
1. – Pois, Agostinho enumera a maldição entre os pecados leves. Ora, estes são veniais. Logo, a maldição não é pecado mortal, mas, venial.
2. Demais. – Os pecados procedentes de um leve movimento da alma, parece que não são mortais. Ora, às vezes, a maldição procede de um leve movimento. Logo, não é pecado mortal.
3. Demais. –- É mais grave malfazer do que amaldiçoar. Ora, malfazer nem sempre é pecado mortal. Logo, muito menos o é amaldiçoar.
Mas, em contrário. – Só o pecado mortal exclui do reino de Deus. Ora, a maldição exclui do reino de Deus, conforme ao Apóstolo. Nem os maldizentes nem os roubadores hão de possuir o reino de Deus. Logo, a maldição é pecado mortal.
SOLUÇÃO. – A maldição de que agora tratamos é a que nos faz dizer mal de outrem, mandando ou desejando. Ora, querer o mal alheio ou mover a ele, mandando, repugna, em si mesmo, à caridade pela qual amamos o próximo querendolhe bem. E, assim, é genericamente pecado mortal. E tanto mais grave quanto mais estivermos obrigados a amar e reverenciar a pessoa a quem amaldiçoamos. Donde o dito da Escritura. O que amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe. morra de morte.
Pode porém acontecer que a palavra de maldição proferida seja pecado venial, quer pela parvidade do mal imprecado contra outrem pela maldição; quer também pelo sentimento que nutre quem profere as palavras de maldição, conforme o fizer por um leve movimento, por divertimento ou por movimento de surpresa. Pois, os pecados por palavras pesam-se sobretudo pelo seu efeito, como dissemos.
Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O segundo discute-se assim. – Parece que não é lícito amaldiçoar uma criatura irracional.
1. – Pois, parece que a maldição é sobretudo lícita enquanto visa uma pena. Ora, a criatura irracional não é susceptível de culpa nem de pena. Logo, não é lícito amaldiçoar.
2. Demais. – A criatura irracional não tem senão a natureza, que Deus fez. Ora, esta não é lícito amaldiçoá-la, mesmo sendo a do diabo, como se disse. Logo, de nenhum modo é lícito amaldiçoar uma criatura irracional.
3. Demais. – A criatura irracional ou é permanente, como os corpos, ou transitiva, como o tempo. Ora, como diz Gregório, vão amaldiçoar o que não existe e mau, o que existe. Logo, de nenhum modo é lícito amaldiçoar uma criatura irracional.
Mas, em contrário, o Senhor amaldiçoou a figueira, como se lê no Evangelho, e Jó amaldiçoou o dia de seu nascimento.
SOLUÇÃO. – A bendição ou a maldição se aplica propriamente aos seres a que pode suceder bem ou mal, como é a criatura racional. As criaturas irracionais porém dizemos que acontece bem ou mal, em ordem à criatura racional, por causa da qual existem. Ora, elas se ordenam para esta de dois modos. - Primeiro, a modo de ajutório, isto é, enquanto satisfazem às necessidades humanas. E deste modo, Deus - disse ao homem: A terra será maldita na tua obra isto é, que o homem fosse punido pela esterilidade dela. E nesse sentido também se entende o outro lugar da Escritura. Benditos os teus celeiros; e mais abaixo: Maldito o teu celeiro. E assim também Davi amaldiçoou os montes de Gelboé, segundo a interpretação de Gregório. - Segundo, a criatura irracional se ordena à racional, a modo de significação. E assim o Senhor amaldiçoou a figueira, como significando a Judéia. - Terceiro, a criatura irracional se ordena à racional a modo de continente, isto é, de tempo ou de lugar. E assim Jó amaldiçoou o dia do seu nascimento, por causa da culpa original que contraiu ao nascer e por causa das penalidades consequentes. E nesse sentido também podemos entender que Davi amaldiçoou os montes Gelboé como se lê na Escritura, isto é, pela mortandade do povo que neles teve lugar. - Mas, amaldiçoar as criaturas irracionais enquanto criaturas de Deus é pecado de blasfêmia. E amaldiçoá-las enquanto em si mesmas consideradas é ocioso e vão e por consequência ilícito.
Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O primeiro discute-se assim. – Parece que não é lícito amaldiçoar a ninguém.
1. – Pois, não é lícito transgredir o mandamento do Apóstolo, pelo qual falava Cristo. Ora, ele ordena: Abençoai aos que vos amaldiçoam. Logo, não é lícito amaldiçoar ninguém.
2. Demais. – Todos estão obrigados a bendizer a Deus, conforme aquilo da Escritura. Filhos dos homens, bendizei ao Senhor. Ora, como diz ainda a Escritura, uma mesma boca não pode bem dizer a Deus e amaldiçoar o homem. Logo, não é lícito amaldiçoar ninguém.
3. Demais. – Quem amaldiçoa a outrem parece desejar-lhe o mal da culpa ou o da pena, porque a maldição é uma espécie de imprecação. Ora, não é lícito desejar o mal de ninguém; ao contrário, devemos orar por todos para que se livrem do mal. Logo, não é lícito amaldiçoar ninguém.
4. Demais. – O diabo pela sua obstinação é o ser mais sujeito à malícia. Ora, não é lícito a ninguém amaldiçoar o diabo como não o é amaldiçoar a si mesmo, segundo à Escritura. Quando o impie amaldiçoa ao diabo, amaldiçoa ele mesmo a sua alma. Logo, com maior razão, não é lícito amaldiçoar a outrem.
5. Demais. – Aquilo da Escritura: - Como amaldiçoarei eu a quem Deus não amaldiçou diz a glosa: Não pode haver causa justa de amaldiçoar quando se ignoram os sentimentos do pecador. Ora, ninguém pode conhecer os afetos de outrem nem se este é amaldiçoado de Deus. Logo, a ninguém é lícito amaldiçoar a outrem.
Mas, em contrário, a Escritura: Maldito o que não permanece firme nas ordenações desta lei. E também Eliseu amaldiçoou os meninos que dele escarneciam.
SOLUÇÃO. – Amaldiçoar é o mesmo que dizer mal. Ora, dizer implica tríplice relação com o que é dito. - A primeira está no modo de enunciar, como quando exprimimos alguma coisa no modo indicativo. E então amaldiçoar não é senão dizer mal de outrem, o que é próprio da detração; e por isso os que amaldiçoam são às vezes chamados detratores. - A segunda relação é a modo de causa. E esta, primária e principalmente é própria de Deus, que fez tudo com a sua palavra, segundo àquilo da Escritura. Porque ele disse e foram feitas as coisas. E por consequência também é própria dos homens, que, com a sua palavra, movem os outros, mandando-os fazer alguma coisa; sendo para isso que se empregam os verbos no modo imperativo. - A terceira é uma como expressão do sentimento que deseja o expresso pela palavra. E para isso empregam-se os verbos no modo optativo.
Deixando, pois, de lado o primeiro modo de amaldiçoar, pela simples enunciação do mal, consideremos os dois outros. E em relação a eles devemos saber que fazer e querer uma coisa são dois atos ligados entre si, tanto na bondade como na malícia, conforme do sobredito resulta. Por onde, no atinente a esses dois modos, pelos quais dizemos o mal imperativa e optativamente, pela mesma razão o que é lícito é também ilícito. Assim, mandar ou desejar o mal de outrem, enquanto mal, visando-o por assim dizer, em si mesmo, de ambos esses modos amaldiçoar será ilícito. E é isso o que se chama amaldiçoar propriamente falando. Mas será lícito mandar ou desejar o mal alheio, que nos aparece como bem. Nem haverá então propriamente falando maldição, mas só por acidente; porque a intenção principal de quem fala não visa o mal, mas, o bem.
Ora, podemos, mandando ou desejando, dizer um mal, em razão de duplo bem. - Assim, umas vezes, por uma razão de justiça; então, o juiz pode licitamente amaldiçoar aquele contra quem mandou aplicar uma pena justa. E nesse sentido também a Igreja amaldiçoa anatematizando; assim como os profetas, na Escritura, às vezes imprecam o mal contra os pecadores, como que conformando a sua vontade com a justiça divina. Embora tais imprecações possam também entender-se como prenúncios. Outras vezes porém um mal é dito por uma razão de utilidade; por exemplo, quando desejamos que um pecador sofra uma doença ou se lhe ponha algum obstáculo, ou se torne melhor, ou ao menos cesse de causar dano aos outros.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Apóstolo proíbe amaldiçoar em sentido próprio, visando o mal.
E o mesmo devemos RESPONDER À SEGUNDA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Desejar mal a outrem em razão de um bem, não contraria o sentimento pelo qual propriamente falando lhe desejamos o bem; antes, é conforme a esse sentimento.
RESPOSTA À QUARTA. – No diabo devemos considerar a natureza e a culpa. A sua natureza é boa e provém de Deus, nem é lícito amaldiçoá-la; devemos porém amaldiçoar-lhe a culpa, conforme aquilo da Escritura. Amaldiçoem-na aqueles que amaldiçoam o dia. Ora, o pecador, amaldiçoando o diabo por causa da culpa, pela mesma razão julga-se a si mesmo digno de maldição. E neste sentido se diz que amaldiçoa a sua alma.
RESPOSTA À QUINTA. – O sentimento do pecador, embora em si mesmo não o vejamos, podemos contudo percebê-lo por meio de algum pecado manifesto, ao qual deve ser infligida uma pena. Semelhantemente, embora não possamos saber quem Deus amaldiçoará na reprovação final, podemos contudo saber quem é maldito por ele, pelo reato da culpa presente.