Category: Santo Tomás de Aquino
O primeiro discute-se assim. – Parece que a heresia não é uma espécie de infidelidade.
1. – Pois, a infidelidade está no intelecto como já se disse. Ora, a heresia não reside no intelecto, mas antes na potência apetitiva, porquanto, como comenta Jerônimo aquilo da Escritura - As obras da carne estão patentes e está em Decret. - Heresia, em grego, vem de eleição, porque cada qual escolhe para si a doutrina que julga melhor. Ora, a eleição é ato da potência apetitiva, como já se disse. Logo, a heresia não é uma espécie de infidelidade.
2. Demais. – O vício principalmente se especifica pelo fim; donde o dizer o Filósofo: quem fornica para roubar é mais ladrão que fornicador. Ora, o fim da heresia é a vantagem temporal, e sobretudo o governo e a glória. Pois, como diz Agostinho herético é o que, por causa de alguma vantagem temporal, e sobretudo da glória e do governo, emite ou regue opiniões falsas e novas. Logo, a heresia não é uma espécie de infidelidade, mas antes, de soberba.
3. Demais. – A infidelidade, residindo no intelecto, não pode depender da carne. Ora, a heresia depende das obras da carne, consoante ao dito do Apóstolo: As obras da carne estão patentes, como são a fornicação, a impureza; e entre outras acrescenta depois: as contendas, as seitas, que são o mesmo que heresias. Logo, não é a heresia uma espécie de infidelidade.
Mas, em contrário, a falsidade se opõe à verdade. Ora, herético é quem emite ou segue opiniões falsas e novas. Logo, opõe-se à verdade, em que se funda a fé. Portanto, está compreendida na infidelidade.
SOLUÇÃO. – O nome de heresia, como se disse implica a eleição, que, conforme já dissemos, visa os meios, pressuposto o fim. Ora, na crença, a vontade assente a uma verdade como a um bem próprio, segundo do sobredito e colhe. Por onde, o que é principalmente verdadeiro tem a natureza de fim último; e o que é secundário, a de meio. Ora, como quem crê assente na palavra de outrem é considerado como principal e quase fim, em qualquer espécie de crença, aquele em cuja palavra assentimos; e como quase secundário aquele que admitimos por querermos assentir na palavra de outrem. Assim, pois, quem retamente possui a fé cristã, assente por vontade própria ao que verdadeiramente pertence à doutrina de Cristo. Ora, da retidão da fé cristã podemos nos desviar de dois modos. Primeiro, por não querermos assentir na doutrina de Cristo; o que implica a quase má vontade relativamente ao próprio fim, e constitui a espécie de infidelidade dos pagãos e dos judeus. De outro modo, podemos desviar da retidão da fé, quando, embora tendo a intenção de assentir na doutrina de Cristo, erramos ao escolher aquilo pelo que aceitamos a Cristo elegendo, não o que Cristo verdadeiramente ensinou, mas o que é sugerido pela mente própria. Por onde, a heresia é uma espécie de infidelidade, própria dos que, embora confessando a fé em Cristo, viciam-lhe os dogmas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A eleição diz respeito à infidelidade, como a vontade à fé, segundo já dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os vícios se especificam pelo fim próximo; mas no fim remoto haurem o gênero e a causa. Assim, em quem fornica para roubar, a fornicação se especifica pelo seu fim próprio e pelo objeto; mas, pelo fim último, mostra-se como a fornicação nasceu do furto e nele está contida, como o efeito na causa ou a espécie no gênero conforme resulta claramente do que já dissemos sobre os atos em geral. E o mesmo se dá no caso vertente: o fim próximo da heresia é aderir a uma falsa opinião própria, o que a especifica; mas o fim remoto lhe manifesta a causa, isto é, que nasce da soberba e da cobiça.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como heresia vem de eleger, assim seita vem de seguir, no dizer de Isidoro. Por onde, heresia e seita se identificam. E ambas pertencem às obras da carne, não certo quanto ao ato mesmo de infidelidade, relativamente ao objeto próximo, mas em razão da causa, que é ou o apetite do fim indevido, quando nasce da soberba ou da cobiça; como dissemos ou então, alguma ilusão fantástica, que é o princípio do erro, segundo também o Filósofo o diz. Ora, a fantasia, de certo modo, pertence à carne, por ser o seu ato dependente de um órgão corpóreo.
O duodécimo discute-se assim. – Parece que os filhos dos judeus e demais infiéis devem ser batizados contra a vontade dos pais.
1 – Pois, é mais forte o vínculo matrimonial do que o direito do pátrio poder sobre o filho. Porque este direito pode ser dissolvido pelo homem, quando, de filho-família, vem a emancipar-se; ao contrário, os homens não podem dissolver o vínculo matrimonial, conforme a Escritura: Não separe o homem o que Deus ajuntou. Ora, por infidelidade, dissolve-se o vínculo matrimonial, conforme o Apóstolo. Porém se o infiel se retira que se retire; porque neste caso já o nosso irmão ou a nossa irmã não estão mais sujeitos à escravidão. E um Cânon dispõe que se um cônjuge infiel não quer, sem ofensa do seu Criador, coabitar com o outro, então este não deve fazê-lo. Logo, com maior razão, por infidelidade, perde-se o direito do pátrio poder sobre os filhos. Podem portanto, os filhos dos infiéis ser batizados contra a vontade deles.
2. Demais. – Devemos auxiliar os outros, quando há perigo de morte eterna, mais que quando esse perigo é apenas de morte temporal. Ora, pecaríamos não socorrendo a quem víssemos correr perigo de morte temporal. Como, pois os filhos dos judeus e demais infiéis corram perigo de morte eterna, se forem abandonados aos pais, que os educarão na infidelidade, resulta que devem esses filhos ser-lhes tirados, batizados e instruídos na fé.
3. Demais. – Os filhos dos escravos são escravos e estão sob o poder do senhor. Ora, os judeus são escravos dos reis e dos príncipes. Logo, também os seus filhos. Portanto, os reis e os príncipes podem fazer dos filhos dos judeus o que quiserem, e, por consequência nenhuma injustiça farão batizando-lhes os filhos, contra a vontade deles.
4. Demais. – Todos, pertencemos mais a Deus, criador da nossa alma, que aos pais carnais, de quem temos o corpo. Logo, não é injusto tirar os filhos dos judeus aos pais carnais e consagrá-los a Deus pelo batismo.
5. Demais. – O batismo é mais eficaz à salvação do que a pregação, porque purifica imediatamente da mácula do pecado, do reato da pena, e abre as portas do céu. Ora, o perigo proveniente da falta de pregação é imputado ao que não pregou, como se lê na Escritura falando do que vê vir vindo a espada e não toca a trombeta. Logo, com maior razão, se os filhos dos judeus se condenarem, por falta de batismo, tal será imputado, como pecado aos que podiam batizá-los e não o fizeram.
Mas, em contrário, não se deve fazer injustiça a ninguém. Ora, fa-la-íamos aos judeus se lhes batizássemos os filhos contra a vontade deles; porque então perderiam o direito do pátrio poder sobre os filhos já fiéis. Logo, não lhos devemos batizar contra a vontade deles.
SOLUÇÃO. – O costume, na Igreja, goza da máxima autoridade e deve ser preferido a tudo o mais, pois a própria doutrina dos doutores católicos tira da Igreja a sua autoridade. Por onde, devemos nos apoiar, antes, na autoridade da Igreja do que na de Agostinho, de Jerônimo ou de qualquer outro doutor. Ora, nunca foi uso da Igreja batizar os filhos dos judeus, contra a vontade deles. Pois, nos tempos passados, muitos e santíssimos bispos, familiares de muitos príncipes católicos e poderosíssimos, como Silvestre, de Constantino, e Ambrósio, de Teodósio, de nenhum modo deixariam de lhes pedir mandassem proceder a esse batismo, se tal estivesse de acordo com a razão. Por onde, é perigoso introduzir essa nova doutrina e batizar os filhos dos judeus, contra a vontade deles, e contra o costume da Igreja, até agora observado.
E disto pode dar-se dupla razão. – Uma, por causa do perigo da fé. Se, pois, as crianças, ainda sem o uso da razão, recebessem o batismo, depois, chegados à idade adulta, facilmente poderiam ser induzidos pelos pais a abandonarem o que receberam ignorando; o que reverteria em detrimento da fé. – A outra razão está em essa prática repugnar à justiça natural. Pois o filho é naturalmente, parte do pai. E, ao princípio, dos pais não se distingue corporalmente, enquanto no ventre materno. Em seguida, vindo à luz, antes de ter uso do livre arbítrio, depende dos cuidados paternos, como de um ventre espiritual. Pois enquanto não tem uso da razão, a criança não difere do animal irracional. Por onde, assim como o dono de um boi ou um cavalo pode usar dele como quiser, nos termos da lei civil, como de instrumento próprio; assim também é de direito natural esteja o filho, antes do uso da razão, sob os cuidados do pai. Portanto, seria contra a justiça natural, subtrair a criança, antes do uso da razão, a esses cuidados, ou fazerlhes qualquer coisa, contra a vontade dos mesmos. Quando, porém começar a ter o uso do livre arbítrio, já começará a ser senhor de si e pode prover-se a si mesmo, no pertencente ao direito divino ou natural. E então, deve ser induzido à fé, não coagida, mas persuadida. E pode, mesmo contra a vontade dos pais, receber a fé e ser batizada; não porém enquanto sem o uso da razão. Por isso, se disse que os filhos dos antigos patriarcas foram salvos pela fé dos pais; querendo-se com isso significar, que aos pais pertence velar pela salvação dos filhos, sobretudo antes de terem o uso da razão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – No vínculo matrimonial ambos os cônjuges, tem o uso do livre arbítrio, e pode um, contra a vontade do outro, assentir na fé. Ora, isto não se dá com a criança, antes de ter o uso da razão. Porém, depois que tiver esse uso, então a comparação colhe, se quiser converter-se.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Ninguém deve ser subtraído à morte natural contra a ordem do direito civil. Assim, ninguém deve livrar violentamente da morte o condenado pelo juiz à morte temporal. Por onde, ninguém deve violar a ordem do direito natural, pela qual o filho está sob os cuidados paternos, para libertá-la do perigo da morte eterna.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os judeus são escravos dos príncipes por escravidão civil, que não exclui a ordem do direito natural ou divino.
RESPOSTA À QUARTA. – O homem se ordena a Deus pela razão, pela qual pode conhecê-la. Por isso, a criança, antes do uso da razão, se ordena naturalmente a Deus pela razão dos pais, de cujos cuidados por natureza depende; e conforme a disposição deles é que se deve tratar com ela das causas divinas.
RESPOSTA À QUINTA. – O perigo resultante da pregação omitida não é iminente senão aqueles que tem obrigação de pregar. Por isso a Escritura disse antes: Eu te dei por atalaia à casa de Israel. Ora, velar pelos filhos dos infiéis, quanto aos sacramentos da salvação, pertencelhes aos pais. Por onde, corre-lhes o perigo iminente se, pela privação dos sacramentos, os filhos vierem a sofrer detrimento na salvação.
O undécimo discute-se assim. – Parece, que não se devem tolerar os ritos dos infiéis.
1 – Pois, é manifesto que os infiéis, praticando os seus ritos, pecam. Ora, consente no pecado quem, podendo impedi-lo, não o impede como diz a Glosa aquilo do Apóstolo: não somente os que estas causas fazem, senão também os que consentem aos que as fazem. Logo, pecam os que lhes toleram os ritos.
2. Demais. – Os ritos dos judeus se assimilam aos da idolatria. Pois, aquilo do Apóstolo Não vos metais outra vez debaixo do jugo da escravidão - diz a Glosa: Não é mais leve esta lei da escravidão do que a da idolatria. Ora, não se admitiria que qualquer pessoa praticasse o rito de idolatria; antes, os príncipes cristãos faziam primeiro fechar os templos dos ídolos, e depois demoli-los, como o narra Agostinho. Logo, e do mesmo modo, não devem ser tolerados os ritos dos judeus.
3. Demais. – O pecado de infidelidade é gravíssimo, como já se disse. Ora, os demais pecados, como o adultério, o furto e outros, não são tolerados, mas punidos por lei. Logo, também não se devem tolerar os ritos dos infiéis.
Mas, em contrário, diz Gregório, dos judeus: Todos tenham plena liberdade de observar e celebrar todas as suas festividades, como o fizeram até aqui, e as observaram os antepassados, por muito tempo.
SOLUÇÃO. – O governo humano deriva do divino e deve imitá-lo. Ora, Deus, embora omnipotente e o sumo bem, permite, contudo existam no universo certos males, que poderia impedir, afim de que, a eliminação deles não acarretasse também a de maiores bens, ou resultassem males piores. Assim também, os chefes do governo humano toleram com razão certos males, para não ficarem impedidos certos bens, ou ainda, para não caírem em males piores, como diz Agostinho: Suprime as meretrizes, da sociedade humana, e perturbarás tudo com a libidinosidade. Por onde, embora pequem em seus ritos os infiéis, podem ser tolerados, ou por causa de algum bem deles proveniente, ou por algum mal evitado.
Por outro lado, de observarem os judeus os seus ritos, que outrora prefiguravam a verdade da nossa fé, resulta o bem de termos, dos inimigos, um testemunho dessa mesma fé, e de nos ser representado, quase em figura, o que cremos. Por isso, são tolerados, com os seus ritos. Outros ritos porém, dos infiéis, que nenhuma verdade ou utilidade tenham, não devem, do mesmo modo, ser tolerados, senão talvez para evitar algum mal, isto é, o escândalo ou o dissídio, que da proibição poderia provir, ou o impedimento à salvação dos que, assim tolerados, se converteriam à fé a pouco e pouco. E por isso também a Igreja tolerou, às vezes, quando era grande a multidão dos infiéis, os ritos, dos heréticos e dos pagãos.
Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O décimo discute-se assim. – Parece que os infiéis podem ter governo ou domínio sobre os fiéis.
1. – Pois, diz o Apóstolo. Todos os servos que estão debaixo do jugo estimem a seus amos por dignos de toda honra. E o lugar seguinte mostra que este se refere aos infiéis: E os que temem senhores fiéis não os desprezem. E noutro passo diz a Escritura: Servos, sede obedientes aos vossos senhores com todo o temor, não somente aos bons e moderados, mas também aos de dura condição. Ora, a doutrina apostólica não ordenaria tal se os infiéis não pudessem governar os fiéis. Logo, aqueles podem governar a estes.
2. Demais. – Todos os que pertencem à família de um príncipe devem obedecer-lhe. Ora, certos fiéis eram da família de príncipes infiéis, donde o dizer a Escritura. Todos os santos vos saúdam, mas com muita especialidade os que são da família de César, isto é, de Nero, que era infiel. Logo, os infiéis podem governar os fiéis.
3. Demais. – Como diz o Filósofo, o escravo é o instrumento do Senhor, no atinente à vida humana, assim como o ajudante do artífice é o instrumento deste no concernente à obra de arte. Ora, nessas condições, pode o fiel estar sujeito ao infiel, pois os fiéis podem ser trabalhadores dos infiéis. Logo, os infiéis podem governar os fiéis e mesmo ter domínio sobre estes.
Mas, em contrário, quem governa deve julgar os governados. Ora, os infiéis não podem julgar os fiéis, conforme o Apóstolo: Atreve-se algum de vós, tendo negócio contra outro, ir a juízo perante os iníquos, isto é, os infiéis, e não à presença dos santos? Logo, os infiéis não podem governar os fiéis.
SOLUÇÃO. - De dois modos podemos considerar este assunto. - Primeiro, quanto ao domínio ou o governo, a ser instituído, dos infiéis sobre os fiéis. O que de nenhum modo deve ser permitido, porque causaria escândalo e perigo para a fé. Pois facilmente os que estão sujeitos à jurisdição de outros podem ser influenciados por eles de maneira a lhes seguir as ordens, a menos que sejam os súditos dotados de grande virtude. E semelhantemente, os infiéis desprezarão a fé, se conhecerem os desfalecimentos dos fiéis. Por isso o Apóstolo proibiu aos fiéis discutir em juízo perante um juiz infiel. Por isso de nenhum modo a Igreja permite aos infiéis exercerem domínio sobre os fiéis, ou de qualquer modo os governarem, em qualquer ministério. – De outra maneira, podemos considerar o domínio ou governo já existente.
Nesse caso, devemos notar que o domínio e o governo foram introduzidos por direito humano, ao passo que a distinção entre fiéis e infiéis é de direito divino. Ora, o direito divino, fundado na graça, não elimina o direito humano, fundado em a natureza racional. Logo, a distinção entre fiéis e infiéis, em si mesmo considerada, não elimina o domínio e o governo dos infiéis sobre os fiéis. Pode porém justamente, por sentença ou ordem da Igreja, que tem de Deus a sua autoridade, ser eliminado esse direito de domínio ou governo. Porque os infiéis, como castigo da sua infidelidade, merecem perder o governo dos fiéis, transformados em filhos de Deus. Mas isto a Igreja faz umas vezes e, outras, não. – Assim, quanto aos infiéis a ela sujeitos, mesmo temporalmente, e aos seus membros, estabeleceu o direito seguinte. O escravo de judeus, uma vez tornado Cristão, seja libertado da escravidão, sem nenhuma recompensa, se for escravo crioulo, isto é, nascido tal; e semelhantemente, se foi comprado como escravo, quando ainda era infiel. Se porém foi comprado para ser vendido, deve ser exposto à venda durante três meses. E nisto não comete a Igreja nenhuma injustiça, porque, sendo os judeus seus escravos, pode dispor das coisas deles, assim como também os príncipes seculares fizeram muitas leis sobre os seus súditos, no interesse da liberdade. – Para os infiéis porém, que não lhe estão sujeitos, nem aos seus membros, temporalmente, a Igreja não aplicou essa legislação, embora pudesse, de direito, instituí-la. E isto o fez para evitar escândalo. Assim também o Senhor mostrou que podia excusar-se do tributo, porque os filhos são livres; contudo mandou pagálo, afim de não dar escândalo. Por isso também Paulo, depois de ter mandado que os escravos estimem aos seus amos, acrescenta: Para que o nome do Senhor e a sua doutrina não seja blasfemada.
E daqui se deduz clara a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O referido governo de César preexistia à distinção entre fiéis e infiéis. Por isso não se dissolvia pela conversão de um infiel à fé. E era útil que alguns fiéis tivessem lugar na família do imperador, para defender os demais fiéis. Assim, S. Sebastião confortava o ânimo dos Cristãos, que via prestes a desfalecerem nos tormentos, e continuava, oculto pela clâmide militar, a fazer parte da família de Diocleciano.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os escravos estão sujeitos ao senhor por toda a vida; e os súditos, aos chefes, em todos os negócios. Mas os ajudantes dos artífices estão-lhes sujeitos quanto a certas obras especiais. Por onde, é mais perigoso os infiéis terem o domínio ou o governo sobre os fiéis, que receberem deles o ministério de algum serviço especial. Por isso, a Igreja permite possam os Cristãos cultivar as terras dos judeus, pelos não levar isso necessariamente a conviver com eles. E Salomão também pediu ao rei de Tiro mestres de obra para cortarem madeira, como se lê na Escritura. – E contudo, essa comunicação e convivência deve ser totalmente proibida, se se temer que dela provenham perigos da subversão da fé dos fiéis.
O nono discute-se assim. – Parece que se pode ter comunhão com os infiéis.
1. – Pois, diz o Apóstolo: Se algum dos infiéis vos convida e quereis ir, comei de tudo o que se vos põe diante. E Crisóstomo diz: Permitimos, sem nenhuma proibição, que possais tomar parte nas refeições dos pagãos, Ora, com quem comemos temos comunhão. Logo, é lícito ter comunhão com os infiéis.
2. Demais. – O Apóstolo diz: Porque, que me vai a mim em julgar daqueles que estão fora? Ora, os infiéis estão fora. Por onde, como, por juízo da Igreja, os fiéis estão proibidos de ter comunhão com certos, resulta que não estão proibidos de a ter com os infiéis.
3. Demais. – O Senhor não pode ter comunhão com o escravo senão comunicando-se com ele, ao menos verbalmente; porque o senhor manda no escravo, ordenando. Ora, os Cristãos podem ter escravos infiéis, judeus, ou ainda pagãos ou sarracenos. Logo, podem licitamente ter comunhão com eles.
Mas, em contrário, a Escritura: Não celebrarás concerto algum com elas, nem as tratarás com compaixão, nem contrairás com elas matrimônios. E comentando o outro lugar. - A mulher, que padece o fluxo mensal etc. – diz a Glosa: Devemos nos abster de tal modo da idolatria, que não tenhamos contato com os idólatras, nem com os seus discípulos, nem tenhamos comunhão com eles.
SOLUÇÃO. – De dois modos pode ser interdito aos infiéis ter comunhão com uma pessoa: como pena imposta aquele com quem se proíbe aos fiéis comunicar, ou como cautela para aqueles a quem se proíbe a comunhão. E ambas essas causas podem se fundar nas palavras do Apóstolo. Assim, depois de ter proferido a sentença de excomunhão, dá-lhe como fundamento: Não sabeis que um pouco de fermento corrompe toda a massa? E em seguida, dá a razão da pena infligida, por juízo da Igreja, quando diz: Por ventura não julgais vós daqueles que estão dentro?
Por isso, do primeiro modo, a Igreja não proíbe as fiéis a comunhão com os infiéis, pagãos ou judeus, que nunca receberam a fé cristã. Porque não deve proferir, sobre eles, nenhum juízo espiritual, mas temporal, em determinado caso, quando, vivendo entre Cristãos, cometam alguma culpa e sejam punidos pelos fiéis temporalmente. Mas, deste modo, isto é, como pena, a Igreja proíbe aos fiéis ter comunhão com os infiéis, que se desviaram da fé recebida, quer corrompendo-a, como os heréticos, quer totalmente abandonando-a, como os apóstatas. Em ambos estes casos a Igreja profere contra eles a sentença de excomunhão.
Mas do segundo modo, é mister distinguir entre as diversas condições das pessoas, dos negócios e dos tempos. – Assim, certos estão de tal modo firmes na fé, que se pode esperar, da sua convivência com os infiéis, que antes, os convertam do que percam a fé. Por onde, não se lhes deve proibir comuniquem-se com os infiéis, pagãos ou judeus, que ainda não receberam a fé; e sobretudo urgindo a necessidade. - Aos que porém forem simples e fracos na fé, cuja subversão possa provavelmente temer-se, se lhes deve proibir comunicar com os infiéis; e sobretudo para que não venham a ter com eles grande familiaridade ou com eles comuniquem, sem necessidade.
Donde se deduz clara a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A Igreja não tem que proferir juízo contra os infiéis, de modo a lhes infligir uma pena espiritual; pode porém proferir um juízo sobre certos dentre eles, para infligir uma pena temporal. Daí vem que às vezes a Igreja, por certas culpas especiais, priva certos infiéis da comunhão com os fiéis.
RESPOSTA À TERCEIRA. – É mais provável a conversão do escravo, submetido às ordens do senhor, fiel à fé, que este tem, do que inversamente. Por isso não é proibido aos fiéis terem escravos infiéis. O senhor porém que correr perigo iminente, convivendo com tal escravo, deve despedi-lo, conforme à ordem de Deus: Se o teu pé te escandaliza, corta-o e lança fora de ti.
RESPOSTA AO ARGUMENTO CONTRÁRIO. – Essa ordem do Senhor se refere aos gentios, em cujas terras os judeus entraram; pois estes inclinados à idolatria, era de temer não perdessem a fé pela convivência continuada com aqueles. Por isso, no mesmo lugar se acrescenta: Porque ela seduzirá a teu filho para que me não siga.
O oitavo discute-se assim. – Parece que os infiéis de nenhum modo devem ser compelidos a aceitar a fé.
1. – Pois, diz o Evangelho, que os servos do pai de famílias, em cujo campo foi semeada a cisânia, perguntaram-lhe: Querer tu que nós vamos e a arranquemos? Ao que ele respondeu: Não, para que talvez não suceda que, arrancando a cisânia, arranqueis juntamente com ela também o trigo. E comenta Crisóstomo: Isto diz o Senhor para proibir que se perpetrem mortes. Nem se devem matar os heréticos, pois se o fizerdes, fareis, necessária e simultaneamente, desaparecer muitos santos. Logo, pela mesma razão, nenhum infiel deve ser obrigado a aceitar a fé.
2. Demais. – Uma Decretal diz: O santo Sinodo ordena, em seguida, que não se obrigue nenhum judeu a crer por força. Logo, pela mesma razão, nem os demais infiéis devem ser obrigados a aceitar a fé.
3. Demais. – Agostinho diz: tudo o homem pode, não querendo; menos crer, que só por vontade o quer. Ora, a vontade não pode ser obrigada. Logo, os infiéis não devem ser obrigados a aceitar a fé.
4. Demais. – A Escritura diz; da pessoa de Deus: Eu não quero a morte do pecador. Ora, nós devemos conformar a nossa com a vontade divina, como já se estabeleceu. Logo, também não devemos querer que os infiéis sejam condenados à morte.
Mas, em contrário, a Escritura: Sai por esses caminhos e cercos e força-os a entrar, para que fique cheia a minha casa. Ora, na casa de Deus, isto é, na santa Igreja, os homens entram pela fé. Logo, certos podem ser forçados a aceitá-la.
SOLUÇÃO. – Há certos infiéis, como os gentios e os judeus, que nunca receberam a fé; e esses de nenhum modo devem ser compelidos a crer, pois crer depende da vontade. Podem porém ser obrigados pelos fiéis, se estes tiverem poder para tal, a não lhes impedirem a fé, com blasfêmias, mas persuasões ou mesmo com perseguições francas. E por isso, os fiéis de Cristo movem frequentemente guerra aos infiéis; não pelos obrigar a crer, pois ainda que os tivessem vencidos e cativos deixar-lhes-iam a liberdade de quererem crer ou não; mas pelos compelir a não impedir a fé em Cristo. - Outro é o caso porém, dos infiéis, que outrora tiveram fé e ainda a confessam, como os heréticos e todos os apóstatas. E esses devem ser forçados, mesmo com violência física, a cumprir o que prometeram e a conservar o que uma vez receberam.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Pelo lugar citado, entenderam alguns ser proibido não, certo, a excomunhão, mas a morte dos heréticos, como é claro pelo passo citado de Crisóstomo. E Agostinho diz, de si: Minha primeira opinião era que não se deve forçar ninguém a fazer parte da unidade de Cristo, senão persuadindo com palavras e lutando com discussões. Mas esta minha opinião fica excluída, não pelas palavras dos que me contradizem, mas pelos fatos demonstrativos do contrário. Pois o terror das leis só serviu para levar muito a dizerem: Graças ao Senhor, que nos rompeu os vínculos. Quando, portanto, o Senhor diz: Deixai crescer uma e outra coisa até a ceifa - a sequência do texto mostra claramente como deve ser entendido: Para que talvez não suceda que, arrancando a cizânia, arranqueis juntamente com ela também o trigo. - Por onde suficientemente se mostra diz Agostinho que quando isto não se deve temer, isto é, quando os crimes de um são tão conhecidos e execrados por todos, que não acha nenhum defensor ou, pelo menos, defensor tal, que possa causar cisma, então não pode dormir a severidade da disciplina.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os judeus, que de nenhum modo receberam a fé, não devem ser forçados a aceitá-la. Os que, porém a receberam devem ser obrigados à força a conservar a fé, como se diz no mesmo capítulo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como prometer é próprio da vontade e cumprir o exige a necessidade, assim também, próprio da vontade é receber a fé, e, de outro lado, é imposição da necessidade conservar a fé já recebida. Por onde, os heréticos devem ser compelidos a conservar a fé. Pois, diz Agostinho: Porque costumavam este: a clamar - somos livre: de crer ou não? Contra quem Cristo empregou a força? - Saibam, pois, que Cristo forçou, primeiro, Paulo, e depois o ensinou.
RESPOSTA À QUARTA. – Como diz Agostinho na mesma Epistola, ninguém de nós quer que nenhum herético pereça. Mas a casa de Davi não pode ter paz senão pela morte do seu filho Absalão, na guerra que movia contra o Pai. Assim, a Igreja católica, se salva uns com a perdição de outros, cura a dor do coração materno com a libertação de tantos povos.
O sétimo discute-se assim. – Parece que não se deve disputar publicamente com os infiéis.
1. – Pois, diz o Apóstolo: Foge de contendas de palavras, que para nada aproveitam, senão para perverter os que as ouvem. Ora, não é possível disputar publicamente com os infiéis sem contenção de palavras. Logo, não se deve disputar publicamente com eles.
2. Demais. – A lei de Marciano Augusto, confirmada pelos cânone declara: Faz injúria ao juízo religiosíssimo do Sínodo quem alguma vez se puser a revolver o que já foi retamente julgado e disposto, e a disputar publicamente. Ora, tudo o que pertence à fé já foi determinado pelos sagrados concílios. Logo, gravemente peca, fazendo injúria aos sínodos, quem se puser publicamente a discutir o que é de fé.
3. Demais. – A disputa há de apoiar-se em argumentos. Ora, o argumento é um meio de convencer em matéria duvidosa. Mas, as verdades da fé, sendo certíssimas, não dão lugar à dúvida. Logo, sobre elas não se deve disputar publicamente.
Mas, em contrário, a Escritura diz: Saulo muito mais se esforçava, e confundia aos judeus: e falava com os gentios e disputava com os gregos.
SOLUÇÃO. – Duas coisas se devem distinguir nas discussões sobre a fé: uma relativa a quem discute; outra, aos ouvintes. – Relativamente aquele, é preciso que se lhe leve em conta a intenção. Se discutir, duvidando da fé e não lhe tendo como certas as verdades, que procura examinar por meio de argumentos, por certo peca, como dúbio na fé e infiel. Digno de louvor será, porém, se discutir sobre a fé para refutar erros, ou mesmo como exercício.
Relativamente aos ouvintes, devemos distinguir se os assistentes à discussão são instruídos e firmes na fé, ou se simples, e a tem vacilante. Pois certamente, nenhum perigo há em se discutir na presença de sábios e firmes na fé. Quanto aos simples, porém, é mister distinguir. Porque, ou são provocados e repelidos pelos infiéis, como os judeus, os heréticos ou os pagãos, que se esforçam por lhes corromper a fé; ou de nenhum modo são provocados, nessas questões, como nas terras onde não existem infiéis. - No primeiro caso, é necessário discutir sobre a fé publicamente, desde que se encontre quem seja idôneo e capaz para tal e possa refutar os erros. Pois assim, os simples na fé se fortalecerão e os infiéis ficarão privados do poder de enganar; e ao contrário, o fato mesmo de se calarem os que deviam se opor aos corruptores da verdade da fé seria confirmação do erro. Por isso, Gregório diz: Assim como falar incautamente incrementa o erro, assim o silêncio indiscreto abandona ao erro os que deviam ser ensinados. - No segundo caso porém, é perigoso disputar sobre a fé na presença dos simples, cuja crença é mais firme quando nada ouviram diverso daquilo que creem. Por isso não convém ouçam as palavras dos infiéis, que disputam contra a fé.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Apóstolo não proíbe totalmente a discussão, senão só a desordenada, que se faz, antes, pela contenção das palavras do que pela firmeza das expressões.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A lei citada proíbe à discussão pública sobre a fé, procedente de dúvidas relativamente a esta; não porém a que visa conservá-la.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Não se deve discutir sobre os artigos da fé, como duvidando deles; mas para manifestar-lhes a verdade e refutar os erros. Por isso é necessário, para a confirmação da fé, disputar às vezes com os infiéis; ora, defendendo a fé, conforme aquilo da Escritura: Sempre aparelhados para responder a todo o que vos pedir razão daquela esperança que há em vós. Ora, para convencer os errados, segundo ainda a Escritura: Para que passa exortar conforme à sã doutrina, e convencer aos que contradizem.
O sexto discute-se assim. – Parece que a infidelidade dos gentios ou dos pagãos é mais grave que as outras.
1. – Pois, assim como a doença corporal é tanto mais grave quanto mais contraria à saúde de um membro de maior importância, assim também o pecado é considerado tanto mais grave quanto mais contraria ao que é de maior importância para a virtude. Ora, o que há de principal na fé é crer na unidade divina, o que não fazem os infiéis. crendo em uma multidão de deuses. Logo, a infidelidade deles é gravíssima.
2. Demais. – A heresia de um herético é tanto mais detestável quanto mais contradiz a mais numerosas e importantes verdades da fé. Assim. a heresia de Ario, que privou da divindade, a pessoa do Filho de Deus, é mais detestável que a de Nestório, que privou, dessa pessoa, a humanidade de Cristo, Ora, os gentios afastam-se de verdades da fé mais numerosas e principais, que os judeus e os heréticos, porque não aceitam nada, absolutamente, da fé. Logo, a infidelidades deles é a mais grave de todas.
3. Demais. – Todo bem diminui o mal. Ora, há algum bem nos judeus, que confessam ter vindo de Deus o Antigo Testamento; e por outro lado, há bem nos heréticos, que veneram o Novo Testamento. Logo, pecam menos que os gentios, que detestam ambos os Testamentos.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Melhor lhes era não ter conhecido o caminho da justiça, do que, depois de o ter conhecido, tornar para trás. Ora, os gentios não conheceram o caminho da justiça; os heréticos e os judeus, por seu lado, de certo modo conhecendo-o, abandonaram-no. Logo, o pecado deles é mais grave.
SOLUÇÃO. – Na infidelidade, como já dissemos, duas coisas podem considerar-se. Uma é a sua relação com a fé. E por este lado, peca mais gravemente contra a fé quem se opõe à que já recebeu, do que quem se opõe à que ainda não recebeu; assim como peca mais gravemente quem não cumpre o que prometeu, do que quem não compre o que nunca prometeu.
E sendo assim, a infidelidade dos heréticos, que confessam a fé no Evangelho e se lhe opõem, corrompendo-a, é pecado mais grave que o dos judeus, que nunca receberam essa fé. Mas, como receberam a figura dela, na Lei Antiga, que corromperam, interpretando-a mal, por isso também a infidelidade deles é mais grave pecado que a dos gentios, que, de nenhum modo, receberam a fé no Evangelho. - Além disso, considera-se na infidelidade a corrupção do conteúdo da fé. E por este lado, como os gentios erram em relação a maior número de verdades, que os judeus, e os judeus, que os heréticos, mais grave é a infidelidade dos gentios que a dos judeus, e a destes que a dos heréticos; salvo a de alguns heréticos, como os Maniquuns, que, em relação às verdades da fé, erram ainda mais que os gentios. - Destas duas espécies de gravidades, porém, a primeira prepondera sobre a segunda, quanto ao que é essencialmente culpa. Pois, a culpa essencial a infidelidade consiste, sobretudo, como já se disse, em se opor à fé, mais do que em não lhe aceitar as verdades, porque isto, conforme já dissemos; (a.1), constitui, mais essencialmente, a pena. Por onde, absolutamente falando, a infidelidade dos heréticos é a péssima.
E daqui se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O quinto discute-se assim. – Parece que não há várias espécies de infidelidade.
1 – Pois, sendo a fé e a infidelidade contrárias, hão de ter o mesmo objeto. Ora, é o objeto formal da fé a verdade primeira, donde ela tira a sua unidade, embora recaia sobre muitas coisas materialmente. Logo, também o objeto da infidelidade é a verdade primeira.
Porém, aquilo em que o infiel não crê se inclui materialmente na infidelidade. Ora, a diferença específica se funda não em princípios materiais, mas, formais. Logo, não há diversas espécies de infidelidade, conforme aos diversos pontos em que os infiéis erram.
2. Demais. – De infinitos modos podemos nos desviar das verdades da fé. Se pois, conforme aos diversos erros, são diversas as espécies de infidelidade, resulta que estas espécies são infinitas. E portanto, não são susceptíveis de consideração.
3. Demais. – Uma mesma coisa não pode pertencer a espécies diversas. Ora, alguém pode ser infiel por errar em matérias diversas. Logo, a diversidade dos erros não acarreta as diversas espécies de infidelidade. Portanto, não há várias espécies de infidelidade.
Mas, em contrário, a cada virtude se opõem várias espécies de vícios; pois, o bem só se realiza de um modo, e o mal, ao contrário, de muitos, como se vê claramente em Dionísio e no Filósofo. Ora, é a fé uma virtude. Logo, a ela se lhe opõem muitas espécies de infidelidade.
SOLUÇÃO. – Toda virtude consiste na obediência a uma regra do conhecimento ou da ação humana, como se disse. Ora, em cada matéria, há um só modo de obedecer à regra; ao contrário, de muitos modos é possível desviar dela, e portanto, a uma virtude se opõem muitos vícios. Ora, a diversidade dos vícios, que se opõem a cada virtude, pode ser considerada à dupla luz. – Primeiro, quanto às suas relações diversas com a virtude. E então, há certas e determinadas espécies de vícios que se opõem a uma mesma virtude; assim, à virtude moral se opõe um vício, que peca contra ela por excesso, e outro, por defeito. – De outro modo, podemos considerar a diversidade dos vícios opostos a uma virtude, relativamente à corrupção das diversas circunstâncias exigidas pela virtude. E então, a uma mesma virtude, por exemplo, à temperança ou à fortaleza, opõem-se vícios infinitos, porque de infinitos modos podem corromper-se as diversas circunstâncias da virtude, e portanto dar-se o afastamento, da retidão da mesma. Por isso, os Pitagóricos ensinavam que o mal é infinito.
Por onde devemos dizer que, considerada a infidelidade relativamente ao fim, são diversas as espécies e determinado o número delas. Pois, a resistência à fé, que constitui o pecado da infidelidade, pode se dar de dois modos. Pois, ou se resiste à fé ainda não recebida, e essa é a infidelidade dos pagãos ou gentios. Ou se resiste à fé cristã já recebida, quer em figura, e tal é a infidelidade dos judeus; quer, na manifestação mesma da verdade, e tal é a dos heréticos. Por onde e em geral, podemos considerar como três as referidas espécies de infidelidade. - Se porém distinguirmos as espécies de infidelidade relativamente aos erros diversos em matéria de fé, então essas espécies não são determinadas, pois os erros podem multiplicar-se ao infinito, como se vê claramente em Agostinho.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A razão formal de um pecado pode ser considerada à dupla luz. Ou dependentemente da intenção do pecador, e nesse caso aquilo que ele busca é o objeto formal do pecado e lhe diversifica as espécies. Ou relativamente à noção do mal, e então o bem de que ele se afasta é o objeto formal do pecado. Mas isto não lhe dá a espécie, mas antes, a priva dela. Por onde devemos dizer, que o objeto da infidelidade é a verdade primeira, como aquilo de que ela se afasta; mas o seu objeto formal, como aquilo para o que se converte; é a ciência falsa que ela segue, e por este lado se lhe diversificam as espécies. Portanto, assim como a caridade é uma só, a que se une ao sumo bem; mas diversos os vícios a ela opostos não só por buscarem bens temporais diversos, afastando-se do sumo bem, mas, além disso, por causa das relações diversas desordenadas, para com Deus; assim também é a fé uma virtude só, por unir-se à verdade primeira única, ao passo que as espécies de infidelidade são muitas, por seguirem os infiéis opiniões falsas diversas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A objeção colhe quanto à distinção das espécies de infidelidade, relativamente aos pontos diversos em que se erra.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como é a fé uma só, porque crê em muitas verdades ordenadas a uma só, assim a infidelidade pode ser una, mesmo se errar em muitos pontos, enquanto todos estes se ordenam a um só. Nada porém impede que alguém erre, caindo em diversas espécies de infidelidade, assim como também pode um homem ser dominado por diversos vícios e sofrer diversas doenças do corpo.
O quarto discute-se assim. – Parece que toda ação do infiel é pecado.
1. – Pois, aquilo do Apóstolo - Tudo o que não é segundo a fé é pecado - diz a Glosa: Toda a vida dos infiéis é pecaminosa. Ora, à vida dos infiéis pertence tudo o que fazem. Logo, toda ação do infiel é pecado.
2. Demais. – A fé dirige a intenção. Ora, nenhum bem pode provir senão da intenção reta. Logo, os infiéis não podem praticar nenhuma boa ação.
3. Demais. – Corrupto o anterior, corrompido fica o posterior. Ora, o ato de fé precede os atos de todas as virtudes. Logo, não podendo os infiéis fazer ato de fé, nenhuma boa obra podem fazer e pecam em todas as que praticam.
Mas, em contrário, diz a Escritura, que Deus aceitou as esmolas que fez Cornélio, ainda infiel. Logo, nem toda ação do infiel é pecado, mas alguma pode dar boa.
SOLUÇÃO. – Como já se disse, o pecado mortal priva da graça santificante, mas não corrompe totalmente o bem da natureza. Por isso, sendo a infidelidade pecado mortal, os infiéis estão privados da graça; mas, neles permanece algum bem da natureza. Por onde é manifesto, que não podem praticar as boas obras dependentes da graça e as meritórias. Mas podem, de algum modo, praticar as boas obras para que basta o bem da natureza. Por onde, não pecam necessariamente em tudo o que fazem. Mas sempre que fazem alguma obra procedente da infidelidade, então pecam. Pois assim como o que tem a fé pode pecar, venial ou mesmo mortalmente, praticando um ato que não se coaduna com o fim da fé; assim também pode o infiel praticar um ato bom qualquer, que não se coaduna com o fim da infidelidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O lugar citado é possível entendê-la como significando, que a vida dos infiéis não pode ser sem pecado, desde que sem fé os pecados não podem ser eliminados; ou que tudo o que fazem por infidelidade é pecado. Por isso, no mesmo lugar se acrescenta: Porque todo o que vive ou age na infidelidade peca veementemente.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A fé rege a intenção relativamente ao fim último sobrenatural. Mas, também o lume da razão natural pode dirigir a intenção relativamente a qualquer bem que lhe seja conatural.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A infidelidade não corrompe totalmente a razão natural dos infiéis, de modo a privá-los de qualquer conhecimento da verdade, pela qual podem praticar certas obras genericamente boas. Quanto a Cornélio, importa saber que não era infiel; do contrário, Deus, a quem ninguém pode agradecer sem a fé, não lhe aceitaria o ato. Pois tinha fé implícita, ainda não manifestada pela verdade do Evangelho. Por isso foi-lhe mandado Pedro, afim de instrui-lo mais plenamente na fé.