Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. – Parece que são inconvenientemente assinaladas seis espécies de pecado contra o Espírito Santo: desespero, presunção, impenitência, obstinação, impugnação da verdade conhecida e a inveja da graça fraterna. Essas espécies são as que dá o Mestre das Sentenças.
1. – Pois, negar a divina justiça ou a misericórdia é próprio da infidelidade. Ora, pelo desespero, rejeitamos a divina misericórdia, e pela presunção, a divina justiça. Logo, cada uma das espécies de pecado supra-referidas é, antes, espécie de infidelidade que de pecado contra o Espírito Santo.
2. Demais. – A impenitência diz respeito ao pecado passado, e a obstinação, ao futuro. Ora, o passado ou o futuro não diversificam espécies de virtudes ou de vícios; pois, pela mesma fé cremos que Cristo nasceu que havia de nascer. Logo, a obstinação e a impenitência não devem ser consideradas espécies de pecado contra o Espírito Santo.
3. Demais. – A graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo, diz a Escritura . Logo, a impugnação da verdade conhecida e a inveja da graça fraterna se incluem antes na blasfêmia contra o Filho do homem do que na contrária ao Espírito Santo.
4. Demais. – Bernardo diz: não querer obedecer é resistir ao Espírito Santo. E a Glosa também diz que a penitência simulada é blasfêmia contra o Espírito Santo. E por seu lado, o cisma se opõe diretamente ao Espírito Santo, que opera a união da Igreja. Donde resulta que não estão suficientemente estabelecidas as espécies de pecado contra o Espírito Santo.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que os que desesperam do perdão dos pecados, ou os que, sem méritos, presumem da misericórdia de Deus, pecam contra o Espírito Santo. E ainda quem morre na obstinação do coração é réu de pecado contra o Espírito Santo. E noutra obra afirma que a impenitência é pecado contra o Espírito Santo. E noutra: lesar a um nosso irmão com olhos invejosos é pecado contra o Espírito Santo. E ainda quem despreza a verdade é maldoso para com os irmãos a quem a verdade foi revelada, ou ingrato para com Deus, cuja inspiração dirige a Igreja, pecam todos, assim, contra o Espírito Santo.
SOLUÇÃO. – Tomado o pecado contra o Espírito Santo na terceira acepção, as seis espécies referidas estão convenientemente enumeradas; pois, distinguem-se umas das outras pela rejeição ou desprezo dos meios que podem livrar o homem de cair no pecado. E essas dependem do juízo divino, ou dos dons de Deus, ou ainda do próprio pecado.
Assim, o homem se livra de cair no pecado considerando no juízo divino, que aplica a justiça juntamente com a misericórdia. E isto pela esperança, fundada na consideração da misericórdia, que perdoa os pecados e premia as boas obras; ora, a esperança é eliminada pelo desespero. Depois, pelo temor, fundado na consideração da divina justiça, que pune os pecados, e que é totalmente eliminado pela presunção, que nos faz presumir podermos alcançar a glória, sem méritos e mesmo sem penitência.
Por outro lado, os dons de Deus, que perdemos pelo pecado, são dois. Um é o conhecimento da verdade, contrariado pela impugnação da verdade conhecida, pela qual negamos a verdade conhecida para pecarmos mais livremente. Outro é o auxílio da graça interior, contrariado pela inveja da graça fraterna, que nos leva a invejar não somente a pessoa de nosso irmão, mas ainda o aumento da graça de Deus, no mundo.
Quanto ao pecado, por fim, duas são as causas que podem dele livrar o homem. Uma é a desordem e a torpeza do ato, cuja consideração de ordinário leva o homem à penitência do pecado cometido. E isto é contrariado pela impenitência. Porém a impenitência aqui, não é tomada na mesma acepção de antes, como sendo a obstinação no pecado até a morte, pois nesse sentido não constituiria um pecado especial, mas uma circunstância do pecado. Mas é tomada no sentido de implicar o propósito de não se arrepender. Em segundo lugar, está a mesquinhesa e a brevidade do bem que, pelo pecado, buscamos, conforme aquilo da Escritura: Que fruto, pois, tivestes então naquelas causas, de que agora vos envergonhais? E essa consideração de ordinário leva o homem a não firmar a sua vontade no pecado. Mas ela fica eliminada pela obstinação, que o faz firmar o propósito, apegando-se ao pecado. E destas duas coisas fala a Escritura. Da primeira: Nenhum há que faça penitência do seu pecado, dizendo: Que fiz eu? Da segunda: Todos voltam para onde a sua paixão os leva, como um cavalo que corre a toda a brida para o combate.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O pecado do desespero ou da presunção não consiste em não crermos na justiça ou na misericórdia de Deus, mas em desprezá-las.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A obstinação e a impenitência não diferem só pelo passado e pelo futuro, mas por certas razões formais, fundadas nas considerações diversas dos elementos que podemos levar em canta no pecado, como já foi dito.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Cristo manifestou a graça e a verdade pelos dons do Espírito Santo, que deu aos homens.
RESPOSTA À QUARTA. – Não querer obedecer é próprio da obstinação; a simulação da penitência, da impenitência: o cisma, do invejar a graça fraterna, que une os membros da Igreja.
O primeiro discute-se assim. – Parece que o pecado contra o Espírito Santo não é o mesmo que o pecado de pura malícia.
1. – Pois, o pecado contra o Espírito Santo é o de blasfêmia, como se lê na Escritura. Ora, nem todo pecado de pura malícia é pecado de blasfêmia, pois, além deste, podemos cometer muitos outros pecados sem essa malícia. Logo, o pecado contra o Espírito Santo não é de pura malícia.
2. Demais. – O pecado por malícia certa divide-se, por oposição, dos pecados por ignorância e por fraqueza. Ora, o pecado contra o Espírito Santo divide-se, por oposição, do pecado contra o Filho do homem, como está claro na Escritura. Logo, o pecado contra o Espírito Santo não é o mesmo que o por pura malícia; porque coisas, cujos contrários são diversos, são também diversas entre si.
3. Demais. – O pecado contra o Espírito Santo é um gênero de pecado, que tem as suas espécies determinadas. Ora, o pecado de pura malícia não é um gênero especial de pecado, mas uma certa condição ou circunstância geral, que pode ser relativa a todos os gêneros de pecado. Logo, o pecado contra o Espírito Santo não é o mesmo que o de pura malícia.
Mas, em contrário, diz o Mestre das Sentenças, que o pecado contra o Espírito Santo é aquele cuja malicia por si mesma nos aprazo Ora, isto é pecar por pura malícia. Logo, o pecado de pura malícia é o mesmo que o pecado contra o Espírito Santo.
SOLUÇÃO. - Ha três opiniões sobre o pecado ou blasfêmia contra o Espírito Santo.
Assim, os antigos Doutores - Atanásio, Hilário, Ambrósio, Jerônimo e Crisóstomo dizem que há pecado contra o Espírito Santo, quando contra Ele se profere, literalmente, uma blasfêmia. Quer se considere o Espírito Santo como um nome essencial próprio de toda a Trindade, cada Pessoa da qual é espírito e é santo; quer como nome pessoal de uma das Pessoas da Trindade. E assim, a Escritura distingue a blasfêmia contra o Espírito Santo, da que vai contra o Filho do homem. Pois Cristo, enquanto, homem, praticava certos atos, como, comer, beber, e outros semelhantes. Mas também praticava outros como Deus; assim, quando expulsava os demônios, ressuscitava os mortos e outros tais. E estes os praticava por virtude da divindade própria e por obra do Espírito Santo, do qual tinha a sua humanidade a plenitude. Ora, os judeus, primeiro, blasfemaram contra o Filho do homem, chamando-lhe glutão, bebedor de pinho e amigo dos publicanos, como se lê na Escritura. Mas depois blasfemaram contra o Espírito Santo, atribuindo ao príncipe dos demônios as obras que ele fazia por virtude da divindade própria e por operação do Espírito Santo. E por isso diz-se que blasfemaram contra o Espírito Santo.
Agostinho, por seu lado, diz que a blasfêmia ou pecado contra o Espírito Santo é a impenitência final, consistente em perseverar no pecado mortal até a morte. O que se dá não só por palavra da boca, mas também, da mente, e das obras, não uma só, senão muitas. Tais palavras, pois, assim entendidas, consideram-se como contrárias ao Espírito Santo, por serem contra a remissão dos pecados, operada por esse Espírito, que é a caridade do Pai e do Filho. E nem o Senhor disse aos judeus que eles pecaram contra o Espírito Santo pois ainda não tinham caído na impenitência final; mas lhes advertiu que não fossem, continuando a falar como o faziam, a cometer o pecado contra tal Espírito. E esse é o sentido em que se deve entender o lugar da Escritura, onde, depois de o Evangelista ter dito - Mas o que blasfemar contra o Espírito Santo, etc. - acrescenta: Porquanto diziam: Está possesso do Espírito imundo. Outros porém são de opinião diferente e dizem que o pecado ou blasfêmia contra o Espírito Santo consiste em pecar contra o bem próprio d'Ele; pois a Ele é própria a bondade, como ao Pai, o poder, e ao Filho, a sabedoria. Por onde, o pecado contra o Pai consideram-no como pecado por fraqueza; o contrário ao Filho, por ignorância; e o que é contra o Espírito Santo, por pura malícia, isto é, pela eleição do mal, como já expusemos. E isto pode se dar de dois modos. Primeiro, por inclinação de um hábito vicioso, chamado malícia; e portanto pecar por malícia não é o mesmo que pecar contra o Espírito Santo. De outro modo, esse pecado pode ser cometido quando, por desprezo, rejeitamos e pomos de lado o que podia impedir a eleição do pecado; assim, quando rejeitamos a esperança, pelo desespero; o temor, pela presunção e procedemos de modos semelhantes, como a seguir se dirá. Ora, todos esses recursos que impedem a eleição do pecado, são efeitos do Espírito Santo em nós. Por onde, pecar assim, por malícia, é pecar contra o Espírito Santo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Assim como a confissão da fé consiste não só em afirmações orais, mas também nas das obras; assim, a blasfêmia contra o Espírito Santo pode ser considerada enquanto expressa pela boca, pela mente e pelas obras.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Na terceira acepção, a blasfêmia contra o Espírito Santo se distingue da que é contra o Filho do homem, por ser o Filho do homem também filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus. Por onde, o pecado contra o Filho do homem será pecado de ignorância ou de fraqueza.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O pecado de pura malícia, quando proveniente de uma inclinação habitual, não é pecado especial, mas uma condição geral do pecado. Quando porém o cometemos por um desprezo especial do efeito do Espírito Santo em nós, constitui essencialmente um pecado especial. E a esta luz, também o pecado contra o Espírito Santo é um gênero especial de pecado. E do mesmo modo, quanto à primeira acepção. Mas quanto à segunda, não é um gênero especial de pecado; pois, a impenitência final pode ser circunstância de qualquer gênero de pecado.
O quarto discute-se assim. – Parece que os condenados não blasfemam.
1. – Pois, certas pessoas más abstêm-se de blasfemar, por medo das penas futuras. Ora, os condenados sofrem essas penas, e por isso mais as aborrecem. Logo e com maior razão são impedidos de blasfemar.
2. Demais. – A blasfêmia, sendo o gravíssimo dos pecados, é o mais demeritório. Ora, na vida futura já não é possível merecer nem desmerecer. Logo, não haverá possibilidade da blasfêmia.
3. Demais. – A Escritura diz: Em qualquer lugar onde a árvore cair, ai ficará. Por onde é claro, que depois desta vida o homem não terá outro mérito nem outro pecado, além do que nela teve. Ora, muitos serão condenados, que nesta vida não foram blasfemos. Logo, também não blasfemarão na vida futura.
Mas, em contrário, a Escritura: Os homens se abrasaram com um calor devorante e blasfemaram o nome de Deus, que tem poder sobre estas praças, Ao que diz a Glosa: Os que estão no inferno, embora saibam que merecem o castiço, que sofrem, aborrecem contudo, o poder tão grande que Deus tem de castigá-lo. Ora, isto já seria blasfêmia nesta vida; logo, também na futura.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a blasfêmia consiste essencialmente em detestar a bondade divina. Ora, os que estão no inferno conservam a vontade perversa, divorciada da justiça de Deus; por amarem os pecados por que são punidos, quereriam cometê-los de novo, se o pudessem, e odeiam as penas que, por esses pecados lhes são infligidas, Arrependem-se também contudo, de tais pecados cometidos, não pelos odiarem, mas por serem punidos por causa deles. Por onde, há no íntimo do coração deles a blasfêmia, consistente nesse detestar a divina bondade. E é de crer, que depois da ressurreição blasfemarão vocalmente, assim como, vocalmente, os santos louvarão a Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os homens abstêm-se, nesta vida, da blasfêmia, pelo temor das penas de que presumem livrar-se. Ora, os condenados, no inferno, não têm esperança de virem a livrar-se. Por onde, como desesperados, são levados a tudo o que lhes sugere a vontade perversa.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Só nesta vida podemos merecer e desmerecer; por isso, durante ela, os nossos bons atos são meritórios e os maus, demeritórios. Dos bem-aventurados, porém, os bens não são meritórios, mas lhes pertencem ao prêmio da bem-aventurança. Do mesmo modo, os males dos condenados não lhes são demeritórios, mas lhes pertencem à pena da condenação.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem morre em estado de pecado mortal conserva, de certo modo, a vontade de detestar a divina justiça. E por aí pode ser susceptível de blasfêmia.
O terceiro discute-se assim. – Parece que o pecado de blasfêmia não é o maior dos pecados.
1. – Pois, chama-se mal o que é nocivo, segundo Agostinho. Ora, ê mais nocivo o pecado de homicídio, que priva o homem da vida, que o da blasfêmia, que nenhum dano pode causar a Deus. Logo, o pecado de homicídio é mais grave que o da blasfêmia.
2. Demais. – Quem perjura toma a Deus como testemunha da falsidade, e portanto afirma que Ele é falso. Ora, nem todo blasfemo vai até a afirmar que Deus é falso. Logo, o perjúrio é mais grave pecado que a blasfêmia.
3. Demais. – Àquilo da Escritura - Não queirais levantar ao alto vosso poder - diz a Glosa: O maior vício é o de desculpar o pecado. Logo, não é a blasfêmia o máximo pecado.
Mas, em contrário, àquilo da Escritura – A um povo terrível, etc., diz a Glosa: Todo pecado, comparado com a blasfêmia, é leve.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos, a blasfêmia se opõe à confissão da fé. Por onde, implica a graveza da infidelidade; ficando este pecado mais grave, se for acompanhado da aversão da vontade; e ainda mais, se se prorromper em palavras; assim como, por seu lado, também o louvor da fé aumenta pelo amor e pela confissão. Portanto, sendo a infidelidade o máximo pecado, genericamente, como já dissemos, resulta, por consequência, que também a blasfêmia é o máximo pecado, pertencente que é ao mesmo gênero, e agravando a infidelidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Comparados os objetos, é manifesto que a blasfêmia, pecado que vai diretamente contra Deus, é mais grave que o pecado de homicídio, que atinge o próximo. Comparados, porém os seus efeitos danosos, o homicídio é mais grave, por mais danoso ao próximo, que a blasfêmia, a Deus. Ora, na gravidade da culpa se atende mais à intenção da vontade perversa, que ao efeito do ato, como do sobredito resulta. Por onde, sendo intenção do blasfemo causar dano à honra divina, peca, absolutamente falando, mais gravemente que o homicida. Contudo, entre os pecados cometidos contra o próximo, o homicídio ocupa o primeiro lugar.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Aquilo da Escritura a blasfêmia seja desterrada dentre vós - diz a Glosa: é pior blasfemar que perjurar. Pois, o perjuro não diz nem sente, como o blasfemo, nada de falso sobre Deus; mas toma a Deus por testemunha da falsidade; não por julgar que Deus é testemunha falsa, mas esperando que Deus não testemunhe o contrário por algum sinal evidente.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Desculpar o pecado é uma circunstância que agrava todo pecado, inclusive o da blasfêmia. Por isso, é considerada o máximo pecado, por tornar os outros maiores.
O primeiro discute-se assim. - Parece que a blasfêmia não se opõe à confissão da fé.
1. – Pois, blasfemar é assacar uma injúria ou um insulto contra o Criador. Ora, isso implica antes malevolência contra Deus, que infidelidade. Logo, a blasfêmia não se opõe à confissão da fé.
2. Demais. – Aquilo da Escritura - a blasfêmia seja desterrada dentre vós - diz a Glosa: a que é dirigida contra Deus ou os santos. Ora, a confissão da fé não se refere senão ao concernente a Deus, objeto da fé. Logo a blasfêmia nem sempre se opõe à confissão da fé.
3. Demais. – Certos dizem que há três espécies de blasfêmias. Uma atribui a Deus o que lhe não convém; outra dele remove o que lhe convém; a terceira atribui à criatura o que só é próprio de Deus. Por onde, a blasfêmia não é relativa só a Deus, mas também às criaturas. Ora, a fé tem Deus como objeto. Logo, a blasfêmia não se opõe à confissão da fé.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo: Antes fui blasfemo e injuriador; e acrescenta: Fi-lo por ignorância na incredulidade. Donde se colhe que a blasfêmia se inclui a incredulidade.
SOLUÇÃO. – A blasfêmia, por denominação, implica um certo detrimento à excelência da bondade, sobretudo da divina. Ora, Deus, como diz Dionísio é a bondade mesma essencial. Por onde tudo o que convém a Deus pertence-lhe à bondade; e tudo o que não lhe pertence muito longe está da essência da bondade perfeita que é a sua essência. Portanto, negar o que convém a Deus ou atribuir-lhe o que lhe não convém é em detrimento da sua bondade. E isto pode se dar de dois modos: ou só por afirmação da inteligência, ou de mistura com uma detestação afetiva; assim como, ao contrário, a fé em Deus se aperfeiçoa pelo amor do mesmo. Logo, esse detrimento à bondade divina é por obra só do intelecto, ou também do afeto. Se residir só na inteligência é blasfêmia mental. Se porém se manifestar exteriormente pela palavra, a blasfêmia será por palavras. E deste modo a blasfêmia se opõe à confissão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quem fala contra Deus, com intenção de injuriá-lo ofende a bondade divina, não só quanto à verdade do intelecto, mas também pela pravidade da vontade, que detesta e abate quanto lhe é possível, a honra divina. O que constitui a blasfêmia perfeita.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como Deus é louvado nos seus santos, enquanto são louvadas as obras que neles realizou; assim a blasfêmia dirigida contra eles redunda para. Deus, por via de consequência.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Por esse tríplice critério não se podem propriamente falando, distinguir as diversas espécies de pecado de blasfêmia. Pois, atribuir a Deus o que lhe convém não difere, senão por ser uma afirmação, de remover dele o que lhe convém, que é uma negação. Ora, essa diversidade não distingue as espécies de hábito; pois, pela mesma ciência conhecemos a falsidade das afirmações e das negações; e pela mesma ignorância erramos de um e de outro modo; porque a nega ão se prova pela afirmação, como diz Aristóteles: Ora, atribuir às criaturas o que é próprio de Deus implica em lhe atribuir o que lhe não convém; pois, o que é próprio de Deus é Deus mesmo. Logo, atribuir a uma criatura o que é próprio só de Deus, é igualar Deus, em si mesmo, à criatura.
O segundo discute-se assim. – Parece que o príncipe, por apostasia da fé, não perde o governo dos súditos, que continuam obrigados a lhe obedecer.
1. – Pois, diz Ambrósio: Juliano imperador, embora apostata, governava soldados cristãos, e quando lhes dizia - Preparai um exército para a defesa da república - eles lhe obedeciam. Logo, por apostasia do príncipe, os súditos não ficam desligados do seu governo.
2. Demais. – O apóstata da fé é infiel. Ora, houve certos varões santos que serviram fielmente a senhores infiéis, como José, o Faraó; Daniel, a Nabucodonosor e Mardoqueu, a Assuero. Logo, por apostasia da fé, não se pode permitir deixe o príncipe de ser obedecido pelos súditos.
3. Demais. – Tanto a apostasia, como qualquer pecado, faz afastarmo-nos de Deus. Se, pois, por apostasia da fé, os príncipes perdessem o direito de governar súditos fiéis, pela mesma razão o perderiam por causa de outros pecados. Ora, isto é claramente falso. Logo, por apostasia da fé, não devem deixar de lhes obedecer.
Mas, em contrário, Gregório: Nós, observando o que foi estatuído pelos nossos santos predecessores, desligamos, pela nossa autoridade apostólica, do juramento, aqueles que são dependentes de excomungados por fidelidade ou pela santidade do que juraram e proibimos de lodos os modos lhes guardem fidelidade, até virem a dar satisfação. Ora, os apóstatas da fé são excomungados, bem como os heréticos, segundo diz uma Decretal. Logo, não devem os súditos obedecer aos príncipes apóstatas da fé.
SOLUÇÃO. – Como já dissemos a infidelidade em si mesma não exclui o governo. Pois este foi introduzido pelo direito das gentes, que é um direito humano; ao passo que a distinção entre fiéis e infiéis é fundada no direito divino, que não exclui o direito humano. Ora, quem peca por infidelidade pode perder o direito de governar, em virtude de uma sentença, assim como pode também perdê-lo, outras vezes, por outras culpas. A Igreja, porém, não pertence punir a infidelidade dos que nunca receberam a fé, conforme à palavra do Apóstolo: Que me vai a mim em julgar daqueles que estão fora? Mas a infidelidade dos que a receberam pode ser punida por uma sentença. Assim, os chefes são convenientemente punidos, sendo proibidos de continuar a governar súditos fiéis. Pois, tal governo poderia causar grande detrimento à fé, porque, como se disse, o homem apóstata com depravado coração maquina o mal e semeia distúrbios, visando separar os homens da fé. Por onde, logo que, por sentença, alguém é declarado excomungado, por apostasia da fé, por isso mesmo os seus súbditos são-lhe desligados do governo e do juramento de fidelidade, que a ele os ligava.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – No tempo em questão a Igreja, ainda recente, não tinha o poder de reprimir os príncipes terrenos. Por isso, tolerava que os fiéis obedecessem a Juliano o Apóstata, no que não era contrário à fé, para evitar que esta corresse maiores perigos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – É diferente a situação dos outros infiéis, que nunca receberam a fé, como se disse.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A apostasia da fé separa totalmente o homem de Deus, como se disse, o que não se dá com certos outros pecados.
O primeiro discute-se assim. – Parece que a apostasia não pertence à infidelidade.
1. – Pois, o que é considerado como princípio de todo pecado não pode pertencer à infidelidade, porque, além desta, existem muitos outros pecados. Ora, a apostasia é considerada o princípio de muitos pecados, conforme a Escritura: O princípio da soberba do homem é apostatar de Deus, e em seguida acrescenta: O princípio de todo pecado é a soberba. Logo, a apostasia não pertence à infidelidade.
2. Demais. – A infidelidade reside no intelecto. Ora, a apostasia consiste, mais, em obras externas, em palavras, ou mesmo na vontade interior. Pois, diz a Escritura: O homem apostata é um homem inútil; caminha com boca perversa; faz sinais com os olhos, bate com o pé, fala com os dedos, com depravado coração maquina o mal, e em todo o tempo semeia distúrbios. E ainda, quem se circuncidasse ou adorasse o sepulcro de Maomé seria considerado apóstata. Logo, a apostasia não pertence diretamente à infidelidade.
3. Demais. – A heresia pertence à infidelidade, da qual é uma determinada espécie. Ora, se a apostasia pertencesse à infidelidade, seguir-se-ia que é dela uma determinada espécie e contudo não o é, segundo o que já se disse. Logo, a apostasia não pertence à infidelidade.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Muitos dos seus discípulos tornaram-se atrás, o que é apostatar: e deles já antes o Senhor dissera: Há alguns de vós outros que não creem. Logo, a apostasia pertence à infidelidade.
SOLUÇÃO. – A apostasia implica a renegação de Deus, o que pode dar-se de diversos modos, segundo os modos diversos pelos quais o homem se une a Deus. Ora, o homem se une a Deus, primeiro, pela fé; segundo, pela vontade devida e sujeita a lhe obedecer aos preceitos; terceiro, por certos estados especiais e superrogatórios, como, o da religião, de clericatura ou ordens sacras. Ora, removido o posterior, removido fica o anterior, mas não inversamente. Por onde, pode alguém aposta tal de Deus, renegando a religião que professava ou a ordem que recebeu; e a esta se chama apostasia da ordem ou da religião. Mas alguém também pode aposta tal de Deus, pela mente, que repugna aos mandamentos divinos. Apesar, porém, dessas duas apostasias, o homem ainda pode continuar unido a Deus pela fé. Mas, se a abandonar, então separa-se completamente de Deus. Por onde, a simples e absoluta apostasia é aquela pela qual alguém abandona a fé, e a essa apostasia se chama perfídia. E neste sentido, a apostasia absolutamente considerada pertence à infidelidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A objeção colhe; quanto à segunda forma da apostasia, que implica o rompimento da vontade com os mandamentos de Deus e que existe em todo pecado mortal.
RESPOSTA À SEGUNDA. – À fé implica não só a convicção íntima, mas ainda a declaração interna manifestada por palavras e obras externas; pois a confissão é um ato de fé. E também, deste modo, certas palavras externas ou obras podem implicar a infidelidade, enquanto sinais desta, no mesmo sentido em que se diz que estar são é sinal da saúde. E embora o lugar citado possa ser entendido de toda apostasia, convém entretanto, do modo mais verdadeiro, ao apóstata da fé. Pois, é a fé a substância das causas que se devem esperar, e sem fé é impossível agradar a Deus. Por onde, perdida ela, nada mais tem o homem de útil à salvação eterna. E por isso diz a Escritura: O homem apóstata é um homem inútil. Ao contrário, é a fé a vida da alma, conforme aquilo do Apóstolo: O justo vive da fé! Por onde, assim como, perdida a vida do corpo, todos os membros e partes do homem perdem a disposição devida, assim também, perdida a vida da justiça, que vem da fé, surge a desordem em todos os membros. E, primeiro, na boca, por onde sobretudo se manifesta o pensamento; depois, nos olhos; em terceiro lugar, nos órgãos do movimento; em quarto, na vontade, que tende para o mal. Donde se segue, que o apóstata semeia distúrbios, visando separar os outros dá fé, como ele próprio se separou.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As espécies ele uma qualidade ou forma não se diversificam pelo termo de origem ou de chegada do movimento. Mas antes ao inverso, as espécies do movimento dependem dos termos. Ora, a apostasia respeita a infidelidade, como o termo final para que tende o movimento de quem abandona a fé. Por onde, não implica uma espécie determinada de infidelidade, senão uma certa circunstância agravante, conforme aquilo da Escritura. Melhor lhes era não ter conhecido a verdade do que, depois de a ter conhecido, tornar atrás.
O quarto discute-se assim. – Parece que os convertidos da heresia devem, absolutamente, ser recebidos pela Igreja.
1. – Pois, diz a Escritura, falando da pessoa do Senhor: Tu te tens prostituído a muitos amadores; ainda assim, torna para mim, diz o Senhor: Ora o juízo da Igreja é o juízo de Deus, conforme outro lugar da Escritura: Do mesmo modo ouvireis o pequeno que o grande, nem tereis acepção de pessoa alguma, porque este é o juízo de Deus. Logo, os que fornicarem por infidelidade, que é a fornicação espiritual, nem por isso devem deixar de ser recebidos pela Igreja.
2. Demais. – O Senhor manda a Pedro perdoar ao irmão que peca não só sete vezes, mas até setenta vezes sete vezes. O que quer dizer, segundo a interpretação de Jerônimo (a este lugar), que devemos perdoar tantas quantas vezes alguém pecar. Logo, tantas vezes quantas alguém pecar, caindo em heresia, deve ser recebido pela Igreja.
3. Demais. – A heresia é uma espécie de infidelidade. Ora, os outros infiéis, querendo converter-se, serão recebidos pela Igreja: Logo, também os heréticos devem sê-lo,
Mas, em contrário, diz uma Decretal: Os que, depois da abjuração do erro, vierem a reincidir na heresia abjurada, devem ser entregues ao juízo secular. Logo, não devem ser recebidos pela Igreja.
SOLUÇÃO. – Segundo a instituição do Senhor, a Igreja estende a sua caridade a todos, não só aos amigos, mas também, aos inimigos e perseguidores, conforme aquilo da Escritura: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos tem ódio. Ora, a caridade exige queiramos e façamos bem ao próximo; e este bem pode ser de duas espécies. – Um, espiritual, que é a salvação da alma, fim principal da caridade; pois, pela caridade, devemos querer esse bem aos outros. Por onde, neste ponto, os heréticos, convertendo-se, tantas vezes quantas tiverem caído, são recebidos pela Igreja afim de fazerem penitência, que os porá de novo no caminho da salvação. – Mas, a caridade também visa, secundariamente, outro bem, que é o temporal, como, a vida corpórea, a posse de bens materiais, a boa fama, a dignidade eclesiástica ou secular. Pois, a caridade não nos obriga a querer esses bens aos outros, senão para o fim da salvação deles. Por onde, se alguém, possuindo qualquer desses bens, vier a impedir a salvação eterna de muitos, a caridade não exige que lhe queiramos, mas ao contrário, que queiramos seja privado deles, porque a salvação eterna deve preferir aos bens temporais; ou porque o bem de muitos deve preferir ao de um só. Se portanto os heréticos, sempre que voltassem fossem recebidos, de modo a lhes ser conservada a vida e os demais bens temporais, daí podia resultar perigo para a salvação dos outros. Quer pelos contaminarem, se viessem a recair; quer também porque, se nenhuma pena sofressem tornariam a cair mais seguramente na heresia. Porquanto, como diz a Escritura o não se proferir logo sentença contra os maus é causa de cometerem os filhos dos homens crimes sem temor algum. Por isso a Igreja, primeiro, não só recebe, para fazerem penitência, os que voltam da heresia, mas ainda lhes conserva a vida. E às vezes restitui-os por dispensa, às dignidades eclesiásticas, que antes tinham, se os considerar como deveras convertidos. E lemos que isto foi frequentemente feito, para conservar a paz. Mas, considera prova de inconstância na fé se, depois de recebidos, vierem de novo a cair. Por isso, ulteriormente, os que voltam são recebidos, por certo, para fazerem penitência; não porém para serem libertados da sentença de morte.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os que voltam são sempre recebidos, no juízo de Deus, por ser Deus o verdadeiro perscrutador dos corações e conhecer os que verdadeiramente voltam. Mas isso a Igreja não pode imitar. Daí o presumir que não voltam verdadeiramente os que, depois de recebidos, de novo vieram a cair. Por onde, sem lhes trancar a via da salvação, não os livra do perigo da morte.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O Senhor fala com Pedro sobre o pecado cometido contra este, que devia ser sempre perdoado, de modo a se compadecer do irmão arrependido. Isso porém, não se aplica ao pecado cometido contra o próximo ou contra Deus, que não está em nosso arbítrio perdoar, como diz Jerônimo. Pois, neste caso, o modo de perdoar foi estatuído pela lei, conforme o exige a honra de Deus e a utilidade do próximo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os outros infiéis, que nunca receberam a fé, quando convertidos a ela, não mostram nenhum sinal de inconstância, relativamente à mesma, como o fazem os heréticos relapsos. Logo, o caso não é o mesmo.
O terceiro discute-se assim. – Parece que se devem tolerar os heréticos.
1. – Pois, diz o Apóstolo. É necessário que o servo do Senhor seja manso, corrija com modéstia aos que resistem à verdade, na esperança de que poderá Deus algum dia dar-lhe o dom da penitência para Lhe fazer conhecer a verdade, e que raiam dos laços do diabo. Ora, se os heréticos não forem tolerados, mas condenados à morte, tirar-se-lhes-á a faculdade de fazerem penitência. Logo, esse proceder encontra o preceito do Apóstolo.
2. Demais. – O necessário à Igreja deve ser tolerado. Ora, à Igreja são necessárias as heresias, no dizer do Apóstolo: É necessário que haja heresias, para que também os que são provados fiquem manifestos entre heréticos devem ser tolerados.
3. Demais. – O Senhor mandou que os seus servos deixassem crescer a cizânia até a messe, que é o fim do mundo, como nesse mesmo lugar se diz. Ora, a cizânia significa os heréticos, conforme a interpretação dos Santos Padres. Logo, devem-se tolerar os heréticos.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Foge do homem hereje depois da primeira correção, sabendo que o que é tal está pervertido.
SOLUÇÃO. – Os heréticos devem ser considerados à dupla luz: em si mesmos e em relação à Igreja.
Em si mesmos, estão em estado de pecado, pelo que merecem ser separados por excomunhão, não só da Igreja, mas também, do mundo, pela morte. Pois, é muito mais grave perverter a fé, vida da alma, do que falsificar o dinheiro, ajuda da vida temporal. Ora, se os príncipes seculares logo condenam justamente à morte os falsificadores de moedas ou outros malfeitores, com maior razão os heréticos, desde que são convencidos de heresia, podem logo ser, não só excomungados, mas também justamente condenados à morte.
A Igreja porém usa de misericórdia, para obter a conversão dos errados. Por isso, não condena imediatamente, senão só depois da primeira e segunda correção; como ensina o Apóstolo. Se porém depois disso, permanecer o herético pertinaz, a Igreja, não mais lhe esperando a conversão, provê à salvação dos outros, separando-o do seu grêmio por sentença de excomunhão. E ulteriormente, abandona-o ao juízo secular para exterminá-lo do mundo pela morte. Pois, diz Jerônimo: Devem ser cortadas as carnes pútridas e a ovelha sarnenta deve ser separada do redil, afim de que toda a cara, a massa, o corpo e o rebanho não ardam, corrompamse, apodreçam e morram: Ario em Alexandria foi uma centelha; mas, por não ter sido imediatamente reprimido, a sua chama devastou iodo o orbe.
DONDE À RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Em virtude da referida modéstia é o herético corrigido a primeira e a segunda vez. Mas, se não quiser retratar-se, já será considerado pervertido, como é claro pelo lugar citado do Apóstolo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A utilidade proveniente das heresias está fora da intenção dos heréticos; pois ela põe à prova a constância dos fiéis, conforme diz o Apóstolo; e serve para nos livrar da preguiça, fazendo-nos considerar mais solicitamente as divinas Escrituras, como diz Agostinho. Mas, a intenção dos heréticos é perverter a fé, mal máximo. Por onde, devemos levar em conta mais a intenção deles em si mesma, para serem excluídos, do que o que lhes está fora dela, para serem tolerados.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como está numa decretal uma coisa é a excomunhão e outra, a erradicação. Pois, alguém é excomungado, como diz o Apóstolo, afim de que a sua alma seja salva no dia do Senhor. Além disso, serem os heréticos totalmente erradicados pela morte, não fere o mandamento do Senhor; que se deve aplicar, no caso, de não poder extirpar-se a cizânia sem a extirpação do trigo, como já dissemos, ao tratar dos infiéis em geral.
O segundo discute-se assim. – Parece que a heresia não versa propriamente sobre matéria de fé.
1. – Pois, como entre os Cristãos, também entre os judeus e os fariseus houve heresias e seitas, conforme o diz Isidoro. Ora, as dissensões deles não versavam sobre matéria de fé. Logo, a heresia não versa sobre matéria de fé como matéria própria.
2. Demais. – Matéria de fé são as realidades em que cremos. Ora, a heresia versa, não sobre realidades somente, mas também sobre palavras e a interpretação da Sagrada Escritura. – Pois, como diz Jerônimo, quem quer que entenda a Escritura diferentemente do sentido em que o exige o Espírito Santo, de acordo com o qual foi escrita, embora não se aparte da Igreja, pode contudo chamar-se herético: e noutro lugar: a heresia provém de palavras desordenadamente proferidas. Logo, a heresia não versa propriamente sobre matéria de fé.
3. Demais. – Acontece às vezes dissentirem os santos doutores mesmo em matéria de fé. Assim, Jerônimo e Agostinho, sobre a cessação do regime da lei. Contudo não há nisso nenhum vício de heresia. Logo a heresia não versa propriamente sobre matéria de fé.
Mas, em contrário, diz Agostinho, contra os Maniqueus: Os que, na Igreja de Cristo, pendem para o que é corrupto e mau, e, corrigidos, para virem a pensar sã e retamente, resistem contumazmente e não querem emendar os seus dogmas pestilentos e mortíferos, mas persistem em defendêlos, são heréticos, Ora, pestilentos e mortíferos dogmas são os que se opõem aos da fé, pela qual o justo vive, como diz a Escritura. Logo, a matéria própria da heresia é o que pertence à fé.
SOLUÇÃO. – Tratamos agora da heresia enquanto implica corrupção da fé cristã. Ora, não implica essa corrupção termos opinião falsa sobre o que não é de fé, como as proposições geométricas, ou ciências semelhantes, que de nenhum modo podem a ela pertencer; mas só quando professarmos falsa opinião em matéria de fé. Ora, uma doutrina pode ser de fé, de dois modos, como já dissemos: direta e principalmente, como os artigos da mesma; ou indireta e secundariamente, como aqueles princípios que, sendo negados, acarretam a alteração de algum desses artigos. Ora, de ambos esses modos pode ha ver heresia, da mesma maneira que pode haver fé.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Assim como as heresias dos judeus e dos Fariseus versavam sobre certas opiniões pertencentes ao judaísmo ou ao farisaísmo, assim também as heresias dos cristãos versam sobre o que respeita à fé de Cristo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz-se que interpreta a Sagrada Escritura, de modo diferente do exigido pelo Espírito Santo, quem lhe perverte o sentido de modo a contrariar o que foi revelado pelo mesmo. Por isso, a Escritura diz, que os falsos profetas perseveraram em afirmar o que uma vez disseram, isto é, por falsas interpretações da Escritura. Semelhantemente, pelas palavras que proferimos, confessamos a nossa fé; pois, a confissão é um ato de fé, como já dissemos. Por onde, se nos manifestarmos inconvenientemente sobre matéria de fé, daí pode resultar que ela se corrompa. Por isso, o Papa Leão, em certa epístola diz: Porque os inimigos da fé de Cristo armam ciladas com todos os nossos atos, palavras e silabas, não lhe devemos dar nenhuma ocasião, por leve que seja, para que, mentindo, digam que estamos de acordo com os ensinamentos de Nestório.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como diz Agostinho e dispõem as decretais, não devem de nenhum modo ser considerados heréticos os que, procurando a verdade com cautelosa solicitude, defendem, sem nenhuma pertinaz animosidade, a opinião própria, embora falsa e pervertida, e estão prontos a se emendarem quando encontrarem a verdade. Pois, não têm a intenção de contradizer a doutrina da Igreja. Por isso, certos doutores dissentiram entre si sobre opiniões que nada importam à fé, sejam entendidas como forem, ou mesmo sobre certas questões pertinentes à fé, mas ainda não definidas pela Igreja. Mas, depois de definidas pela autoridade da Igreja universal, quem as impugnasse pertinazmente seria considerado herético. E essa autoridade reside principalmente no Sumo Pontífice. Pois, está determinado: Todas as vezes que se ventilarem questões de fé, julgo que todos os nossos irmãos e colegas no episcopado devem ser deferidos a Pedro, isto é, à autoridade do seu nome. E contra essa autoridade, nem Jerônimo, nem Agostinho, nem nenhum dos santos doutores defende a opinião própria. Por isso, diz Jerônimo: Esta é a fé, beatíssimo Papa, que aprendemos na Igreja católica. Na qual, se, menos doula ou pouco cautamente, introduzimos alguma causa, desejamos seja emendada por ti, que tens a fé e a sede de Pedro. Se, porém, esta nossa confissão for comprovada pelo teu juízo, quem quer que pretenda me culpar, mostrar-se-á indoulo, ou malévolo, ou ainda, não católico, mas herético.